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Avanos e Perspectivas Na
Musicologia Histrica Brasileira1
Paulo Castagna2
Resumo: Apesar da existncia de trabalhos interessados no conhecimento da msica brasileira j no sculo XIX, a musicologia iniciou o seu desenvolvimento no Brasil enquanto uma atividade intermediria entre literatura e cincia a partir da dcada de 1900, mas comeando a ser praticada segundo concepes propriamente cientficas somente a partir da dcada de 1960. Surgiu, ento, no Brasil, uma disciplina que j podia ser denominada musicologia histrica e que estava essencialmente preocupada com o estudo da msica produzida e praticada no pas. At meados da dcada de 1990, no entanto, a musicologia brasileira esteve essencialmente ligada s suas razes positivistas, presa ideologia nacionalista e religiosa, e principalmente voltada a atividades como a comprovao de uma prtica musical brasileira em tempos remotos, a descoberta do que ento se denominava a grande msica do passado, a construo da biografia dos seus autores e a valorizao de sua produo musical, por meio de informaes histricas, catlogos e anlises. Na dcada de 1990, entretanto, iniciou-se o estabelecimento de uma musicologia mais crtica e reflexiva, preocupada no somente com a interpretao dos fenmenos estudados, mas tambm com a sistematizao de informaes que no haviam passado por esse processo na curta fase positivista que tal cincia teve no Brasil. Essa transformao, impulsionada pelo desenvolvimento dos programas de ps-graduao e pela proliferao dos eventos regulares e dos peridicos especializados, trouxe consigo novas preocupaes, como a necessidade de princpios ticos no trabalho musicolgico, do respeito aos fundos documentais, do rigor metodolgico na pesquisa, da ampliao do nmero de pesquisadores e da difuso da pesquisa em todo o pas. O presente trabalho visa apresentar um rpido panorama do desenvolvimento da musicologia no Brasil e abordar os resultados obtidos pela nova musicologia estabelecida no pas a partir da dcada de 1990, bem como as perspectivas de trabalho que se configuram para as prximas dcadas.
Introduo: o estabelecimento da musicologia no Brasil
Surgida na Europa no sculo XIX, a musicologia teve objetivos que foram
se modificando com o passar do tempo. Ricardo TACUCHIAN (1994:98), por
exemplo, informa que a musicologia histrica, no sculo XIX, foi
principalmente factual e positivista, lembrando que seu maior objetivo foi o
levantamento de documentos musicais e sua edio crtica. Por outro lado, se
1Este texto foi originalmente apresentado no Ciclo de Palestras Musicologia e Patrimnio Musical, realizado na Biblioteca Central Reitor Macedo Costa da Universidade Federal da Bahia entre os dias 22 e 24 de outubro de 2004, evento organizado pelo Prof. Dr. Pablo Sotuyo Blanco (PPGMUS-UFBA), que autorizou sua publicao nesta Revista. Em funo de estar sendo impresso quatro anos aps sua apresentao em Salvador, o texto no cita eventos, publicaes e discusses posteriores a essa data. 2Instituto de Artes da UNESP - Universidade Estadual Paulista, So Paulo (SP).
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a musicologia histrica comeava a ser praticada na Europa no sculo XIX, o
estudo de documentos e sua edio crtica, no caso brasileiro, foram raros no
perodo anterior dcada de 1960.
Uma certa quantidade de textos sobre msica foi produzida no Brasil
durante o sculo XIX, com destaque para os de Manuel de Arajo Porto Alegre,
Afonso de Escragnolle Taunay (o Visconde de Taunay), Joo Barbosa Rodrigues
e Slvio Romero, mas em geral estes tinham interesse quase somente literrio,
estando ainda distantes do que se poderia denominar musicologia. Jos
Cndido de Andrade MURICY (1934), por exemplo, afirma ter sido Mario de
Andrade (1893-1945) o primeiro musiclogo brasileiro, consequentemente
excluindo do conceito de musicologia a produo sobre msica que antecedeu a
do pesquisador paulistano. Zlia e Isaac CHUECKE (2006) tambm acreditam
que o incio da atividade musicolgica no Brasil situa-se na primeira metade do
sculo XX.
Mesmo assim, foram raras as publicaes brasileiras destinadas a refletir
sobre os significados da musicologia nesse perodo. Luiz LAVENRE (1929)
parece ter sido o autor da primeira obra do gnero impressa no pas, seguida
dos textos de Jos Cndido de Andrade MURICY (1952) e Renato ALMEIDA
(1957), na dcada em que j era defendida a CRIAO de um Instituto de
Musicologia no Brasil (1954). As reflexes sobre a atividade musicolgica no
Brasil ou por brasileiros no foram muito freqentes a partir de ento, mas
existe um certo nmero de trabalhos dispersos em peridicos e anais de eventos
cientficos que at agora no foi suficientemente referido e cujo estudo
fundamental para uma futura histria da musicologia no Brasil, com destaque
para os de Francisco Curt LANGE (1970, 1977 e 1985), Olivier TONI (1982),
Grard BHAGUE (1989), Antonio Alexandre BISPO (1990 e 1998), Rafael Jos
de Menezes BASTOS (1991), Neide Rodrigues GOMES (1991), Roger COTTE
(1991), Sandra Loureiro de Freitas REIS (1991), Conrado SILVA (1991), Jos
Maria NEVES (1991 e 1995), Regis DUPRAT (1991a, 1992 e 1996), Manuel
VEIGA (1993 e 1996), Regina Mrcia Simo SANTOS (1998), Joo Baptista
SIQUEIRA (1988), Alberto DANTAS FILHO (2000), Dimitri CERVO (2001) e
Maria Ins GUIMARES (2001). Longe de aqui pretender a construo de uma
histria da musicologia no Brasil, este texto est destinado apenas a uma
tentativa de identificar e compreender o significado das principais mudanas
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pelas quais esta disciplina passou no pas, procurando deter-se na ltima delas,
localizada na dcada de 1990.
Na primeira grande transformao da musicologia no Brasil, que ocorreu
do incio do sculo XX at meados da dcada de 1960, observou-se a transio
de uma fase literrio-musical para uma fase propriamente musicolgica, na qual
os trabalhos passaram a se enquadrar em uma espcie de gnero intermedirio
entre literatura e cincia, incluindo-se a as assim denominadas histrias da
msica brasileira (ou no Brasil) e suas congneres, como as de Guilherme de
MELLO (1908), Renato ALMEIDA (1926), Vincenzo CERNICHIARO (1926),
Mrio de ANDRADE (1941), Renato ALMEIDA (1942), Maria Luiza de Queirs
Amncio dos SANTOS (1942), Francisco ACQUARONE [c.1948] e Lus-Heitor
Corra de AZEVEDO (1956), para citar apenas as mais conhecidas.
Os autores dessas histrias, apesar de seus esforos, reconheciam uma
tal carncia de informaes objetivas sobre a prtica e produo musical
brasileira que acabava por limitar seus prprios trabalhos. Lus Heitor Correia
de AZEVEDO (1956:377-386), em uma nota introdutria bibliografia de seu
livro, intitulada A musicografia no Brasil, menciona as principais
contribuies brasileiras da primeira metade do sculo XX, que classifica em
cinco grupos: histria da msica brasileira, lexicografia musical, estudos sobre
msica popular, crtica musical jornalstica e edio de revistas musicais.
Afirmando ser a musicologia brasileira ainda nascente e incipiente, destaca,
como uma das grandes contribuies musicolgicas daquele perodo, o tomo 6
do Boletn Latino-Americano de Msica (1946), impresso no Rio de Janeiro
pelo Instituto Interamericano de Musicologia.
De fato, esse sexto tomo do Boletn pode ser considerado um importante
marco na musicologia brasileira, por ter reunido trabalhos que procuravam sair
do enfoque meramente literrio-musical, para investigaes mais profundas
sobre o patrimnio musical brasileiro. O Boletn contou com vinte e dois
trabalhos impressos, destacando-se os de Francisco Curt Lange, Mrio de
Andrade e Pedro Sinzig, mas tambm incluiria textos de Lus Heitor Corra de
Azevedo, Jos Cndido de Andrade Muricy, Clvis de Oliveira e outros autores
em um segundo volume desse tomo, que nunca chegou a ser impresso, em
funo dos problemas econmicos acarretados pela Segunda Guerra Mundial
(VIDAL, 2005:132-136).
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Ao lado dos pesquisadores que fizeram (ou teriam feito) parte do tomo 6
do Boletn Latino-Americano de Msica, podemos destacar, na musicologia
brasileira das dcadas de 1900 a 1950, a produo de autores como Guilherme
de Melo, Jos Rodrigues Barbosa, Renato Almeida, Vincenzo Cernicchiaro,
Serafim Leite, Carlos Penteado de Rezende, Joo da Cunha Caldeira Filho,
Maria Luiza de Queirs Amncio dos Santos, Hebe Machado Brasil, Geraldo
Dutra de Morais, Ayres de Andrade e Joo Batista Siqueira, que em seus
trabalhos, em geral relacionados a diversos aspectos da histria da msica no
Brasil, procuravam demonstrar a existncia de uma tradio musical que
antecedia a msica erudita de sua poca. Tais autores eram movidos pela
possibilidade de o Brasil ser reconhecido entre as naes que cultivavam seu
passado musical, a exemplo dos pases europeus, mas possibilitaram mais a
identificao e organizao cronolgica de objetos de estudo para a musicologia,
do que efetivamente se propuseram a estud-los. No h dvida, entretanto, do
papel de liderana que tiveram Mrio de Andrade em So Paulo e Lus Heitor
Corra de Azevedo no Rio de Janeiro, com trabalhos pioneiros que caminhavam
em direo a uma musicologia cada vez mais cientfica, alm de suas
preocupaes em outras reas.
Apesar dos esforos brasileiros, Francisco Curt Lange foi o primeiro
pesquisador que atravessou a fronteira da musicologia histrica no pas, com
uma srie de trabalhos, iniciada pelo texto impresso no sexto tomo do Boletn
Latino-Americano de Msica (LANGE: 1946), mas que se estendeu at a dcada
de 1980, com dezenas de ttulos ainda no totalmente assimilados pelos
pesquisadores brasileiros. Alemo residente no Uruguai e interessado desde a
dcada de 1930 na pesquisa da prtica musical americana, dedicou a maior
parte de seus trabalhos ao Brasil, realizando inmeras visitas ao pas e residindo
no Rio de Janeiro entre 1944-1945 e 1958-1959. Seus mtodos foram
principalmente ligados pesquisa arquivstica, arquivologia e edio musical
e, at pelo menos o final da dcada de 1950, no houve no Brasil outro
pesquisador que desenvolvesse trabalho semelhante. Jos de S PORTO
(1962:36), em um dos raros textos reflexivos desse perodo sobre os objetivos e
mtodos da musicologia, cita, em relao ao Brasil, apenas os trabalhos de Curt
Lange, notadamente aquele impresso no tomo 6 do Boletn.
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Vale lembrar que Jos Cndido de Andrade MURICY (1952:110) j citava
as palavras de Jacques Handschin, na abertura do Congresso Internacional de
Musicologia da Basilia (Sua) em 1950, segundo o qual o verdadeiro objeto
da musicologia no a msica considerada como um fato em si mesmo, porm
o homem, na proporo em que se exprime musicalmente, constatao que
estimulou a separao da etnomusicologia enquanto um ramo independente da
musicologia e apresentou uma nova perspectiva aos musiclogos, sobretudo no
campo da musicologia histrica. Curt Lange o primeiro autor interessado no
passado musical brasileiro que se aproxima dessa tendncia, na medida em que
deixa de olhar de uma maneira utilitria para a histria, como manancial de
informaes e prticas para a estruturao de uma msica nacional, e comea a
tentar compreender os fenmenos que regiam a produo musical no Brasil
setecentista, especialmente em Minas Gerais, desvendando o sistema de
contratao da msica pelas cmaras, irmandades e ordens terceiras.
Em termos de produtividade, o maior interesse do trabalho de Curt
Lange para o Brasil est, sem dvida, no levantamento, transcrio e estudo da
documentao cartorial e religiosa de interesse musical, principalmente em
Minas Gerais, no primeiro grande esforo da pesquisa arquivstica com
finalidades musicolgicas no pas. Curt Lange publicou, nas dcadas de 1960 a
1980, as primeiras coletneas de informaes histricas referentes prtica
musical brasileira acompanhada de suas anlises, que planejava organizar em
dez volumes. Alguns deles foram impressos em forma de livros e outros em
forma de artigos, porm vrios desses volumes no chegaram a ser publicados
(somente os ttulos sublinhados foram impressos, um deles parcialmente) e a
pesquisa de alguns deles nem chegou a ser concluda (Jos da Veiga OLIVEIRA,
1979:9-10):
I - Histria da msica nas Irmandades de Vila Rica: Freguesia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto
II - Irmandade de So Jos dos Homens Pardos ou Bem Casados III - Irmandade de Santa Ceclia IV - Senado da Cmara [de Vila Rica no sculo XVIII] e os servios
de msica religiosa V - Histria da msica nas Irmandades de Vila Rica: Freguesia de
Nossa Senhora da Conceio de Antnio Dias VI - A pera em Vila Rica, a msica militar, a msica nos festejos
reais e procisses, documentao musical avulsa VII - A msica nos arredores de Vila Rica: Mariana, Cachoeira do
Campo, Congonhas do Campo, Casa Branca, Sabar e
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Caet; a msica nas vilas mais distantes: Pitangui, Campanha, Serro; As danas pblicas coletivas e as danas dramticas das corporaes de ofcios em Minas Gerais; Os vissungos
VIII - Histria da msica na Vila do Prncipe do Serro do Frio e no Arraial do Tejuco.
IX - Os compositores durante o perodo colonial em Minas Gerais; estudos analticos das composies de autores mineiros
X - ndices e referncias biogrficas dos Professores da Arte da Msica, assinaturas de compositores, histrias das bandas, atividade musical no sculo XIX
Todo esse trabalho teve como objetivo principal comprovar a existncia
de uma prtica musical erudita no Brasil anterior a Jos Maurcio Nunes
Garcia (1767-1830), ou seja, antes do perodo no qual as histrias da msica
no Brasil - como as de Renato Almeida e Lus Heitor Corra de Azevedo -
comeavam a mencionar tambm a msica e no apenas as informaes
biogrficas ou literrias sobre seus autores ou suas pocas. Apesar da enorme
contribuio de Curt Lange na expanso da musicologia enquanto atividade
cientfica no Brasil, bem como na ampliao dos horizontes da histria da
prtica musical brasileira, seus trabalhos foram essencialmente orientados por
uma historiografia positivista, evolucionista e eurocntrica, com manuteno do
interesse biogrfico e muito mais nfase nos compositores do que em sua
msica. Seus comentrios eram fortemente impregnados pelo desejo de
demonstrar o nvel ou a qualidade da msica atingida na Capitania de Minas
Gerais e em outras regies brasileiras, mais especificamente a msica por ele
descoberta, o que limitava sua compreenso do significado de vrios
fenmenos com os quais se deparou.
Curt Lange estudou a msica religiosa com as mesmas ferramentas da
msica instrumental, fixando-se em aspectos muito particulares desse
repertrio, o que lhe impediu o estabelecimento de relaes mais amplas. A
desconsiderao de aspectos ligados ao poder religioso e temporal, liturgia, s
condies scio-econmicas e s limitaes tcnicas envolvidas no processo de
recepo, ensino, composio, execuo e transmisso da msica deram
produo de Curt Lange um carter bem mais descritivo que reflexivo, com
nfase no impacto de suas descobertas e na organizao das incontveis
informaes sobre a antiga prtica musical brasileira, especialmente mineira.
Curt Lange tambm recolheu, desde a dcada de 1940, uma grande
quantidade de manuscritos musicais principalmente em cidades paulistas e
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mineiras, constituindo a coleo hoje preservada no Museu da Inconfidncia de
Ouro Preto (MG). Sua voraz atividade colecionista no foi, entretanto,
acompanhada de um mesmo interesse arquivstico, editorial ou analtico. A
pequena quantidade de obras que editou, das quais a maioria nunca chegou a
ser impressa, preocupou-se muito pouco com questes metodolgicas e foi
quase somente destinada a subsidiar apresentaes ao vivo e gravaes.
Paralelamente, isso permitiu, a partir de 1958, a audio de composies
mineiras do final do sculo XVIII, o que causou um impacto sem precedentes no
meio musical brasileiro. A falta de transparncia (ou seja, de um mtodo
cientfico) na elaborao de suas edies acabou contribuindo para que o
musiclogo alemo sofresse uma grande quantidade de ataques a partir de
ento, mas a maior parte da polmica ocorreu pelo fato de Curt Lange transferir
para sua residncia, no Rio de Janeiro e depois em Montevidu (Uruguai),
muitos manuscritos ou mesmo arquivos musicais inteiros, cuja origem nem
sempre se preocupou em registrar.
A herana de Curt Lange e a msica como centro das atenes
Curt Lange catalizou, no Brasil, a transio de uma musicologia literria
para uma musicologia cientfica, porm foram somente seus seguidores
imediatos que lograram aplicar uma metodologia na qual a msica
propriamente dita passava a ser o principal objeto de estudo. A contribuio de
Curt Lange desencadeou, a partir da dcada de 1960, uma nova fase na
musicologia brasileira, na qual os pesquisadores passavam a utilizar mtodos
propriamente musicolgicos e no apenas histricos ou literrios. Pela primeira
vez no pas, a msica brasileira comeava a ser estudada a partir das obras e no
apenas de seus compositores ou da histria poltica do pas.
Entre os autores dessa poca, pode-se destacar a atuao de musiclogos
como Cleofe Person de Mattos, Jaime Diniz, Rgis Duprat, Antonio Alexandre
Bispo, Jos de Almeida Penalva, Jos Maria Neves, Adhemar Campos Filho e
Aluzio Jos Viegas. Tais pesquisadores, ao mesmo tempo em que herdaram,
direta ou indiretamente as contribuies de Francisco Curt Lange, deram
msica preservada em manuscritos antigos um destaque enquanto objeto de
pesquisa que esta jamais havia recebido no Brasil, antes da dcada de 1960.
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A dvida dessa gerao para com Francisco Curt Lange, entretanto, era
no s evidente, como boa parte das concepes do musiclogo alemo foram
para ela transmitidas. Rgis DUPRAT (1972, 1981, 1991b e 2002), por exemplo,
em uma serie de quatro artigos que, embora reeditados em dcadas diferentes
guardam entre si um ncleo comum, apresenta importantes elementos de sua
viso musicolgica, que d grande nfase na descoberta, catalogao,
restaurao e gravao de obras, mas no necessariamente na publicao de
suas partituras. Herdando de Curt Lange o conceito de descoberta das
composies musicais antigas, Duprat procurou firm-lo enquanto um dos mais
importantes distintivos do trabalho musicolgico, tentando estabelecer tambm
a nfase no perodo colonial enquanto principal objetivo da musicologia
histrica, tal como o fazia o musiclogo alemo. Rgis Duprat defende a
centralizao dos acervos musicais, aderindo atividade colecionista tambm
herdada de Curt Lange, defendendo ainda a preservao do patrimnio cultural
enquanto fator destinado dignificao do Homem (DUPRAT, 1991b:81).
De acordo com Duprat, seria necessrio incorporar a msica que ento se
denominava colonial cultura brasileira, assim como os europeus o fizeram
com Machaut, Vivaldi, Haendel e outros. Atravs do trabalho musicolgico que,
segundo esse autor, possui natureza trplice - envolvendo a pesquisa de campo,
a pesquisa de arquivo e a restaurao aliada ao trabalho de gabinete - Duprat
defende a incorporao de obras de verdadeira importncia histrico-
artstica, destinada, portanto, formao de repertrio. Dando menor
importncia impresso das partituras como parte das atividades destinadas a
essa incorporao, o que pode ser compreendido como a centralizao desse
processo na figura do musiclogo que detm as fontes, esse autor percebe a
necessidade de metodologia especfica, mas tambm reconhece a inexistncia de
pesquisadores especializados para esse tipo de atividade (DUPRAT, 1972:102):
Por contingncia histrica, o estado atual da distribuio desses manuscritos exige um trabalho insano, digno de geraes de equipes, para descobri-los, centraliza-los, inventari-los, cataloga-los, restaura-los e grava-los para que tenham vida sonora. Insistimos em que cada uma dessas etapas requer uma metodologia prpria, rigorosamente cientfica, para o que preciso formar quadros tcnicos especializados.
Na terceira verso de seu texto (DUPRAT, 1991b:84), o pesquisador
carioca afirma que o propsito da musicologia histrica manipular
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partituras e ouvir gravaes de praticamente todos os sculos que nos
antecederam, acreditando, ainda, ser o seu objetivo a redescoberta da grande
msica do passado. A importncia histrico-artstica das obras foi
frequentemente enfatizada por tal autor: J que vivemos os primrdios da
construo de um acervo musical de nosso pas, nossa tarefa garantir, tanto
quanto possvel, que venham a pblico obras de verdadeira importncia
histrico-artstica (DUPRAT, 1991b:88). O grande problema, nesse caso,
saber qual seria essa grande msica do passado e como reconhecer as obras
de verdadeira importncia histrico-artstica, ou seja, quais seriam os
critrios para se decidir se as composies descobertas estariam ou no nessa
categoria.
Como no existem solues objetivas para essas questes, possvel
deduzir que, na prtica, caberia aos musiclogos, de acordo com tal concepo,
decidir quais obras deveriam ser levadas a pblico e convencer a sociedade de
que estas possuam a importncia e o interesse que alegavam. Assim, a pesquisa
de campo, a pesquisa de arquivo e a restaurao aliada ao trabalho de gabinete
visavam essencialmente o estabelecimento de um repertrio de obras
exumadas do passado, cuja importncia deveria ser demonstrada pelo
pesquisador.
Percebe-se, ento, que essa vertente da musicologia foi pouco crtica,
interpretativa ou reflexiva, e mais voltada a questes tcnicas referentes
divulgao ou exumao do passado, como refere Duprat. De fato, esse autor
propunha uma certa tecnificao do setor cultural, defendendo o que
chamava de tecnocratismo esclarecido (DUPRAT, 1991b:81), ou seja, uma
abordagem na qual as questes tcnicas teriam prioridade, ficando em segundo
plano sua interpretao.
Embora houvesse muitas diferenas entre os musiclogos brasileiros que
atuaram entre as dcadas de 1960 a 1980, foi comum a nfase no perodo
colonial, nas obras-primas e em autores que tivessem condies de serem
associados aos seus contemporneos europeus de destaque, mesmo que essas
tendncias j estivessem sendo abandonadas na musicologia europia, que
visava no mais estudar a grandeza prpria de um artista, mas sim as
modificaes da msica no tempo (PORTO, 1962:28). Surgia, no Brasil, dessa
maneira, a tendncia que podemos denominar de exclusivismo autoral, ou
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seja, uma ntima relao entre compositor e musiclogo, segundo a qual um
pesquisador estudava preferencialmente as obras de um determinado
compositor, ao mesmo tempo em que as obras desse compositor deveriam ser
preferencialmente estudadas pelo mesmo musiclogo. E isso nem foi
exclusividade brasileira. Leonardo WAISMAN (1998) j identificava essa
tendncia na Amrica Latina, enfatizando a relao que distintos musiclogos
havia estabelecido com a msica do compositor italiano Domenico Zpoli (1688-
1726), radicado desde 1717 em Crdoba (hoje Argentina, mas ento pertencente
ao Paraguai) e cujas obras foram principalmente preservadas na Bolvia: surgia,
assim, um Zpoli italiano, um Zpoli boliviano, um Zpoli paraguaio e Waisman
preconizava o possvel surgimento de um Zpoli argentino.
Manifestando essa tendncia no Brasil, Francisco Curt Lange concentrou-
se preferencialmente nas obras de Jos Joaquim Emerico Lobo de Mesquita
(1746?-1805), Cleofe Person de Mattos nas composies de Jos Maurcio
Nunes Garcia (1767-1830), Rgis Duprat na msica de Andr da Silva Gomes
(1752-1844) e Jaime Diniz na produo de Lus lvares Pinto (c.1719-c.1789) e
Damio Barbosa Arajo (1778-1856), para citar os exemplos mais notrios. Na
dcada de 1990 outros compositores chegaram a ser disputados por
pesquisadores que seguiam a mesma trilha, porm no foi mais possvel
sustentar o exclusivismo autoral a partir dessa poca.
Por outro lado, alm do colecionismo e do exclusivismo autoral, essa
gerao teve uma concepo centralizadora da musicologia histrica. Antonio
Alexandre BISPO (1983), por exemplo, afirma ter sido a fundao da Sociedade
Brasileira de Musicologia (SBM) em 1981 um marco no desenvolvimento da
musicologia no Brasil, considerando-a o primeiro passo para a
institucionalizao desse tipo de atividade no pas, como teria ocorrido em
outros pases. O autor defende o apoio oficial para a musicologia e sua prtica
centralizada em torno da SBM, evitando o contato com o meio universitrio e
preferindo a ligao com organismos governamentais. Mas essa perspectiva
acabou ficando para trs, na medida em que a musicologia foi se tornando uma
atividade relacionada s universidades, especialmente a partir da dcada de
1990, deixando a SBM com poucas funes reais a partir de ento. Conclui-se,
portanto, que o verdadeiro marco da institucionalizao da musicologia no
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Brasil no foi a fundao da SBM, mas a incluso da musicologia enquanto linha
de pesquisa universitria nas dcadas de 1980 e 1990.
Obviamente, houve tendncias paralelas, destacando-se a contribuio de
Mozart de Arajo, Mercedes de Moura Reis Pequeno, Jaime Diniz, Gerard
Bhague, Robert Stevenson, Vicente Salles, Bruno Kieffer, Arnaldo Daraya
Contier, Jos Maria Neves, Adhemar Campos Filho, Aluzio Jos Viegas, Slvio
Augusto Crespo Filho, Jorge Hirt Preiss e outros, preocupados com a construo
de panoramas da prtica musical no Brasil ou em regies especficas, em lugar
de uma abordagem focada exclusivamente no repertrio. Autores como Harry
Lamott Crowl Jr., Srgio Dias, Heitor Geraldo Magella Combat, Arnaldo Jos
Senize e outros prosseguiram no trabalho com as fontes musicais, porm
preocupados com maior difuso do repertrio a partir das ento denominadas
transcries ou restauraes.
No campo das histrias da msica brasileira, no caso associadas
msica erudita, os trabalhos de Jos Maria NEVES (1977), Vasco MARIZ (1981),
Bruno KIEFER (1982) e David APPLEBY (1983) beneficiaram-se de um
levantamento de informaes e um conhecimento de repertrio que ainda no
existia na gerao anterior dcada de 1960, surgindo tambm as primeiras
histrias da msica popular, como as de Ary VASCONCELOS (1977) e Jos
Ramos TINHORO (1981, 1986 e 1990).
No se pode negar a enorme contribuio dessa fase para a musicologia
brasileira, especialmente no que se refere ao seu desenvolvimento
metodolgico. Se Curt Lange proporcionou o contato com a prtica musical
brasileira anterior ao sculo XIX, a gerao que atuou a partir da dcada de
1960 teve o mrito de levar a pblico alguns de seus autores e de suas obras, ao
mesmo tempo em que propunha o conhecimento do passado musical brasileiro
luz do repertrio, o que no havia ocorrido com freqncia, at ento.
Por outro lado, a musicologia dessa gerao foi predominantemente
positivista e teve uma forte conotao nacionalista, s vezes unindo a esses
aspectos o interesse religioso. Salvo excees, a pesquisa era uma atividade
quase exclusivamente individual e desvinculada do meio universitrio, sendo
raros os debates entre os pesquisadores, que normalmente elegiam focos de
interesse bastante distintos entre si, com a finalidade de evitar o choque de
interesses. O aperfeioamento dos mtodos para a construo do conhecimento
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sobre o passado musical brasileiro dificilmente estavam em pauta e os trabalhos
em geral adotavam o estilo descritivo. A publicao de uma quantidade limitada
de trabalhos e o protecionismo aos acervos ou s obras de determinados autores
foi bastante comum, o que dificultou o desenvolvimento da pesquisa e permitiu
o estabelecimento de vises monolticas a respeito dos assuntos estudados. A
formao de novos pesquisadores era muito pequena e os intercmbios com a
musicologia internacional eram mais tericos do que prticos. Esse panorama
predominou at incios da dcada de 1990, quando comeou a sofrer algumas
modificaes, mesmo que lentas.
Em direo a uma nova musicologia brasileira
As particularidades da musicologia das dcadas de 1960 a 1980 e o
esgotamento de sua eficcia, aliadas a um maior contato com a musicologia
internacional, motivaram, a partir da dcada de 1990, o surgimento de uma
nova musicologia no Brasil, que herdava as conquistas da gerao anterior, mas
que tambm procurava superar suas limitaes. O aspecto inicialmente mais
questionado foi o acesso dos pesquisadores s obras ou aos acervos de
manuscritos musicais. Um dos primeiros textos a abordar a questo foi a
reportagem de Lus Antnio GIRON (1989), que denunciava a prtica do
protecionismo s fontes musicais, mesmo em acervos pblicos:
Nos ltimos 45 anos, os pesquisadores da chamada msica barroca mineira mais criaram problemas do que resolveram os que se propuseram a enfrentar. Em vez de levantar a documentao para pass-la aos msicos e da estabelecer uma circulao interpretativa atravs de edies, mantiveram as fontes sob seu poder, transformando-as em fonte de lucro pessoal.
Alguns anos mais tarde, manifestei opinio semelhante, porm referindo-
me tambm a alguns problemas ligados formao dos pesquisadores,
organizao dos acervos, realizao de eventos e circulao de informaes
referentes produo musicolgica (CASTAGNA, 1995):
[...] Foroso dizer que o sentimento de posse com relao a assuntos culturais, manuscritos e obras musicais ainda feudal; a formao de novos musiclogos pouco ultrapassou os limites do auto-didatismo; a maior parte dos acervos de manuscritos particular, ou tratada como tal; as bibliotecas pblicas, com raras excees, so mal aparatadas e as publicaes em nmero
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insignificante, para no se falar nos problemas sociais, polticos e econmicos, que mantiveram o pas, por mais de trs dcadas, alheio ao desenvolvimento mundial neste setor. O prprio ensino da msica erudita insuficiente para a formao de grupos musicais de projeo internacional, capazes de reverter a averso do pblico tradicional com relao msica brasileira de concerto, via de regra, julgada mais pela execuo que pela qualidade e significado histrico das composies. As relaes entre os musiclogos brasileiros ainda no so satisfatrias e no existem mecanismos eficazes, no Brasil, para se saber, com rapidez, o que vem sendo atualmente produzido em musicologia, nas diversas partes do pas, exceo dos espordicos simpsios, encontros e congressos, nos quais, com raras excees, as participaes no tm resultado na criao de metas comuns. As bibliografias da msica erudita brasileira esto longe de reunir os trabalhos publicados nessa rea. Ainda que vrias tentativas de sistematizao j tenham sido levadas a cabo, o tempo as torna obsoletas, sem que novos trabalhos venham atualiz-las.
Em outro texto especificamente destinado a esse assunto (CASTAGNA,
1998), questionei a aplicao dos conceitos de descoberta e restaurao,
analisando vrios aspectos ticos envolvendo a relao entre os pesquisadores e
os acervos musicais, bem como a relao entre os prprios pesquisadores,
assunto que at ento era considerado um certo tabu.
Essa fase teve uma inegvel efervescncia, principalmente nos eventos
especficos em musicologia, no que se refere discusso de certos
procedimentos adotados na musicologia brasileira. E foi em um desses eventos
que Maurcio MONTEIRO (1998:104) apresentou sua opinio sobre tal assunto,
afirmando que, ao mesmo tempo em que no existe nem um rgo que
realmente represente a musicologia, no existe tambm uma poltica de
pesquisa cientfica que permita sem restries o acesso s fontes documentais,
informando, ainda, serem estes os principais empecilhos pesquisa
musicolgica no Brasil. Em relao ao acesso s fontes, o autor claro e
incisivo:
Quanto ao primeiro problema - o do acesso s fontes, necessrio ressaltar que alguns grupos tm a pretenso de se tornarem guardies da fonte histrica, no colocando em prtica a poltica da pesquisa. Ou seja, alguns pesquisadores-arquivistas ignoram a Constituio e impedem o acesso e o estudo das informaes. A fonte textual ou iconogrfica, manuscrita ou impressa um documento histrico e por isso deve ser preservada; entretanto, as informaes contidas nele devem ser estudadas em busca de uma compreenso da atividade musical - seja ela do passado ou da contemporaneidade.
Posteriormente, Andr Guerra COTTA (2000a) estudou o direito de
acesso aos acervos musicais brasileiros e a seu contedo, demonstrando que, no
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caso de acervos pblicos, no existia nenhum dispositivo legal que pudesse
impedir a consulta de um documento antigo, a no ser em caso de precrio
estado de conservao, mas nesse caso, a instituio custodiadora teria a
obrigao de informar quais eram os documentos impedidos consulta, alm de
disponibilizar ao consulente algum tipo de imagem dos mesmos. Esse e outros
trabalhos deram respaldo terico ao combate da prtica de alguns musiclogos e
arquivistas de impedir o acesso a determinados documentos musicais ou mesmo
a um acervo inteiro e, juntamente com outras aes, participaram do incio da
reverso do protecionismo aos manuscritos musicais.
Toda essa discusso motivou a primeira manifestao coletiva sobre o
assunto nas Concluses do III Simpsio Latino-Americano de Musicologia
(Curitiba, 1999), documento em quatorze itens redigido e assinado por
musiclogos majoritariamente brasileiros, ao lado de colegas da Argentina,
Santiago do Chile, Venezuela, Cuba, Mxico, Estados Unidos e Espanha
(CONCLUSES, 2000:12). De maneira geral, o documento manifestou-se por
uma poltica de acesso dos pesquisadores aos acervos musicais e por um
desenvolvimento democrtico da musicologia histrica. O segundo pargrafo
apresentou a opinio dos participantes do evento para as mesmas questes
expostas pelos autores anteriormente citados:
2. O pesquisador deve respeitar a integridade dos acervos, contribuir para sua preservao e valorizar o acesso dos demais interessados, mesmo aos acervos com os quais trabalha ou trabalhou, visando democratizao da pesquisa, pluralidade de abordagens dos objetos de estudo e expanso das investigaes musicolgicas.
Paralelamente, iniciou-se o desenvolvimento de uma reflexo crtica
sobre a atividade musicolgica, que incluiu mesmo os autores que no a
praticavam como sua principal atividade. o caso de Alberto T. IKEDA (1998),
que discutia as diferenas entre a prtica da cincia e a prtica artstica,
criticando o interesse apenas no conhecimento dos fenmenos em si, sem
indagaes sobre suas causas. O mesmo autor, em outro trabalho (IKEDA,
2001), reconhecia o enfoque analtico descontextualizado como uma das mais
tpicas heranas positivistas. Manuel VEIGA (1998:80), por sua vez,
questionava o etnocentrismo musicolgico e a pretensa universalidade da
msica europia geralmente adotada pelos musiclogos, rejeitando a nfase
nos produtos, em vez dos procedimentos, redundando num repertrio de
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msica oficial. Ricardo TACUCHIAN (1994) percebia que a reflexo ou
interpretao do fato musical histrico - para ele o maior objetivo da
musicologia histrica - ainda era uma atividade incipiente no Brasil, mas
Jamary OLIVEIRA (1992:8), autor de um dos textos mais crticos da dcada
sobre o assunto, reconhecia que o estudo da msica brasileira sob o ponto de
vista interpretativo est apenas comeando e questionava a abordagem mais
interessada na vida dos compositores que em suas obras, opondo-se tambm
musicologia voltada exumao de obras-primas (Jamary OLIVEIRA,
1992:6), identificando com muita clareza sua principal finalidade (e,
obviamente, dela discordando):
Queremos antes de tudo mostrar ao mundo que o Brasil produziu no passado e continua a produzir no presente obras-primas da tradio europia, o que certamente nos colocaria entre as naes de primeiro mundo.
interessante considerar que o prprio conceito de obra-prima no leva
em conta o significado da obra no contexto de sua produo, mas sobretudo sua
relao com o presente. Por essa razo, Rgis DUPRAT (1991b) defendia a
exumao do passado em funo das necessidades do presente e das
perspectivas do futuro, a partir do mesmo tipo de critrio de qualidade que
Giulio ARGAN (1993) relacionou esttica idealista e que motivou a destruio
de inmeras construes antigas que no eram reconhecidas como obras-
primas. A grande questo, novamente, definir quais so as necessidades do
presente e as perspectivas do futuro que determinaram essa exumao, pois
nenhuma obra do passado realmente ter lugar aqui e agora se no tiver uma
nova funo: seriam elas necessidades pessoais, coletivas, institucionais ou de
um determinado sistema? Qual passado deveria ser exumado e qual no
deveria? Quem tomaria essa deciso e por quais motivos? Nesse sentido, Jos
Maria NEVES (1999) chamava a ateno para o preconceito do musiclogo
histrico, que no aceitava que a msica para banda, por exemplo, pudesse ser
digna de uma abordagem acadmica, uma vez que no se enquadrava nos
critrios a priori definidos pela esttica idealista.
A discusso estendeu-se ao visvel isolamento da pesquisa musicolgica
no Brasil em relao ao desenvolvimento desse campo cientfico em outras
regies do mundo. A esse respeito, Maria Elisabeth LUCAS (1990) e tambm eu
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(CASTAGNA, 1995) propnhamos um maior contato e troca de experincias
entre a musicologia brasileira e portuguesa, aliadas a um maior intercmbio
entre a pesquisa musicolgica brasileira e a dos pases hispano-americanos. Tal
contato comeou a se fortalecer a partir da segunda metade dessa dcada, mas
preciso reconhecer que h um longo caminho a ser trilhado nessa direo.
No campo da histria da msica, Arnaldo CONTIER (1985) e Henrique
Emanuel Gomes PEDROSA (1988) esto entre os poucos anteriores dcada de
1990 que refletiram sobre os trabalhos brasileiros do gnero. Mais
recentemente, Avelino Romero Simes PEREIRA (1995) props a construo de
uma histria da msica brasileira (ou no Brasil) a partir de mtodos e
concepes originrios da histria, procurando reverter a tendncia ensastica,
empirista e, sobretudo, positivista que predominava nesse tipo de atividade no
Brasil. Maria Elisabeth LUCAS (1998:69), que tambm se dedicou a esse tema,
criticou, nas histrias da msica brasileira, as narrativas mticas sobre
determinado perodo, gnero musical ou grupo de compositores, que acabam
institucionalizadas como paradigma de conhecimento. A autora identifica o
modelo positivista dessas histrias e, apesar de sua necessidade, acusa a
cristalizao de concepes que so transmitidas ao estudante e que acabam
condicionando novas pesquisas.
Raras, entretanto, so as reflexes tericas brasileiras sobre a histria da
msica, como a de Vanda Lima Bellard FREIRE (1994), sendo porm urgentes
novos trabalhos sobre o passado e o futuro dessa disciplina no pas. Desde a
dcada de 1970 a produo de novas histrias gerais da msica brasileira
encontra-se estagnada, vigorando a separao entre a msica erudita e a
popular (apesar da enorme dificuldade em sua conceituao), para a qual
nenhum autor at o momento ousou propor uma abordagem conjunta, depois
dos livros de Guilherme de Mello e Renato Almeida, que davam ateno
msica erudita e ao folclore musical. Acredito, ainda, que publicaes de grande
porte, como novas histrias da msica brasileira, devam ser futuramente
projetadas como obras coletivas, contendo textos de vrios especialistas sobre os
aspectos abordados, de modo a evitar as concepes monolticas, individualistas
e nem sempre fundamentadas em fontes histricas que predominam nos livros
do gnero at ento publicados no pas.
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Torna-se claro, portanto, que a musicologia que comeou a se estabelecer
no Brasil na dcada de 1990 teve como metas a superao do modelo positivista
e a procura de novas teorias que pudessem explicar o significado dos fenmenos
estudados. Paralelamente, surgia um dos maiores dilemas na musicologia
brasileira dessa poca: sem uma produo resultante da concepo positivista
que orientou a musicologia europia na segunda metade do sculo XIX e
primeira metade do sculo XX, no haveria suficiente material para abordagens
mais reflexivas ou interpretativas. Assim, a nova gerao de musiclogos
brasileiros comeou a se preocupar com o aspecto crtico e reflexivo, mas
tambm procurou retomar o trabalho tcnico, de forma mais intensa e com
maior conscincia metodolgica, o que ampliou consideravelmente suas
responsabilidades e deixou claro que a musicologia no poderia mais ser, no
Brasil, uma atividade exclusiva de um pequeno crculo de especialistas. A partir
de ento, em uma tentativa de ampliar rapidamente o material disponvel,
dezenas de obras comearam a ser impressas, dezenas de acervos comearam a
ser estudados e catalogados, novos eventos foram realizados e muitos textos
foram publicados.
No obstante, a falta de trabalhos sistemticos era e continua sendo
muito grande no panorama musicolgico brasileiro. Jos Maria NEVES (1998),
em pleno final do sculo XX, acusava o desinteresse pela elaborao de
catlogos de fontes primrias no pas, demonstrando que ainda era pequeno o
conhecimento a respeito dos acervos brasileiros de manuscritos musicais. A
musicologia herdeira de Curt Lange preocupava-se muito com autores e suas
composies, mas legava a um segundo plano os acervos, seu contedo, a
relao entre eles e outros aspectos relacionados arquivologia musical. Foi
somente a partir da dcada de 1990 que comearam a ser realizados trabalhos
de maior flego no que se refere organizao e catalogao de acervos, cujos
resultados vm permitindo o surgimento de pesquisas destinadas a uma
compreenso global da msica preservada no pas e no apenas de alguns
autores e suas obras, embora ainda haja um longo caminho a ser trilhado nessa
direo.
As preocupaes arquivsticas, a partir dessa fase, foram tanto tericas
quanto prticas. No que se refere primeira vertente, estudei alguns catlogos
de acervos brasileiros de manuscritos musicais, detectando a utilizao de
49
critrios diferentes para a catalogao de obras e documentos em um mesmo
projeto, alm da impreciso ou inadequao de alguns desses critrios
(CASTAGNA, 2000). A partir desse estudo e da prpria experincia com esse
tipo de atividade, propus algumas diretrizes e solues para um conhecimento
mais amplo do contedo dos acervos brasileiros. Andr Guerra COTTA (2000b),
em sua dissertao de mestrado, como em outros artigos e comunicaes,
realizou trabalho terico sobre o tratamento da informao em acervos
brasileiros de manuscritos musicais, a partir de uma crtica dos instrumentos de
busca at ento publicados e de um estudo da metodologia utilizada no
Rpertoire International des Sources Musicales (RISM), em uma tentativa de
fornecer novos subsdios para o desenvolvimento da arquivologia musical no
Brasil.
Outros autores, ainda, preocuparam-se com aspectos tericos da
arquivologia musical, como Fernando Binder e Modesto Fonseca, mas os
esforos nesse sentido concentraram-se na organizao, catalogao e estudo de
acervos, principalmente a partir do trabalho de pesquisadores como Mercedes
Reis Pequeno, Mrcio Miranda Pontes, Andr Guerra Cotta, Vanda Freire,
Lorenzo Mammi, Pablo Sotuyo Blanco, Modesto Fonseca, Andr Cardoso,
Maurcio Monteiro, Rosngela Pereira de Tugny, Aluzio Jos Viegas, Mary
ngela Biason e Lenita Nogueira, incluindo-me tambm entre os interessados
nesse tipo de atividade. Autores como Maria Ins Guimares, Srgio
Nepomuceno Alvim Corra, Elisabeth Seraphim Prosser e outros dedicaram-se
tambm a este campo, porm concentrando-se na catalogao de obras de
autores especficos.
Em perodo anterior dcada de 1990 eram raros os acervos musicais
brasileiros organizados, catalogados e abertos aos pesquisadores, destacando-se
o caso pioneiro do Museu da Msica de Mariana, cujo tratamento, ainda que
incompleto e baseado em metodologia essencialmente emprica, fora realizado
principalmente na dcada de 1970 por Jos de Almeida Penalva e Maria da
Conceio de Rezende e que acabou motivando boa parte das iniciativas nesse
setor, incluindo sua reorganizao e nova catalogao entre 2001-2003.
Alguns trabalhos de Andr Cardoso, Marcelo Campos Hazan, Vtor
Gabriel, Aluzio Jos Viegas e tambm um de minha autoria podem ser
enquadrados na recente tendncia que no VI Encontro de Musicologia Histrica
50
de Juiz de Fora (2004) foi intitulada paleoarquivologia musical e definida
enquanto o estudo das caractersticas e configuraes de antigos acervos
musicais, independente de terem sido estes totalmente, parcialmente ou
nulamente preservados.
Ao lado da arquivologia e da paleoarquivologia musical, tem se
desenvolvido no pas, nos ltimos anos, a edio musical enquanto atividade
acadmica. Carlos Alberto FIGUEIREDO (2000), em sua tese de doutorado e
outros trabalhos, realizou os primeiros estudos tericos brasileiros sobre edio
musical, aos quais somaram-se reflexes de Marcelo Campos Hazan e Luiz
Guilherme Goldberg, que forneceram importantes subsdios para esse tipo de
atividade e permitiram a superao da fase na qual as edies eram realizadas
sem uma conscincia metodolgica.
Vrios autores tm se dedicado pesquisa da antiga prtica e produo
musical em localidades ou fases especficas da histria do Brasil, como Marcos
Jlio Sergl, Vtor Gabriel, Maurcio Dottori, Pablo Sotuyo Blanco, Carlos Kater,
Mnica Vermes, Joo Berchmans, Daniela Miranda, Maurcio Monteiro, Andr
Guerra Cotta e Carlos Eduardo Souza, ou a repertrios especficos, como
Manuel Veiga, Rogrio Budasz, Celso Loureiro Chaves, Odette Ernest Dias,
Maria Elizabeth Lucas, Marcos Pupo Nogueira, Fernando Binder, Marcelo
Fagerlande, Adriano de Castro Meyer, Maria Lcia Roriz, Elisabeth Seraphim
Prosser, Maria Augusta Calado, Maria de Ftima Tacuchian e outros, incluindo-
me tambm nestes tipos de abordagem. Nos trabalhos desses autores destaca-se
uma amplitude no levantamento de fontes e um interesse por uma viso global
dos fenmenos estudados que contrasta com a produo musicolgica brasileira
das dcadas de 1960 a 1980.
Entre os estudos referentes a compositores especficos, destaca-se o caso
de Jos Maurcio Nunes Garcia, que tem recebido importantes e recentes
contribuies de Carlos Alberto Figueiredo, Srgio Dias, Lucas Robatto, Jetro
Meira de Oliveira, Ricardo Bernardes, Inez de Castro Martins, Luiz Guilherme
Goldberg e outros. Tais estudos, que incluem aspectos editoriais, analticos e
histricos, tm avanado no conhecimento do significado das obras desse
compositor no panorama musical brasileiro, auxiliando-nos a compreender suas
composies mais como produtos culturais de uma determinada poca,
51
sociedade, local e circunstncia que apenas como fonte de repertrio para
concertos e gravaes.
De maneira geral, pode-se dizer que passaram a constar entre os
interesses da musicologia brasileira o debate sobre a funo da musicologia na
sociedade e a razo da prtica desse tipo de cincia no Brasil da atualidade, o
debate sobre a tica e a relao dos pesquisadores entre si e com seus objetos de
estudo, a reflexo metodolgica e a viso crtica sobre a produo musicolgica
antiga e atual, assim como comea a surgir o interesse pela histria da
musicologia no Brasil. De fato, as reflexes sobre a atividade musicolgica
tornaram-se to importantes que no ser mais possvel o desenvolvimento da
musicologia brasileira sem uma histria da musicologia no pas, destinada
compreenso dos valores, mtodos, concepes, interesses, resultados e
impactos da musicologia, no como parmetros absolutos destinados a uma
utilizao prtica, mas relativizados a partir de uma perspectiva histrica
(CASTAGNA, 2004:70). Entre outros, j existem trabalhos do gnero por
Antonio Alexandre Bispo, lvaro Carlini, Flvia Toni, Jorge Coli, Carlos Kater,
Cludio Remio e Denis Vidal, que provavelmente sero ampliados na medida
em que esse tipo de pesquisa for se estabelecendo no Brasil.
A nova musicologia tambm comeou a manifestar o fim do discurso
centralizador e a procura de maior contato com a musicologia internacional,
especialmente a portuguesa e a hispano-americana. O desenvolvimento da
musicologia na ps-graduao contribuiu para o aumento do nmero dos
eventos cientficos e o prprio aumento do nmero de musiclogos, comeando
a surgir grupos de pesquisa entre os mesmos, praticamente inexistentes em
perodo anterior dcada de 1990.
Mudanas na poltica de apoio aos projetos de pesquisa na rea de
msica tm contribudo para acelerar a velocidade desses avanos,
especialmente com a participao de empresas privadas ou estatais e
destacando-se o caso da Petrobras, que vem apoiando dezenas de projetos a
partir de 2001. Apesar das limitaes e at encerramento dos programas de
apoio de algumas instituies, como a Fundao Vitae (que no atender a
novos pedidos a partir de 2005), parece haver um aumento significativo no
montante destinado ao financiamento de projetos e na prpria quantidade de
projetos envolvendo a pesquisa musicolgica.
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Consideraes finais
No h dvidas de que a musicologia brasileira vem manifestando
sensveis mudanas desde a dcada de 1990 e, se a nova posio ainda no foi
solidificada, ao menos pode-se vislumbrar a transio de uma musicologia
principalmente focada em obras e compositores, tpica das dcadas de 1960 a
1980, para uma nova musicologia, caracterizada pela maior amplitude na
seleo de objetos, mtodos, interesses, interrelaes, responsabilidades,
abordagens, perodos histricos e regies geogrficas, consequentemente
acompanhada de maior amplitude nos resultados obtidos. Mais diversificada e
menos centralizada, a nova musicologia est surgindo no apenas por influncia
externa, mas tambm pelo esgotamento das abordagens baseadas quase
exclusivamente em obras e compositores, viso que, embora tenha permitido o
aprofundamento da pesquisa musicolgica, enfatizou excessivamente a
utilizao do repertrio no presente e produziu pequeno interesse na
investigao do seu significado no passado.
Essa mudana est associada ao incio da superao do modelo
positivista que predominou na musicologia brasileira at meados da dcada de
1990 e procura de novas teorias que possam explicar o significado dos
fenmenos estudados. Isso no significa, entretanto, que a fase positivista -
bastante preocupada com a organizao de informaes - tenha produzido
suficiente material para subsidiar interpretaes e reflexes de flego sobre o
passado musical brasileiro. Pelo contrrio, ainda resta muito trabalho a ser feito
no que se refere catalogao de acervos, edio de obras, organizao e
sistematizao de fontes, o que impe nova musicologia a responsabilidade de
desenvolver trabalhos sistemticos e, ao mesmo tempo reflexivos. Se a nova
musicologia possui maior amplitude de ao em relao s tendncias que a
precederam, inegvel a enorme responsabilidade que acabou sendo
transmitida aos musiclogos que vm atuando a partir da dcada de 1990,
sobretudo gerao que iniciou o seu trabalho a partir dessa poca.
Como se trata de uma fase de transio, fundamental que se trabalhe na
ampliao das perspectivas da nova musicologia, sobretudo no que se refere s
abordagens mais crticas e interpretativas, ao desenvolvimento metodolgico,
formao de um maior nmero de pesquisadores nos programas de ps-
53
graduao, ao relacionamento internacional, ao debate sobre aspectos ticos, ao
desenvolvimento dos eventos, ao aumento do nmero e da qualidade dos
projetos de pesquisa e das publicaes, e ao maior significado social da pesquisa
musicolgica. importante, ainda, que a histria da musicologia torne-se uma
linha de pesquisa praticada em vrias regies do pas, com a finalidade de se
conhecer melhor o que produzimos, compreender as relaes entre a
musicologia brasileira e as tendncias internacionais dessa cincia, e aplicar no
presente as reflexes sobre a produo musicolgica do passado.
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