Post on 01-Mar-2018
7/26/2019 Montero, P. Introdução. In. Religião e controvérsias públicas.
http://slidepdf.com/reader/full/montero-p-introducao-in-religiao-e-controversias-publicas 1/9
RELIGIÕES E
CONTROVÉRSIAS PÚBLICAS
Experiências, práticas
sociais e
discursos
Paula Montero
organizadora
fil
TERCEIRO
NOME
~ I T O R ~
l l i M W l i i
~ n t r o p o l o g i a Hoje
onselho Editcríal
Jotlé
Guilhcnne Cantor
Magnani
(diretor) - NAU/USP
Luiz Henrique de
Toledo
- UFSCar
Renata
Menezes -
MN
/ UFRJ
Ronaldo de
Almeida - Unicamp/Cebrap
Luia Felipe
Kojima
Hirano {coord.)- FSC/UFG
Sistema
de
Bibliotecas da lr.'llCAMP
I
Diretoria de Ifatamento da Informação
Biblioteária: Helena Joana Flipsen CRB-8' / 5283
R279 ReJi iões r controv siu pública:
pr6tias
sociais e
discunoli
/
orpnizldon:
Paula
Montcro. -
São hulo, SP:
Editora
~ e i r o Ncme; Campinas, SP: Editoni da Unk:amp, 2015.
1-
Religj6es. 2-
Secularismo. 3. lgrtja. 4. Cultos.
5.
P
lu
ralismo
religiOllO 1. Monttto, Paula.
ISBN
978-85-7816-192-7
(Editora
Ten:eiro
Nome)
ISBN 978-85-268-1290-1 (Editora da
Unicamp)
fndicrs
para
Ca.úlqp:i
Sistem4tko:
1.
Íleligióes 200
2.
Secularismo
211.6
3. lgrej1 262
4.
Culto& 264
S. Pluralismo
relipjoso
2015
CDD 200
211.6
-262
-264
- 201.5
A ; opiniõrs, hipóteses conclusões ou recomendações expressas neste material são de
responsabilidade
dos autores não necessariamente refletem a visão da
FAPESP.
Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortogrific o
da Ungua
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C
Paula Montem
2015
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7/26/2019 Montero, P. Introdução. In. Religião e controvérsias públicas.
http://slidepdf.com/reader/full/montero-p-introducao-in-religiao-e-controversias-publicas 2/9
ntrodução
PAULA MoNTERO
Este livro
reúne
os principais resultados dos trabalhos desenvolvidos
no
âmbito
do
projetoReligiões e controvérsias públicas ZO 11-2014) apoiado pela Funda
ção de Amparo
à
Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP)
1
•
Como anunciado
já no título desta obra, a noção de controvérsia tanto como inspiração teórica
quanto
como critério de escolha
dos
casos aqui apresentados , tomou-se o eixo
central sobre o
qual se articulou nosso modo particular de organi7.ar o proble
ma,
já
clássico,
das
relações
entre
religiões e a constitui ção da esfera pública
moderna. Pela sua c entralidad e nesta pesquisa, parece-nos necessário descrever
rapidamente o
modo
como esse conceito foi analiticamente apropriado, e até
mesmo transformado por
este
projeto, além de explicitar as razões
que
nos
levaram a atribuir-lhe posição
tão
estratégica em nossa forma de observação e
interpretação
das
configurações da esfer a
pública
brasileira nas
últimas
décadas.
Ainda que não caiba no escopo deste trabalho nos deter nas razões históricas,
sociais e políticas das transformações da sociedade
civil
brasileira e o papel
das
religiões na sua formação,
esforço já parcialmente empreendido
em
trabalhos anteriores MONTERO, 2006, 2009), as investigações que deram
origem a este livro
partem
da
percepção
de
que
está
em curso uma profunda
mutação
no
modo
como
os
brasileiros
se percebem como parte
de
uma
so-
1
Agradecemos à
FAPESP o apoio conce<lido ao r o j t o ~ e controvhri s
ú l i c s
~
prátic s sociais e discunas
n.
11/02948-6.
i
ciedade. Essa matéria, devemos reconhecer,
é
por demais complexa para ser
abarcada
de
uma
só
vez;
além
disso,
muito
já foi escrito a esse respeito pela
via do papel das religiões e,
em
particular, da Igreja Católica, na
formação
de nossa nacionalidade
BRANDÃO,
1988;
PEREIRA
DE QUEIRÓZ, 1988;
SANCHIS, 2001).
Não é nossa
intenção
voltar
aqui
a esse
tema,
ao
menos
não por essa via. Há algumas décadas as ciências sociais deixaram para trás
a
identidade
nacional como problema de investigação. Digamos, para
chegar
mais rapidamente
ao ponto que aqui
nos interessa,
que
as questões
da
nacio
nalidade
deram
lugar, nas
últimas
décadas,
às
questões
relativas à
construção
da
cidadania. Nesse novo cenário, cujo marco temporal pode ser situado
nos
anos
1980, década
que assistiu
a
promulgação da nova Constituição
cidadã
em 1988, o paradigma do
sincretismo
- até então elo imaginário integrador
de
diversidades raciais e culturais - vai cedendo
lugar
ao paradigma da inclusão
que
nomeia
a sociedade a partir
de um
leque
muito mais
vasto de diferenças:
de
crenças,
de cor, de posição social, de gênero, etc.
Essa mutação, à primeira vista de
pequena monta,
tem significado, a nosso
ver,
uma
revolução copemiciana com relação ao modo
como
a sociedade se
autorrepresenta e atua sobre si mesma. O deslocamento das questões de
nacionalidade
para
as questões da cidadania tem obrigado ao exercício cada
vez
mais
explícito e desafiador
do
desacordo regulado
de
opiniões
2
na feliz
expressão
de
Binoche,
como forma
de faur
parte
da dinâmica social.
Ainda
que a forma
debate
seja, a nosso ver,
relativamente
recente como ca
racterística
marcante
do
modo
de operação
da sociedade
civil brasileira, ao
relacionar o problema da construção
da
cidadania aos
processos
de formação das
opiniões, nosso trabalho entra em interlocução com as questões inauguradas por
Jürgen Habennasem seus escritos
sobre
a formação da
esfera
pública moderna.
Tomou-se consensual na literatura recente atribuir a esse
autor
a proposição
axiológica do debate como forma de invenção e funcionamento do espaço
público. Independentementedo
conjunto
de críticas
de
que
essa invenção foi
objeto, a proposição nos
pareceu bastante
estimulante:
ela nos sugeria
uma
pista desafiadora para
compreender como
esse novo
modo
de apresentar-se
publicamente,
que
exige
que
todas as certez.aseeligiosas ou não) sejamcapazes
de objetivar-se e relacionar-se a diversos pontos de vista
MONTERO,
2009),
começa a afetar, no caso brasileiro, tanto as configurações de seu espaço público
quanto
as maneiras como as narrativas religiosas contemporâneas passam a
disputá-lo. A hipótese de fundo que orientou esse conjunto de investigações
1
Expressão utilli.ada por Bertrand Binoche (2012) para descrever como a
noção de
opinião pública
passa
a coostituir-se,
no lugar da religião,
em
novo
do
da
vida civil
7/26/2019 Montero, P. Introdução. In. Religião e controvérsias públicas.
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diz respeito, pois, ao declínio progressivo da identificação imaginária, no caso
brasileiro, entre Igreja Católica e sociedade
civil.
E, como sugere Binoche
(2012, p. 15-16), quanto mais essa disjunção se aprofunda, mais as religiões
passam a ser relativas, ficando progressivamente reduzidas a simples opiniões
irredutivelmente plurais . Esse modelo
de
democracia subjacente
à
reflexão
do autor supõe que nenhwn corpo substantivo de crenças consegue mais, so-
zinho, regular a totalidade da vida coletiva, e, consequentemente, a doutrina
política da tolerância vai ganhando força como princípio de nonnatividade,
tomando-se gradualmente o modo correto
de
sancionar a convivência
entre
as diferenças.
No
caso brasileiro, o processo
de
relativização das religiões est á
apenas se iniciando, uma vez que o substrato cristão da sociedade é ainda cla
ramente hegernônico. Mesmo assim, corno veremos adian te, nos diversos casos
aqui analisados, os agentes religiosos (ou não) já são obrigados a se justificar e
por consequência, objetivar suas posições publicamente. Embora
em
nenhum
dos casos
em estudo
neste volume a democracia se constitua como objet o
das
controvérsias, não resta dúvida, pelo jargão encenado nas narrativas,
que
o
jogo dos confrontos é jogado no tabule iro
do que
poderíamos
chamar de
uma
democracia liberal. Com efeito , a acusação
de
intolerância, por exemplo, tem
sido cada vez mais acionada nas últimas
três
décadas por agentes religiosos
de
todos
os
horizontes (inclusive católicos) para disputar posições na arena
pública brasileira. Mas é interessante destacar as peculiaridades do caso bra
sileiro quando comparado
com
os processos europeus descritos
por
Binoche.
Na França, a noção de tolerância entendida como um desacordo regulado de
opiniões
se
tornou a solução histórica para re sponder aos desafios de uma
vida
comum desprovida de fé comum (BINOCHE, 2012, p. 109). No Brasil, ao
contrário, o desenvolvimento do pluralismo religioso como conceito político
e como prática
vem
acompanhado do confro nto religioso. Isso porque a forma
como as religiões disputam a definição e sua presença no espaço público está
intimamente associada ao modo como, historicamente, a sociedade brasileira
se
produziu como secular. Se, no caso francês, o conceito de opinião pública
pode
ser considerado o efeito
da
ideia
de
religião privada ,
no
caso brasileiro,
como demonstramos
em
trabalhos anteriore s, a esfera civil foi se construindo
no processo de separação da Igreja Católica
em
relação ao Estado.
Uma
vez
que
as dinâmicas
de
diferenciação das esferas apenas começavam a
produzir
efeitos
e a própria esfera pública estava em gestação, a privatização da religião não se
colocava nem como tema, nem como problema (MONTERO, 2006 2014).
Nossa expectativa é que os estudos aqui apresentados venham a iluminar as
configurações específicas
do
modelo democrático brasileiro contemporâneo e
permitam compreender essa nova maneira
de
as religiões se colocarem na cena
pública pelo confronto.
Foi
levando
em
conta essa novidade que o conceito
de controvérsia nos pareceu estratégico para pensar esse novo momento no
qual a diversidade religiosa passa a
ter
um papel fundamental na formação e
no exercício da ideia de opinião pública.
A abordagem das dinâmicas sociais pelo viés da noção
de
controvérsia não
é
propriamente uma novidade. Cyril Lemieux (2007), aluno
de
Luc Boltanski,
a associa ao surgimento, na França da décadade 1980, de uma sociologia prag
mática3 ou praxeológica que procurou colocar em novos termos as teorias do
conflito
de
Alain
Touraine e Pierre Bourdieu. O ambicioso programa
de
pes
quisa a que se propôs essa nova abordagem é extremament e vasto, envolvendo
influências que vão da herança pragmática de John
Dewey,
William James e
George Mead à fenomenologia de Paul Ricoeur e à filosofia da linguagem de
Wittgenstein (CEFÃI, 2 0 0 9 ~ . Mas, no
que
dizem respeito ao seu diálogo
crí-
tico com a obra de Jürgen Habermas, muitas de suas análises introduziram a
questão do público em vários níveis que aqui nos interessam: em contraponto
com as teorias do processo político se interrogam sobre a emergência de um
senso cívico (PHARO, 1985), enfatizando as experiências e as perspecti-
vas dos atores engajados na ação coletiva; em contra ste com a literatura dos
movimentos sociais
que
os definem como infraestrutura material de mobi
li7.ação , destacam seu papel
no
agenciamento
de
objetos, coisas e pessoas e
no ordenamento de uma praxeologia da opinião pública que se volta para o
que os indivíduos podem fazer, ver ou dizer, ou, em oposição
à
uma sociolo-
3
O autor
se
refere a uma diversidade
de
trabalhosde autores franceses, corno
Luc
Boltanslti Bruno
Latour, que colocam no centro da análise o conceito de · ~ · que consiste em privilegiar
os
processos de disputa na observação
sociológica.
O autor prefere
chamar
essa
corrente de uma
sociologie
eles
q,reuves• por comiderar que o pragmatismo como corrente filosófica inspira uma
gama muito mais variada de autores, de Durkheim a Pierce, passando
por
Dewey.
• Em
seu balanço
das pesquisas
de
viés praxr:ológico
drsenvolvidas na
França
na
década
de 1980,
Daniel
Cdlü (2009) menciona trêsgrandes centrosde irradiação: oCentre de Sociologie de I'Étique,criado
por Paul l...adriett:, François-lsambette Paul Terrenoire em 1978 na tcole eles Hautes Études
en Sciences
Sociales
e que, em di4logo com a obra
de
Jürgal.
Habennas,
dá
atenção
aos
sentimentos
morais
aos
procedimentos
deavaliação
ética;
~ d Étw:ies
eles
Mouvements Sociaux, fundado
por
Alain Touraine em
1970também
na EHESsededicado à
aúlisedosmovimentos
sociais por
meio
de suas
lideranças
e instituições políticas (sindicatos, putidos, movimentos sociais, ett.). Com seu
afastamento
nos
anos 1990, as novas gerações sob a
liderança
de Louis Quéré e P.trid Pharo se
distanciaram
dessa
abordagm\, interessando-se
pelas dinãmicas
infraestruturais e infraestatais
das
formas de engajamento e reivindicaçlo. Nesse período inuoduzíram novas problm1 tlcas como a
do
espaço público e · ~ l i m i t e ,
experimentando
novas
metodologias rearticulando
a pesquisa sobre mobilizações em tc>mo de uma teoria
das
arenas públicas e de uma
praxeologia
da opinião pública; e, finalmente, o grupo de Sociologie PoUtlque et
Moral
fundado em 1985 por
Luc Boltanski e Lament Théwenot, cujos esforços se concentram em um projeto de investigação
grunat:icaldas
formas de
justiça.,
de
denúncia
ou
de
reivindicaçio em público.
7/26/2019 Montero, P. Introdução. In. Religião e controvérsias públicas.
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gia dos grupos,
propõem
que as dinâmicas de mobilização são correlativas
à
dinâmicas
de
problematização e publicização
QUÉRÉ, 1990);
ou,
ainda,
em reação
à
noção
de
ação instrume ntal tão predominante na ciência política,
descreve a gramática das formas de falar em público, as formas de justificação,
de denúncia e
de
reivindicação BOLTANSKI,
2000, 2002).
Os
trabalhos aqui apresentados estão
em
diálogo mais ou
menos
explícito
com
esse conjunto
de
problemas,
com
sua inspiração teórica e
modos
de
trabalhar
a questão
da
publicidade. Ainda
assim,
deles se diferenciam pelo menos
em
duas dimensões estratégicas:
no
lugar heurístico atribuído ao
conceito de
controvérsia e
no
espaço privilegiado atribuído ao agenciamento
religioso,
e
não aos movimentos sociais
em
geral,
na
produção
de
um
senso cívico ou na
praxeologia
da
opinião (CEFÃI,
2009).
A controvérsia como publicidade
O
modo
como
as controvérsias foram compreendidas e trabalhadas nas cor
rentes de uma
sociologia dos conflitos é bastante amplo e variado. Lemieux
(2007, p. 191-192) sugere
que
hoje
duas
grandes correntes metodológicas se
oferecem
aos pesquisadores
das
ciências sociais que
se
interessam
pelo
estudo
das
controvérsias: a mais clássica, que a
entende
como
um meio
de revelar
relações
de
força, posições institucionaisou redes sociais dificih nente acessíveis
à observação direta. Nessa ótica, o pesquisador se dá como programa a obser
vação
das mudanças
sociais e institucionais, a trajet ória
dos
atores e o tipo
de
recurso
que
mobilizam e,
enfim,
o
curso
de
uma controvér sia e sua conclusão.
Uma
segunda abordagem, iniciada
pela história
das ciências e
retomada na
França pela
corrente
pragmática acima mencionada - seja
no campo
de uma
sociologia do
o n f r o n t o ~ no
sentido
dado
a ela
nos
trabalhos
da
antropologia
das ciências
de
Bruno Latour (2005) e Michel
Callon
2001),
seja
no
sentido
de
uma
sociologia
dos
regimes de ação
de
Luc Boltanski
2002) -
consiste
em
tomar
os processos de disputa
como
objeto privilegiado
de
investigação
e,
mais
precisamente,
ações coletivas
que conduzem
à
transformação
do
mundo
social .
sta
corrente
que toma
como objeto
os regimes
de
ação e
de visibilidade
nos
pareceu
particularmente
útil
para pensar
os processos de
formação
do
pluralismo na sociedade brasileira e as dinâmicas
que
envolvem
o aprendizado
do
exercício
da
opinião.
No volume
de
2007
da Mil neuf
cent.
Revue d histoire intel.ectuelle
inteira
mente dedicado
ao tema
das controvérsias, elas
se apresentam
como uma
abordagem metodológica que renovou, em primeiro lugar, o campo da história
i 15
e:
%
das
ciências, e
generalizou-« em
seguida
como
uma
nova abordagem para a
história
das
ideias.
No
entanto,
fora desses campos, a controvérsia
ainda
não
foi objeto
das
ciências humanas
em
geral. Bruno
Latour (2000)
e Fabiani
2007) procuram
estender
o
interesse
pelo estudo
das controvérsias para
uma
sociologia da crítica, mas
que
permaneceu
em grande parte associada
aos
debates
científicos e intelec tuais. Talvez
tenham
sido os autores Luc Boltanski
e Laurence Thévenot,
ao
procurarem
integrar
a filosofia
política à
pragmáti
ca
dos julgamentos morais, os primeiros a alargar o conceito
de modo
a
que
pudessem
abranger as formas de
debate exteriores
ao
mundo das
ideias
e
aos campos acadêmicos. Para esses autores, o desenvolvimento
das
disputas,
quando eliminam a
violêccia,
revelam constrangimentos fortes
na
busca de
argumentos, apoiados sobre provas sólidas, manifestando esforços
de
conver
gência no coração
do
diferendo
{1991,
p.
27, tradução
nossa).
Embora os
autores prefiram
a
noção
ce
crítica
à de
controvérsia,
essa
orientação teórica
também
implica,
no
plano do método, privilegiar
os
momentos
de
confronto
corno eixo
principal da
observação.
Além
disso, o
modo
como essa abordagem
pelo diferendo e
pela
justificação problematiza a noção
do
público interessa
particularmente
a
muitos dos
trabalhos
que compõem
este
livro.
Diferentemente
dos
estudos mencionados anteriormente,
de uma fonna
geral
nosso trabalho não
se
desenvolveu,
entretanto,
no interior
do campo de
uma
sociologia
da
crítica.
Na
verdade,
em
diálogo
com
a
vasta
literatura
sobre o
secularismo ASAD, 2003; CALHOUN,
2012; CASANOVA, 1994; 2007;
MOOOOD; LEVEY 2009;
TAYLOR,
1998;
2007), desde o primeiro mo
mento
interessava-nos
compreender
a formação e a configuração
recente
do
espaço público na sociedade brasileira e o relevante papel dos agendam entos
religiosos nessa construçã o.
Como
se
pode notar
a partir do s casos aqui analisados, a dissensão e a crítica
começaram a
tomar-se
o
modo de
ação cada vez mais recorrente
dos
agentes
religiosos na sua relação
entre
si e
na
sua relação com o Estado. Esse fato
passou
a nos interessar, embora não soubéssemos,
em
um primeiro
momento,
como abarcá-lo e reuni-lo
de
um
modo
sistemático e abrangente. O conceito
de controvérsia nos ofereceu um caminho para a construção
de
um paradigma
analítico a partir
do
qual
toda
forma de confronto nesse
campo
pudesse ser
compreendida corno parte
de um
mesmo
problema:
uma
manifestação
das
configurações singulares
co
secularismo brasileiro
cujo
modelo pretendíamos
descrever. A noção
de
m<lmento crítico
de
Luc Boltanski
(2000}-
momentos
de manifestação
mais
ou menos públicade indignação
ou
desacordo - nos per
mitiu diferenciar a observação
do que
fazem
os
atores (acusações, denúncias,
críticas e justificações) da controvérsia
entendida como
forma que só
pode
7/26/2019 Montero, P. Introdução. In. Religião e controvérsias públicas.
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ser alcançada analiticamente. Mas nossa intenção ao observar as
formas
de
dissenso não era tanto a
de atestar
a competência critica dos atores,
como
no
caso de Boltanski, e
sim
a
de
identifica r e descrever a particular configuração
social do secularismo que emerge dessa dinâmicaque associa atores, textos,
instituições e acontecimentos. É
com
base nesse
enquadramento
teórico
que
Eduardo Dul lo parte
da
nota de repúdio da Arquidiocese de São Paulo, em
2012, a um
texto
escrito
pelo
pastor Marcos Pereira, c oordenador
da
campa
nha do
candidato à prefeitura, Celso Russomano, pelo Partido Republicano
Brasileiro
PRB);
Carlos
Gutierrez, da cerimônia
de
posse
de
Rogério
Hamm
também
do
PRB,
à Secretaria do Desenvolvim ento Social do
Governo de
São
Paulo
em
2013; Lílian Sales, da audiência pública convocada pelo Superior
Tribunal de Justiça para definir o início da vida ; César Silva,
da
ameaça de
fechamento pelo Ministério da Educação das escolas bilingues para surdos
em
2010 de inspiração protestante; Milton Bortoleto, do evento da quebra
de imagens em um centro espírita do Rio
de
Janeiro por jovens evangélicos
em 2008;
Henrique
Antunes,
da
inserção
da
Banisteriopsis um dos vegetais
que
compõem
a ayahuasca,
na
lista dos
produtos
proscritos pelo Ministério da
Saúde; Arami s Luís Silva,da fala
do
papa Francisco aos jornalistas, em 2013,
sobre
a posição da Igreja Católica a respeit o da homossexualidade; Jacqueline
Moraes Teixeira,
do
enorme
sucesso
do
livro
de
Cristiane Macedo, filha
de
Edir Macedo -
fundador
da Igreja Universal do Reino de Deus -
em
2007,
destinado à mulher,
Mellror
qu comprar
sapatos;
José Edilson Teles, do ciclode
fundadores de microigrejas pentecostais e a
disputa
por autenticidadede suas
atividades,
tomando como recorte
empíric o o casod revelação divina sonhada
por José Ribamar que o levou a fundar a Igreja Manjedoura de Cristo; Asher
Brum
do livro de memórias publicado em 2006 por Antonio Carlos
Brole7.Zi,
que denuncia abusos perpetrados
contra ele pelo
Opus Dei; Paula Montero,
da denúncia publicada pela revistaÉpoca em 2009
do
ex-pas tor Gustavo Alves
da Rocha sobre os
abusos cometidos contra
ele por
Edir
Macedo.
Desse modo tomando como
referência eventos
pontuais que envolveram
entidades religiosas diversas - um debate público,
uma
denúncia, uma decisão
governamental, um sucesso editorial
ou
conflitos entre pastores e igrejas -
o esforço inicial dos trabalhos foi o de descrever a cena na qual o evento
se
manifesta e circunscreve, e compreender o que está
em
jogo no modo como
ele aparece publicamente.
É
por essa razão
que
em nossa perspectiva, não
estamos
tomando
as controvérsias como fenômenos empíricos a descrever.
Se
subjacentes a todos os casos estudados podem -se recon hecer dinâmicas
de
conflito, a passagem do
evento
à controvérsia
dependeu
em maior
ou
menor
grau
em função de cada caso, de uma cons truçã o analítica que procurou, como
?
sugere Boltanski, ordenar agências heterogêneas. Estamos trabalhando, pois,
com o conceito de controvérsia
ao
mesmo
tempo como
um
método
para reu
nir e recortar casos empíricos colocando-os em relação e como instrumento
heurístico que nos permitiu observar acontecimentos e práticas reunidos de
um modo mais
ou
menos arbitrár io (a não ser pelo fatode
que todos
remetem
necessariamente a entidades religiosas). Levando-se a sério o que dizem os
personagens envolvidos na cena, procuramos
compreender
simultaneamente
o que está
em
disputa e
como
diferentes formas discursivas em interação
conformam o espaço público enquanto secular.
A nosso ver, tal formulação foi capaz de produzir, no campo de estudos das
religiões,
os
deslocamentos necessários sugeridos
por
Michel Foucault
5
em
sua
abordagem das genealogias e disciplinas. Em
vez de
observarmos instituições
religiosas
e/ou
grupos tomando-os de antemão como entes empíricos, a abor
dagem pelo caminho das controvérsias nos levou a observar antes p riti cas
dis
cursivas do que lógicas institucionais, cosmologias, valores e co mporta mentos .
Isso porque, como reconhece a co rren te pragmática,na esteira dos trabalhos
de Austin, a linguagem não se rest ringe à função de descrição
ou
representação
do mundo, mas
também
faz o mundo. Essa nova perspectiva teórica nos fez
ver que certa tradiçãode estudos
das
religiões que privilegiava a descrição das
cosmologias, dos rituais e das inst ituições foi
instrumento
ativo na produção
dos próprios fenômenos que
pretendia
explicar. Desse modo,
uma
desontolo
gização dos grupos reügiosos
nos
pareceu atual e necessária, uma vez que, ao
contrário
do
que pretendem os estudiosos com suas definições e seus sistemas
de classificação, os grupos empíricos não preexist em às linguagens
usadas
para
descrevê-los recortá-los. O mesmo se
pode
dizer
do
religioso . As
práti
cas discursivas o constroem e o distribuem.
Nas
condições contemporâneas
tomou- se difícil localizá-lo; parafraseando Bru no Latour com relação ao social,
o religioso parece estar diluído em toda a parte {e
em
lugar nenhum) .
Se
não há nada que se possa definir como espeófico ao religioso, o recorte pela
controvérsia nos permite observar como entidades variadas se conectam em
função
de
contextos, produzindo
um
tipo de
mundo que
se acorda a respeito
d s configurações necessárias de
uma
sociedade secular.
5
De.scuitramento
com relação
às
instituições
(prisões,
hospitais
e, acres:entariamos, igrejas), deixando
de estudá-las a partir de
suas
lógicas internas; descentrame lto com relação às
funções
esperadas
das instituições (cura,
regeneração};
descentramemo
com
relação
aos
objetos empíricos á dados
das instituições
(doença
mental, criminosos,
etc.)
(FOUCAULT,
2008,
p.
156-158).
7/26/2019 Montero, P. Introdução. In. Religião e controvérsias públicas.
http://slidepdf.com/reader/full/montero-p-introducao-in-religiao-e-controversias-publicas 6/9
gendamentosreligiosos praxeologia da
opinião
Em sua crítica à teoria dos problemas públicos de Jürgen Habermas,
Louis
(QUERÊ, 2011 )
6
se
pergunta sobre o modo como os problemas são constitu
ídos enquanto tal na esfera pública.
A
seu ver, antes de se tomarem problemas
públicos e serem objeto de
debate,
os acontecime ntos são elaborados e organi
zados
em
diferentes níveis até ganhar importância e
se
constituir em
campo
problemático , na expressão cunhada por Deleuze.
Estamos
de
acordo
com Quéré
quanto
à
necessidade
de
levar
em conta
os
modos como os problemas
se
instituem
como
públic0s. Ainda assim,
nos
casos
aqui em estudo, muitos dos processos relativos à formação e configuração da
esfera pública como contraparte do Estado são de longa dwação. Os aconteci
mentos,
aqui analisados em suas
dinâmicas
de visibilidade, agenciam
questões
cujos
termos
já estão relativamente bem estabelecidos no plano
temporal.
Com
efeito, ao fazermos uma leitura transversal dos casos apresentados neste
volume, pode-se
perceber
que
apenas à luz de campos problemáticosº de
longa duração na história política brasileira é possível
compreender
os nexos
que
agenciam os elementos
das
controvérsias
em análise. É
no campo do
debate
sobre a laicidade,por exemplo, que
se
jogam
as
denúncias contra o PRB e a Igreja
Universal
do
Reino
de
Deus (IURD) descritas
por Dullo
e Gutierrez;
é
no
campo
do debate entre fé e ciência que se desenvolvem os argumentos em torno do
início da vida descritos
por
Sales; é no
campo do
debate entre universalismos
nacionais e particularismos étnicos
que ssis
Silva
situa
a disputa pela escola
bilíngue para surdos; é no campo do debate sobre lib erdad e religiosa
que
Bor
toleto e
Antunes discutem a regulação do religioso; é no campo dos direitos
humanos
e do planejamento familiar que Brum, Silva e Teixeira descr evem o
debate sobre religião, sexualidade e aborto; é no campo do
debate
que opõe
seita
à
igreja que Teles e Montero
analisam
a instituição e a legitimidade da
autoridade pastoral evangélica.
Ainda
que os problemas públicos aqui
em
estudo
se
articulem
de maneira
recorrente
a esses
campos
problemáticos mais ou menos pactuados histori
camente
ao longo dos processos
de
ordenamento republicano e democrático,
ao observarmos o
que
diz e
faz
o variado leque de agentes quando
está
em
litígio a noção de bem coletivo, pode-se perceber
um
rearranjo ou redefini
ção das
questões clássicas
que
disputa seus sentidos contemporâneos. Essa
dinâmica
que,
a exemplo de Quéré, chamamos de praxeologia d opinião ,
6
Entrevista
concedida para Leandro
Lage Tiago Salgado
e publicada na
revista
EcoPos·um, v
14,
n. Z, 2011.
9
i
coloca sob as
lentes
de nossa obser vação as ações discursivas e pedagógicas do
poder pastoral nos mais diferent es níveis. Inspira-nos a proposição de Boltanski
de que
é
possível
supor
a existência de múltiplas gramáticas de justificação
capazes de propor reivindicações coletivas, até
mesmo
antitéticas,com relação
a um regime cívico-republicano tal como, por exemplo, a campanha do pastor
Tupirani Bíblia sim.
Constituição
não mencionada no trabalho de Bortoleto.
A
ideia central não é,
pois,
afirmar simplesmente que os valores religiosos
exercem poder de influência sobre a vida pública, mas sim examinar as formas
contemporâneas
de
percepção
do que
é
justo ou
injusto
em
diferen tes situações
e compreender como elas estruturam o campo
de
ação das pessoas.
A
exigência de
que
todas as certezas, mesmo religiosas, sejam capazes
de
objetivar-se e negociarcom diferentes pontos
de
vista nos parec e uma novidade
no processo
de
secularização
que
merece ser investigada.
Em
trabal ho anterior,
já havíamos chamado a atenç ão para a necessidade de
enfrentar
de uma nova
maneira a questão
das
relações entre religião e política, deixand o
de
privilegiar
o problema da ºinvasão da esfera po lítica pelos agentes religiosos e tomando
o
próprio secularismo como
objeto
privilegiado da reflexão da antropologia e das
ciências sociais (M ONTERO , 2013). Como parte dessa agenda, os trabalhos
que compõem esta
obra colocanm o
contraponto entre
enunciados e o modo
como as categorias são
agenciadas
no
centro
de
sua
observação. Demo-nos como
tarefa
compreender
como disputas e
agendamentos
modelam a esfera pública
definindo o que pode ser
dito,
como pode ser
dito
e
por quem.
Boltanski e
Thévenot (1991) nos proveram de instrumentos úteis para examinar e des
crever essas formas discursivas de qualificação e codificação do bem comum
e da justiça .
Os
trabalhos de Dullo,
Gutierrez,
Sales, Bortoleto, Antunes e
Brurn
se
beneficiaram diretamente dessa abordagem. Interrogando-se sobre
as
formas
de
desaprovação,de denúncia, de reivindicação e de mobilização, como
sugere
Pharo
(1985), foi possível perceber
as
dinâmicas
de
uma configuração
particular de senso cívico (e
de
religião). Além disso, levando-se em conta que
as
formas de julgamento se apoiam em certezas de
como
o mundo é
ou
deve
ser, e
que
as percepções
do
bom e do justo só podem ser compreendidas
de
maneira situada, alguns trabalhos se moveram na direção de
examinar
certos
contextos
da
experiência associados a organizações religiosas. Partindo de
algumas situações-pro blema , tal como aparecem nos casos aqui elencados,
procuramos
tratar
essas organizações como conjunturas prático-sensíveis,
como sugere
Cefãi, que
agenciam objetos , normas e pessoasordenando o que
os participantes de uma rede ou organização podem fazer ou dizer (2009, p .
19). Assim, os trabalhos
de
Gutierrez,
Silva, Teixeira, Teles, Brum e Monte ro
procuram descrever as mutações das experiências e os processos de codifica-
7/26/2019 Montero, P. Introdução. In. Religião e controvérsias públicas.
http://slidepdf.com/reader/full/montero-p-introducao-in-religiao-e-controversias-publicas 7/9
ção
de
situações problemáticas
dos
atores envolvidos,
de
modo a iluminar as
formas de engajamento e a
trajetória de
alguns problemas públicos, tais como
as controvérsias relativas a fé, política, sexualidade,aborto e poder pastoral.
ontrovérsias públicas e configuração e um senso cívico
Os trabalhos
aqui
apresentados,
embora compartilhem
o
mesmo
interesse
pelos problemas elencados acima, são ba stante heterogêneos
em
seu recorte,
em
sua temporalidade e no modo de acompanhar os atores e situá-los. Ainda
assim, ao apresentá-los em
conjunto
neste volume, nos oferecem uma visão
panorâmica das configurações contemporâneas da
r s
públic brasileira e suas
variações nos diversos fóruns nos quais agendamentos religiosos disputam no
ções de justiça e do bem comum. Por essa razão, mesm o que de modo bastante
preliminar, nos parece interessante
propor
ao
leitor
um quadro de leitu ra mais
geral resultante da comparação
dos
casos estudados.
Em primeiro lugar, é preciso notar que o escopo temporal das experiências,
ações e formas institucionais relatadas recobre um
período
de apenas
três
décadas. Os eventos
que,
a nosso ver, servem de marcadores interessantes
das
dinâmicas
que
estamos procurando elucidar são
de
três
ordens: criação
de agendamentos institucionais específicos, produção
de
legislação e ações
de
mobi.li7.ação.
No que diz
respeito
aos novos
agendamentos
organizacionais, os mais recua
dos
no tempo
foram a criação
da
Coordenadoria para a I ntegração da Pessoa
Portadora de Deficiência Corde)
em
1986 e a criação da Federação Nacio
nal de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) em 1987. Nessa década
temos também
a fundação
da
IURD e a criação
da
Força Jovem Universal. Na
década seguinte temos a formação
de um
Conselho
de
Pastores e a criação
da
Convenção de Pequenas Igrejas
com
CNPJ
de
Santana de Parnai ba,
em
1996.
A igreja de Ribamar - Manjedoura de Cristo - é criada
em
2001 . Em 2005 o
Partido Republicano Brasüeiroobtém
seu
registro definitivocomo partido e no
ano
seguinte o núc leo Igreja da
Comunidade
Metropolitana se instala em São
Paulo. A Comissão de Combate à Intolerância do Estado
do
Rio de Janeiro é
de 2007
2008.
Em
2010 temos a inauguração do Núcleo de Combate à Into-
lerância Religiosa
no
Rio de Janeiro e o
lançamento do projeto
para mulheres
da IURD - Godllywood. O que se pode perceber, portanto, é que o período
foi extremamente fértil na invenção de formas de agenciamento
de
pessoas
caracteri7.adas por descentrali7.ação, flexibili dade burocrática, heterogeneidade
de pertendmentos e hierarquia pouco acentuada.
organiuçóes
estão
2
e:
voltadas para a produção de um discurso público engajado, para a
pedagogia
de empreendimentos de militância e
para
a mobili7.açãodas opiniões em tomo
de algumas pautas específicas que vão sendo produzidas no (e pelo) confronto.
O agenciamento das ações coletivas também foi materialmente vertebrado e
retroalimentado pela criação
de
leis. A proscrição
da
ayahuasca pelo Ministé rio
da
Saúde data
de
1985 e a Lei Caó,
de
1989; a Lei do Silêncio, promulgada
em São Paulo
em
1997,
limita
a atuação
d s
peque nas igrejas evangélicas; em
2002, o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) estabeleceu
uma
resolução para definir
as
normas
de
controle social
referente
ao uso
da
ayahuasca no Brasil e uma lei federal reconhece a Libras como meio legal
de
expressão dos surdos; em
2005
aLei de
i ~ g u r a n ç a
é aprovada no Congresso
Nacional. Muitas das controvérsias analisadas neste volume descrevem como
essa regulamentação é, ao mesmo tempo, ponto
de partida
e resultado
de
uma
série de disputas que põe em interação uma gama bastante heterogênea
de
atores: cientistas, legisladores, pastores, jornalistas, representantes
de
organi
zações, militantes, ocupantes de cargos públicos, teólogos.
Essa
heterogenei
dade nos
leva a sublinhar o
fato de
que, se
estamos
efetivamente observando
cenas nas quais diferentes regimesde ação estão em disputa, como sugere
Boltanski, não
é
mais possível distinguir o discurso religioso em oposição
ao
científico , jurídico , mediático , etc. Tem-se, desse modo, apenas
um
discurs o público cujas configurações dependem em grande
parte
das arenas
onde ele é dito e dramatizado. Desse modo, na expressão pública
de
alguns
segmentos
religiosos
a respeitode
questões
controversas, o discurso
religioso
não é
simplesmente traduzido
para o discurso político,
como
propôs Jürgen
Habermas; pode-se dizer
com
mais propriedad e que o polític o e o religiosose
reinventam na disputa e,
ao
fazê-lo, configu ram e
modelam
aquilo que
pode
ser
compreendido como
público.
Nos casos aqui elencados, as arenas públicas são bastant e diversificadas: ofórum
do
Supremo
Tribunal Federal
(STP),
cena partidária, conse lhos governamentais,
conselhos e reuniões
de
organizações religiosas, entrevistas mediáticas.
s
questões que ali são mobilizadas se revelam pelas narrativas de injustiça
que
os atores constroem. Um
olhar
transversal dos
diferentes
casos aqui reunidos
nos
mostra
que os sentidos de injustiça se agrupam em
torno
de dois grandes
eixos: o político e o moral.
No
primeiro caso, os debates se desenvolvem em
tomo do
enquadramento
das atitudes
que
podem ser consideradas como sinal
de intolerância religiosa (as acusações de Russoma nocontr a a Igreja Católica,
a reação dos obreiros da IURD às críticas da mídia contra a ação política da Força
Jovem, as acusações mútuas entre os responsáveis pelo
centro
espírita invadido
por
membros
ela Igreja Geração dos Mártires), e as
que
podem ser lidas como
7/26/2019 Montero, P. Introdução. In. Religião e controvérsias públicas.
http://slidepdf.com/reader/full/montero-p-introducao-in-religiao-e-controversias-publicas 8/9
vontade de exclusãodas minorias (marginalidade
dos
surdos, perseguição aos
afrodescendentes e aos homossexuais, exclusão das pequenas igrejas). Desse
modo, pode-se perceber que se o pacto em tomo da laicidade está relativa
mente bem
estabilizado, as acusações
mútuas de
intolerância
mostram
que
o
reconhecimento
do pluralismo religioso, ao tomar a escolha religiosa uma
expressão
da
opinião, introduziu a disputa
como
forma especifica da própria
configuraçãoda laicidade. Já no plano das categorias morais,
se
os conceitos de
direitos
humanos
e liberdade religiosa também parecem
ser um
horizonte
político
moral
consensual, as acusações
mútuas
de
seitas , racismoº, abuso
de
poder , perseguição religiosa indicam que a própria configuraçãodo que
é religioso
está em
disputa.
Na produção de
suas fronteiras,
os agendamentos
nomeiam
as
figuras
de
alteridade contra as quais
representam
seus próprios
coletivos
como
homogêneos: as
batinas
púrpuras de Roma , imposição de
minorias autor itária s , cientista s assassinos , apartheid escolar , ªfanáticos',
traficantes, drogados , exploradores
da
fé , idólatras , etc. Como sugere
Latour (2005), essas figurações
dão
forma e carne à ação, proibindo ou dire
cionando o que se pode fazer e dizer
em
nome da religião.
Finalmente, as ações
de
mobili7.ação
também estão
temporalmente denw·
cadas. Elas se iniciam
com
os primeiros encontros de deficientes
em
l 98C,
1981 e
1983.
Mas a
tomada
das
ruas
se concentra
mais visivelmente
no
fin
dos anos
2000
e
na
década seguinte.
Em setembro de
2008, o delegado Ivanr
e a babalaô
da
comissão de
Combate à
lntolerancia Religiosa
do
Estado
Rio de Janeiro c1R-R1) organizam a 1
1
Caminhada pela
Liber dade Religiosa
Em maio
de
2011, uma
caravana de mobilização pelo dia do surdo contra
fechamento
do
Instituto
Nacional
de
Educação de
Surdos 1NEs)
promovi
em Brasília o
Setembro Azul .
Em
setembro do
mesmo
ano,
uma passeata
em defesa
da
escola bilingue
para surdos
sai
em São
Paulo da prefeitura, no
Viaduto
do
Chá, em direção à Secretaria da Educação na Praça da República e
em seguida, para a Câmara dos Vereadores no Viaduto Maria Paula. Em junho
de
2011,
o
pastor
Tupirani organiza
diante do
F6rurn
Criminal
a l asseata
Dia do Pastor Perseguido.
Em
junho do ano seguinte, o movimento ganha
urm
expressão mais dvica ao realiz.ar a
2•
Passeata
em Copacabana.
Em dezembrt
de 2013,
o
movimento
Força
Jovem, sob
a liderança do vereador Madeira,
dt
PRB, faz uma caminhada
por
uma vida sem
drogas , que
sai da Pinacoteca en
São Paulo e vai até o Anhangabaú.
Vemos,
pois,
que
a
tomada das ruas corno
forma
de
agenciar
pessoas,
ideias
e
coisas nesse campo
político-moral
é bastante recente.
Por sua novidade
t
importância na
reconfiguração do
espaço
público, essas dinâmicas de mobih
zação merecem, com
certeu,
um estudo à parte. O que
se
pode dil.er preH
f
23
':;).
o
minarmente
a
partir
dos
poucos exemplos
aqui elencados
é
que, por
um
lado,
a escolha
do nome
dado a essas iniciativas
é
significativa: caravanas, passeatas,
caminhadas são formas
distintas de
anunciar publicamente o
que se
está fa-
zendo, para que e contra
quem; por outro
lado, os roteiros escolhidos
traçam
linhas e associações
de
instituições na
geografia
das cidades que, a
cada
vez,
desenham uma forma
específica
de espaço públicocuja
gramática
ainda precisa
ser
estudada. Esse regime
de
ação, menos
dependente
da
justificaçãodo que
da performance, expressa, de outra forma, as modalidades do
comum
e do
público.
O
que nos
parece intere ssante sublinhar é
que
nessa figuração
cada vez
mais
recorrente do
público
que
essas manifestações
reiteram,
a
ideia mesma
de
arena pública
como
forma de expressar as opiniões
se
incorpora às práticas
e passa a orientá-las.
No interior do
marco institucional de uma
democracia
participativa inaugurada
nos
anos
1980,
o
exercido
das ruas
enuncia
novos
repertórios de
pertencimentos
coletivos e regras de engajamento público.
As
regras que
regulam
esse desacordo de opiniões, no
entanto,
ainda estão em
gestação e disputa;
m s é delas que
se espera a construção de
um fundo comum
que dê forma inteligível e aceitável à nossa
•cultura
pública .
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