Montero, P. Introdução. In. Religião e controvérsias públicas.

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7/26/2019 Montero, P. Introdução. In. Religião e controvérsias públicas. http://slidepdf.com/reader/full/montero-p-introducao-in-religiao-e-controversias-publicas 1/9 RELIGIÕES E CONTROVÉRSIAS PÚBLICAS Experiências, práticas sociais e discursos Paula Montero organizadora fil TERCEIRO NOME ~ I T O R ~ lliM Wlii ~ n t r o p o l o g i a Hoje onselho Editcríal Jotlé Guilhcnne Cantor Magnani (diretor) - NAU/USP Luiz Henrique de Toledo - UFSCar Renata Menezes - MN / UFRJ Ronaldo de Almeida - Unicamp/Cebrap Luia Felipe Kojima Hirano {coord.)- FSC/UFG Sistema de Bibliotecas da lr.'llCAMP I Diretoria de Ifatamento da Informação Biblioteária: Helena Joana Flipsen CRB-8' / 5283 R279 ReJi iões r controv siu pública: pr6tias sociais e discunoli / orpnizldon: Paula Montcro. - São hulo, SP: Editora ~ e i r o Ncme; Campinas, SP: Editoni da Unk:amp, 2015. 1- Religj6es. 2- Secularismo. 3. lgrtja. 4. Cultos. 5. Pluralismo religiOllO 1. Monttto, Paula. ISBN 978-85-7816-192-7 (Editora Ten:eiro Nome) ISBN 978-85-268-1290-1 (Editora da Unicamp) fndicrs para Ca.úlqp:i Sistem4tko: 1. Íleligióes 200 2. Secularismo 211.6 3. lgrej1 262 4 . Culto& 264 S. Pluralismo relipjoso 2015 CDD 200 211.6 -262 -264 - 201.5 A ; opiniõrs, hipóteses conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade dos autores não necessariamente refletem a visão da FAPESP. Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortogrifico da Ungua Portuguesa . Úlpyright C Paula Montem 2015 Todos os direitos desta edição reservados a EDITORA TERCEIRO NOME Rua Cayowú, 895, Perdizes 05018-001 - São Paulo - SP fone 55 11 3816 0333 www.terceironome. com.br EDITORA UNICAMP Rua Caio Graco Prado, 50 - Campus Unicamp 13083-892 - Campinas - SP - Bras il '1el.l x: {19) 3521-7718 / 7728 www.editora.unicamp.br [email protected].br

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RELIGIÕES E

CONTROVÉRSIAS PÚBLICAS

Experiências, práticas

sociais e

discursos

Paula Montero

organizadora

fil

TERCEIRO

NOME

~ I T O R ~

l l i M W l i i

~ n t r o p o l o g i a Hoje

onselho Editcríal

Jotlé

Guilhcnne Cantor

Magnani

(diretor) - NAU/USP

Luiz Henrique de

Toledo

- UFSCar

Renata

Menezes -

MN

/ UFRJ

Ronaldo de

Almeida - Unicamp/Cebrap

Luia Felipe

Kojima

Hirano {coord.)- FSC/UFG

Sistema

de

Bibliotecas da lr.'llCAMP

I

Diretoria de Ifatamento da Informação

Biblioteária: Helena Joana Flipsen CRB-8' / 5283

R279 ReJi iões r controv siu pública:

pr6tias

sociais e

discunoli

/

orpnizldon:

Paula

Montcro. -

São hulo, SP:

Editora

~ e i r o Ncme; Campinas, SP: Editoni da Unk:amp, 2015.

1-

Religj6es. 2-

Secularismo. 3. lgrtja. 4. Cultos.

5.

P

lu

ralismo

religiOllO 1. Monttto, Paula.

ISBN

978-85-7816-192-7

(Editora

Ten:eiro

Nome)

ISBN 978-85-268-1290-1 (Editora da

Unicamp)

fndicrs

para

Ca.úlqp:i

Sistem4tko:

1.

Íleligióes 200

2.

Secularismo

211.6

3. lgrej1 262

4.

Culto& 264

S. Pluralismo

relipjoso

2015

CDD 200

211.6

-262

-264

- 201.5

A ; opiniõrs, hipóteses conclusões ou recomendações expressas neste material são de

responsabilidade

dos autores não necessariamente refletem a visão da

FAPESP.

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortogrific o

da Ungua

Portuguesa .

Úlpyright

C

Paula Montem

2015

Todos

os

direitos desta

edição

reservados a

EDITORA

TERCEIRO NOME

Rua Cayowú,

895,

Perdizes

05018-001 -

São Paulo

-

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 ntrodução

PAULA MoNTERO

Este livro

reúne

os principais resultados dos trabalhos desenvolvidos

no

âmbito

do

projetoReligiões e controvérsias públicas ZO 11-2014) apoiado pela Funda

ção de Amparo

à

Pesquisa do Estado de São Paulo FAPESP)

1

Como anunciado

já no título desta obra, a noção de controvérsia tanto como inspiração teórica

quanto

como critério de escolha

dos

casos aqui apresentados , tomou-se o eixo

central sobre o

qual se articulou nosso modo particular de organi7.ar o proble

ma,

clássico,

das

relações

entre

religiões e a constitui ção da esfera pública

moderna. Pela sua c entralidad e nesta pesquisa, parece-nos necessário descrever

rapidamente o

modo

como esse conceito foi analiticamente apropriado, e até

mesmo transformado por

este

projeto, além de explicitar as razões

que

nos

levaram a atribuir-lhe posição

tão

estratégica em nossa forma de observação e

interpretação

das

configurações da esfer a

pública

brasileira nas

últimas

décadas.

Ainda que não caiba no escopo deste trabalho nos deter nas razões históricas,

sociais e políticas das transformações da sociedade

civil

brasileira e o papel

das

religiões na sua formação,

esforço já parcialmente empreendido

em

trabalhos anteriores MONTERO, 2006, 2009), as investigações que deram

origem a este livro

partem

da

percepção

de

que

está

em curso uma profunda

mutação

no

modo

como

os

brasileiros

se percebem como parte

de

uma

so-

1

Agradecemos à

FAPESP o apoio conce<lido ao r o j t o ~ e controvhri s

ú l i c s

~

prátic s sociais e discunas

n.

11/02948-6.

i

ciedade. Essa matéria, devemos reconhecer,

é

por demais complexa para ser

abarcada

de

uma

vez;

além

disso,

muito

já foi escrito a esse respeito pela

via do papel das religiões e,

em

particular, da Igreja Católica, na

formação

de nossa nacionalidade

BRANDÃO,

1988;

PEREIRA

DE QUEIRÓZ, 1988;

SANCHIS, 2001).

Não é nossa

intenção

voltar

aqui

a esse

tema,

ao

menos

não por essa via. Há algumas décadas as ciências sociais deixaram para trás

a

identidade

nacional como problema de investigação. Digamos, para

chegar

mais rapidamente

ao ponto que aqui

nos interessa,

que

as questões

da

nacio

nalidade

deram

lugar, nas

últimas

décadas,

às

questões

relativas à

construção

da

cidadania. Nesse novo cenário, cujo marco temporal pode ser situado

nos

anos

1980, década

que assistiu

a

promulgação da nova Constituição

cidadã

em 1988, o paradigma do

sincretismo

- até então elo imaginário integrador

de

diversidades raciais e culturais - vai cedendo

lugar

ao paradigma da inclusão

que

nomeia

a sociedade a partir

de um

leque

muito mais

vasto de diferenças:

de

crenças,

de cor, de posição social, de gênero, etc.

Essa mutação, à primeira vista de

pequena monta,

tem significado, a nosso

ver,

uma

revolução copemiciana com relação ao modo

como

a sociedade se

autorrepresenta e atua sobre si mesma. O deslocamento das questões de

nacionalidade

para

as questões da cidadania tem obrigado ao exercício cada

vez

mais

explícito e desafiador

do

desacordo regulado

de

opiniões

2

  na feliz

expressão

de

Binoche,

como forma

de faur

parte

da dinâmica social.

Ainda

que a forma

debate

seja, a nosso ver,

relativamente

recente como ca

racterística

marcante

do

modo

de operação

da sociedade

civil brasileira, ao

relacionar o problema da construção

da

cidadania aos

processos

de formação das

opiniões, nosso trabalho entra em interlocução com as questões inauguradas por

Jürgen Habennasem seus escritos

sobre

a formação da

esfera

pública moderna.

Tomou-se consensual na literatura recente atribuir a esse

autor

a proposição

axiológica do debate como forma de invenção e funcionamento do espaço

público. Independentementedo

conjunto

de críticas

de

que

essa invenção foi

objeto, a proposição nos

pareceu bastante

estimulante:

ela nos sugeria

uma

pista desafiadora para

compreender como

esse novo

modo

de apresentar-se

publicamente,

que

exige

que

todas as certez.aseeligiosas ou não) sejamcapazes

de objetivar-se e relacionar-se a diversos pontos de vista

MONTERO,

2009),

começa a afetar, no caso brasileiro, tanto as configurações de seu espaço público

quanto

as maneiras como as narrativas religiosas contemporâneas passam a

disputá-lo. A hipótese de fundo que orientou esse conjunto de investigações

1

Expressão utilli.ada por Bertrand Binoche (2012) para descrever como a

noção de

opinião pública

passa

a coostituir-se,

no lugar da religião,

em

novo

do

da

vida civil

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diz respeito, pois, ao declínio progressivo da identificação imaginária, no caso

brasileiro, entre Igreja Católica e sociedade

civil.

E, como sugere Binoche

(2012, p. 15-16), quanto mais essa disjunção se aprofunda, mais as religiões

passam a ser relativas, ficando progressivamente reduzidas a simples opiniões

irredutivelmente plurais . Esse modelo

de

democracia subjacente

à

reflexão

do autor supõe que nenhwn corpo substantivo de crenças consegue mais, so-

zinho, regular a totalidade da vida coletiva, e, consequentemente, a doutrina

política da tolerância vai ganhando força como princípio de nonnatividade,

tomando-se gradualmente o modo correto

de

sancionar a convivência

entre

as diferenças.

No

caso brasileiro, o processo

de

relativização das religiões est á

apenas se iniciando, uma vez que o substrato cristão da sociedade é ainda cla

ramente hegernônico. Mesmo assim, corno veremos adian te, nos diversos casos

aqui analisados, os agentes religiosos (ou não) já são obrigados a se justificar e

por consequência, objetivar suas posições publicamente. Embora

em

nenhum

dos casos

em estudo

neste volume a democracia se constitua como objet o

das

controvérsias, não resta dúvida, pelo jargão encenado nas narrativas,

que

o

jogo dos confrontos é jogado no tabule iro

do que

poderíamos

chamar de

uma

democracia liberal. Com efeito , a acusação

de

intolerância, por exemplo, tem

sido cada vez mais acionada nas últimas

três

décadas por agentes religiosos

de

todos

os

horizontes (inclusive católicos) para disputar posições na arena

pública brasileira. Mas é interessante destacar as peculiaridades do caso bra

sileiro quando comparado

com

os processos europeus descritos

por

Binoche.

Na França, a noção de tolerância entendida como um desacordo regulado de

opiniões

se

tornou a solução histórica para re sponder aos desafios de uma

vida

comum desprovida de fé comum (BINOCHE, 2012, p. 109). No Brasil, ao

contrário, o desenvolvimento do pluralismo religioso como conceito político

e como prática

vem

acompanhado do confro nto religioso. Isso porque a forma

como as religiões disputam a definição e sua presença no espaço público está

intimamente associada ao modo como, historicamente, a sociedade brasileira

se

produziu como secular. Se, no caso francês, o conceito de opinião pública

pode

ser considerado o efeito

da

ideia

de

religião privada ,

no

caso brasileiro,

como demonstramos

em

trabalhos anteriore s, a esfera civil foi se construindo

no processo de separação da Igreja Católica

em

relação ao Estado.

Uma

vez

que

as dinâmicas

de

diferenciação das esferas apenas começavam a

produzir

efeitos

e a própria esfera pública estava em gestação, a privatização da religião não se

colocava nem como tema, nem como problema (MONTERO, 2006 2014).

Nossa expectativa é que os estudos aqui apresentados venham a iluminar as

configurações específicas

do

modelo democrático brasileiro contemporâneo e

permitam compreender essa nova maneira

de

as religiões se colocarem na cena

pública pelo confronto.

Foi

levando

em

conta essa novidade que o conceito

de controvérsia nos pareceu estratégico para pensar esse novo momento no

qual a diversidade religiosa passa a

ter

um papel fundamental na formação e

no exercício da ideia de opinião pública.

A abordagem das dinâmicas sociais pelo viés da noção

de

controvérsia não

é

propriamente uma novidade. Cyril Lemieux (2007), aluno

de

Luc Boltanski,

a associa ao surgimento, na França da décadade 1980, de uma sociologia prag

mática3 ou praxeológica que procurou colocar em novos termos as teorias do

conflito

de

Alain

Touraine e Pierre Bourdieu. O ambicioso programa

de

pes

quisa a que se propôs essa nova abordagem é extremament e vasto, envolvendo

influências que vão da herança pragmática de John

Dewey,

William James e

George Mead à fenomenologia de Paul Ricoeur e à filosofia da linguagem de

Wittgenstein (CEFÃI, 2 0 0 9 ~ . Mas, no

que

dizem respeito ao seu diálogo

crí-

tico com a obra de Jürgen Habermas, muitas de suas análises introduziram a

questão do público em vários níveis que aqui nos interessam: em contraponto

com as teorias do processo político se interrogam sobre a emergência de um

senso cívico (PHARO, 1985), enfatizando as experiências e as perspecti-

vas dos atores engajados na ação coletiva; em contra ste com a literatura dos

movimentos sociais

que

os definem como infraestrutura material de mobi

li7.ação , destacam seu papel

no

agenciamento

de

objetos, coisas e pessoas e

no ordenamento de uma praxeologia da opinião pública que se volta para o

que os indivíduos podem fazer, ver ou dizer, ou, em oposição

à

uma sociolo-

3

O autor

se

refere a uma diversidade

de

trabalhosde autores franceses, corno

Luc

Boltanslti Bruno

Latour, que colocam no centro da análise o conceito de · ~ · que consiste em privilegiar

os

processos de disputa na observação

sociológica.

O autor prefere

chamar

essa

corrente de uma

sociologie

eles

q,reuves• por comiderar que o pragmatismo como corrente filosófica inspira uma

gama muito mais variada de autores, de Durkheim a Pierce, passando

por

Dewey.

• Em

seu balanço

das pesquisas

de

viés praxr:ológico

drsenvolvidas na

França

na

década

de 1980,

Daniel

Cdlü (2009) menciona trêsgrandes centrosde irradiação: oCentre de Sociologie de I'Étique,criado

por Paul l...adriett:, François-lsambette Paul Terrenoire em 1978 na tcole eles Hautes Études

en Sciences

Sociales

e que, em di4logo com a obra

de

Jürgal.

Habennas,

atenção

aos

sentimentos

morais

aos

procedimentos

deavaliação

ética;

~ d Étw:ies

eles

Mouvements Sociaux, fundado

por

Alain Touraine em

1970também

na EHESsededicado à

aúlisedosmovimentos

sociais por

meio

de suas

lideranças

e instituições políticas (sindicatos, putidos, movimentos sociais, ett.). Com seu

afastamento

nos

anos 1990, as novas gerações sob a

liderança

de Louis Quéré e P.trid Pharo se

distanciaram

dessa

abordagm\, interessando-se

pelas dinãmicas

infraestruturais e infraestatais

das

formas de engajamento e reivindicaçlo. Nesse período inuoduzíram novas problm1 tlcas como a

do

espaço público e · ~ l i m i t e ,

experimentando

novas

metodologias rearticulando

a pesquisa sobre mobilizações em tc>mo de uma teoria

das

arenas públicas e de uma

praxeologia

da opinião pública; e, finalmente, o grupo de Sociologie PoUtlque et

Moral

fundado em 1985 por

Luc Boltanski e Lament Théwenot, cujos esforços se concentram em um projeto de investigação

grunat:icaldas

formas de

justiça.,

de

denúncia

ou

de

reivindicaçio em público.

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gia dos grupos,

propõem

que as dinâmicas de mobilização são correlativas

à

dinâmicas

de

problematização e publicização

QUÉRÉ, 1990);

ou,

ainda,

em reação

à

noção

de

ação instrume ntal tão predominante na ciência política,

descreve a gramática das formas de falar em público, as formas de justificação,

de denúncia e

de

reivindicação BOLTANSKI,

2000, 2002).

Os

trabalhos aqui apresentados estão

em

diálogo mais ou

menos

explícito

com

esse conjunto

de

problemas,

com

sua inspiração teórica e

modos

de

trabalhar

a questão

da

publicidade. Ainda

assim,

deles se diferenciam pelo menos

em

duas dimensões estratégicas:

no

lugar heurístico atribuído ao

conceito de

controvérsia e

no

espaço privilegiado atribuído ao agenciamento

religioso,

e

não aos movimentos sociais

em

geral,

na

produção

de

um

senso cívico ou na

praxeologia

da

opinião (CEFÃI,

2009).

A controvérsia como publicidade

O

modo

como

as controvérsias foram compreendidas e trabalhadas nas cor

rentes de uma

sociologia dos conflitos é bastante amplo e variado. Lemieux

(2007, p. 191-192) sugere

que

hoje

duas

grandes correntes metodológicas se

oferecem

aos pesquisadores

das

ciências sociais que

se

interessam

pelo

estudo

das

controvérsias: a mais clássica, que a

entende

como

um meio

de revelar

relações

de

força, posições institucionaisou redes sociais dificih nente acessíveis

à observação direta. Nessa ótica, o pesquisador se dá como programa a obser

vação

das mudanças

sociais e institucionais, a trajet ória

dos

atores e o tipo

de

recurso

que

mobilizam e,

enfim,

o

curso

de

uma controvér sia e sua conclusão.

Uma

segunda abordagem, iniciada

pela história

das ciências e

retomada na

França pela

corrente

pragmática acima mencionada - seja

no campo

de uma

sociologia do

o n f r o n t o ~ no

sentido

dado

a ela

nos

trabalhos

da

antropologia

das ciências

de

Bruno Latour (2005) e Michel

Callon

2001),

seja

no

sentido

de

uma

sociologia

dos

regimes de ação

de

Luc Boltanski

2002) -

consiste

em

tomar

os processos de disputa

como

objeto privilegiado

de

investigação

e,

mais

precisamente,

ações coletivas

que conduzem

à

transformação

do

mundo

social .

sta

corrente

que toma

como objeto

os regimes

de

ação e

de visibilidade

nos

pareceu

particularmente

útil

para pensar

os processos de

formação

do

pluralismo na sociedade brasileira e as dinâmicas

que

envolvem

o aprendizado

do

exercício

da

opinião.

No volume

de

2007

da Mil neuf

cent.

Revue d histoire intel.ectuelle

inteira

mente dedicado

ao tema

das controvérsias, elas

se apresentam

como uma

abordagem metodológica que renovou, em primeiro lugar, o campo da história

i 15

e:

%

das

ciências, e

generalizou-« em

seguida

como

uma

nova abordagem para a

história

das

ideias.

No

entanto,

fora desses campos, a controvérsia

ainda

não

foi objeto

das

ciências humanas

em

geral. Bruno

Latour (2000)

e Fabiani

2007) procuram

estender

o

interesse

pelo estudo

das controvérsias para

uma

sociologia da crítica, mas

que

permaneceu

em grande parte associada

aos

debates

científicos e intelec tuais. Talvez

tenham

sido os autores Luc Boltanski

e Laurence Thévenot,

ao

procurarem

integrar

a filosofia

política à

pragmáti

ca

dos julgamentos morais, os primeiros a alargar o conceito

de modo

a

que

pudessem

abranger as formas de

debate exteriores

ao

mundo das

ideias

e

aos campos acadêmicos. Para esses autores, o desenvolvimento

das

disputas,

quando eliminam a

violêccia,

revelam constrangimentos fortes

na

busca de

argumentos, apoiados sobre provas sólidas, manifestando esforços

de

conver

gência no coração

do

diferendo

{1991,

p.

27, tradução

nossa).

Embora os

autores prefiram

a

noção

ce

crítica

à de

controvérsia,

essa

orientação teórica

também

implica,

no

plano do método, privilegiar

os

momentos

de

confronto

corno eixo

principal da

observação.

Além

disso, o

modo

como essa abordagem

pelo diferendo e

pela

justificação problematiza a noção

do

público interessa

particularmente

a

muitos dos

trabalhos

que compõem

este

livro.

Diferentemente

dos

estudos mencionados anteriormente,

de uma fonna

geral

nosso trabalho não

se

desenvolveu,

entretanto,

no interior

do campo de

uma

sociologia

da

crítica.

Na

verdade,

em

diálogo

com

a

vasta

literatura

sobre o

secularismo ASAD, 2003; CALHOUN,

2012; CASANOVA, 1994; 2007;

MOOOOD; LEVEY 2009;

TAYLOR,

1998;

2007), desde o primeiro mo

mento

interessava-nos

compreender

a formação e a configuração

recente

do

espaço público na sociedade brasileira e o relevante papel dos agendam entos

religiosos nessa construçã o.

Como

se

pode notar

a partir do s casos aqui analisados, a dissensão e a crítica

começaram a

tomar-se

o

modo de

ação cada vez mais recorrente

dos

agentes

religiosos na sua relação

entre

si e

na

sua relação com o Estado. Esse fato

passou

a nos interessar, embora não soubéssemos,

em

um primeiro

momento,

como abarcá-lo e reuni-lo

de

um

modo

sistemático e abrangente. O conceito

de controvérsia nos ofereceu um caminho para a construção

de

um paradigma

analítico a partir

do

qual

toda

forma de confronto nesse

campo

pudesse ser

compreendida corno parte

de um

mesmo

problema:

uma

manifestação

das

configurações singulares

co

secularismo brasileiro

cujo

modelo pretendíamos

descrever. A noção

de

m<lmento crítico

de

Luc Boltanski

(2000}-

momentos

de manifestação

mais

ou menos públicade indignação

ou

desacordo - nos per

mitiu diferenciar a observação

do que

fazem

os

atores (acusações, denúncias,

críticas e justificações) da controvérsia

entendida como

forma que só

pode

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ser alcançada analiticamente. Mas nossa intenção ao observar as

formas

de

dissenso não era tanto a

de atestar

a competência critica dos atores,

como

no

caso de Boltanski, e

sim

a

de

identifica r e descrever a particular configuração

social do secularismo que emerge dessa dinâmicaque associa atores, textos,

instituições e acontecimentos. É

com

base nesse

enquadramento

teórico

que

Eduardo Dul lo parte

da

nota de repúdio da Arquidiocese de São Paulo, em

2012, a um

texto

escrito

pelo

pastor Marcos Pereira, c oordenador

da

campa

nha do

candidato à prefeitura, Celso Russomano, pelo Partido Republicano

Brasileiro

PRB);

Carlos

Gutierrez, da cerimônia

de

posse

de

Rogério

Hamm

também

do

PRB,

à Secretaria do Desenvolvim ento Social do

Governo de

São

Paulo

em

2013; Lílian Sales, da audiência pública convocada pelo Superior

Tribunal de Justiça para definir o início da vida ; César Silva,

da

ameaça de

fechamento pelo Ministério da Educação das escolas bilingues para surdos

em

2010 de inspiração protestante; Milton Bortoleto, do evento da quebra

de imagens em um centro espírita do Rio

de

Janeiro por jovens evangélicos

em 2008;

Henrique

Antunes,

da

inserção

da

Banisteriopsis um dos vegetais

que

compõem

a ayahuasca,

na

lista dos

produtos

proscritos pelo Ministério da

Saúde; Arami s Luís Silva,da fala

do

papa Francisco aos jornalistas, em 2013,

sobre

a posição da Igreja Católica a respeit o da homossexualidade; Jacqueline

Moraes Teixeira,

do

enorme

sucesso

do

livro

de

Cristiane Macedo, filha

de

Edir Macedo -

fundador

da Igreja Universal do Reino de Deus -

em

2007,

destinado à mulher,

Mellror

qu comprar

sapatos;

José Edilson Teles, do ciclode

fundadores de microigrejas pentecostais e a

disputa

por autenticidadede suas

atividades,

tomando como recorte

empíric o o casod revelação divina sonhada

por José Ribamar que o levou a fundar a Igreja Manjedoura de Cristo; Asher

Brum

do livro de memórias publicado em 2006 por Antonio Carlos

Brole7.Zi,

que denuncia abusos perpetrados

contra ele pelo

Opus Dei; Paula Montero,

da denúncia publicada pela revistaÉpoca em 2009

do

ex-pas tor Gustavo Alves

da Rocha sobre os

abusos cometidos contra

ele por

Edir

Macedo.

Desse modo tomando como

referência eventos

pontuais que envolveram

entidades religiosas diversas - um debate público,

uma

denúncia, uma decisão

governamental, um sucesso editorial

ou

conflitos entre pastores e igrejas -

o esforço inicial dos trabalhos foi o de descrever a cena na qual o evento

se

manifesta e circunscreve, e compreender o que está

em

jogo no modo como

ele aparece publicamente.

É

por essa razão

que

em nossa perspectiva, não

estamos

tomando

as controvérsias como fenômenos empíricos a descrever.

Se

subjacentes a todos os casos estudados podem -se recon hecer dinâmicas

de

conflito, a passagem do

evento

à controvérsia

dependeu

em maior

ou

menor

grau

em função de cada caso, de uma cons truçã o analítica que procurou, como

?

sugere Boltanski, ordenar agências heterogêneas. Estamos trabalhando, pois,

com o conceito de controvérsia

ao

mesmo

tempo como

um

método

para reu

nir e recortar casos empíricos colocando-os em relação e como instrumento

heurístico que nos permitiu observar acontecimentos e práticas reunidos de

um modo mais

ou

menos arbitrár io (a não ser pelo fatode

que todos

remetem

necessariamente a entidades religiosas). Levando-se a sério o que dizem os

personagens envolvidos na cena, procuramos

compreender

simultaneamente

o que está

em

disputa e

como

diferentes formas discursivas em interação

conformam o espaço público enquanto secular.

A nosso ver, tal formulação foi capaz de produzir, no campo de estudos das

religiões,

os

deslocamentos necessários sugeridos

por

Michel Foucault

5

em

sua

abordagem das genealogias e disciplinas. Em

vez de

observarmos instituições

religiosas

e/ou

grupos tomando-os de antemão como entes empíricos, a abor

dagem pelo caminho das controvérsias nos levou a observar antes p riti cas

dis

cursivas do que lógicas institucionais, cosmologias, valores e co mporta mentos .

Isso porque, como reconhece a co rren te pragmática,na esteira dos trabalhos

de Austin, a linguagem não se rest ringe à função de descrição

ou

representação

do mundo, mas

também

faz o mundo. Essa nova perspectiva teórica nos fez

ver que certa tradiçãode estudos

das

religiões que privilegiava a descrição das

cosmologias, dos rituais e das inst ituições foi

instrumento

ativo na produção

dos próprios fenômenos que

pretendia

explicar. Desse modo,

uma

desontolo

gização dos grupos reügiosos

nos

pareceu atual e necessária, uma vez que, ao

contrário

do

que pretendem os estudiosos com suas definições e seus sistemas

de classificação, os grupos empíricos não preexist em às linguagens

usadas

para

descrevê-los recortá-los. O mesmo se

pode

dizer

do

religioso . As

práti

cas discursivas o constroem e o distribuem.

Nas

condições contemporâneas

tomou- se difícil localizá-lo; parafraseando Bru no Latour com relação ao social,

o religioso parece estar diluído em toda a parte {e

em

lugar nenhum) .

Se

não há nada que se possa definir como espeófico ao religioso, o recorte pela

controvérsia nos permite observar como entidades variadas se conectam em

função

de

contextos, produzindo

um

tipo de

mundo que

se acorda a respeito

d s configurações necessárias de

uma

sociedade secular.

5

De.scuitramento

com relação

às

instituições

(prisões,

hospitais

e, acres:entariamos, igrejas), deixando

de estudá-las a partir de

suas

lógicas internas; descentrame lto com relação às

funções

esperadas

das instituições (cura,

regeneração};

descentramemo

com

relação

aos

objetos empíricos á dados

das instituições

(doença

mental, criminosos,

etc.)

(FOUCAULT,

2008,

p.

156-158).

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  gendamentosreligiosos praxeologia da

opinião

Em sua crítica à teoria dos problemas públicos de Jürgen Habermas,

Louis

(QUERÊ, 2011 )

6

se

pergunta sobre o modo como os problemas são constitu

ídos enquanto tal na esfera pública.

A

seu ver, antes de se tomarem problemas

públicos e serem objeto de

debate,

os acontecime ntos são elaborados e organi

zados

em

diferentes níveis até ganhar importância e

se

constituir em

campo

problemático , na expressão cunhada por Deleuze.

Estamos

de

acordo

com Quéré

quanto

à

necessidade

de

levar

em conta

os

modos como os problemas

se

instituem

como

públic0s. Ainda assim,

nos

casos

aqui em estudo, muitos dos processos relativos à formação e configuração da

esfera pública como contraparte do Estado são de longa dwação. Os aconteci

mentos,

aqui analisados em suas

dinâmicas

de visibilidade, agenciam

questões

cujos

termos

já estão relativamente bem estabelecidos no plano

temporal.

Com

efeito, ao fazermos uma leitura transversal dos casos apresentados neste

volume, pode-se

perceber

que

apenas à luz de campos problemáticosº de

longa duração na história política brasileira é possível

compreender

os nexos

que

agenciam os elementos

das

controvérsias

em análise. É

no campo do

debate

sobre a laicidade,por exemplo, que

se

jogam

as

denúncias contra o PRB e a Igreja

Universal

do

Reino

de

Deus (IURD) descritas

por Dullo

e Gutierrez;

é

no

campo

do debate entre fé e ciência que se desenvolvem os argumentos em torno do

início da vida descritos

por

Sales; é no

campo do

debate entre universalismos

nacionais e particularismos étnicos

que ssis

Silva

situa

a disputa pela escola

bilíngue para surdos; é no campo do debate sobre lib erdad e religiosa

que

Bor

toleto e

Antunes discutem a regulação do religioso; é no campo dos direitos

humanos

e do planejamento familiar que Brum, Silva e Teixeira descr evem o

debate sobre religião, sexualidade e aborto; é no campo do

debate

que opõe

seita

à

igreja que Teles e Montero

analisam

a instituição e a legitimidade da

autoridade pastoral evangélica.

Ainda

que os problemas públicos aqui

em

estudo

se

articulem

de maneira

recorrente

a esses

campos

problemáticos mais ou menos pactuados histori

camente

ao longo dos processos

de

ordenamento republicano e democrático,

ao observarmos o

que

diz e

faz

o variado leque de agentes quando

está

em

litígio a noção de bem coletivo, pode-se perceber

um

rearranjo ou redefini

ção das

questões clássicas

que

disputa seus sentidos contemporâneos. Essa

dinâmica

que,

a exemplo de Quéré, chamamos de praxeologia d opinião ,

6

Entrevista

concedida para Leandro

Lage Tiago Salgado

e publicada na

revista

EcoPos·um, v 

14,

n. Z, 2011.

9

i

coloca sob as

lentes

de nossa obser vação as ações discursivas e pedagógicas do

poder pastoral nos mais diferent es níveis. Inspira-nos a proposição de Boltanski

de que

é

possível

supor

a existência de múltiplas gramáticas de justificação

capazes de propor reivindicações coletivas, até

mesmo

antitéticas,com relação

a um regime cívico-republicano tal como, por exemplo, a campanha do pastor

Tupirani Bíblia sim.

Constituição

não mencionada no trabalho de Bortoleto.

A

ideia central não é,

pois,

afirmar simplesmente que os valores religiosos

exercem poder de influência sobre a vida pública, mas sim examinar as formas

contemporâneas

de

percepção

do que

é

justo ou

injusto

em

diferen tes situações

e compreender como elas estruturam o campo

de

ação das pessoas.

A

exigência de

que

todas as certezas, mesmo religiosas, sejam capazes

de

objetivar-se e negociarcom diferentes pontos

de

vista nos parec e uma novidade

no processo

de

secularização

que

merece ser investigada.

Em

trabal ho anterior,

já havíamos chamado a atenç ão para a necessidade de

enfrentar

de uma nova

maneira a questão

das

relações entre religião e política, deixand o

de

privilegiar

o problema da ºinvasão da esfera po lítica pelos agentes religiosos e tomando

o

próprio secularismo como

objeto

privilegiado da reflexão da antropologia e das

ciências sociais (M ONTERO , 2013). Como parte dessa agenda, os trabalhos

que compõem esta

obra colocanm o

contraponto entre

enunciados e o modo

como as categorias são

agenciadas

no

centro

de

sua

observação. Demo-nos como

tarefa

compreender

como disputas e

agendamentos

modelam a esfera pública

definindo o que pode ser

dito,

como pode ser

dito

e

por quem.

Boltanski e

Thévenot (1991) nos proveram de instrumentos úteis para examinar e des

crever essas formas discursivas de qualificação e codificação do bem comum

e da justiça .

Os

trabalhos de Dullo,

Gutierrez,

Sales, Bortoleto, Antunes e

Brurn

se

beneficiaram diretamente dessa abordagem. Interrogando-se sobre

as

formas

de

desaprovação,de denúncia, de reivindicação e de mobilização, como

sugere

Pharo

(1985), foi possível perceber

as

dinâmicas

de

uma configuração

particular de senso cívico (e

de

religião). Além disso, levando-se em conta que

as

formas de julgamento se apoiam em certezas de

como

o mundo é

ou

deve

ser, e

que

as percepções

do

bom e do justo só podem ser compreendidas

de

maneira situada, alguns trabalhos se moveram na direção de

examinar

certos

contextos

da

experiência associados a organizações religiosas. Partindo de

algumas situações-pro blema , tal como aparecem nos casos aqui elencados,

procuramos

tratar

essas organizações como conjunturas prático-sensíveis,

como sugere

Cefãi, que

agenciam objetos , normas e pessoasordenando o que

os participantes de uma rede ou organização podem fazer ou dizer (2009, p .

19). Assim, os trabalhos

de

Gutierrez,

Silva, Teixeira, Teles, Brum e Monte ro

procuram descrever as mutações das experiências e os processos de codifica-

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ção

de

situações problemáticas

dos

atores envolvidos,

de

modo a iluminar as

formas de engajamento e a

trajetória de

alguns problemas públicos, tais como

as controvérsias relativas a fé, política, sexualidade,aborto e poder pastoral.

ontrovérsias públicas e configuração e um senso cívico

Os trabalhos

aqui

apresentados,

embora compartilhem

o

mesmo

interesse

pelos problemas elencados acima, são ba stante heterogêneos

em

seu recorte,

em

sua temporalidade e no modo de acompanhar os atores e situá-los. Ainda

assim, ao apresentá-los em

conjunto

neste volume, nos oferecem uma visão

panorâmica das configurações contemporâneas da

r s

públic brasileira e suas

variações nos diversos fóruns nos quais agendamentos religiosos disputam no

ções de justiça e do bem comum. Por essa razão, mesm o que de modo bastante

preliminar, nos parece interessante

propor

ao

leitor

um quadro de leitu ra mais

geral resultante da comparação

dos

casos estudados.

Em primeiro lugar, é preciso notar que o escopo temporal das experiências,

ações e formas institucionais relatadas recobre um

período

de apenas

três

décadas. Os eventos

que,

a nosso ver, servem de marcadores interessantes

das

dinâmicas

que

estamos procurando elucidar são

de

três

ordens: criação

de agendamentos institucionais específicos, produção

de

legislação e ações

de

mobi.li7.ação.

No que diz

respeito

aos novos

agendamentos

organizacionais, os mais recua

dos

no tempo

foram a criação

da

Coordenadoria para a I ntegração da Pessoa

Portadora de Deficiência Corde)

em

1986 e a criação da Federação Nacio

nal de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) em 1987. Nessa década

temos também

a fundação

da

IURD e a criação

da

Força Jovem Universal. Na

década seguinte temos a formação

de um

Conselho

de

Pastores e a criação

da

Convenção de Pequenas Igrejas

com

CNPJ

de

Santana de Parnai ba,

em

1996.

A igreja de Ribamar - Manjedoura de Cristo - é criada

em

2001 . Em 2005 o

Partido Republicano Brasüeiroobtém

seu

registro definitivocomo partido e no

ano

seguinte o núc leo Igreja da

Comunidade

Metropolitana se instala em São

Paulo. A Comissão de Combate à Intolerância do Estado

do

Rio de Janeiro é

de 2007

2008.

Em

2010 temos a inauguração do Núcleo de Combate à Into-

lerância Religiosa

no

Rio de Janeiro e o

lançamento do projeto

para mulheres

da IURD - Godllywood. O que se pode perceber, portanto, é que o período

foi extremamente fértil na invenção de formas de agenciamento

de

pessoas

caracteri7.adas por descentrali7.ação, flexibili dade burocrática, heterogeneidade

de pertendmentos e hierarquia pouco acentuada.

organiuçóes

estão

2

e:

voltadas para a produção de um discurso público engajado, para a

pedagogia

de empreendimentos de militância e

para

a mobili7.açãodas opiniões em tomo

de algumas pautas específicas que vão sendo produzidas no (e pelo) confronto.

O agenciamento das ações coletivas também foi materialmente vertebrado e

retroalimentado pela criação

de

leis. A proscrição

da

ayahuasca pelo Ministé rio

da

Saúde data

de

1985 e a Lei Caó,

de

1989; a Lei do Silêncio, promulgada

em São Paulo

em

1997,

limita

a atuação

d s

peque nas igrejas evangélicas; em

2002, o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) estabeleceu

uma

resolução para definir

as

normas

de

controle social

referente

ao uso

da

ayahuasca no Brasil e uma lei federal reconhece a Libras como meio legal

de

expressão dos surdos; em

2005

aLei de

i ~ g u r a n ç a

é aprovada no Congresso

Nacional. Muitas das controvérsias analisadas neste volume descrevem como

essa regulamentação é, ao mesmo tempo, ponto

de partida

e resultado

de

uma

série de disputas que põe em interação uma gama bastante heterogênea

de

atores: cientistas, legisladores, pastores, jornalistas, representantes

de

organi

zações, militantes, ocupantes de cargos públicos, teólogos.

Essa

heterogenei

dade nos

leva a sublinhar o

fato de

que, se

estamos

efetivamente observando

cenas nas quais diferentes regimesde ação estão em disputa, como sugere

Boltanski, não

é

mais possível distinguir o discurso religioso em oposição

ao

científico , jurídico , mediático , etc. Tem-se, desse modo, apenas

um

discurs o público cujas configurações dependem em grande

parte

das arenas

onde ele é dito e dramatizado. Desse modo, na expressão pública

de

alguns

segmentos

religiosos

a respeitode

questões

controversas, o discurso

religioso

não é

simplesmente traduzido

para o discurso político,

como

propôs Jürgen

Habermas; pode-se dizer

com

mais propriedad e que o polític o e o religiosose

reinventam na disputa e,

ao

fazê-lo, configu ram e

modelam

aquilo que

pode

ser

compreendido como

público.

Nos casos aqui elencados, as arenas públicas são bastant e diversificadas: ofórum

do

Supremo

Tribunal Federal

(STP),

cena partidária, conse lhos governamentais,

conselhos e reuniões

de

organizações religiosas, entrevistas mediáticas.

s

questões que ali são mobilizadas se revelam pelas narrativas de injustiça

que

os atores constroem. Um

olhar

transversal dos

diferentes

casos aqui reunidos

nos

mostra

que os sentidos de injustiça se agrupam em

torno

de dois grandes

eixos: o político e o moral.

No

primeiro caso, os debates se desenvolvem em

tomo do

enquadramento

das atitudes

que

podem ser consideradas como sinal

de intolerância religiosa (as acusações de Russoma nocontr a a Igreja Católica,

a reação dos obreiros da IURD às críticas da mídia contra a ação política da Força

Jovem, as acusações mútuas entre os responsáveis pelo

centro

espírita invadido

por

membros

ela Igreja Geração dos Mártires), e as

que

podem ser lidas como

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vontade de exclusãodas minorias (marginalidade

dos

surdos, perseguição aos

afrodescendentes e aos homossexuais, exclusão das pequenas igrejas). Desse

modo, pode-se perceber que se o pacto em tomo da laicidade está relativa

mente bem

estabilizado, as acusações

mútuas de

intolerância

mostram

que

o

reconhecimento

do pluralismo religioso, ao tomar a escolha religiosa uma

expressão

da

opinião, introduziu a disputa

como

forma especifica da própria

configuraçãoda laicidade. Já no plano das categorias morais,

se

os conceitos de

direitos

humanos

e liberdade religiosa também parecem

ser um

horizonte

político

moral

consensual, as acusações

mútuas

de

seitas , racismoº, abuso

de

poder , perseguição religiosa indicam que a própria configuraçãodo que

é religioso

está em

disputa.

Na produção de

suas fronteiras,

os agendamentos

nomeiam

as

figuras

de

alteridade contra as quais

representam

seus próprios

coletivos

como

homogêneos: as

batinas

púrpuras de Roma , imposição de

minorias autor itária s , cientista s assassinos , apartheid escolar , ªfanáticos',

traficantes, drogados , exploradores

da

fé , idólatras , etc. Como sugere

Latour (2005), essas figurações

dão

forma e carne à ação, proibindo ou dire

cionando o que se pode fazer e dizer

em

nome da religião.

Finalmente, as ações

de

mobili7.ação

também estão

temporalmente denw·

cadas. Elas se iniciam

com

os primeiros encontros de deficientes

em

l 98C,

1981 e

1983.

Mas a

tomada

das

ruas

se concentra

mais visivelmente

no

fin

dos anos

2000

e

na

década seguinte.

Em setembro de

2008, o delegado Ivanr

e a babalaô

da

comissão de

Combate à

lntolerancia Religiosa

do

Estado

Rio de Janeiro c1R-R1) organizam a 1

1

Caminhada pela

Liber dade Religiosa

Em maio

de

2011, uma

caravana de mobilização pelo dia do surdo contra

fechamento

do

Instituto

Nacional

de

Educação de

Surdos 1NEs)

promovi

em Brasília o

Setembro Azul .

Em

setembro do

mesmo

ano,

uma passeata

em defesa

da

escola bilingue

para surdos

sai

em São

Paulo da prefeitura, no

Viaduto

do

Chá, em direção à Secretaria da Educação na Praça da República e

em seguida, para a Câmara dos Vereadores no Viaduto Maria Paula. Em junho

de

2011,

o

pastor

Tupirani organiza

diante do

F6rurn

Criminal

a l asseata

Dia do Pastor Perseguido.

Em

junho do ano seguinte, o movimento ganha

urm

expressão mais dvica ao realiz.ar a

2•

Passeata

em Copacabana.

Em dezembrt

de 2013,

o

movimento

Força

Jovem, sob

a liderança do vereador Madeira,

dt

PRB, faz uma caminhada

por

uma vida sem

drogas , que

sai da Pinacoteca en

São Paulo e vai até o Anhangabaú.

Vemos,

pois,

que

a

tomada das ruas corno

forma

de

agenciar

pessoas,

ideias

e

coisas nesse campo

político-moral

é bastante recente.

Por sua novidade

t

importância na

reconfiguração do

espaço

público, essas dinâmicas de mobih

zação merecem, com

certeu,

um estudo à parte. O que

se

pode dil.er preH

f

23

':;).

o

minarmente

a

partir

dos

poucos exemplos

aqui elencados

é

que, por

um

lado,

a escolha

do nome

dado a essas iniciativas

é

significativa: caravanas, passeatas,

caminhadas são formas

distintas de

anunciar publicamente o

que se

está fa-

zendo, para que e contra

quem; por outro

lado, os roteiros escolhidos

traçam

linhas e associações

de

instituições na

geografia

das cidades que, a

cada

vez,

desenham uma forma

específica

de espaço públicocuja

gramática

ainda precisa

ser

estudada. Esse regime

de

ação, menos

dependente

da

justificaçãodo que

da performance, expressa, de outra forma, as modalidades do

comum

e do

público.

O

que nos

parece intere ssante sublinhar é

que

nessa figuração

cada vez

mais

recorrente do

público

que

essas manifestações

reiteram,

a

ideia mesma

de

arena pública

como

forma de expressar as opiniões

se

incorpora às práticas

e passa a orientá-las.

No interior do

marco institucional de uma

democracia

participativa inaugurada

nos

anos

1980,

o

exercido

das ruas

enuncia

novos

repertórios de

pertencimentos

coletivos e regras de engajamento público.

As

regras que

regulam

esse desacordo de opiniões, no

entanto,

ainda estão em

gestação e disputa;

m s é delas que

se espera a construção de

um fundo comum

que dê forma inteligível e aceitável à nossa

•cultura

pública .

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