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II Seminrio Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010
Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR
ISSN 2178-8200
METAFICO HISTORIOGRFICA E NOVO ROMANCE HISTRICO: A
HISTORIOGRAFIA EM MEMORIAL DO CONVENTO
LEITES, Wallisson Rodrigo (PG - UNIOESTE)
LEITES JR, Pedro (G - UNIOESTE)
RESUMO: H de se ter conta, quando se fala em obra ficcional com fundo histrico,
que as fronteiras entre historiografia e fico so bastante maleveis; se surgiram juntas,
indissociveis, na poca clssica, e se foram foradamente separadas pela historiografia
oficial e a cincia objetivista, parecem nas ltimas dcadas ter encontrado pontos de
interseco que apontam para uma re-delimitao de o que seja histria e o que seja
fico. Em verdade, o material histrico, a leitura de fatos tidos como passados, permeia
a construo ficcional desde suas primeiras manifestaes. Como fruto da narrativa de
tradio oral, j em Homero deparamo-nos com o primeiro expoente de obra literria
com fundo histrico e em Walter Scott temos o surgimento do Romance Histrico. Tal
subgnero, uma vez permeado pelas perspectivas descontrutivistas (e/ou re-
construtivistas) acerca da historiografia tida como narrativa dos fatos reais, d
margem a manifestaes tais quais as do Novo Romance Histrico e da Metafico
Historiogrfica. Nesse sentido, o presente trabalho pretende promover uma apreciao
acerca de como se d o trato para com o material histrico na obra Memorial do
Convento (1982), de Jos Saramago, atentando para seu enquadre enquanto Metafico
Historiogrfica e para a presena das caractersticas do Novo Romance Histrico na
obra.
PALAVRAS-CHAVE: Historiografia; Metafico historiogrfica; Novo Romance
Histrico; Memorial do Convento.
1- Introduo: o autor e sua obra
Tornando-se foroso tratar, ainda que de forma bastante breve, do autor e de sua
produo artstica, mesmo que ambos ressoem j com grande propenso sobre o
inconsciente coletivo dos pases de lngua portugusa no contexto atual, esboaremos
aqu, para os leitores de menor experincia que por ventura nos venham a ler, algumas
consideraes genricas.
Jos Saramago (1922-2010), certamente o maior expoente da Literatura
Portugusa contempornea, em sua vasta obra se dedicou ao conto, poesia, crnica,
ao teatro e ao romance, tendo tido neste ltimo gnero literrio maior proeminncia.
de praxe, dentre os estudiosos de sua produo literria, divid-la em dois momentos, a
citar, um primeiro, que alcana menor expresso, no qual predomina a lrica, o teatro, a
crnica, o conto e poucos romances, e um segundo, no qual alou destaque
internacional, publicando romances polmicos, permeados de um veio fortemente
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contestador e marcados por inovaes estilsticas nesta fase, dentre inmeros ttulos
podemos destacar a obra ora analisada Memorial do Convento (1982), O Evangelho
segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a cegueira (1995) e As intermitncias da
morte (2005).
A partir da dcada de 1980, pois, sua obra projeta-se preponderantemente sobre
questes relativas religiosidade (sobretudo perspectiva crist), filosofia, sociologia,
histria e prpria Literatura (isto , metafico). H de se ressaltar, todavia, que tais
fontes temticas, sempre embebidas em um discurso crtico e politizado, aparecem na
sua produo deste perodo de certa forma amarradas entre si e sem ater-se muito s
fronteiras destas reas do saber. Tal dialogismo, outrossim, torna-se profcuo e
envolvente na medida que costurado em sua alta elaborao esttico-formal
(ZANELLA, 2009, p.35). Nesse sentido,
Poderamos afirmar que a Literatura saramaguiana insistente, se
quisssemos resumi-la em um termo. No caso de observar a vida de
Saramago, ver-se- que no haveria de ser diferente, [] o autor foi
ativista explcito [] e esteve ligado, por exemplo, ao movimento
zapatista, mais especificamente, e a movimentos anti-ditatoriais em
geral, alm de manifestaes mundiais a favor da paz e contra o
terrorismo. Ainda, declaradamente ateu e comunista. Estes fatores
corroboram, pois, seu posicionamento literrio, ora escancarado, ora
mascarado atrs da ironia, do escrnio. [] De fato a construo
ficcional de Saramago distinta [], h pargrafos que podem durar
vrias pginas, perodos que podem durar vrias linhas, aproximao
do discurso oral por meio da escrita, algumas interferncias do
narrador a seu bel-prazer, etc.; quanto (s) temtica(s), tm-se
assuntos sobretudo polmicos, tratados por cunho contestador,
subversivo, desmitificador, tanto de carter histrico, como se observa
na produo at por volta de 1995, quanto de carter mais voltado
filosofia aps esta data []. A confluncia destes fatores concebe
uma Literatura tanto artstica quanto engajada, apresentando uma
construo ficcional feita a partir da desconstruo ou subverso
histrica, primordialmente, para uma reconstruo reflexiva e
filosfica acerca de temas considerados estagnados e, muitas vezes,
crentes de serem impassveis de altercao. (Ibidem, p.35-36).
Questes tais, pois, que sero retomadas e podero ser evidenciadas na anlise
proposta mais a frente; antes, contudo, faz-se necessria a teorizao.
2 - Romance de fundo histrico
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Tomado aqui como subgnero, pode-se dizer que o Romance Histrico desponta
nos decnios ps-1950 como uma das manifestaes literrias de maior fora na
Amrica Latina de lngua espanhola. Na verdade, no ltimo sculo sua difuso foi
bastante profusa, sendo reproduzido por romancistas de diversas lnguas e com
inumerveis vertentes estilsticas. H de se mencionar, contudo, que com o advento do
Novo Romance Histrico Latino Americano (ANSA, 1991), em 1949 (data marcada
pela obra El reino de este mundo de Alejo Carpentier) que o substrato histrico adquire
facetas at ento no exploradas. Tal situao impulsiona, ento, um movimento de
tericos e crticos a respeito deste subgnero, merecendo aqui como destaque os estudos
do uruguaio Fernando Ansa e do canadense Seymour Menton, elencando aquele as dez
caractersticas essenciais do Novo Romance Histrico Latino-Americano, as quais
servindo de base formulao, por parte do segundo, de seis caractersticas do
supracitado subgnero. A metafico, pois, aparece nesse cenrio, como uma das mais
profcuas fontes de explorao do aspecto crtico e reflexivo, contestador, signo maior
que une as plurais e hbridas produes do chamado perodo ps-moderno, de modo que
por vezes torna-se dificultosa a tentativa de distino entre o que seja a Metafico
Historiogrfica e o Novo Romance Histrico de cunho metaficcional (se que a
nomenclatura da conta da explicar ao). Deixando de lado o encaixotamento menos
profcuo, optamos, neste trabalho, considerando a natureza heterognea da obra
estudada, levando em conta seu enquadre contextual contemporneo e portugus, por
analisar com maior enfoque a questo do trato com o substrato histrico em Memorial
do Convento (1982). Para tanto, julgamos pertinente usar como norteador da discusso
as consideraes acerca do Novo Romance Histrico apontadas por Seymour Menton
(1993).
Cabe deixar claro, no entanto, que o uso do material histrico para construo do
discurso ficcional no uma prtica recente, ao contrrio, to antiga quanto o prprio
discurso ficcional:
No incio dos tempos, histria e literatura nasceram como ser nico e
indistinto. Lentamente, como parte do longo processo de tomada de
conscincia do homem de sua existncia social, as duas disciplinas
diferenciaram-se [...]. Na alta Antigidade, a epopia cantada pelo
rapsodo fundia, semimagicamente, o real e o imaginrio, o humano e o divino, a sociedade e o indivduo. (MAESTRI, 2002, p.38)
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Todavia, no que diz respeito ao trato com o histrico no seio do contedo
romanesco, isto , enquanto subgnero literrio, atribui-se o surgimento do Romance
Histrico ao autor Walter Scott, com a obra Ivanho, datada de 1819 e concebida no
perodo do Romantismo na Inglaterra. Faz-se mister anotar que tal insero contextual
fundamental para o entendimento da concepo do subgnero: caracterstica basal do
Romantismo a necessidade de fuga da realidade, de negao ao ftico por parte do
artista, que busca uma construo de mundo idealizada, visto no aceitar/entender o
conturbado momento social de ento (a citar, as conseqncias do advento da
Revoluo Francesa e da Revoluo Industrial Inglesa), o que os crticos costumam
chamar de escapismo. Ora, nesse sentido o RH concebido por Scott tambm como
fuga da realidade presente, encontrando refgio e revigoramento na realidade
histrica, ou seja, na revisitao ao que se acredita ser um tempo de maior glria,
honra, nobreza, amor puro e altivo, predicados estimados pelo pensar romntico.
O modelo conceituado (e amplamente difundido) em Ivanho consiste, pois, na
situacionalizao histrica de uma histria de amor, protagonizada por personagens
que formam um casal romntico que est ficcionalmente inserido naquela determinada
poca, tida por real, remetente ao passado histrico e representante da memria do
povo. Entenda-se, ento, que o elemento histrico serve aqui de pano de fundo ao
elemento ficcional, ou seja, o enredo romntico e a construo de um heri nacional
constitudo com os valores romnticos.
Apesar da grande difuso que teve tal modelo scottiano de RH, hoje denominado
como Romance Histrico Tradicional, e da sua sobrevivncia at os dias
contemporneos, j no ano de 1826 verifica-se na obra Jicotenclt a primeira grande
mudana conceitual do subgnero. A inovao a ser destacada a insero no papel de
protagonista de uma personagem histrica; isto significa dizer que no mais se toma por
regra a superposio de protagonistas ficcionais em um contexto histrico, passando-se
a reconstruir na prpria personagem protagonista o elemento histrico. Doravante, essa
personagem protagonista passa, pois, a incorporar sua raiz histrica a construo
ficcional expressa pelo literato, afinal, o escritor molda seu heri histrico segundo
sua liberdade potica. Esta , assim, a premissa para que o RH deixe de apenas re-
contar a Histria, e comece a re-ler, a re-construir esta.
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interessante reparar que, apesar da longevidade do RH, s a partir de 1949,
na Amrica Latina, que a reconstruo histrica adquire um carter profundamente
crtico na composio do subgnero. Trata-se de o que se pode chamar de um
verdadeiro boom, uma nova tendncia na elaborao de RH, uma vez serem vastas e
plurais as inovaes em relao ao RHT. O fato de tal(is) inovao(es) ter(em)
ocorrido justamente na Amrica Latina, e no na Europa, bero do RH, tambm
justificvel: analisando a histria da formao dos povos latino-americanos, fcil
reparar a falta de um passado herico similar ao europeu e que pudesse afinal vir a ser
idealizado (a expresso processo civilizatrio pode sintetizar bem essa idia); dos
tempos anteriores chegada do povo europeu no continente pouco se sabe de
concretamente histrico, e dos tempos posteriores a constante histrica a segregao
tnica marcada por violento processo de superposio cultural de civilizaes
estrangeiras em detrimento das nativas (como bem apontam os chamados Estudos
Culturais) gerando, inclusive, uma sociedade sem uma conscincia de identidade
cultural definida (o sincretismo predomina). Fugir a que passado? Vangloriar o que?
Qual a memria a ser resgatada? E por no poder atender a estas perguntas segundo os
moldes do RHT que ganha fora, ento, o contestar criticamente das verdades histricas
por meio da arte literria, reinventando a Histria, ou melhor, construindo novas
possibilidades histricas. Isto posto, deve ter ficado esclarecido que o Novo Romance
Histrico Latino-Americano tem por proposta fundamental o corromper a Histria, isto
, as verdades histricas (marca registrada do discurso positivista de razes iluministas
que dominaram por muito a Historiografia oficial), em detrimento sugesto de novas
e mltiplas verdades, ou seja, disposio reflexiva de possveis verdades.
Os dois maiores tericos do NRH, anteriormente citados, alm das reflexes
postas, expuseram em suas obras exemplos de determinados romances que
enquadravam-se no subgnero. Porm, tanto Ansa em La Nueva Novela Histrica
Latinoamericana, e Menton em La Nueva Novela Histrica de la Amrica Latina 1979
1992, exploraram somente, como os ttulos indicam, as produes afloradas no
contexto da Amrica Latina. Observa-se, contudo, que as caractersticas do NRHLA
elencadas por Menton (1993) e Ansa (1991) apontam para tendncias que extrapolam
fronteiras fixas e em muito dialogam com o esprito crtico e denunciador de Jos
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Saramago. Partindo dessas premissas, pois, exploraremos tais conceitos apontando para
como confluem com o romance em questo do autor portugus1.
3 - Caractersticas do NRH e a reelaborao da historia oficial em Memorial do
Convento: Confluncias
Atentemos, pois, sem delongas, s caractersticas elencadas por Menton (1993):
1 - A representao mimtica de determinado perodo histrico se subordina, em
diferentes graus, apresentao de algumas idias filosficas, segundo as quais
praticamente impossvel se conhecer a verdade histrica ou a realidade, o carter cclico
da histria e, paradoxalmente, seu carter imprevisvel, que faz com que os
acontecimentos mais inesperados e absurdos possam ocorrer.
Existem obras em que tal caracterstica manifesta-se de maneira exacerbada, em
que os pressupostos filosficos, ideolgicos do autor regem a reconstruo histrica de
maneira relativamente consciente e exasperada (reconstruir uma sociedade da Idade
Mdia em que os camponeses tm pensamentos marxistas, ou recontar a chegada de
Colombo sendo recebido por ndios contrrios ao processo civilizatrio, por
exemplo), e que, via de regra, esto ligadas a uma viso crtica. Em Memorial do
Convento, tal fato pode ser observado a partir de um representante do clero com
pensamentos cientficos; um padre que tenta construir uma mquina voadora, indo de
encontro aos ideais da Igreja e da religio catlica. Todavia os estudos aeronuticos
de Bartolomeu de Gusmo serem comprovados em certa medida pelo discurso
histrico oficial, o elemento fantstico introduzido pelo autor do romance extrapola os
limites do que seria minimamente aceitvel para uma ciencia positivista, tal qual o a
Histria, e vai alm ainda do limite do verossmel, mesmo que haja permeado nos
descobrimentos do padre, abalizando o processo de inveno da passarola, o discurso
cientfico, sobretudo da Qumica e Fsica.
Assim como em Ivanho (RHT), Memorial do Convento retrata uma estria de
amor situacionalizada historicamente em uma determinada poca, tida por real; e a
partir da apresentao de elementos factuais, retoma um perodo presente na memria
1 Como as caractersticas apontadas por Menton retomam as de Ansa, para evitar uma circularidade na
apresentao optamos por utilizar da classificao daquele.
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do povo portugus (no caso do romance de Saramago), a construo do Convento de
Mafra no sculo XVIII, obra monumental feita aos padres franciscanos.
Porm, diferentemente da obra de Scott, aqui, apesar de aparecer como pano de
fundo para o encontro amoroso entre as personagens Baltazar (um ex soldado que teve a
mo direita decepada na guerra) e Blimunda (mulher do povo com poderes
sobrenaturais ), o contexto
histrico apresentado de modo a estabelecer uma reflexo filosfica, desconstruindo e
reconstruindo as verdades absolutas da historiografia oficial; fator este que bastante
recorrente nas obras do Novo Romance Histrico: contar a histria sob uma nova
perspectiva, tendo como foco principal a subverso dos fatos tidos por reais, isto ,
oficiais.
2 A distoro consciente da histria mediante omisses, anacronismos e
exageros.
No mesmo sentido do que diziamos acima acerca da descontruo e
reconstruo, por meio da fico, do discurso histrico oficial, vale o questionamento: o
que levaria um rei a gastar considervel parte do ouro extrado de uma colnia em um
convento capaz de abrigar, com todo o luxo e requinte da nobreza, mais de trezentos
padres? No h documentos na historiografia oficial que comprovem o verdadeiro
motivo de tal faanha. Porm, segundo Saramago apresenta no Memorial, o prdio foi
erguido a partir do momento em que um padre franciscano, dizendo conversar com
deus, informou ao rei, que segundo a vontade divina, o reinado de Dom Joo V teria sua
continuao, ou seja, o rei teria um descendente, se construsse um convento na cidade
de Mafra, dedicado aos padres franciscanos. O que Dom Joo no sabia era que sua
esposa, D. Maria Josefa, j estava grvida, e que isso j era de conhecimento do tal
padre.
O autor utiliza-se, pois, de fatos de conhecimento geral e cria uma nova hiptese
sobre a construo do convento, ao mesmo tempo em que procura mostrar a hipocrisia e
a corrupo nas instituies maiores naquele perodo: a Igreja e a Realeza. No h,
logicamente, como atribuir teor de verdade proposio de Saramago, pois trata-se de
um discurso pretendido e visto como ficcional. O que o veio metaficcional da obra
parece questionar, no entanto, se esta mesma dvida quanto veracidade no poderia
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ser atribuida, tambm, ao discurso defendido pela Histria, este sim pretendido e visto,
via de regra, como verdico.
O ponto a que se chega, pois, o da eterna incerteza, uma vez que todo voltar-se
ao passado um debrussar-se sobre o vago a partir de pistas nebulosas, ainda que
carregadas de confiabilidade e verossimilhana. Outrossim, use-se da Arte ou da
Cincia como ferramenta, todo discurso discurso, isto , atravessado pelo substrato
histrico-ideolgico do indivduo inserido em dada esfera scio-cultural. Literatura e
Histria, ento, diferem-se apenas quanto s funes e procedimentos.
A narrativa histrica e a ficcional, conforme Benedito Nunes (1988,
p.11), acabam interagindo e se entrosam como formas de linguagem,
sendo ambas sintticas e recapitulativas. Elas tm nas atividades
humanas o seu objeto. Deste modo, o carter cientfico da narrativa
histrica no suprime a sua base narrativa, seu nexo com a
ficcionalidade. J a narrativa ficcional, pela recriao artstica dos
fatos, permeia o conhecimento da histria. (FLECK, 2005, p. 30).
A distino opositora que por vezes se pretende entre discurso ficcional e
histrico-cientfico ingnua e/ou enganosa, uma vez que no h verso verdadeira dos
fatos passados nem de um lado nem de outro, ao passo que h, tanto de um lado quanto
de outro, contribuisses relevantes ao homem presente para entender seu passado
histrico e constiuir-se, presentemente, enquanto sujeito.
3 A ficcionalizao de personagens histricos bem conhecidos, ao contrrio
da frmula usada por Scott.
Enquanto no Romance Histrico Tradicional as personagens histricas so
constitudas apenas indiretamente, ou seja, sem que haja interferncia explcita destes
no decorrer dos fatos que constituem o enredo ficcional, Memorial do Convento, ainda
que de modo subversivo, apresenta personagens compreendidos e registrados na
historiografia oficial, como o Rei de Portugal Dom Joo V e sua esposa D. Maria Ana
Josefa, de origem austraca. Ambos tm papel fundamental para o desenrolar da diegese
do romance, posto que, a partir de acontecimentos ligados a eles que se d a construo
do convento. H, neste ponto, atrelada reconstruo ficcional de personagens
histricos, a dessacralizao dos mesmos, conforme evidenciaremos mais adiante.
4 A presena da metafico ou de comentrios do narrador sobre o processo de
criao.
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A metafico aparece em Memorial do Convento estritamente atralada ao
questionamento constante, ainda que no explcito, acerca da criao do teor de
verdade, e possvel interpretao por outros vises, do fator histrico. Nesse sentido, a
noo de uma verdade nica, incontestvel, desaparece, a verdade oficial substituda
pelas mltiplas verdades, dos mltimplos olhares que revem a histria. (ANDRADE,
2009, p. 292). Hucheon (1991, p. 21), define a metafico historiogrfica como sendo
aqueles romances famosos e populares que, ao mesmo tempo, so intensamente auto-
reflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, tambm se apropriam de
acontecimentos e personagens histricos.
5 Grande uso da intertextualidade, nos mais variados graus.
A intertextualidade pode aparecer tanto no sentido stricto quanto no sentido
lacto da palavra. Neste sentido, podemos encontrar em uma obra literria, tanto
elementos explcitos, que relem outros autores, obras, idias, etc., quanto implcitos,
que no aparecem diretamente, no retomam de forma clara algo dito anteriormente,
no sendo, no entanto, clara a diviso entre um e outro, assim como podemos notar em
Memorial do Convento, em que a releitura da histria, por si s, j constituiria um modo
de intertextualidade com a historiografia dos acontecimentos reais.
No podemos esquecer, contudo, que o dialogo no se limita somente quilo que
est registrado nas escrituras: h de se levar em conta as influncias da memria
coletiva na manifestao artstica. Torna-se, deste modo, difcil estabelecer um limite
entre o que uma referncia direta ou indireta a algo; at que ponto estamos falando do
dialogo com a escritura acerca da histria e a partir de que momento nos deparamos
com formas mais suts de perpetuao na memria coletiva dos fatos passados. Jos
Saramago nasceu e viveu quase toda a vida em Portugal. Sua memria faz parte da
memria do povo portugus, sendo que, a simples retomada de um fato, pode tanto ser
uma referncia a uma simples passagem da Histria ou a qualquer outro autor que
tambm tenha produzido algo tomando como referente o referido pas.
Toda releitura caracteriza-se pela intertextualidade. Fazendo-se mister evidenci-
la, podemos destacar na obra alguns fatos que comprovam tal caracterstica, como a
presena dos reis de Portugal, Dom Joo V e D. Maria Josefina, como tambm a
presena da inquisio.
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No entanto, h tambm trechos que parecem configurar-se como retomadas
propositais de outros textos, como no trecho a seguir, em que se faz uma referncia
clara parbola bblica do filho prdigo:
Regressou o filho prdigo, trouxe mulher, e, se no vem de mos
vazias, porque uma lhe ficou no campo de batalha e a outra segura a
me de Blimunda, se vem mais rico ou mais pobre no coisa que se
pergunte, pois todo homem sabe o que tem, mas no sabe o que isso
vale. Quando Baltasar empurrou a porta e apareceu me, Marta
Maria, que o seu nome, abraou-se ao filho, abraou-o com uma
fora que parecia de homem e era s de corao. (SARAMAGO,
2005, p. 99).
A intertextualidade, a exemplo do excerto, se far mais evidente em momentos
que se faa referncia a assuntos ligados Igreja. Marca do autor, tal fato nos remete,
via de regra, a um trato irnico e subversivo do discurso cristo e sua moral. H, a, no
rebaixamento da teologia, a abertura ao carter racional e crtico, sempre incitados pelo
narrador saramaguiano2
6 Presena dos conceitos bakhtinianos de dialogia, carnavalizao, pardia e
heteroglossia.
Os conceitos bakhtinianos aparecem recorrentemente na vasta produo artstica
saramaguiana, no sendo diferente na obra aqui analisada.
Uma caracterstica muito comum nas literaturas universais difundidas no
ocidente, desde a Grcia Clssica at a Idade Mdia, no sendo isso uma regra, mas sim
um fator de recorrncia temtica nas obras de arte, estando presente tambm nos tempos
modernos, constitui-se na exaltao das figuras de poder. Vale citar, na era Medieval, a
forte influncia e poder da Igreja e da Monarquia absolutista nos pases europeus e
posteriormente em suas respectivas colnias.
Contudo, com o advento da modernidade e a rpida divulgao do conhecimento
(impulsionada com a criao da imprensa, por Gutemberg), os valores estabelecidos at
ento passam a ser revistos e questionados. Surge ento, na segunda metade do sculo
XX a Nova Histria, que busca revisitar o passado, propondo conceber os fatos tidos
como verdades absolutas sob um novo prisma, com diferentes perspectivas. Uma
2 H de se ter em conta que Saramago no distingue, ao contrrio do que supe boa parte da Teoria
Literria, o autor do narrador; nesse sentido que, neste artigo, tratamos com tranquilidade o fato de
referir figura do autor aspectos da construo narrativa da obra.
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batalha passa a ser vista no somente na perspectiva do general, que muito
provavelmente no tenha entrado no campo, mas tambm partindo do ponto de vista do
soldado; assim como a colonizao da Amrica, que passa a ser vista de baixo, ou seja,
com olhos do colonizado.
H que se levar em conta que no foram os povos autctones que passaram a
recontar a histria, mas sim os frutos da hibridizao entre os povos formadores da atual
sociedade americana, isso como um modo de subverso da historiografia oficial e a
busca continua de uma identidade prpria a estes que no so nem negros, nem ndios,
nem europeus, etc.
Neste sentido, os preceitos bakhtinianos de anlise literria aplicam-se muito
bem s obras produzidas na Amrica Latina do fim do sculo XIX. Porm, tais
caractersticas j se faziam presentes em produes datadas de pocas longnquas, mas
sem o mesmo flego e recorrncia apresentados na Literatura ps-boom.
Saramago, contudo, no pertence h uma sociedade que busca construir uma
identidade social tal qual ocore na Amrica Latina; H, sim, reconhecidamente, uma
rusga entre o autor e sua terra natal (entenda-se o povo portugus), o que poderia nos
indicar que v a necessidade de questionar a relao que o povo portugus mantm com
sua realidade histrico-social; busca, pois, em Memorial do Convento, recontar fatos
que fazem parte da memria da sociedade portuguesa a partir de uma tica crtica,
reflexiva e, acima de tudo, contestadora. Nesse sentido, ento, que entram em cena no
romance a dialogia, a carnavalizao, a pardia e a heteroglossia.
A carnavalizao, isto , a inverso de valores e poderes provocada pelo
inusitado, pelo ridculo, pelo excepcional, ou mesmo pelo grotesco e cmico, pode ser
observada e destacada de trechos da obra de Saramago a partir do destronamento das
personalidades Reais, como observamos no excerto que segue:
J se deitaram. Est a cama que veio da Holanda quando a rainha
veio da ustria, mandada fazer de propsito pelo rei, a cama, a quem
custou setenta e cinco mil cruzados, que em Portugal no h artfices
de tanto primor [...]. A desprevenido olhar nem se sabe se de
madeira o magnfico mvel, coberto como est pela armao
preciosa, tecida e bordada de flores e relevos de ouro, isso no
falando do dossel que poderia servir para cobrir o papa. Quando a
cama aqui foi posta e armada ainda no havia percevejos nela, to
nova era, mas depois, com o uso, o calor dos corpos, as migraes no
interior do palcio [...] e sendo to rica de matria e adorno no se lhe
pode aproximar um trapo a arder para queimar o enxame, no h mais
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remdio, ainda no o sendo, que pagar a Santo Aleixo cinquenta ris
por ano, a ver se livra a rainha e a ns todos da praga da coceira. [...].
L na cama do rei esto outros espera do seu quinho de sangue,
que no acham nem pior nem melhor que o restante da cidade, azul
ou natural. (SARAMAGO, 2005, p. 16)
Na passagem citada pode-se perceber o contraste entre a suntuosidade e o
ridculo e mundano, trazendo s figuras da realeza caractersticas que poderiam ser de
qualquer pessoa que vivesse em Lisboa naquela poca. O romance difere-se, deste
modo, tais figuras reais das descritas na Literatura, pintura etc., que eram caracterizadas
altivamente, de modo idealizado, como se esses indivduos fossem superiores s
pessoas comuns. O desvirtuamento carnavalizado aponta para o fato de que s o que
tinham de diferente era o poder e a riqueza, no podendo fugir aos males do ser
humano. Assim, a tpica figura da nobreza, signo da altivez, sendo aqui rebaixada, leva
o leitor a colocar no mesmo patamar todos os indivduos, rompendo-se ento, por
emprstimo, qualquer argumento que tente justificar a hierarquia de poder por meio da
sublimao moral.
A heteroglossia, o mesclar, confrontar, sobrepor, miscigenar de mltiplas
formas de falar, diferentes maneiras lingsticas de se expressar, pode ser
caracterizada na obra a partir das diferentes perspectivas dos diferentes personagens.
Temos ento a presena da linguagem popular, caracterizada por Baltazar e Blimunda;
do Clero com a personagem Bartolomeu de Gusmo; e da Nobreza, a partir do Rei,
posto que a rainha no ganha voz na obra. Tal distino entre clero erudito, popular
ignbil e nobreza dessacralizada, nos aponta, outrossim, uma relao de dialogia,
caracterizada na disposio de mltiplas ideologias, diferentes formas de pensar que
se inter-relacionam. Mesmo dentro da esfera eclesistica h a uma sempre constante
tenso entre o religio so e cientfico, que culminam em problemas vrios a Bartolomeu
de Gusmo, posto no entrelugar da cincia e teologia crist em tempos de inquisio.
importante ressaltar que estas seis caractersticas aparecem na obra de modo
confluente, sendo por vezes uma constituinte da outra. Isso se deve ao fato de a
narrativa ficcional recontar a histria, no tentando sem que haja um compromisso com
a verdade, mas como a possibilidade, que aponta ao olhar crtico dos fatos e necessidade
de pens-los de maneira reflexiva.
II Seminrio Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010
Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR
ISSN 2178-8200
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