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  • II Seminrio Nacional em Estudos da Linguagem: 06 a 08 de outubro de 2010

    Diversidade, Ensino e Linguagem UNIOESTE - Cascavel / PR

    ISSN 2178-8200

    METAFICO HISTORIOGRFICA E NOVO ROMANCE HISTRICO: A

    HISTORIOGRAFIA EM MEMORIAL DO CONVENTO

    LEITES, Wallisson Rodrigo (PG - UNIOESTE)

    LEITES JR, Pedro (G - UNIOESTE)

    RESUMO: H de se ter conta, quando se fala em obra ficcional com fundo histrico,

    que as fronteiras entre historiografia e fico so bastante maleveis; se surgiram juntas,

    indissociveis, na poca clssica, e se foram foradamente separadas pela historiografia

    oficial e a cincia objetivista, parecem nas ltimas dcadas ter encontrado pontos de

    interseco que apontam para uma re-delimitao de o que seja histria e o que seja

    fico. Em verdade, o material histrico, a leitura de fatos tidos como passados, permeia

    a construo ficcional desde suas primeiras manifestaes. Como fruto da narrativa de

    tradio oral, j em Homero deparamo-nos com o primeiro expoente de obra literria

    com fundo histrico e em Walter Scott temos o surgimento do Romance Histrico. Tal

    subgnero, uma vez permeado pelas perspectivas descontrutivistas (e/ou re-

    construtivistas) acerca da historiografia tida como narrativa dos fatos reais, d

    margem a manifestaes tais quais as do Novo Romance Histrico e da Metafico

    Historiogrfica. Nesse sentido, o presente trabalho pretende promover uma apreciao

    acerca de como se d o trato para com o material histrico na obra Memorial do

    Convento (1982), de Jos Saramago, atentando para seu enquadre enquanto Metafico

    Historiogrfica e para a presena das caractersticas do Novo Romance Histrico na

    obra.

    PALAVRAS-CHAVE: Historiografia; Metafico historiogrfica; Novo Romance

    Histrico; Memorial do Convento.

    1- Introduo: o autor e sua obra

    Tornando-se foroso tratar, ainda que de forma bastante breve, do autor e de sua

    produo artstica, mesmo que ambos ressoem j com grande propenso sobre o

    inconsciente coletivo dos pases de lngua portugusa no contexto atual, esboaremos

    aqu, para os leitores de menor experincia que por ventura nos venham a ler, algumas

    consideraes genricas.

    Jos Saramago (1922-2010), certamente o maior expoente da Literatura

    Portugusa contempornea, em sua vasta obra se dedicou ao conto, poesia, crnica,

    ao teatro e ao romance, tendo tido neste ltimo gnero literrio maior proeminncia.

    de praxe, dentre os estudiosos de sua produo literria, divid-la em dois momentos, a

    citar, um primeiro, que alcana menor expresso, no qual predomina a lrica, o teatro, a

    crnica, o conto e poucos romances, e um segundo, no qual alou destaque

    internacional, publicando romances polmicos, permeados de um veio fortemente

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    contestador e marcados por inovaes estilsticas nesta fase, dentre inmeros ttulos

    podemos destacar a obra ora analisada Memorial do Convento (1982), O Evangelho

    segundo Jesus Cristo (1991), Ensaio sobre a cegueira (1995) e As intermitncias da

    morte (2005).

    A partir da dcada de 1980, pois, sua obra projeta-se preponderantemente sobre

    questes relativas religiosidade (sobretudo perspectiva crist), filosofia, sociologia,

    histria e prpria Literatura (isto , metafico). H de se ressaltar, todavia, que tais

    fontes temticas, sempre embebidas em um discurso crtico e politizado, aparecem na

    sua produo deste perodo de certa forma amarradas entre si e sem ater-se muito s

    fronteiras destas reas do saber. Tal dialogismo, outrossim, torna-se profcuo e

    envolvente na medida que costurado em sua alta elaborao esttico-formal

    (ZANELLA, 2009, p.35). Nesse sentido,

    Poderamos afirmar que a Literatura saramaguiana insistente, se

    quisssemos resumi-la em um termo. No caso de observar a vida de

    Saramago, ver-se- que no haveria de ser diferente, [] o autor foi

    ativista explcito [] e esteve ligado, por exemplo, ao movimento

    zapatista, mais especificamente, e a movimentos anti-ditatoriais em

    geral, alm de manifestaes mundiais a favor da paz e contra o

    terrorismo. Ainda, declaradamente ateu e comunista. Estes fatores

    corroboram, pois, seu posicionamento literrio, ora escancarado, ora

    mascarado atrs da ironia, do escrnio. [] De fato a construo

    ficcional de Saramago distinta [], h pargrafos que podem durar

    vrias pginas, perodos que podem durar vrias linhas, aproximao

    do discurso oral por meio da escrita, algumas interferncias do

    narrador a seu bel-prazer, etc.; quanto (s) temtica(s), tm-se

    assuntos sobretudo polmicos, tratados por cunho contestador,

    subversivo, desmitificador, tanto de carter histrico, como se observa

    na produo at por volta de 1995, quanto de carter mais voltado

    filosofia aps esta data []. A confluncia destes fatores concebe

    uma Literatura tanto artstica quanto engajada, apresentando uma

    construo ficcional feita a partir da desconstruo ou subverso

    histrica, primordialmente, para uma reconstruo reflexiva e

    filosfica acerca de temas considerados estagnados e, muitas vezes,

    crentes de serem impassveis de altercao. (Ibidem, p.35-36).

    Questes tais, pois, que sero retomadas e podero ser evidenciadas na anlise

    proposta mais a frente; antes, contudo, faz-se necessria a teorizao.

    2 - Romance de fundo histrico

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    Tomado aqui como subgnero, pode-se dizer que o Romance Histrico desponta

    nos decnios ps-1950 como uma das manifestaes literrias de maior fora na

    Amrica Latina de lngua espanhola. Na verdade, no ltimo sculo sua difuso foi

    bastante profusa, sendo reproduzido por romancistas de diversas lnguas e com

    inumerveis vertentes estilsticas. H de se mencionar, contudo, que com o advento do

    Novo Romance Histrico Latino Americano (ANSA, 1991), em 1949 (data marcada

    pela obra El reino de este mundo de Alejo Carpentier) que o substrato histrico adquire

    facetas at ento no exploradas. Tal situao impulsiona, ento, um movimento de

    tericos e crticos a respeito deste subgnero, merecendo aqui como destaque os estudos

    do uruguaio Fernando Ansa e do canadense Seymour Menton, elencando aquele as dez

    caractersticas essenciais do Novo Romance Histrico Latino-Americano, as quais

    servindo de base formulao, por parte do segundo, de seis caractersticas do

    supracitado subgnero. A metafico, pois, aparece nesse cenrio, como uma das mais

    profcuas fontes de explorao do aspecto crtico e reflexivo, contestador, signo maior

    que une as plurais e hbridas produes do chamado perodo ps-moderno, de modo que

    por vezes torna-se dificultosa a tentativa de distino entre o que seja a Metafico

    Historiogrfica e o Novo Romance Histrico de cunho metaficcional (se que a

    nomenclatura da conta da explicar ao). Deixando de lado o encaixotamento menos

    profcuo, optamos, neste trabalho, considerando a natureza heterognea da obra

    estudada, levando em conta seu enquadre contextual contemporneo e portugus, por

    analisar com maior enfoque a questo do trato com o substrato histrico em Memorial

    do Convento (1982). Para tanto, julgamos pertinente usar como norteador da discusso

    as consideraes acerca do Novo Romance Histrico apontadas por Seymour Menton

    (1993).

    Cabe deixar claro, no entanto, que o uso do material histrico para construo do

    discurso ficcional no uma prtica recente, ao contrrio, to antiga quanto o prprio

    discurso ficcional:

    No incio dos tempos, histria e literatura nasceram como ser nico e

    indistinto. Lentamente, como parte do longo processo de tomada de

    conscincia do homem de sua existncia social, as duas disciplinas

    diferenciaram-se [...]. Na alta Antigidade, a epopia cantada pelo

    rapsodo fundia, semimagicamente, o real e o imaginrio, o humano e o divino, a sociedade e o indivduo. (MAESTRI, 2002, p.38)

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    Todavia, no que diz respeito ao trato com o histrico no seio do contedo

    romanesco, isto , enquanto subgnero literrio, atribui-se o surgimento do Romance

    Histrico ao autor Walter Scott, com a obra Ivanho, datada de 1819 e concebida no

    perodo do Romantismo na Inglaterra. Faz-se mister anotar que tal insero contextual

    fundamental para o entendimento da concepo do subgnero: caracterstica basal do

    Romantismo a necessidade de fuga da realidade, de negao ao ftico por parte do

    artista, que busca uma construo de mundo idealizada, visto no aceitar/entender o

    conturbado momento social de ento (a citar, as conseqncias do advento da

    Revoluo Francesa e da Revoluo Industrial Inglesa), o que os crticos costumam

    chamar de escapismo. Ora, nesse sentido o RH concebido por Scott tambm como

    fuga da realidade presente, encontrando refgio e revigoramento na realidade

    histrica, ou seja, na revisitao ao que se acredita ser um tempo de maior glria,

    honra, nobreza, amor puro e altivo, predicados estimados pelo pensar romntico.

    O modelo conceituado (e amplamente difundido) em Ivanho consiste, pois, na

    situacionalizao histrica de uma histria de amor, protagonizada por personagens

    que formam um casal romntico que est ficcionalmente inserido naquela determinada

    poca, tida por real, remetente ao passado histrico e representante da memria do

    povo. Entenda-se, ento, que o elemento histrico serve aqui de pano de fundo ao

    elemento ficcional, ou seja, o enredo romntico e a construo de um heri nacional

    constitudo com os valores romnticos.

    Apesar da grande difuso que teve tal modelo scottiano de RH, hoje denominado

    como Romance Histrico Tradicional, e da sua sobrevivncia at os dias

    contemporneos, j no ano de 1826 verifica-se na obra Jicotenclt a primeira grande

    mudana conceitual do subgnero. A inovao a ser destacada a insero no papel de

    protagonista de uma personagem histrica; isto significa dizer que no mais se toma por

    regra a superposio de protagonistas ficcionais em um contexto histrico, passando-se

    a reconstruir na prpria personagem protagonista o elemento histrico. Doravante, essa

    personagem protagonista passa, pois, a incorporar sua raiz histrica a construo

    ficcional expressa pelo literato, afinal, o escritor molda seu heri histrico segundo

    sua liberdade potica. Esta , assim, a premissa para que o RH deixe de apenas re-

    contar a Histria, e comece a re-ler, a re-construir esta.

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    interessante reparar que, apesar da longevidade do RH, s a partir de 1949,

    na Amrica Latina, que a reconstruo histrica adquire um carter profundamente

    crtico na composio do subgnero. Trata-se de o que se pode chamar de um

    verdadeiro boom, uma nova tendncia na elaborao de RH, uma vez serem vastas e

    plurais as inovaes em relao ao RHT. O fato de tal(is) inovao(es) ter(em)

    ocorrido justamente na Amrica Latina, e no na Europa, bero do RH, tambm

    justificvel: analisando a histria da formao dos povos latino-americanos, fcil

    reparar a falta de um passado herico similar ao europeu e que pudesse afinal vir a ser

    idealizado (a expresso processo civilizatrio pode sintetizar bem essa idia); dos

    tempos anteriores chegada do povo europeu no continente pouco se sabe de

    concretamente histrico, e dos tempos posteriores a constante histrica a segregao

    tnica marcada por violento processo de superposio cultural de civilizaes

    estrangeiras em detrimento das nativas (como bem apontam os chamados Estudos

    Culturais) gerando, inclusive, uma sociedade sem uma conscincia de identidade

    cultural definida (o sincretismo predomina). Fugir a que passado? Vangloriar o que?

    Qual a memria a ser resgatada? E por no poder atender a estas perguntas segundo os

    moldes do RHT que ganha fora, ento, o contestar criticamente das verdades histricas

    por meio da arte literria, reinventando a Histria, ou melhor, construindo novas

    possibilidades histricas. Isto posto, deve ter ficado esclarecido que o Novo Romance

    Histrico Latino-Americano tem por proposta fundamental o corromper a Histria, isto

    , as verdades histricas (marca registrada do discurso positivista de razes iluministas

    que dominaram por muito a Historiografia oficial), em detrimento sugesto de novas

    e mltiplas verdades, ou seja, disposio reflexiva de possveis verdades.

    Os dois maiores tericos do NRH, anteriormente citados, alm das reflexes

    postas, expuseram em suas obras exemplos de determinados romances que

    enquadravam-se no subgnero. Porm, tanto Ansa em La Nueva Novela Histrica

    Latinoamericana, e Menton em La Nueva Novela Histrica de la Amrica Latina 1979

    1992, exploraram somente, como os ttulos indicam, as produes afloradas no

    contexto da Amrica Latina. Observa-se, contudo, que as caractersticas do NRHLA

    elencadas por Menton (1993) e Ansa (1991) apontam para tendncias que extrapolam

    fronteiras fixas e em muito dialogam com o esprito crtico e denunciador de Jos

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    Saramago. Partindo dessas premissas, pois, exploraremos tais conceitos apontando para

    como confluem com o romance em questo do autor portugus1.

    3 - Caractersticas do NRH e a reelaborao da historia oficial em Memorial do

    Convento: Confluncias

    Atentemos, pois, sem delongas, s caractersticas elencadas por Menton (1993):

    1 - A representao mimtica de determinado perodo histrico se subordina, em

    diferentes graus, apresentao de algumas idias filosficas, segundo as quais

    praticamente impossvel se conhecer a verdade histrica ou a realidade, o carter cclico

    da histria e, paradoxalmente, seu carter imprevisvel, que faz com que os

    acontecimentos mais inesperados e absurdos possam ocorrer.

    Existem obras em que tal caracterstica manifesta-se de maneira exacerbada, em

    que os pressupostos filosficos, ideolgicos do autor regem a reconstruo histrica de

    maneira relativamente consciente e exasperada (reconstruir uma sociedade da Idade

    Mdia em que os camponeses tm pensamentos marxistas, ou recontar a chegada de

    Colombo sendo recebido por ndios contrrios ao processo civilizatrio, por

    exemplo), e que, via de regra, esto ligadas a uma viso crtica. Em Memorial do

    Convento, tal fato pode ser observado a partir de um representante do clero com

    pensamentos cientficos; um padre que tenta construir uma mquina voadora, indo de

    encontro aos ideais da Igreja e da religio catlica. Todavia os estudos aeronuticos

    de Bartolomeu de Gusmo serem comprovados em certa medida pelo discurso

    histrico oficial, o elemento fantstico introduzido pelo autor do romance extrapola os

    limites do que seria minimamente aceitvel para uma ciencia positivista, tal qual o a

    Histria, e vai alm ainda do limite do verossmel, mesmo que haja permeado nos

    descobrimentos do padre, abalizando o processo de inveno da passarola, o discurso

    cientfico, sobretudo da Qumica e Fsica.

    Assim como em Ivanho (RHT), Memorial do Convento retrata uma estria de

    amor situacionalizada historicamente em uma determinada poca, tida por real; e a

    partir da apresentao de elementos factuais, retoma um perodo presente na memria

    1 Como as caractersticas apontadas por Menton retomam as de Ansa, para evitar uma circularidade na

    apresentao optamos por utilizar da classificao daquele.

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    do povo portugus (no caso do romance de Saramago), a construo do Convento de

    Mafra no sculo XVIII, obra monumental feita aos padres franciscanos.

    Porm, diferentemente da obra de Scott, aqui, apesar de aparecer como pano de

    fundo para o encontro amoroso entre as personagens Baltazar (um ex soldado que teve a

    mo direita decepada na guerra) e Blimunda (mulher do povo com poderes

    sobrenaturais ), o contexto

    histrico apresentado de modo a estabelecer uma reflexo filosfica, desconstruindo e

    reconstruindo as verdades absolutas da historiografia oficial; fator este que bastante

    recorrente nas obras do Novo Romance Histrico: contar a histria sob uma nova

    perspectiva, tendo como foco principal a subverso dos fatos tidos por reais, isto ,

    oficiais.

    2 A distoro consciente da histria mediante omisses, anacronismos e

    exageros.

    No mesmo sentido do que diziamos acima acerca da descontruo e

    reconstruo, por meio da fico, do discurso histrico oficial, vale o questionamento: o

    que levaria um rei a gastar considervel parte do ouro extrado de uma colnia em um

    convento capaz de abrigar, com todo o luxo e requinte da nobreza, mais de trezentos

    padres? No h documentos na historiografia oficial que comprovem o verdadeiro

    motivo de tal faanha. Porm, segundo Saramago apresenta no Memorial, o prdio foi

    erguido a partir do momento em que um padre franciscano, dizendo conversar com

    deus, informou ao rei, que segundo a vontade divina, o reinado de Dom Joo V teria sua

    continuao, ou seja, o rei teria um descendente, se construsse um convento na cidade

    de Mafra, dedicado aos padres franciscanos. O que Dom Joo no sabia era que sua

    esposa, D. Maria Josefa, j estava grvida, e que isso j era de conhecimento do tal

    padre.

    O autor utiliza-se, pois, de fatos de conhecimento geral e cria uma nova hiptese

    sobre a construo do convento, ao mesmo tempo em que procura mostrar a hipocrisia e

    a corrupo nas instituies maiores naquele perodo: a Igreja e a Realeza. No h,

    logicamente, como atribuir teor de verdade proposio de Saramago, pois trata-se de

    um discurso pretendido e visto como ficcional. O que o veio metaficcional da obra

    parece questionar, no entanto, se esta mesma dvida quanto veracidade no poderia

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    ser atribuida, tambm, ao discurso defendido pela Histria, este sim pretendido e visto,

    via de regra, como verdico.

    O ponto a que se chega, pois, o da eterna incerteza, uma vez que todo voltar-se

    ao passado um debrussar-se sobre o vago a partir de pistas nebulosas, ainda que

    carregadas de confiabilidade e verossimilhana. Outrossim, use-se da Arte ou da

    Cincia como ferramenta, todo discurso discurso, isto , atravessado pelo substrato

    histrico-ideolgico do indivduo inserido em dada esfera scio-cultural. Literatura e

    Histria, ento, diferem-se apenas quanto s funes e procedimentos.

    A narrativa histrica e a ficcional, conforme Benedito Nunes (1988,

    p.11), acabam interagindo e se entrosam como formas de linguagem,

    sendo ambas sintticas e recapitulativas. Elas tm nas atividades

    humanas o seu objeto. Deste modo, o carter cientfico da narrativa

    histrica no suprime a sua base narrativa, seu nexo com a

    ficcionalidade. J a narrativa ficcional, pela recriao artstica dos

    fatos, permeia o conhecimento da histria. (FLECK, 2005, p. 30).

    A distino opositora que por vezes se pretende entre discurso ficcional e

    histrico-cientfico ingnua e/ou enganosa, uma vez que no h verso verdadeira dos

    fatos passados nem de um lado nem de outro, ao passo que h, tanto de um lado quanto

    de outro, contribuisses relevantes ao homem presente para entender seu passado

    histrico e constiuir-se, presentemente, enquanto sujeito.

    3 A ficcionalizao de personagens histricos bem conhecidos, ao contrrio

    da frmula usada por Scott.

    Enquanto no Romance Histrico Tradicional as personagens histricas so

    constitudas apenas indiretamente, ou seja, sem que haja interferncia explcita destes

    no decorrer dos fatos que constituem o enredo ficcional, Memorial do Convento, ainda

    que de modo subversivo, apresenta personagens compreendidos e registrados na

    historiografia oficial, como o Rei de Portugal Dom Joo V e sua esposa D. Maria Ana

    Josefa, de origem austraca. Ambos tm papel fundamental para o desenrolar da diegese

    do romance, posto que, a partir de acontecimentos ligados a eles que se d a construo

    do convento. H, neste ponto, atrelada reconstruo ficcional de personagens

    histricos, a dessacralizao dos mesmos, conforme evidenciaremos mais adiante.

    4 A presena da metafico ou de comentrios do narrador sobre o processo de

    criao.

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    A metafico aparece em Memorial do Convento estritamente atralada ao

    questionamento constante, ainda que no explcito, acerca da criao do teor de

    verdade, e possvel interpretao por outros vises, do fator histrico. Nesse sentido, a

    noo de uma verdade nica, incontestvel, desaparece, a verdade oficial substituda

    pelas mltiplas verdades, dos mltimplos olhares que revem a histria. (ANDRADE,

    2009, p. 292). Hucheon (1991, p. 21), define a metafico historiogrfica como sendo

    aqueles romances famosos e populares que, ao mesmo tempo, so intensamente auto-

    reflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, tambm se apropriam de

    acontecimentos e personagens histricos.

    5 Grande uso da intertextualidade, nos mais variados graus.

    A intertextualidade pode aparecer tanto no sentido stricto quanto no sentido

    lacto da palavra. Neste sentido, podemos encontrar em uma obra literria, tanto

    elementos explcitos, que relem outros autores, obras, idias, etc., quanto implcitos,

    que no aparecem diretamente, no retomam de forma clara algo dito anteriormente,

    no sendo, no entanto, clara a diviso entre um e outro, assim como podemos notar em

    Memorial do Convento, em que a releitura da histria, por si s, j constituiria um modo

    de intertextualidade com a historiografia dos acontecimentos reais.

    No podemos esquecer, contudo, que o dialogo no se limita somente quilo que

    est registrado nas escrituras: h de se levar em conta as influncias da memria

    coletiva na manifestao artstica. Torna-se, deste modo, difcil estabelecer um limite

    entre o que uma referncia direta ou indireta a algo; at que ponto estamos falando do

    dialogo com a escritura acerca da histria e a partir de que momento nos deparamos

    com formas mais suts de perpetuao na memria coletiva dos fatos passados. Jos

    Saramago nasceu e viveu quase toda a vida em Portugal. Sua memria faz parte da

    memria do povo portugus, sendo que, a simples retomada de um fato, pode tanto ser

    uma referncia a uma simples passagem da Histria ou a qualquer outro autor que

    tambm tenha produzido algo tomando como referente o referido pas.

    Toda releitura caracteriza-se pela intertextualidade. Fazendo-se mister evidenci-

    la, podemos destacar na obra alguns fatos que comprovam tal caracterstica, como a

    presena dos reis de Portugal, Dom Joo V e D. Maria Josefina, como tambm a

    presena da inquisio.

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    No entanto, h tambm trechos que parecem configurar-se como retomadas

    propositais de outros textos, como no trecho a seguir, em que se faz uma referncia

    clara parbola bblica do filho prdigo:

    Regressou o filho prdigo, trouxe mulher, e, se no vem de mos

    vazias, porque uma lhe ficou no campo de batalha e a outra segura a

    me de Blimunda, se vem mais rico ou mais pobre no coisa que se

    pergunte, pois todo homem sabe o que tem, mas no sabe o que isso

    vale. Quando Baltasar empurrou a porta e apareceu me, Marta

    Maria, que o seu nome, abraou-se ao filho, abraou-o com uma

    fora que parecia de homem e era s de corao. (SARAMAGO,

    2005, p. 99).

    A intertextualidade, a exemplo do excerto, se far mais evidente em momentos

    que se faa referncia a assuntos ligados Igreja. Marca do autor, tal fato nos remete,

    via de regra, a um trato irnico e subversivo do discurso cristo e sua moral. H, a, no

    rebaixamento da teologia, a abertura ao carter racional e crtico, sempre incitados pelo

    narrador saramaguiano2

    6 Presena dos conceitos bakhtinianos de dialogia, carnavalizao, pardia e

    heteroglossia.

    Os conceitos bakhtinianos aparecem recorrentemente na vasta produo artstica

    saramaguiana, no sendo diferente na obra aqui analisada.

    Uma caracterstica muito comum nas literaturas universais difundidas no

    ocidente, desde a Grcia Clssica at a Idade Mdia, no sendo isso uma regra, mas sim

    um fator de recorrncia temtica nas obras de arte, estando presente tambm nos tempos

    modernos, constitui-se na exaltao das figuras de poder. Vale citar, na era Medieval, a

    forte influncia e poder da Igreja e da Monarquia absolutista nos pases europeus e

    posteriormente em suas respectivas colnias.

    Contudo, com o advento da modernidade e a rpida divulgao do conhecimento

    (impulsionada com a criao da imprensa, por Gutemberg), os valores estabelecidos at

    ento passam a ser revistos e questionados. Surge ento, na segunda metade do sculo

    XX a Nova Histria, que busca revisitar o passado, propondo conceber os fatos tidos

    como verdades absolutas sob um novo prisma, com diferentes perspectivas. Uma

    2 H de se ter em conta que Saramago no distingue, ao contrrio do que supe boa parte da Teoria

    Literria, o autor do narrador; nesse sentido que, neste artigo, tratamos com tranquilidade o fato de

    referir figura do autor aspectos da construo narrativa da obra.

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    batalha passa a ser vista no somente na perspectiva do general, que muito

    provavelmente no tenha entrado no campo, mas tambm partindo do ponto de vista do

    soldado; assim como a colonizao da Amrica, que passa a ser vista de baixo, ou seja,

    com olhos do colonizado.

    H que se levar em conta que no foram os povos autctones que passaram a

    recontar a histria, mas sim os frutos da hibridizao entre os povos formadores da atual

    sociedade americana, isso como um modo de subverso da historiografia oficial e a

    busca continua de uma identidade prpria a estes que no so nem negros, nem ndios,

    nem europeus, etc.

    Neste sentido, os preceitos bakhtinianos de anlise literria aplicam-se muito

    bem s obras produzidas na Amrica Latina do fim do sculo XIX. Porm, tais

    caractersticas j se faziam presentes em produes datadas de pocas longnquas, mas

    sem o mesmo flego e recorrncia apresentados na Literatura ps-boom.

    Saramago, contudo, no pertence h uma sociedade que busca construir uma

    identidade social tal qual ocore na Amrica Latina; H, sim, reconhecidamente, uma

    rusga entre o autor e sua terra natal (entenda-se o povo portugus), o que poderia nos

    indicar que v a necessidade de questionar a relao que o povo portugus mantm com

    sua realidade histrico-social; busca, pois, em Memorial do Convento, recontar fatos

    que fazem parte da memria da sociedade portuguesa a partir de uma tica crtica,

    reflexiva e, acima de tudo, contestadora. Nesse sentido, ento, que entram em cena no

    romance a dialogia, a carnavalizao, a pardia e a heteroglossia.

    A carnavalizao, isto , a inverso de valores e poderes provocada pelo

    inusitado, pelo ridculo, pelo excepcional, ou mesmo pelo grotesco e cmico, pode ser

    observada e destacada de trechos da obra de Saramago a partir do destronamento das

    personalidades Reais, como observamos no excerto que segue:

    J se deitaram. Est a cama que veio da Holanda quando a rainha

    veio da ustria, mandada fazer de propsito pelo rei, a cama, a quem

    custou setenta e cinco mil cruzados, que em Portugal no h artfices

    de tanto primor [...]. A desprevenido olhar nem se sabe se de

    madeira o magnfico mvel, coberto como est pela armao

    preciosa, tecida e bordada de flores e relevos de ouro, isso no

    falando do dossel que poderia servir para cobrir o papa. Quando a

    cama aqui foi posta e armada ainda no havia percevejos nela, to

    nova era, mas depois, com o uso, o calor dos corpos, as migraes no

    interior do palcio [...] e sendo to rica de matria e adorno no se lhe

    pode aproximar um trapo a arder para queimar o enxame, no h mais

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    remdio, ainda no o sendo, que pagar a Santo Aleixo cinquenta ris

    por ano, a ver se livra a rainha e a ns todos da praga da coceira. [...].

    L na cama do rei esto outros espera do seu quinho de sangue,

    que no acham nem pior nem melhor que o restante da cidade, azul

    ou natural. (SARAMAGO, 2005, p. 16)

    Na passagem citada pode-se perceber o contraste entre a suntuosidade e o

    ridculo e mundano, trazendo s figuras da realeza caractersticas que poderiam ser de

    qualquer pessoa que vivesse em Lisboa naquela poca. O romance difere-se, deste

    modo, tais figuras reais das descritas na Literatura, pintura etc., que eram caracterizadas

    altivamente, de modo idealizado, como se esses indivduos fossem superiores s

    pessoas comuns. O desvirtuamento carnavalizado aponta para o fato de que s o que

    tinham de diferente era o poder e a riqueza, no podendo fugir aos males do ser

    humano. Assim, a tpica figura da nobreza, signo da altivez, sendo aqui rebaixada, leva

    o leitor a colocar no mesmo patamar todos os indivduos, rompendo-se ento, por

    emprstimo, qualquer argumento que tente justificar a hierarquia de poder por meio da

    sublimao moral.

    A heteroglossia, o mesclar, confrontar, sobrepor, miscigenar de mltiplas

    formas de falar, diferentes maneiras lingsticas de se expressar, pode ser

    caracterizada na obra a partir das diferentes perspectivas dos diferentes personagens.

    Temos ento a presena da linguagem popular, caracterizada por Baltazar e Blimunda;

    do Clero com a personagem Bartolomeu de Gusmo; e da Nobreza, a partir do Rei,

    posto que a rainha no ganha voz na obra. Tal distino entre clero erudito, popular

    ignbil e nobreza dessacralizada, nos aponta, outrossim, uma relao de dialogia,

    caracterizada na disposio de mltiplas ideologias, diferentes formas de pensar que

    se inter-relacionam. Mesmo dentro da esfera eclesistica h a uma sempre constante

    tenso entre o religio so e cientfico, que culminam em problemas vrios a Bartolomeu

    de Gusmo, posto no entrelugar da cincia e teologia crist em tempos de inquisio.

    importante ressaltar que estas seis caractersticas aparecem na obra de modo

    confluente, sendo por vezes uma constituinte da outra. Isso se deve ao fato de a

    narrativa ficcional recontar a histria, no tentando sem que haja um compromisso com

    a verdade, mas como a possibilidade, que aponta ao olhar crtico dos fatos e necessidade

    de pens-los de maneira reflexiva.

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