Post on 10-Dec-2018
1
Memória e escrita: um olhar sobre a narrativa memorialística de Raimundo Nonato da
Silva em torno da cidade de Mossoró/RN (1957-1983).
HÉLIA COSTA MORAIS
Resumo
O presente trabalho se propõe analisar o processo de construção da escrita memorialística do
intelectual Raimundo Nonato da Silva acerca da cidade de Mossoró-RN. Admitindo que a
compreensão desta escrita requer o entendimento dos dispositivos que compõem a memória individual
e coletiva e o modo como estas influenciaram na sua narrativa. A sua produção escrita se faz marcada
por dimensões afetivas e históricas, fruto da relação estabelecida com os principais grupos de
intelectuais do Estado e seus respectivos interesses locais. Instituições como o Instituto Histórico e
Geográfico do RN e o Instituto Cultural do Oeste Potiguar, foram responsáveis por nortear muitas de
suas concepções e práticas escriturárias, bem como foram influenciadas pelo prestígio destas. A partir
da análise das suas obras Memórias de um Retirante (1957) e Evolução urbanística de Mossoró (1983)
propomo-nos investigar as construções produzidas através da sua escrita em torno dos espaços e
sujeitos da cidade de Mossoró, refletindo o modo como os seus escritos literários e memorialísticos
ajudam a construir a história da cidade, bem como a rede de interesses que possibilitaram a sua
produção.
Palavras-Chave: Memória. Escrita. Raimundo Nonato da Silva. Mossoró.
1. Introdução
Raimundo Nonato da Silva nasceu em 18 de agosto de 1907 na cidade de Martins,
estado do Rio Grande do Norte. Filho de um casal de lavradores migrou para a cidade de
Mossoró durante a seca de 1919, junto a uma leva de retirantes que rumava em busca de
meios de subsistência. Na cidade de Mossoró, foi engraxate, lavador de pratos, varredor de
hotel, ajudante de bodega no Mercado Público Municipal, para não citar outras ocupações.
Ingressou na Escola Normal, de onde saiu professor em 1925, aos 18 anos de idade. Lecionou
e dirigiu grupos escolares em várias cidades. Em 1955, formou-se em Direito pela Faculdade
de Alagoas e foi nomeado juiz da comarca de Apodi, em cuja função se aposentou. A partir de
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Bolsista
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: heliacm@hotmail.com
2
1949 dedicou-se à escrita publicando mais de 80 livros, entre os quais destacam-se obras nos
campos do romance, crônica, memória, etnografia, história, folclore, etc.
3
Sua trajetória intelectual foi marcada pelo engajamento em diversas instituições, como
o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), a Academia Norte-Rio-
Grandense de Letras (ANL), o Instituto Cultural do Oeste Potiguar (ICOP), além de outras
instituições cuja atuação ultrapassa as fronteiras do estado, a exemplo da Federação das
Academias de Letras do Brasil, o Instituto Genealógico Brasileiro de São Paulo, a Associação
Brasileira de Escritores, o Sindicato dos Jornalistas Liberais da Guanabara e a Sociedade
Brasileira de Folclore. Raimundo Nonato mudou-se para o Rio de Janeiro em definitivo no
ano de 1961, aonde veio a falecer em 22 de agosto de 1993, aos 86 anos de idade.
A presente investigação histórica se propõe analisar o processo de construção da sua
escrita memorialística acerca da cidade de Mossoró. Admitindo que a compreensão da mesma
requer o entendimento dos dispositivos que compõem a memória individual e coletiva,
averiguando o modo como estas tiveram influência em sua narrativa. A sua produção escrita
se faz marcada por dimensões afetivas e históricas, fruto da relação estabelecida com os
principais grupos de intelectuais do Estado e seus respectivos interesses locais, responsáveis
por nortear muitas de suas concepções e práticas escriturárias, mas que também foram
influenciadas pelo prestígio destas. A partir da análise das suas obras Memórias de um
Retirante (1957) e Evolução urbanística de Mossoró (1983) propomo-nos investigar as
construções produzidas através da sua escrita em torno dos espaços e sujeitos da cidade de
Mossoró, refletindo o modo como os seus escritos literários e memorialísticos ajudam a
construir a história da cidade, bem como a rede de interesses que possibilitaram a sua
produção.
A discussão referente à relação entre história e memória, aqui esboçada, se faz
necessária devido o presente estudo historiográfico embasar-se na problematização de
narrativas literárias, memorialísticas e históricas que são capazes de revelar minúcias quanto
aos sujeitos, espaços e costumes alusivos ao passado e que ajudam a reconstruir teias de
relacionamentos e experiências compartilhadas com a coletividade de uma época.
2. História e Memória: tensões e aproximações
4
O estudo da relação entre História e Memória coloca em cheque diálogos entre
temporalidades distintas: o passado e o presente. Tal relação é marcada por lembranças
“transportadas” de uma temporalidade à outra, num incessante exercício conduzido pela
memória ao longo da história. Memórias que remetem a experiências passadas, mas que se
fazem contemporâneas e até distintas, sempre que trazidas a baila. Separadas por uma
fronteira densa, constroem suas narrativas marcadas por tensões e aproximações, tornando
amplo e complexo o seu campo de estudo. Embora tenham no passado a sua base de
sustentação, qual seja o relato da experiência que foi, que passou e não mais se faz presente,
diferem na maneira com que o celebram, conforme as circunstâncias que são instadas a se
fazerem uma vez mais, hodiernas.
A visão tradicionalista da historiografia considerava tal relação por meio de um
traçado simplista, no qual a história seria a maneira utilizada para manter intacta a memória
dos grandes acontecimentos públicos de determinada época, conferindo “fama” e relevância à
ação de alguns sujeitos. Desse modo, a memória conjecturaria o relato da experiência, daquilo
que ocorreu de fato e a história se responsabilizaria pelo “reflexo”, por meio da escritura
dessa memória ao porvir. Contudo, com o decorrer do tempo, o estudo dessa relação foi se
tornando cada vez mais complexo, uma vez que os historiadores passaram a considerar os
problemas com a objetividade, com a interpretação e até mesmo com as “distorções”
influenciadas por grupos sociais que agiam segundo interesses próprios e em circunstâncias
tais que construíam e publicizavam as memórias a serem legadas.
As reflexões no sentido de estabelecer aproximações e distanciamentos têm
mobilizado vastas discussões desde meados do século XX. Os estudos mais recentes buscam
enfatizar para além dos pontos de tensões, o processo de confluência entre as duas instâncias.
Analisar o processo de interação entre ambas apresenta-se como sendo um dos maiores
desafios da historiografia contemporânea, uma vez que com o desenvolvimento das Ciências
Humanas, as conotações em torno do conceito de memória sofreram importantes usos e
(re)significações.
A guinada na maneira de produzir o conhecimento histórico foi responsável por
inúmeras transformações no seio do fazer historiográfico. Os enfoques trazidos pela Nova
5
História Cultural, com as Mentalidades, com a “História vista de baixo”, as análises
marxistas, a valorização da Antropologia, a Micro-História e a própria História Oral, são
exemplos disso. Através dessas novas perspectivas, as pessoas comuns constantemente
excluídas pelos registros oficiais e, por conseguinte, da narrativa histórica, entraram na baila
das discussões e revisões historiográficas, pois os enfoques culturais tendem a valorizar
questões ligadas às subjetividades e às diversas representações sobre o passado (onde vem a
se encaixar o estudo da memória), almejando apreender indivíduos e/ou grupos inseridos na
história.
A investigação a partir da memória se faz indispensável ao ofício do historiador, que
deve problematizá-la, sobretudo, por meio de questionamentos que não a encarem como um
amontoado inerte ou naturalizado, de informações; mas como um fenômeno criativo em
constante transformação. Um processo de construção simbólica que produz e reconfigura
identidades, de maneira a assegurar ou não a continuidade dos interesses de determinados
grupos ao longo do tempo.
A narrativa de Raimundo Nonato, por exemplo, revela inúmeros aspectos quanto ao
modo de vida cotidiano dos sujeitos potiguares, desde feirantes e pessoas ilustres que
ocupavam o Mercado Público Municipal de Mossoró, aos moleques que percorriam as ruas
sujas da cidade. As memórias são apresentadas nos textos através de uma espécie de
constituição poética que acaba por penetrar no terreno historiográfico e, como afirma Júlio
Pimentel, está “[...] mais interessada nos ritos de conformação do passado do que em sua
percepção no momento em que relampeja” (PINTO: 1998: p. 6) ainda que, sempre almeje
estabelecer uma dialética entre presente e passado. Cabe ao historiador, imbuído pela
perspectiva histórica, operar sob uma base crítica almejando a apreensão dos vestígios do
passado, através das memórias que são construídas e reconfiguradas temporalmente.
Ulpiano Menezes afirma que “a memória é filha do presente. Mas, como seu objeto de
estudo é a mudança, se lhe faltar o referencial do passado, o presente permanece
incompreensível e o futuro escapa a qualquer projeto” (1992: p. 6). As percepções dele põem
em evidência a intensa relação a respeito das aproximações e distanciamentos que envolvem o
ato de lembrar e a ação de produzir conhecimento histórico. Logo, faz-se necessário não
6
somente considerar seus suportes referenciais, mas suas representações, seus agentes e
práticas. Ou seja, investigar os papéis e funções sociais dos sujeitos construtores das
memórias, pois caso contrário, o estudo da memória se fará de forma naturalizada, idealizada
e ao invés de trazer à tona as disputas e contradições que envolvem as relações em sociedade,
acabará por silenciá-las na busca pela coesão, pelo “relato verídico”, pela “memória
essencialista”.
Em 1925, o sociólogo francês Maurice Halbwachs, enveredou pelos estudos da
memória e a tomou como objeto de análise das Ciências Sociais. Inaugurou o estudo
sistemático acerca da Memória Coletiva com o ensaio Os Contextos Sociais da Memória
(1925), estudo que se configurou como uma espécie de sociologia da memória, culminando
em sua famosa obra A Memória Coletiva (1968). Nela atribui à memória um elo de coesão
social, argumentando que as lembranças, mesmo as individuais, seriam também partilhadas
por uma coletividade. Denotando ideias que se apropriaram ou tiveram como inspiração, o
pensamento durkheimiano, sua perspectiva entende a ligação entre os grupos de forma
homogênea, como sendo uma sociedade afetiva. De modo que, mesmo que ocorressem
conflitos, seria possível que se construísse uma narrativa coletiva dos grupos a respeito de
suas experiências passadas.
Na sua concepção, a construção da memória se dava coletivamente. Tratando-se de um
fenômeno em constante processo de transformação, condicionado pelo tempo presente, no
qual a memória coletiva geralmente predominava em detrimento da individual. Portanto,
embora não negasse sua existência, a memória individual era apontada como sendo
determinada pela memória coletiva (ponto de vista esse, contestado pelas perspectivas
contemporâneas acerca da memória). Contudo, sua análise abriu o olhar para uma dimensão
social na problemática da memória, seja ela individual ou social; uma vez que segundo ele,
para que um indivíduo fosse capaz de reconstruir e organizar suas próprias lembranças, este
precisaria recorrer às lembranças de outras pessoas, pois a memória seria produzida em um
ambiente social balizado pelo tempo e espaço.
Os vários grupos portadores de memórias coletivas constituiriam uma realidade social
extremamente complexa. Visto que um mesmo indivíduo poderia pertencer a vários grupos,
7
cada um portador de sua própria memória, estabelecendo um vínculo entrelaçado no tempo e
no espaço social, numa teia de sociabilidade segmentada mutuamente. De modo que, as
memórias coletivas tenderiam a produzir e estabelecer uma faixa de permanências contínuas e
semelhantes, auxiliando diretamente no processo de constituição da identidade dos grupos.
Vale ressaltar que atualmente, o termo “memória social” é preferível ao de “memória
coletiva”.
Cabe destacar que as memórias publicizadas por Raimundo Nonato se referiam a uma
época vivenciada por ele próprio, porém, partindo do olhar do contemporâneo à sua escrita, a
qual já se fazia distante de vários eventos narrados, seja espacial ou temporalmente. Isso
porque, o Raimundo Nonato que escreveu Memórias de um Retirante e (1957) e Evolução
urbanística de Mossoró (1983) não era mais o retirante da seca de 1919, mas o intelectual que
se reportava da capital do Rio de Janeiro e falava sobre um período distante espacial e
temporalmente do que era narrado em suas páginas. Assim, é factível que expresse uma visão
impregnada por novos conceitos e concepções que não podem ser ignoradas.
Quando nos indicam com precisão o caminho que tínhamos seguido, aquelas
marcas sobressaem, nós as ligamos uma a outra, elas se aprofundam e se religam
por elas mesmas. Elas já existiam, mas estavam mais marcadas na memória dos
outros do que em nós mesmos. Sem dúvida nós reconstruímos, mas esta
reconstrução se faz seguindo as linhas já marcadas e desenhadas por outras
lembranças, nossas ou de outros (HALBWACHS: 2006, p.65).
Num estudo bem posterior, Pierre Nora (1993)1, pensará o individual/coletivo
colocando o individual como o fator preponderante nesta relação. Isso porque, segundo ele, o
enfoque individual auxiliava no entendimento das relações estabelecidas internamente entre
os grupos. Pollak complementa que a “memória é um fenômeno construído social e
individualmente [...]” (1992: p. 204). Cabe ao historiador assumir seu posicionamento social e
crítico à medida que a historiografia constrói as memórias e produz a História, afinal, sua
repercussão diante da sociedade não é isenta.
1Les Lieux de Mémóire é uma coletânea organizada pelo Pierre Nora, a qual engloba ao todo, 7 tomos. Todavia,
só foi publicado no Brasil o texto introdutório e já tornado clássico do Nora, intitulado “Lugares de Memória”,
em 1993, pelo Projeto História, revista do Programa de Pós-graduação em História da PUC.
8
O exercício realizado na tentativa de relacionar o conceito de memória ao de história
se justifica pelo fato de as lembranças de Raimundo Nonato não pertencerem exclusivamente
a ele, mas à sociedade da qual fez parte, uma vez que sua narrativa fornece informações sobre
o contexto sócio-cultural no qual estava inserido. Apesar de seletiva, parcial e passível de
manipulação, a memória individual é uma fonte histórica extremamente relevante, pois assim
“[...] como todas as atividades humanas, a memória é compartilhada, razão pela qual cada
indivíduo tem algo a contribuir para a história social” (PORTELLI, 2001).
Assim, intencionamos problematizar os rastros construídos e legados através da
narrativa memorialística de Raimundo Nonato, de modo a perceber como estes contribuíram
para as diversas representações em torno da cidade de Mossoró. Atentando ao modo como sua
narrativa contribuiu para a historiografia da região e para a construção de uma memória sobre
sua gente, seus espaços e relações. Admite-se que os relatos produzidos por ele atuam como
agentes que interferem direta ou indiretamente na construção identitária dos sujeitos e lugares
presentes nos espaços narrados, numa teia que abriga o tempo, o espaço e o homem.
3. Roteiros da cidade: Mossoró no espaço e no tempo
Na apresentação da segunda edição da obra Memórias de um retirante (1987), o
historiador potiguar Luís da Câmara Cascudo procura atestar a importância desta publicação
para a historiografia potiguar, como importante testemunho para a história regional:
Os livros de memórias têm naturalmente o aspecto valorizador de quem os viveu.
Vez por outra valoriza demasiado, mas a recordação incide deliciosamente sobre
pormenores que o tempo enriqueceu e foram aumentados por ele. Nestas
MEMÓRIAS não há esse processo. É um depoimento de como o menino da serra do
Martins chegou a ser, sem pensar, mas trabalhando para esse fim, um dos maiores
professores do Rio Grande do Norte. [...] De não menor importância é ter o
evocador fixado figuras e fatos que jamais teriam saído do túmulo para um minuto
de administração leitora. Os personagens mais humildes e as cenas mais banais
ganharam relevo e sonoridade, postas no ritmo acelerado da taquicardia literária.
Não as esquecendo Raimundo Nonato aponta o “comecinho” de sua missão como
Murat, Rei de Nápoles, apontava, ao lado do trono, para o chicote de postilhão:
comecei por ali... [...] Livro formoso, simples, emocionador, verídico, humaníssimo.
É um documento que moldura a tenacidade do sertanejo e evidencia que outros
9
meninos, a estas horas, caminhem a pé, para as cidades do litoral olhando o
exemplo grande do escritor que soube vencer sem ruído e dominar sem orgulho.2
O seu relato evidencia o entendimento de que a partir da memória individual de
Raimundo Nonato é possível a apreensão, embora parcial e seletiva, da memória social
daquela época. Compreendendo que a identidade social é organizada para além de elementos
que evidenciam a percepção de si mesmo, pois esta sofre modificações externas a partir de
critérios e negociações estabelecidas, muitas vezes, no contato com outras pessoas. A
assertiva de Cascudo não deve ser tomada, contudo, como casual. Entre palavras elogiosas e
reconhecimento que se reputa sincero, vão se construindo as teias ou como diria Norbert Elias
(2001), as redes de sociabilidades que vão constituir e direcionar as práticas, as identidades e
as estratégias de apresentação entre os sujeitos que constroem e legitimam uns aos outros no
seio dos seus grupos.3
Nesta obra, Raimundo Nonato promove uma narrativa minuciosa quanto aos lugares,
hábitos, sujeitos e contextos vividos compartilhados em vários momentos do passado da
cidade de Mossoró e região Oeste Potiguar. Sua escrita abriga vestígios de épocas vividas por
muitas pessoas, acabando por despertar o sentimento de identificação aos que leem suas
memórias. De modo que esse sentimento se faz tão forte que, muitas vezes, as suas memórias
podem interferir no processo de construção identitária dos sujeitos e lugares vinculados aos
espaços descritos por ele ao longo de sua narrativa. Identifica-se, portanto, a presença de uma
memória social em seus relatos aparentemente individuais.
Sua teia narrativa abriga não somente aspectos e impressões individuais do autor, mas
revela singularidades no que concerne às relações sociais, culturais e políticas ali
estabelecidas. Ao longo da narrativa que (re)constrói sua caminhada junto a uma leva de
2In: NONATO, Raimundo. Memórias de um Retirante - Minhas Memórias do Oeste Potiguar. 2ª edição -
Coleção Mossoroense, 1987. 3A rede de sociabilidade de Raimundo Nonato se faz em torno de um espaço de criação cultural que garantia as
condições de elaboração intelectual, notadamente, a editora Coleção Mossoroense. Entende-se que seu grupo de
letrados atuavam como criadores e mediadores culturais operando na sociedade através de um lugar de produção
que divulgava conhecimento. Sendo a Coleção Mossoroense, um ambiente marcado pelo desenvolvimento de
relações afetivas, afinidades, apadrinhamentos e, sobretudo, a constituição de uma ideia de identidade e
pertencimento a um grupo (GONTIJO, 2005).
10
retirantes que fugia das asperezas do sertão, durante a seca de 1919, retrata os sujeitos e
paisagens com as quais se deparou. Sua rememoração apresenta-se como possível meio de
resistência aos prováveis desencantamentos com o contexto no qual ele a escreveu,
propiciando a ressacralização de algumas de suas memórias, visto que o processo de
invocação ao passado através da memória está ligado à ausência temporal; tanto de um si que
não é mais o mesmo, quanto dos outros, diante de um tempo passado, irreversivelmente
deixado para trás.
Vejamos o que ele narra sobre a sua caminhada e chegada à Mossoró:
Do mirante improvisado, podia observar o intenso movimento das ruas, com a
circulação de numerosos animais que formavam os comboios, os tropeiros que
conduziam essas peças pelas estradas, algumas em grande número, que transitavam
pela frente daquela moradia, pois por ali se estendia a estrada tronco que ligava
Mossoró a muitos lugares do alto sertão nordestino [...] numa distância aproximada
de três léguas, a estrada toda era alegrada pelo desusado movimento dos
comboieiros, pela conversa, vozear e gritos daquela gente, que vinha de todas as
partes, demandando de todos os sertões à procura da cidade que era ainda o vasto
celeiro comercial, centro abastecedor de interior de vários Estados Nordestinos
através do volume de suas operações mercantis. [...] Todo o interior sertanejo ouvia
contar pelos velhos tropeiros a história daquela pequenina capela, cujo local, era
como uma porta aberta por onde penetravam os que chegavam para a grande e
desconhecida aventura de novos dias e de outras esperanças, de possibilidades de
trabalho e riquezas com que a cidade, que se abria, lhes acenava para a luta, para
a vitória ou para a derrota (NONATO, 1987: p. 41-44). 4
Sobre o contexto vivido por Mossoró à sua chegada, em 1919, ele afirma:
A cidade, àquela época, ainda no seu franco florescimento mercantil, vivia de um
intenso comércio, não abrindo, destarte, caminhos de vitórias a quem não
dispusesse de certa soma de condições, reclamadas pelas numerosas ocupações da
sua atividade e das suas casas de negócio. [...] quando cheguei em Mossoró, tentei
com os Apolinários, com Aristides Rebouças e Antônio Costa, arranjar-me naquele
serviço, esforço de todo inútil, pois não havia vaga, nem eles confiavam na
possibilidade do meu rendimento (NONATO, 1987: p. 48).
É muito comum observar ao longo de toda a sua obra, as descrições sobre as ruas e
estabelecimentos comerciais da cidade de Mossoró:
4Além dos aspectos que definem o modelo e aspectos paisagísticos, esse trecho reflete a questão de Mossoró
como centro de uma região, no caso o Oeste Potiguar.
11
Aquela época, o Alto da Conceição, primitivo Alto dos Macacos, que o professor
Manuel Antônio mudara o nome com a invocação da Padroeira que lhe dirigia os
destinos espirituais – N.S da Conceição – não passava de um pequeno arruamento,
de um casario rústico, a maioria de taipa, sem reboco e de beira e bica, que
derivava da frente da capela para o centro urbano, com uma rua muito comprida,
toda esburacada e com alguns raros pés de tamarindos que deitavam sombras nas
calçadas (NONATO, 1987: p. 11).5
[...] Os armazéns de sal davam o grande aspecto da sua vida. Por dentro deles, em
confusão, os comboieiros enchiam os surrões que costuravam e depois colocavam à
sombra dos alpendres, levantados em grossas estacas de carnaúba (NONATO,
1987: p. 44). 6
O mercado de Mossoró é que me fez cair o queixo. Não podia nunca imaginar uma
coisa daquela, acostumado como estava, com o prédio acanhado de Martins, que a
gente só chamava de barracão. Ia-se ali, comprar carne, rapadura, café, bolacha de
canela ou um pedaço de pano. [...] barracão era conversa de retirante, de bicho do
mato. [...] o mercado de Mossoró foi alguma coisa que ficou pregada na minha vida
pelo seu movimento, ramos de negócio e fisionomia de sua gente boa, simples e
prestativa (NONATO, 1987: p. 50-51).
Em Evolução urbanística de Mossoró (1983), Raimundo Nonato promove outro tipo
de construção narrativa acerca da cidade. Aqui ele não recorre exclusivamente às memórias,
mas se reporta a documentos que ajudam a traçar o roteiro da cidade. Transforma sua
pesquisa em plantas que ajudam a recompor o itinerário das ruas e sua evolução ao longo do
tempo. Esta obra serve como referência a vários pesquisadores que pretendem se deter ao
estudo urbanístico da cidade de Mossoró, que conta com um material muito escasso em
relação a plantas que reportem à cidade nos tempos passados, não se restringindo a
pesquisadores da área de História.Vejamos alguns exemplos, a seguir.
5Aqui ele detalha as ruas pertencentes ao bairro Alto da Conceição, as primeiras ruas pelas quais passou ao
chegar à Mossoró. 6Os armazéns de sal possuíam grande movimentação àquela época, uma vez que sua comercialização se vazia
bastante expressiva.
12
Imagem 1 - Planta referente à Fundação de Mossoró no ano de 1772
Imagem 2 – Planta referente aos anos de 1861/1870. “Era do Desenvolvimento”, segundo ele.
13
Imagem 3 – Planta referente à cidade de Mossoró entre 1870/1883
Como é possível perceber, as memórias se consubstanciam não somente através de
textos escritos, mas sob inúmeras matrizes que são capazes de representar espaços e
recordações. Neste caso, a memória individual ajuda a compreender e representar uma época:
[...] a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto
individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente
importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um
grupo em sua reconstrução de si (POLLAK, 1992: p. 204).
No entanto, Pollak pondera que “[...] a memória e a identidade são valores disputados
em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos
diversos” (POLLAK, 1992: p. 205), assim sendo, as identidades coletivas podem ser
entendidas como aquisições feitas por grupos ao longo do tempo, de modo a produzir em seus
membros o sentimento de unidade, continuidade e coerência. Uma vez alcançada essa
unidade, pode-se dizer que o grupo construiu uma narrativa sobre si, de maneira a diferenciar-
se dos demais, numa relação segundo a qual identidade e alteridade se entrelaçam por meio de
memórias que autorizam e legitimam.
14
Sendo assim, é preciso ponderar que Raimundo Nonato fazia parte de uma
intelectualidade7 que intentava projetar a cidade de Mossoró enquanto centro regional. Essa
ideia foi tecida por seus próprios intelectuais, responsáveis por promoverem representações
que atestam tal pensamento. Para eles, a “região mossoroense” compreenderia parte da
Chapada do Apodi, e esta abrangeria quase todo o estado geograficamente. De modo que sua
atribuição como região não foi considerada levando em conta apenas seus aspectos
geopolíticos; mas também o que se refere à sua produção cultural, através do
desenvolvimento de uma ideia de “cultura mossoroense”, a qual conforme se supunha naquele
contexto, seria capaz de “influenciar” os municípios que estavam em seu entorno, que a
teriam como um centro regional. Como sugere Albuquerque Jr:
Toda região é pensada a partir de um centro, como tendo uma parte central, mais
importante, para onde devem convergir aqueles que em nome dela se expressam. As
regiões são escritas e inscritas para ficarem, para serem a base de identidades que
se quer fixas e imutáveis (2010: p. 6-7).
4. Considerações finais
A escrita memorialística de Raimundo Nonato é mesclada por materialidades e
subjetividades. As ruas, os espaços e as pessoas são transformados em memória, de modo que
se materializam através da própria escrita. Presenteia-nos com relatos e descrições que
permitem investigar e compreender parte do contexto ao qual ele se refere ao desenrolar de
suas narrativas, nos fazendo vislumbrar espaços modificados pelo tempo. Sua escrita constrói
representações significativas sobre a cidade e região Oeste Potiguar como um todo, de modo a
gerar um sentimento de identificação naqueles que leem seus relatos memorialísticos sobre
7Aqui nos referirmos ao modelo de História dos Intelectuais conduzido pelo o historiador francês Jean-François
Sirinelli (2003), que para ele diz respeito a “um campo histórico autônomo que, longe de se fechar em si mesmo,
é um campo aberto, situado no cruzamento das histórias política, social e cultural” (p. 232). De modo que
entendemos Raimundo Nonato e o sua rede de sociabilidades enquanto criadores e os “mediadores” culturais,
como é o caso dos jornalistas, escritores e professores, por exemplo, bem como o seu engajamento social, de
modo que o intelectual vem a ser entendido a partir do papel de intervenção que assume na sociedade, seja como
ator social, testemunha ou consciência. Afinal, é o saber que o indivíduo domina que faz com que este seja
reconhecido por seus pares e permite a ele intervir na sociedade (SIRINELLI, 2003: p. 242-243).
15
um passado que não mais retorna, mas que curiosamente parece se fazer presente nas suas
memórias “paginadas”.
Por conseguinte, as obras aqui analisadas – mesmo que de forma breve – se
apresentam como elementos fundamentais à construção e significação identitária em torno do
espaço geográfico e sentimental mossoroense. Considerando que remontam períodos distintos
da cidade, considerando as suas mudanças ao longo do processo histórico e contribuindo
diretamente no processo de construção identitária da cidade e dos sujeitos que se utilizam dos
seus espaços.
5. Fontes
NONATO, Raimundo. Evolução urbanística de Mossoró. 2ª edição - coleção mossoroense,
1983.
NONATO, Raimundo. Memórias de um Retirante - minhas memórias do oeste potiguar 2ª
edição - coleção mossoroense, 1987.
6. Referências
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. No Espaço em que me Centro, em que me
Identi-fico: sobre identidade e região. Programa de Pós-Graduação em História. Mestrado em
História e Espaço. Artigo publicado em Fevereiro de 2010.
16
BARROS, José D’Assunção. História e memória – uma relação na confluência entre tempo e
espaço. Mouseion, vol. 3, n.5, Jan-Jul/2009.
ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da
aristocracia de corte. Tradução, Pedro Süssekind; prefácio, Roger Chartier. - Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001.
GONTIJO, Rebeca. História, Cultura, Política e Sociabilidade Intelectual. In: SOIHET, R.;
BICALHO, M.; GOUVÊA, M. Culturas políticas: ensaios de história cultural, história
política e ensino de história. Rio de Janeiro, MAUAD/FAPERJ, 2005, p. 259-284.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, Centauro: 2006.
MARTINS, Gelise Cristine Ponce. As Relações Cotidianas de uma Comunidade de
Cafeicultores, nas Memórias de Braz Ponce Martins (1897-1975). Maringá, 2012.
MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. A História, Cativa da Memória? Para um mapeamento
da memória no campo das Ciências Sociais. Rev. Inst. Est. Bras., SP, 34:9 – 24, 1992.
NORA, Pierre. Entre a Memória e a História. Projeto História. São Paulo, n. 10, dezembro,
1993.
PINTO, Júlio Pimentel. Os Muitos Tempos da Memória. Projeto História. São Paulo, (17),
nov. 1998.
POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5,
n. 10, 1992.
PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de
1944): mito e política, luto e senso comum. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta M.
(coord.). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 2001.
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes;
AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. 3ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2002.
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (org.). Por uma História
Política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003, p. 231- 269.