Post on 23-Nov-2015
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SADE EM DEBATE'I'f'l'UI,O~ t:M CATLOGO
Educao POpUllJT 110S Servios de Sarde, Eymurd 1\1.VeaeenceloeEduc(lo Mdico c Capitnlismo, Liliu Hlimu Schrniber1~'pi(/(Jtuio/()g;a,,/u S(lll(/(l lnfuntl (um MaI",al JJ"rlt Dngnsticos Comunitrio .), Fernundo C. ltur-roa c Cee r-G.
Vielol'"Terapia Ocupacionul: Lgica do Trabalho ou lia Capital?, Leu Bcotriz Tcixciru SourcslUu/lwrtls: "Sallituristcu du I)ll [)mcu{os", Ncltli,JlU Meio d(, Olivciru Diutl() J)fJ,.'Iuj;o do Cm,/lUcimcmlo: P'f.H/uisu Qmt!ilativu (1m Sut'idfl, Mm"iu C(~cilitl tio 5our;n MinuyoUo/arma tia. Refornuu Hepensonslo (f. Sude. GustlioWugner de Souaa Cumpo!:lEpidemiologia puru Municpios,J. P. Vungbun c R. ]1. Morrow .-Distrito Sanitrio: O Processo Social de .Mu.lll11lulias l)rticas Sanitrias do Sistema Unico de Sade, Eugenio
Villlu M4~~Hlctl (org.)()/U!,.tliWf de) Vit/u: 1~';f;U. CUlIIC;fl fi Su(/o, Giuvunni Hur-liuguot-O Mtlico e Seu Trabalho: Limites do Liberdude, .Liliu H. ScltruihcrRudos Ri.3cos e Preveno, Ubiratun Puula 500t08 ct 01.Informaes em Sade: Da Prtica Fragmentada ao Exerccio da Cidadania, Ilaru H. S. de MorucsSaber Preparar uma Pesquisa, A.-P. Contendr-iopuulos ct nl.(),~Estudos Brasileiros u (}Druito d Sade, Sueli C. DulluriUma Histria (lu Satule Pblico, Gcorge HoeenTecnologia e Organizao Social das Prticas de Sade, Ricardo Bruno Mendes-GonalvesOs Muitos Brasist Sade e Populao na Dcada de 80, Maria Ceclia dc Souza Minayo (org.)Da Sade e das Cidades, David Capierreno FilhoAilJs: tica, ~fe{licina e Tecnologia, Dina Csercaniu ct aI. (orga.)Ai(ls: Pesquisa Social e Educao, Dina Czercsnia et al. (orgs.)Maternidade: Dilema entre Nascimento eMorte, Ana Cristina d'Andretta TanekaMemria da Sade Pblica. A Fotografia como Testemunho, Mada da Penha C. Yasconcelloe (coord.)Ilcla(io Ensino/Servios: Dez Anos de Integrao Docente Assstencal (IDA) no Brasil; Regina Cifram Mars.iglinVelhos c Novos lfales da Sade no Brasil: A EvolfLo do Pas e de Suas Doenas, Curlos Augusto Monteiro (org.)lJilvnlflJj oDesafios das Cincias Sacia;" na Sade Coletiva, Ana Maria Caneequi (org.)() "Mito" do Atividade Fsico e Sade, Yara Maria de CarvalhoSfldo & Comunicao: Visibilidades e Silncios, Aurca M. da Rocha Pirtaf'nifijjiollalizacio e Conhecimento: a Nutrio em Questo~ Afaria Lcia Megalhee BoaiNurio, Trubolho e Sociedade, Solange Vcloso Vinno'1111/1 Agemla para a Sade, .'Eugnio Vilua Mendes";'m do Sm(le, Ciovanni HcrlingucrSul)ru (}Ilijt:u. Para Compreender 6 Epidemologu, Jos llicurc.lo de C. MC1UluitltAyrcs(,'j{Jm:iuj Sociais 6 Sade, Alia Mllria Cunesqui (OI'S')Contro li MlIr BeiraAUur: A Experincia do SUS emSantos,Floriauita Coelho Br-aga Cumpo8 e Cludio Muierovitch
I! [Icnt-iqucs (orge.)A I~rutio Sttneomenlo. As nIU(!.~ tlu.Poltica tio Suc/u l'b/i(~u 110 Brosl, Gilber-to HuohmunOAdu/to Brnsuro e ti." /)Otlfl~:(l." da /Uudurll;tlu
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12 SUMRIO
ApNDICES1. Ato de cuidar: alma dos servios de sade2. Apostando em projetos teraputicos cuidadores:desafios para a mudana da escola mdica (e dos
servios de sade)3. Todos os atores em situao, na sade, disputam a
gesto e produo do cuidado
Bibliografia
115
135
149
179
APRESENTAO
Por qu e para que fazer este livro?
Antes de tudo, este livro conseqncia da minha livre-docncia "Reflexes sobre as tecnologias no materiais em
sade e a reestruturao produtiva do setor: um estudo
sobre amicropoltica do trabalho vivo", defendida na
Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), em 2000, da qual retirei parte do
material.
Os textos escolhidos foram produzidos em distintas
circunstncias, alguns para serem publicados em revistas -
como anoto no captulo referente -, outros de modo
particular para a tese. Mas, de uma forma ou de outra, todos
esto atados mesma perspectiva: refletir sobre. o modo
cotidiano de se produzir sade em nossa sociedade,
tomando como referellcial a cartografia da micropolLica
do trabalho vivo em ato.
O que segue vem embalado nesta idia central.
Optei por colocar alguns textos como apndices, que
poderiam provocar "desvios" do eixo analtico adotado para13
.- BIBLIOTECA I CIRFACULDADE DE SADE PBLICA.nU\/FRSIOADE DE sso PAULO
!.
14 APRESENTAO APRESENTAO 15
este livro, com o sentido de dar mais componentes para o
leitor adentrar neste territrio reflexivo, reforando a
possibilidade de se pensar que tanto a gesto, como campo
de tecnologias, fundamental para a discusso atual da
reestruturao produtiva, quanto a produo do cuidado,
como marcador-a das situaes institucionais sobre as qunis
fao minhas elaboraes.
No h nunca uma identidade, individual ou coletiva,
que fica para sempre no tempo em ns. Esta, est sempre
em produo. Partindo de um certo territrio, abrindo-se
para outros possveis.
Produzindo mapas, desenhando cartografias.
Passamos de sujeitos que sujeitam a sujeitados, o tempo
todo.
Para complicar, as teorias que procuram compreender
estas situaes, so muitas e nada amigveis. Muitas vezes,
so contraditrias entre si.
bvio que no tenho a pretenso de dar conta delas, ou
mesmo de exp-Ias. Mas, com este material, polemizo com
algumas.!
Parto do princpio que somos em certas situaes, a par-
tir de certos recortes, sujeitos de saberes e das aes que
nos permitem agir protagonizando processos novos como
fora de mudana. Mas, ao mesmo tempo, sob outros re-
cortes e sentidos, somos reprodutores de situaes dadas.
Ou melhor. Mesmo protagonizando certas mudanas, em
muito conservamos.
Somos sujeitos?Protagonistas ou vtimas?
Eta, perguntinha chata de responder.
E, isto, porque nos interroga sobre a confortvel idia
de que somos sempre os mesmos - como seres psicolgicos
no nvel individual, ou como seres polticos no nvel coletivo,
por exemplo - atuando sempre do mesmo jeito, como
plenos senhores das situaes em que nos encontramos.
Mas de fato, somos e no somos, sujeitos.
Ou melhor, somos sujeitos que sujeitam em certas situa-
es, e somos sujeitos que se sujeitam em outras.
Isto , somos muitos sujeitos e no sujeitos em diferentes
situaes.
Institudos e instituintes.
Melhor dizendo, somos sujeitos que sujeitam sem que com
isso deixemos de ser sujeitados tambm.
I E de parte delas sou devedor confesso. Em particular aos pensamentos de Karl Marx,Antonio Gramsci, Cados Matus, Miguel Benasayag, Fclix Guallari. Em uma grandesalada que fao dos mesmos. Fato de total responsabilidade minha.
Entretanto, sob qualquer um destes ngulos somos res-
ponsveis pelo que fazemos. No possvel no nos reco-
nhecermos nos nossos fazeres.
i-=-
16 AT'RESENTAO
Somos dados e dandos. Somos definidos. Quando che-
gamos, algo j estava ali.M.as nem por isso somos vtimas das situaes. Somos
constitudos nisso e por isso. E nas nossas aes eonst.itu i-
mos, em si e em relaes, as situaes. As fabricamos.
Vivemos estas tenses, como sujeitos da ao, o tempo
todo. Cartografamos no viver este processo, gerando infini-
dades de mapas territoriais de identificao.E podemos, de modo intencional, ambicionar ser mais
sujeitadores que sujeitados em certas circunstncias e para
isso explorar nossas capacidades de agir, nossas capacida-
des de interpretar o lugar onde nos territorializamos procu-
rando interferir em suas regras, abrindo linhas de fugas'.
Partir para novos mapas. Novos sentidos territoriais.
Fazemos isso, bem como os outros tambm o fazem,
muitas vezes sem ter claro o conjunto das intenes em jogo.
s vezes, acontece. Outras, planejamos.Somos protagonistas ao mesmo tempo que somos
protagonizados.Podemos fazer diferente de outros o que j temos como
estabelecido, quando emergimos em uma situao j dada.
Somos determinados e determinantes.E podemos ambicionar isso. No como sujeitos plenos
de razo, mas como certos apostadores, que podem com
certos recursos _ cognitivos, desejantes, instrumentais, por
exemplo _ aumentar as potncias dos nossos fazeres por
APRESENTAO 17
ouLros sentidos, para o nosso agir no mundo, produzindo
novos significados para as situaes.
Procurando tensionar mais ainda a possibilidade de ser-
mos sujeitos do senso comum ou no.
Apostando que todos imersos nos processos de fabrica-
o subjetiva. Nas relaes.
E que isto unha e carne do ser sujeito em ao, do coti-
diano e do "transcendente".
Se d certo ou no, no sentido de construir novos modos
de produzir a vida no plano coletivo, comprometido com a
igualdade e a convivncia democrtica, no sei. Mas, como
faz entender Paulo Freire no seu livro Pedagogia do oprimi-do: devemos assumir que somos responsveis, com os nos-
nsos saberes e fazeres, pelo que vai ser amanh. Ou o faze-
mos diferente, ou no o ser.
Nesta tnue linha, neste livro, procuro explorar vrias
situaes reflexivas que possam contribuir para clarear
estes enunciados, para contribuir com a criao de um
novo modo de produzir sade, em particular, no dia-a-diados servios.
Mas, sem receitas, que deixo para livros de comida.
So muitos em ns
Com tudo isso, quero deixar claro que ns somos muitosns.
I
18 APRESENTAO
Em ns indivduos, pessoas e grupos. Fatos que somos
todos ao mesmo tempo e cada um de modo singular.
H c haver sempre muitos outros. Memrias, situaes
rcgistradas antes, agoras e processos.
No sendo possvel creditar a todos nominalmente suas
presenas aqui neste trubalho.
Muitos so inominveis.
OuLrosno.
Posso lembrar deles em mim. De mim, neles.
Mas no quero nominar todos que posso.
Fao de propsito para alguns.
Lembro do movimento sanitrio brasileiro.
Lembro da esquerda brasileira e latino-americana.
Lembro do marxismo.
Do movimento popular de sade.
Dos companheiros da sade de Campinas.
Da Unicamp e das universidades.
Dos alunos, dos cursos e investigaes. Das teses.
Dos de Minas. Dos argentinos.
Lembro da Mina.
Lembro minhas mulheres e homens.
Lembro de minhas crianas.
Mas, aqui, tambm sou eu, com todos os ns que me
entrelaam.
Crie sua leitura e aproveite do jeito que bem entender.
CAPTULO 1AMICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATONA SADE COMO CONTRIBUIO PARA ACOMPREENSO DAS APOSTAS EM TORNO DEUMA REESTRUTURAO PRODUTIVA NO SETOR
M ARX, no livro 1 de O capital,l aponta, no captuloXIII da Parte Quarta sobre a produo da mais-valia relativa,
que a indstria moderna realiza uma revoluo na
manufatura, no artesanato e no trabalho em domiclio.
Mostra que:
"Com o desenvolvimento do sistema fabril e com a trans-
formao da agricultura que o acompanha no s se es-
tende a escala da produo nos demais ramos de ativida-
des, mas tambm muda seu carter."2
E na seqncia de sua anlise - coerente com outras nas
quais demostra que o modo de produo capitalista
_':prisioneiro" das inovaes tecnolgicas, para resolver o
I Marx, K. o capital. So Paulo: Difel, 1985.2 Ibidem, p. 528.
19
20 A MICROPOLTICA DO THABALHO VIVO EM ATO NA SADE
~~~ __acl!.!!lulao d~ cap~ vai t~.!Ill!lJ:l~e.
que e~e processo inovador, atualmen~~enominado d>-
____tr:.~sio tecnolgica, imprime alter~significativas no
parcelamento dos processos de trabalho, no perfil da
qualificao dos trabalhadores, no ~~_.- ------_. ---_ ...- ~trabalho, nos processos de troca, en~.
Essa situao, de viver uma transio tecnolgica, que
est articulada de fato a uma reestruturao produtiva em
geral,4 passa a ser uma constante nas anlises a partir desse
autor, e marca no olhar dos estudiosos perodos no interior
dos processos sociais.Quando em 1848, Karl Marx e Friedrich Engels
produziram o M"anifesto comunista,5 um dos temas queabordaram de forma enftica foi o da apario e
consolidao de um novo modo social de produzir a riqueza,
articulado existncia de um processo de luta de classes
que marcaria o futuro da humanidade. Nesse material, os
autores partilhavam da noo de que, sob o comando das
relaes sociais capitalistas, uma revoluo acontecia nos
pases europeus.Essa constatao vai ser tratada com espanto por vrios
autores, como Paul Lafargue no seu livro O direito
3 Nesse mesmo livro, Marx, na anlise mais global que faz da produo da mais-
vulin, demonstru tul questo." Aqui, no seurido de urnu out.ru Iormu tl(~ (JI'lHlu:t.il' UH IIwt(.nUH p"U(1111.0~, 011 nH'.HI110
novos ainda nio (~onhccitlm~.O Jl1o.ncnlu du lt'unHiu tccllulgicll II pl'C8Cnn denovns teonologias, quc sinalizam "movimentos" nos processos produtivos.
5 Marx, K. & Engels, E O mal.ifesto comuni.ta. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
.
A MICltOl'OLTICA DO TUAllALHO VIVO EM ATO NA SADE 21
preguia,6 quando conclui que a riqueza produzida pelarevoluo tecnolgica do capital, em vez de gerar melhores
condies, altera para pior a vida dos trabalhadores. Mas
seus escritos no deixam de mostrar com nitidez que o
perodo dos meados do sculo XIX, na Europa, marcadoprofundamente por transformaes nos processos
produtivos que reestruturam por completo o modo de se
organizar as sociedades. H mais riqueza, novos grupos
SOCIaIS.
Hoje, so vrios os autores 7 que apontam que o final do
sculo XX assiste a uma transio tecnolgica, que vemreestruLurando a produo, de uma dimenso semelhante
experimentada naqueles momentos vitais para a
organizao do prprio capitalismo.
O conjunto de suas anlises gira em torno de processos
que vm ocorrendo no plano das indstrias e servios com
a introduo de novas tecnologias de ponta, transformando
de modo radical o parcelamento dos processos de
trabalho, o mercado da fora de trabalho, os
procedimentos produtivos e o ciclo de acumulao do
capital. Entretanto, no h quase nenhum trabalho nessa
temtica especfica para o setor sade, que conta com o
6 Lafurguc, P. O direito
22 A MICROPOLnCA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE .\ MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE 23
de equipamentos de tecnologia de ponta e a
terceirizao. "10estudo de Denise Pires,B roalizudo em 1996, corno uma das
excees regra."
Pires, em sua tese de doutoramento, partindo de uma
anlise dos processos de trabalho em dois hospitais, um
pblico e outro privado, considerados relevantes e de boa
qualidade, estuda, no contexto atual, as mudanas
provocadas pela introduo de tecnologias de ponta, tendo
como foco central o trabalho de enfermagem. Nesse seu
material, que tem como pano de fundo a reestruturao
produtiva e o trabalho em sade no Brasil, h contribuies
muito interessantes, e, por ser um dos poucos que toma
explicitamente essa temtica como seu objeto, torna-se
tambm relevante para este meu estudo.
A prpria autora tambm constata esta precariedade
aps a sua pesquisa bibliogrfica, afirmando:
"N o Brasil, especialmente a partir dos anos 80,
estabeleceu-se uma disputa em relao definio de
diretrizes polticas para o campo da sade. De um lado,
esto as foras que defendem o direito sade e vida [.
.. ]. De outro lado, esto os interesses do setor privado [..
]".."Atualmente o trabalho em sade , majoritariamente,
um trabalho institucionalizado [... ]. O ato assistencial
resulta de um trabalho coletivo realizado por diversos
profissionais de sade e por diversos [... ] no especficos
No citado estudo, assinala que o trabalho em sade,
apesar de ser especial, tem sofrido influncia das mudanas
tecnolgicas e dos modos de organizao dos processos de
trabalho da atualidade. Indica que ele no tem as
caractersticas tpicas do industrial, pois est no terreno do
setor de servios, porm sempre sofreu a influncia das
organizaes produtivas hegemnicas. Como por exemplo
o taylorismo e o fordismo.
Como contribuio conclusiva de seu estudo, assinala.U
"[ ... ] poucos [so os estudos em sade que] relacionam
trabalho e reestruturao produtiva. No entanto, as
mudanas no trabalho industrial e nos servios esto
influenciando o setor sade, destacando-se o uso intensivo
U Pires, D. ReestrulUrtllio produtiva e trabalho em sade no Brasil. So Paulo:Annuhlume, ]99B.
v COllslero que h outros truLulhm:l que contr-ibuem no estudo dCHHt! terna, mesmoque no o tenham destacado explicitamente, dentre os quais assinalo as investiga-CH de Mendcs Gonalves, R. B. Raizes sociais do trabalho mdico, mestrndo noCUl"i:JO de :P68 Gnu.luuiio em Mcdiciun Prcventivu (lu Fuculdud do ,Metlieillll .IuUSp, So Paulo, 1978; Schraiber, L. B. O mdico e seu trabalho. Limites da liber-dade. So Paulo: Hucitec, 1993 e Nogueira, R. P. Perspectivas da qualidade emsnltl". Hiu .1" Jll""i .o: QllllitY""llk, \
b -~~3--
24 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE
de sade. [... ]. O mdico o elemento central do processo
assistencial. Decide sobre o diagnstico; sobre os exames
complementares; sobre a teraputica e sobre o uso, ou
no, de vrlos dos cquipamcutoa d(~Lec!no1ogia do ponta
[... 1. Delega partes do trabalho assistencial a outrosprofissionais de sade [... ]. Apesar disso, dcpondom doLrahalho mdico para que seu trabalho se realize. [... ]. A
assistncia fragmentada, resultante de um trubalho
parcelado e compartimentalizado, ao mesmo tempo que
mantm algumas caractersticas do trabalho do tipo
artesarial. "
"Neste final de sculo [ ... ] da ampliao do
reconhecimento de que preciso repensar o modelo
assistencial hegemnico, percebem-se algumas iniciativas
[... ] no sentido de romper com a excessiva fragmentao
do trabalho e buscando colocar as necessidades do cliente
no foco da assistncia. Na pesquisa de campo [. . .]
[destaco]:
"a) a implantao, no hospital privado, da metodologiade assistncia integral de enfermagem [... ]
"b) o surgimento, no hospital privado, de gruposinterdisciplinares [... ]
"c) a implantao, nos dois hospitais, das Comisses eServios de Controle de Infeco Hospitalar [... ]
"d) o surgimento, mesmo que incipiente, de medidaspara controle da qualidade da assistncia;
A MICROPOLTICA DO TRABALIfO VIVO EM ATO NA SADE2S
"e) o registro da evoluo do cliente no mesmodocumento [... ]
".I) o direito acompanhantes e a visitas [... ]" (p.2.'39)
"Os equipamentos de hase microeletrnica soIIliJi;"adoH 110 llaha/ho cru sade (~pellel.nl/n 1/0 Hc~lol.de
forma desigual. [... ]. Os dois hospitais estudados utilizam
equipamenlo de leenologia de J)()/lla, sendo que 110hospital privado o uso mais intensivo [... ]."
"O uso intensivo, de tecnologia de ponta no setor sade,at o presente momento, no resultou em aumento do
desemprego [... ] no substitui o trabalho humano de
investigao, avaliao e deciso sobre a teraputica etratamento em geral. [... ]."
"O uso de tecnologia de ponta exige uma melhor
qualificao dos trabalhadores para o manuseio dos
equipamenlo~, ao mesmo tempo que aprofunda a divisoentre trabalho manual e intelectual [... ]."
"Considerando_se que o objetivo central das instituies
privadas o lucro, elas so mais pressionadas para reduzir
custos e so mais influenciadas pela estratgia de
terceirizao, que est sendo utilizada pelas indstrias.[...]."
Acho que Pires faz Umestudo, neste momento, de grande
relevncia, e mais do que isso, COma investigao realizada,
26 A MICnOPOLITICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE .\ MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE 27
".,,~
pe diante dos estudiosos do tema algumas idias
importantes sobre o significado da noo de reestruturao
pr-orlu tiva em cer-tas orgllni:wes ele sade, a pnrtir do
impacto que a presena de equipamentos de ponta provoca
na conformao tecnolgica dos trabalhos em sade,
indicando as alteraes nos processos de parcelamento, de
qualificaes profissionais, de redefinio do trabalho
intelectual e manual, de mudanas nos processos
burocrticos e hierrquicos, entre outros,
Chamo a ateno para o fato de que para a autora o
tema da reestruturao produtiva se identifica, quase que
exclusivamente, com as alteraes que o modelo mdico
hegemnico vem sofrendo pelas mudanas operadas por
cquipumentos novos c PO[' se ver' diante de lima crise de
eficincia e eficcia, Mas, ao mesmo tempo, lembrando que
a mesma autora diz que essa entrada de equipamentos no
anula momentos singulares do trabalho em sade,
insubstituveis pela presena de equipamentos, como a
dimenso tpica da produo do ato cuidador, Destaco,
tambm, que no deixa de referir que as intervenes nos
processos gerenciais so chaves para o reordenamento
produtivo, mas d destaque terceirizao dos servios ao
modo da indstria,
Acentuo a noo que a autora utiliza de que, na passagem
do milnio, vive-se uma reestruturao produtiva em geral
e, como o setor sade sempre sofreu a influncia das
organizaes produtivas hegemnicas, deve-se encontrar nos
estudos das organizaes de sade a presena da atuao
dos seus determinnntes.
E, da mesma maneira que na poca da Organizao
Cientfica do Trabalho, asorganizaes de sade revelaram,
hoje, uma penetrabilidade do redesenho dos processos
produtivos hegemnicos, que devem estar presentes no setor
sade,
Creio que as concluses de Pires, mostradas antes, reve-
lam muito dos acertos desse seu estudo e do percurso ana-
ltico, mas uma questo fica "parada no ar": por que ser
que a autora, nas concluses, no deu mais nfase s dife-
renas entre os setores produtivos da sade, da indstria e
dos servios em gel'al, nas sociedudcs contemporneas, a
ponto de buscar outras linhas de anlise ou mesmo de pro-
duzir outras concluses? Acho, mesmo, que essa sua "ce-
gueira" paradigmtica no a faz perceber que a reestrutu-
rao produtiva na sade, hoje, pode no estar sendo mar-
cada pela entrada de equipamentos, mas tanto pela pr-
pria "modelagem" da gesto do cuidado em sade,12 quan-
to pela possibilidade de operar sua produo por ncleos
tecnolgicos no dependentes dos equipamentos, fato que,
para ela, um pequeno detalhe e no elemento importante
a ser realado pelo estudo,
..12 Tanto no plano dos estabelecimentos e propriamente na produo dos atos de
sade, quanto no campo da organizao das polticas do setor.
r.& ---====--.-
28 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE
A entrada de equipamentos nos processos produtivos
em sade, sob a modelagem de gesto mdico hegemnica,
que sob a forma da medicina tecnolgica U j havia
delimitado uma transio significativa na organizao do
trabalho em sade em geral, e do mdico em particular,
neste momento no parece provocar reestruturao
produtiva. Esta j esteve na marca da passagem do perodo
de uma medicina mais mercantil e de um profissional mais
liberal,14 e constituiu um perodo dos processos produtivos
em sade que se expressaram na qualificao dos
profissionais cada vez mais em torno de ncleos
especializados, restringindo-os, num crescente, produode um procedimento especfico (um exame laboratorial, um
ato clnico, etc.).Assim, o que a autora encontra pela frente no o
impacto reestruturante da entrada de novos equipamentos
de ponta nos processos produtivos, mas sim a continuidade
de um modelo hegemnico com alteraes que no
compem uma transio.Uma reestruturao produtiva que implique substancial
mudana nas configuraes tecnolgicas dos processos de
produo, alterando no perifericamente a composio da
fora de trabalho, mas centralmente, pois levam prpria
13 Schraiber, L. B. Op. cito" Donnangelo, M. C. E Medicina e sociednde. So Paulo: Pioneira, 1975; Mendes
Gonalves, R. B. Op. cito
A MICUOPOLTICA DO TUABALHO VIVO EM ATO NA SADE 29
produo de novos produtos, deve estar mapeada pelos
novos terr-itr ibs de tecnologias no-equipamentos. Tal
plocesso, da r-ecstrutur-ao produtiva, sempre se vincu1a a
uma transio tecnolgica, na qual novas tecnologias e
mesmo configuraes diferenciadas das anter-iores passam
a operar a produo de novos produtos ou maneiras
diferentes de produzir os "antigos". Nas indicaes dos
autores, j citados, sobre reestruturao produtiva, h
afirmaes nessas duas direes, em particular em Marx,
ao falar sobre a produo do produto mercadoria nas
relaes capitalistas de produo.
Por no imaginar que a reestruturao produtiva algomais intenso e que est estrategicamente articulada a novos
territrios tecnolgicos no materiais, a autora no consegue
evidenciar que as alteraes mais significativas, em seu
campo de investigao, no so as articuladas por
remodelagens da prpria medicina tecnolgica e sua base
profissional - o mdico especialista e seus equipamentos
tecnolgicos - mas, pelo contrrio, devem estar ocorrendo
no terreno das tecnologias no-equipamentos, o territrio
das tecnologias leves15 e Ieveduras.I'' e que se expressam
nos processos relacionais dos atos de sade e nas prticas
15 Como as que permitem operar os processos relacionais do encontro entre o traba-lhador de sade e o usurio. Tema que tratarei mais detalhadamente no captuloseguinte.
16 Como os saberes estruturados que operam esses proeessos, em particular a clnicae a epidemiologia.
30 A MICROPOLfTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SAD.E A mCROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE 31
que governam os atos produtivos, nos processos de
trabalho-? e na sua capacidade de gerar novas modalidades
de produo do cuidado, bem como de govern-Ias.
Hoje, a mudana na sade no consegue ser
suficientemente compreendida pelo caminho analtico
escolhido pela autora. Creio que Pires tem como esse seu
limite uma importao direta da viso clssica dos processos
produtivos para ti sade, suas dimenses lecnolgicas e n
noo paradigmtica das transies tecnolgicas oferta da
por algumas correntes da Sociologia do Trabalho, de
extrao marxista,18 que, em torno do modelo fabril,
constroem suas anlises. Diga-se, de passagem, que na
modelagem do tipo da medicina tecnolgica que se
assemelha em parte aos processos produtivos do tipo fabril,
esse modelo de anlise tem aproximao razovel sobre o
objeto de estudo, porm, em novas maneiras de se produzir
o cuidado, torna-se muito insuficiente.
Talvez por isso, a autora e muitos outros analistas do
campo da sade que adotam paradigmas semelhantes.!"
no permitem, com suas anlises, a percepo de que, hoje,
a transio tecnolgica que se vem construindo, provocada
pela presena do capital financeiro no setor de modo cada
vez mais macio,20 visa exatamente o oposto do que
analisam, como se ver no decorrer deste trabalho, pois
busca atingir o ncleo tecnolgico do trabalho vivo em ato
na sua capacidade de produzir novas conformaes dos atos
de sade e o seu lugar na construo de processos
produtivos, descentrando o trabalho em sade at mesmo
dos equipamentos e dos especialistas.
Assinalo, tambm, que o percurso de procura de uma
nova conformao tecnolgica para a produo dos atos
de sade, impactando a relao entre o ncleo tecnolgico
do trabalho vivo em ato em sade com os outros ncleos
deste processo produtivo, faz parte de uma aposta que se
coloca de modo anti-hegemnico - tanto em relao medicinu teenolgica, quanto da Ateno Gereneiada que
o capital financeiro vem introduzindo no setor sade -, por
setor-es ur-ticuladoa ao movimento sanitrio brasileiro, o que
17 Vale ubsurvur que u outego .ju mdica hoje HC defl'tHltu com uma ngcndn do Iutu, nuqual tem ocupado lugar privilegiado, a disputa com os modelos de organizaodos processos de trubalho adotndos pelos setores empresariais vinculados aos se-fJ;III'OH ti., Hu(uln. AH IIIUtlull,nK IIU nl4a.~u.lu .In Ir'ulmllto nl(Hli.,u '''Ul '~Ijn.ln IIOVOHelementos para a luta eorporativn dos mdicos, quc evideuciam que a luta coutrno controlc que o capital financeiro deseja sobre o truhnlho mdico, e as trnnsfor-It1l1mt pnJlmlflitluH no Ht~1I pcwril pr'ofiI:iHiHllul, 1,01'lIam cluro () ct"C' IU'cwllt'u dt'~U1Ullt:;lrur COlll este trubulho: H tl"lHHliiio tccnol6gicu nu snde, hoje em do, OCOI'-re no campo das tecnologias leves, inscritas no modo de atuao do trabalho vivoem ato e nos processos de gesto do cuidado. Esse tema, durante o decorrer doestudo, estar sendo descrito e unulisndo rnais explicitamente.
18 Sem discordar da base de muitas das questes levantadas por essas correntes, oque assinalo sua insuficincia para os estudos na sade. Para viso de uma dascontribuies mais significativas dessas correntes, ver Antunes, R. Op. cit,
le} Cr,.,io CII'" UH jl f~illUl"H uulor'eH tllt HlI(uln (~()mo: 1)01l1l11l1g.,lo o MC:JuloH (;oJlnIVWi,sio bons exemplos do que estou upontnndo, alm de Arouca, A. S. O dilemapreuentivista. Tese de doutorado defendida no Curso de Ps-Graduao em Me-dicina. Campinas: Unicamp, 1974.
zo It-iur't, C. ll.; Mcrhy, K E. & \Vaitzkin, H. La ntencin gerenciada en AmricaLatina: transnacionalizacin del sector salud en el contexto de Ia reforma. Rio deJaneiro: Cadernos de Sade Pblica. 2000,16:95-105.Apresento o texto comoAnexo 2, neste livro.
~' r mU!~ r r ,-_ _,...,t...- : t --":' - ;'""-'----'----_.._'._'~.2l! dei! C -
32 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE
mostra que problematizar e procurar intervir, por esse
caminho, no privilgio s do setor financeiro do capital.
Existem autores do movimento sanitrio brasileiro que h
muito vm indicando essas questes. Em particular
C.' 21 N . . C 'I,' 22 I > - ~ bampos, oguelra c ecUI,O, (entre outros, sao em
ricos em suas formulaes, mas no a ponto de proporem
outra eomP.'censo da mieropolea dos proeessoS de
trahalho em sade no nvel da prpria teoria, tomando para
si o estudo destes processoS produtivos. Apesar de sugerirem
questes relevantes para aquela compreenso.Campos, por exemplo, aponta para um dos centros
bsicos do que hoje considerado uma agenda prioritria
dos sujeitos sociais envolvidos no tema da reforma dos
sistemas de sade na Amrica Latina, apontando como
central a capacidade do movimento sanitrio de atuar no
dia-a-dia dos servios de sade, procurando configurar um
modelo de ateno que se ordene pela radical defesa da
vida, advogando que esse um dos principais lugares para
o confronto com os projetos neoliberais, que cotidianamente
se fazem presentes nos modos de gerir aqueles servios no
plano poltico e no produtivo.Indica como indispensvel, e mesmo como produto dessa
ao, a construo de um compromisso efetivo dos
2l Campos, G. W. S. Reforma da reforma: repen.,ando o SUS. So Paulo: Hucilcc,1992; c Os mdicos e a poltica de sade. So Paulo: HucilCC, 19B7.
22 Em particular cito Nogucira, R. P. Op, cit. c Ccclio, L. C. O. ["ventando a 1/"'-
dana na sade. So Paulo: HucilCC, 1997.
A MICHOPOLTICA DO TllAlIALHO VIVO EM ATO NA SADE 33
trabalhadores de sade com omundo das necessidades dos
usurios, que permita explorar de modo exaustivo o que as
tecnologias em sade detm de efetividade, em um novo
modo de operar a gesto do cuidado em sade. Mostra como
essa passa pela produo de novos coletivos de
trabalhadores comprometidos Lico-politicamente com a
radical defesa da vida individual e coletiva.
Em HIHIHUJUliH(~R,tm demonRtrndo corno () eonl".onLo
entre defensores de um servio pblico versus um privado
no consegue dar conta da situuo real vivida de hcgcmouia
do projeto neoliberal mdico, por este se reproduzir
micropoliticamente em todos os lugares e momentos de
produo de atos em sade. Indicando que isto pe o
movimento diante do desafio de saber operar a gesto dos
estabelecimentos de sade e dos processos de trabalho de
uma outra maneira, anti-hegemnica, em relao ao projeto
mdico neoliberal.
Para Campos, tal tarefa passa pela busca da construo
de um modelo tecnoassistencial, que no pode desprezar
nenhum recurso tecnolgico, clnico e, ou, sanitrio para
sua ao, no qwl ocupa lugar estratgico o trabalho mdico,
comprometido e vinculado com os usurios, individuais e
coletivos, atuando em equipes multiprofissionais, operadores
de conhecimentos multidisciplinares.
Como assinalei, hoje o contexto de disputa est um pouco
mais turvo. No terreno do capital e em uma adeso ao
-- BIBLIOTECA I CIRFACULDAD-E DE SADE PBLICAUNIVERSIDADE DE SO PAULO
34 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE ,\ MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA .SADE 35
modelo neoliberal de desenvolvimento social, com a apario
da Ateno Gerenciada,23 vem constituindo-se outra
prtica que se ope ao modelo mdico llCgemnico da
medicina tecnolgica, e que aponta para a necessidade de
um "gerenciamento do cuidado em sade" que permita criar
uma gesto competitiva entre presta dores de servios, em
torno da noo de clientela consumidora inteligente,
possibilitando um equacionamento entre racionalizao dos
custos da produo dos atos de sade e qualidade dos
servios prestados, tendo em vista reformar o sistema de
sade, que gasta muito para ser pouco efetivo, mas em
funo das lgicas de interesse do capital financeiro que
vem penetrando os servios de sade, no plano mundial.
A Ateno Gerenciada, como se ver em maior detalhe
nos captulos adiante, aposta na produo de tecnologias
no campo da gesto de processos de trabalho em sade que
possam deslocar a microdeciso clnica pela administrativa,
impondo nova forma tecnolgica de constituir o prprio ato
de cuidar e o modo de operar a sua gesto, tanto no interior
dos processos produtivos em sade, quanto no campo de. ~ d ,.. 21orgamzaaoo proprJO sistema. '
O conjunto desses novos atores que se opem ao projeto
mdico hegemnico, bem como os do movimento sanitrio,
apesar de no partilharem de propostas idnticas, discutem
seus projetos e se confrontam nesses terrenos, procurando
impactar o territrio tecnolgico responsvel pela
incorporao de tecnologias duras no ato de cuidar, e a
prpria organizao dos atos de cuidar no mbito do sistema
de sade, apontando-os como lugares estratgicos para a
operacionalizao da reforma dos sistemas de sade como
um todo, ou seja, como lugares da transio tecnolgica do
setor sade para um novo patamar produtivo.''
O investimento que vrios organismos internacionais,
comprometidos com os projetos neoliherais, vm realizando
para difundir a proposta da Ateno Gerenciada nos pases
latino-americanos tem contribudo para produzir uma
agenda razoavelmente semelhante na Amrica Latina, entre
todos os que vivem os processos de reforma do Estado, em
geral, e dos sistemas de sade, em par-ticular.?
Na considerao dos organismos aparece, de manerra
muito clara, a noo de que o terreno do "gerencinmenro
do cuidado" neutro e atinente a uma racionalidade
t~o consumidur, THHU H(H' visto ndiunte, InUI;i grunde parte tlel:iKu conclnao eHl ins-pirada no texto produzido por Merhy, E. E.; Iriart, C. B. & Waitzkin, H. Atenogerenciado: da microdeciso clnica administrativa, um caminho igualmenteprivatizante?, apresentado no 7 Congreso Latino-Americano dc Medicina Social,Buenos Aires, 1997. Este texto foi publicado tambm pelos Cadernos Prohasa,nmero 3, So Paulo em 1998.
25 Nos captulos 2 e 4, adiante, demonstro o significado dessa situao.2. Paganini, J. M. Nuevas modalidades de organizaci6n de los sistemas y servicios
de salud en el contexto de Ia reforma sectorial: Ia atenci6n gerenciada, bibliogra-fia anotada. Washington, D.C.: Opas/ serie HSP/Sos, 1995.
23 Iriart, C. B.; Merhy, E. E. & Waitzkin, H. La atenci6n gerenciada en AmricaLatina ... , op. cito
24 Destaco, nessa questo, o fato de que o projeto da Ateno Gerenciada aposta nainterveno nas microdecises clnicas e tambm na criao de quatro operadoresdo sistema de servios de sade: o seguro 1administrador, o financiador, o prestador
36 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADl~
instrumental, prpria dos modelos de gesto organizacional
e dos processos de trabalho em sade. Procurando-se, assim,
constituir no plano imaginrio um campo comum, que
pertenceria a todos osque desejam as reformas e se envolvem
com elas, e que deveria ser partilhado a partir dos mesmos
receiturios de intervenes ideologicamente ~~vendidos"
como modernizadores. interessante verificar que rtos E.U .A., onde essa
proposta teve origem, h hoje confronto de pelo menos trs
grandes linhas de disputa em torno da poltica de sade:
uma vinculada ao projeto empresarial neoliberal mdico
hcgemnico, outra ao projeto ncoliheral da Ateno
Gerenciada e, outra que, espelhada na experincia
canadense, prope a construo de um Sistema Nacional
de Sade, fortemente regulado pelo Estado e
compromissado com a sade como direito de cidadania, e
no como bem de mercado.27
Destaco que tomo aqui, como foco principal de estudo, o
campo dos processos produtivos em sade no momento do
ato de cuidar e sua organizao no interior dos
estabelecimentos, em sua dimenso organizacional. Assim,
a anlise da gesto do cuidado que procuro imprimir neste
trabalho est marcada por este mbito, pois a que se refere
ao campo da gesto do cuidado, no terreno da organizao
27 Ver Wail:
\j,1,
'I!;l'ilT'
Q
38 A MICROPOLiTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE A MICROl'OLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE 39
-,
organizacionais que pem em jogo o que j se produziu de
tecnologias gestoras para governar servios de sade e
processos produtivos.
Por isso, encaro como desafio bsico para o movimento
sanitrio brasileiro aprofundar-se em novos conceitos para
compreender, de modo mais preciso, o tema da
reestruturao produtiva e da transio tecnolgica em
sade, reconhecendo a necessidade de uma constr-uo
terica que d conta das singularidade dos processos
produtivos do setor, que a teoria mais geral utilizada para a
anlise desses processos, apesar de sua efetiva contribuio,
no tem sido suficiente. Alm de prOeUral" constru ir uma
caixa de ferramentas para os gestores de organizaes de
sade que lhes permitam fazer frente, de modo an ti-
hegemnico, aos atuais modelos de ateno sade na sua
disputa cotidiana em cada estabelecimento.
Ceclio28 soma nessa direo, junto com outros autores,
percebendo que o confronto que o movimento sanitrio
brasileiro vem desenvolvendo com os neoliberais, que se d
em um amplo terreno de disputas pelos sentidos das relaes
Estado e sociedade, por meio das poltticas sociais, exige dos
contendores uma competente capacidade operacional para
implementar um modo de produzir sade, no nvel dos
servios assistenciais e sanitrios, que seja coerente com as
estratgias globais assumidas, de tal modo que o
"gerenciamento do cuidado" seja inevitavelmente marcado
pela idia de sade como direito universal de cidadania.
Vrios militantes deste movimento vm procurando
equacionar a construo de modelos de ateno sade,
no nvel dos estabelecimentos e das redes de servios, no
terreno das gesto organizacional e do trabalho, mostrando
que, para superar o modelo mdico hegemnico neoliberal,
devem constituir-se organizaes de sade gerenciadas de
modo mais coletivo, alm de processos de trabalho cada
vez mais partilhados, buscando um ordenamento
organizacional coer-ente com uma lgica usur-io-ccntrada,
que permita construir cotidianamente vnculos e
compromissos estreitos entre os trabalhadores e os usurios
nas formataes das intervenes tecnolgicas em sade,
conforme suas necessidades individuais e coletivas.
Por outro lado, interessante passar a idia da
necessidade do controle rgido do custo como inevitvel para
sobreviver em um ambiente competitivo entre prestadores
de servio, por financiamentos e clientelas, e advogam que
s quem for econmico e satisfizer o cliente permanecer.
Na mo deste iderio, o "gerenciamento do cuidado" um
terreno implicado com os interesses das grandes
corporaces financeiras e com todos os setores que advogam
a modernidade como um imagem espelhada da atual
sociedade americana.28 Ceellio, L. C. O. Op, eit.
A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO NA SADE
Entendo que um dos esforos tericos mais necessrios
dos vrios setores do ~~movimentosanitrio brasileiro" na
busca de suprir certas deficincias no confronto que tm
pela frente, de disputar essa transio tecnolgica posta pela
Ateno Gerenciada, o que aponta na direo de umareviso da teoria do trabalho em sade, em particular dos
temas das tecnologias em sade que conformam o ato de
cuidar e o da gesto dos proecssos pl~oduLV08,no nvel dos
cstabelecimentos.29
40
29 Grande parte desta concluso est inspirada no texto produzido por Mcrhy, E.E.; Iriart, C. B. & Waitzkin, H. Ateno gerenciada ... , Op. cio
CAPTULO 2
AMICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:UMA QUESTO INSTITUCIONAL E TERRITRIODE TECNOLOGIAS LEVESl
COM A PERSPECTIVA de aprofundar a compreenso dasquestes levantadas at agora, inicialmente partirei de um
esquema que permita pensar os diferentes modos do agir
humano no ato produtivo e os tipos de questes interes-
santes de se levantar acerca desse processo.
Partindo de um diagrama, como o exposto na pgina
seguinte, que procura representar qualquer ato produtivo
bem simples, como por exemplo a produo de um objeto
rcajizudo pnt um aaputoir-o-m-tesfio, IH'()(;''''() nHlp(~I'" as
questes que considero relevantes para esta reflexo. Em
primci r-o lugar, levando em co ntu as vr-ius etapas do
processo de produo de um sapato - o produto final
realizado por aquele arteso - pode-se dizer que h a
presena de cinco situaes que valem a pena ser descritas,
1 O texto principal que utilizo neste momento Mcrhy, E.E, Em busca do tempo perdi-do: a micropoltica do trabalho vivo em alo, ln: Merhy, E.E. & Onocko, H. (orgs.)Agirem Sade ... obra citada.
41
li
42 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO: tHL\ QUESTO INSTITUCIONAL
como mostra o desenho, que procuro relacionar com as
formas trabalho morto e vivo dos atos produtivos:
res, que se fazem presentes agora como trabalho morto, i.,
j realizado e coagulado no produto. Dessa forma, o traba-lho anterior, de produzir ferramentas, estar presente no
ato de produo do sapato, e o influenciar, mas no est
em ato, no est vivo.
c) o arteso, para juntar matria-prima e ferramenta na
direo da produo de sapatos, precisa antes de tudo ser
possuidor de um certo saber tecnolgico, que lhe permita
dar, pela sua ao concreta em si de trabalhar, dentro de
certa maneira organizada de realiz-Ia, formato de produ-
to ao desenho imaginrio que tem em mente, expressando
seu projeto. Esse saber complexo e em ltima instncia
uma parte fundamental do saber-fazer sapatos, que no pro-
cesso de produo est contido tambm na dimenso or-
ganizao do processo. Faz parte dele, por exemplo o co-
nhecimento sobre o couro mais apropriado, as tcnicas de
corte, o conhecer as tintas melhores e suas adequaes com
o material que est sendo usado, mas tambm a maneira
de organizar temporalmente estes conhecimentos, como
atividades, como um processo de produzir. Isto , o que
deve ser feito antes, como deve ser feito, quanto se deve
esperar para realizar os atos seguintes de produo, e as-
sim por diante.
d) entendo que essas duas dimenses, a da organizao e
a do saber tecnolgico, no se comportam do mesmo jeito
que o da matria-prima e o da ferramenta, pois neles o
H l~ferramen-tas saberestecnol-gicos
trabalhoem si
organi-zao
matria-prima
T.M. T.M. T.M./T.V. T.V./T.M. T.V. T.M.
T.M. = trabalho morto'r.V. = trabalho vivo
a) a produo do sapato pressupe o encontro do traba-lho em si do sapateiro-arteso com certas matrias-primas,
como o couro, o prego, a linha, a tinta, entre outras. Pode-
se afirmar que essas matrias-primas so produtos de tra-
balhos humanos que as concretizaram, pois no esto pron-
tas na natureza, e mesmo se estivessem, como se brotassem
em rvores, seria necessrio realizar um trabalho humano
para colet-Ias, antes que pudessem entrar no processo pro-
dutivo do sapateiro. Diz-se, ento, que as matrias-primas
so produtos de trabalhos humanos anteriores, que nos seus
momentos de ao tinham uma dimenso viva, mas que
ago!'rl, como produto matria-prima do sapateiro, esto ex-
pr~i',':mdo um trabalho morto, resultado do vivo anterior
que o produziu.
b) as ferramentas que o arteso-sapateiro usa para pro-duzir o sapato, como um martelo, uma faca, um pincel,
entre outras, tambm so, semelhana do que se disse
sobre as matrias-primas, produtos de trabalhos anter io-
1II
I1
43
........~~==~._-_. -------....,.' ~::,.= ,. -Z7rzt -m=
44 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:arteso real que est fazendo o trabalho conta como peso,
tem importncia. Sua histria, suas habilidades, sua
inteligncia, sua capacidade inventiva, pode operar nessas
situaes de organizar os processos e de compor os saberes
tecnolgicos. Assim, em ambos os momentos do processo
produtivo, o da organizao e o do saber, h uma situao
dupla: a presena de saberes - tanto tecnolgicos quanto
organizacionais -, produdos ulIlerionuell\.e (~
Aislematizados, apreendidos pelo arteso, que expressam,
ento, trabalhos anteriores e se colocam como
representantes do u-abalho morto, mas que sofrem
. influncia real do trabalhador concreto que est atuando e
o seu modo de p-Ios no ato produtivo, como representantes
do trabalho vivo em ato. Isso faz com que nessas duas
dimenses haja a convivncia das duas modalidades de
trabalho no fazer do sapateiro-arteso ao produzir
concretamente o seu produto imaginado. Por isso aponto
que nessas duas situaes h uma combinao de trabalho
vivo c morto, simultaneamente. O grau de liberdade desta
relul,;o um pouco mais favorvel na dimenso do saber
tecnolgico em relao ao da organizao, pois esta tende a
ser mais estruturada, mais governada pelo plo trabalho
morto.e) vale observar que a noo de tecnologia aqui utilizada
tem definio mais ampla da que pela qual corriqueiramente
traduzida, pois no a confundo de maneira especfica
UMA QUESTO INSTITUCIONAL 45com equipamento e mquinas, j que tambm incluo como
tecnologias certos saberes que so constitudos para a pro-
duo de produtos singulares, e mesmo para organizar as
aes humanas nos processos produtivos, at mesmo em
sua dimenso inter-humana. Desse modo, falo em tecnolo-
gius duras, leve-duras c leves."
1) claramente o momento do trabalho em si expressa demodo oxchraivo (I t.rulurlho vivo em alo. EHl:le ruorucnto
marcado pela total possibilidade de o trabalhador agir no
ato produLivo CO.IU gl'llUde liberdade mxima, porm o exer-
ccio desse grau relaciona-se com a presena simultnea das
quatro dimenses anteriores, o que permite dizer que deve
haver processos de trabalho bem diferenciados nos modos
como estas relaes simultaneamente ocorrem. Se forem
imaginados, agora, outros tipos de trabalhos que no s o
do sapateiro-arteso, pode-se dizer que h processos pro-
dutivos nos quais o peso das dimenses que expressam o
trabalho morto maior que o do trabalho vivo, e h outros
que se manifestam de modo contrrio. Como exemplo do
primeiro caso, um processo de trabalho morto centrado,
cito a produo de uma mquina em uma metalrgica, e
como do segundo caso, um processo trabalho vivo contra-
do, a produo de uma aula ou dos atos de cuidar em sa-
Com maior detulhnmonto sugiro n Iciturn tio texto Mcrhy, E. E. et ul. ,Em buscu deIer-rumentus nnnlienrlorus . lu obrn eitndu, no qual descrevo c defino coru maiur pn~eiso esacs termos, lHJr.n, cru um puinel nprcecntndo muis udinntc, Ino uru resumodos conceito s,
46 A MICHOPOLTICA DO THAHALHO ViVO EM ATO: UMA QUESTO INSTITUCIONAL 47
TESE 2 - a ao intencional do trabalho realiza-se em um
processo no qual o trabalho vivo em ato, possuindo de modo
interessado instrumentos para a ao, "captura" intencio-
nalmente um "objeto/natureza" para produzir bens/pro-
dutos (as coisas/objetos); e que pode ser esquematicamente
visualizado no desenho, exemplificado a partir do trabalho
de um arteso-sapateiro, que antes da realizao do pr-
prio ato produtivo j sabia aonde queria chegar, isto , a
que tipo de produto, que valor de uso estaria produzindo,
e, com isso, opera um ato produtivo que amarrado por
uma inteno posta anteriormente a ele;" no qual o traba-
lho em si atua como trabalho vivo em ato e os instrumentos
usados, bem como a organizao do processo, como traba-
lho morto;
TESE 3 - o modo de o trabalho vivo em ato realizar a
captura do "mundo" como seu objeto vinculado ao modo
como o trabalho vivo que o antecedeu, e que agora se
apresenta como trabalho morto, atua como um
determinado processo de produo tambm capturante,
mas agora do prprio trabalho vi~o em ato, e que se
de. Pode dizer-se, ento, que o processo fie captura do t.ra-
balho vivo pelo trabalho morto, em certas produes, di-
ferenciado, ou vice-versa, permitindo imaginar situaes
nas quais o exerccio do protagonismo/liberdade ou do pro-
tagonismo/reprodu03 estejam ocorrendo no mundo ge-
ral da produo, tanto na conformao tecnolgica dos atos
produtivos, quanto nos modos de govern-los, Onde h tra-
balhadores pr-oduzindo, h essa polarizao, independen-
te do que se produz, e isso ocorre em todos os setores: pri-
mrio, secundrio e tercirio da produo, bem como no
social em geral.
g) com o painel apresentado adiante, expondo dezesseteteses sobre a teoria do trabalho em sade e as tecnologias
de produo do cuidado, procuro sistematizar algumas
questes-chave para entender o modo como lido com a no-
o de tecnologia em sade:"
TESE 1-falar em tecnologia ter sempre como referncia
a temtica do trabalho, mas em trabalho cuja ao intenci-
onal demarcada pela busca da produo de "coisas"
(bens/produtos) - que funcionam como objetos, mas que
no necessarjamente so matcr'iuis, du roa, pois podem ser'
bens/produtos simblicos (que tambm portam valores de
uso) - que satisfaam necessidades;
, Veja que h trabalhos, como de um Picasso desenhando um sapato em um quadro, queno pt"csifli(lo por cstu rcluiio Jntcncionnl produtiva tccnolgica, mesmo 'llIU tenhade se utilizur de tcnicas para ser realizado. Hcpure que o produto, sapato desenhado,no necessariamente significa neste caso um sapato, pode ser uma mera representaode algo que o Picasso associa a uma situao qualquer. E para um observador qualquer,pode significar algo distinto. Sem dvida, o sapato do urteso-saputeiro tem de servircomo calado. Se perder essa funcionalidade no ser um bem sapato. Por isso, estetrabalho presidido como um fazer tec-nolgico, ao passo que o do Picasso um traba-lho, mas de outra natureza.
Sobre esta situao de sujeito iustitudo e mstituinte vcja a Apresentao.Esse painel foi montado com base no texto Merhy, E. E. et aI. Em busca das ferramentasanalisadoras .. ln: Obra citada. Ver em particular o texto Ato de cuidar: alma dos ser-vios de sade, que aparece como apndice aqui neste livro.
li"
48A MICUOPOLTICA DO Tll.ABALHO VIVO EM ATO:
expressa como um certo modelo (dentro de um certo modo)
de produo;TESE 4 _ nesse modo de possuir, o trabalho vivo em ato
opera como uma mquina de guerra poltica, demarcando
interessadamente territrios e defendendo-os; e, como uma
mquina desejante, valorando e construindo um certo mun-
do para si (dentro de uma certa ofensiva libidinal);
TESE 5 _ tal modo de possuir (eorno produo) instrumen-
tos e pedaos da natureza, produzindo-os como ferramen-
tas e objetos, dando-Ihes uma razo instrumental, apresen-
ta-se como tecnologia como saber. As mquinas-ferramen-
ta, por sua vez, so suas expresses como tecnologias-equi-r
pamentos;TESE 6 _ as mquinas-ferramenta so expresses tecnol-
gicas duras das tecnologias-saberes (leve-duras) e, como equi-
pamentos tecnolgicos, no tm razo (instrumental) por
si, pois quem as torna portadoras dessa intencionalidade
raeional-instrumental o trabalho vivo em ato com seu modotecnolgico (seu modelo de produo) de agir e como ex-
presso de certas relaes sociais e no outras;TESE 7 _ o trabalho em sade centrado no trabalho vivo
em ato permanentemente, um pouco semelhana do tra-
balho em educao. Alm disso, atua distintamcnte dc ou-
tros processos produtivos nos quais o trabalho vivo em ato
pode e deve ser enquadrado e capturado globalmente pelo
trabalho morto e pelo modelo de produo;
I I.
UMA QUESTO INSTITUCIONAL 49
TESE 8 - o trabalho em sade no pode ser globalmente
capturado pela lgica do trabalho morto, expresso nos
equipamentos e nos saberes tecnolgicos estruturados, pois
o seu objeto no plenamente estruturado e suas tecnologias
de ao mais estratgicas configuram-se em processos de
interveno em ato, operando como tecnologias de relaes,
de encontros de subjetividades, para alm dos saberes
tecnolgicos estruturados, comportando um grau de
liberdade significativo na escolha do modo de fazer essa
produo;
TESE 9 - por isso as tecnologias envolvidas no trabalho
em sade podem ser classificadas como: leves (como no caso
das tecnologias de relaes do tipo produo de vnculo,
autonomizao, acolhimento, gesto como uma forma de
governar processos de trabalho ), leve-duras (como no caso
de saberes bem estruturados que operam no processo de
trabalho em sade, como a clnica mdica, a clnica psica-
naltica, a epidemiologia, o taylorismo, o fayolismo) e duras
(como no caso de equipamentos tecnolgicos do tipo m-
qmnas, normas, estruturas organizacionais);
TESE 10 - no trabalho em sade, no cabe julgar se os
equipamentos so bons ou ruins, mas quais razes instru-
mentais os esto constituindo e dentro de que jogo de in-
tencionalidades; cabendo, portanto, perguntar sobre que
modelagem de tccnologia do trabalho vivo CIO ato se est
operando, como ela realiza a captura das distintas dimen-
,J.,
50 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO: U~{A QUESTO INSTITUCIONAL 51
ses tecnolgicas, e o lugar que os usurios/necessidades e
os trabalhadores/necessidades, como intenes, ocupam na
rede de relaes que as constituem;
TESE 11 - o trabalho vivo em ato opera com tecnologiasleves como em uma dobra: de um lado, como um certo modo
de governar organizaes, de gerir processos, construindo
seus objetos, recursos e intenes; de outro lado, como uma
certa maneira de agir para a produo de bens/produtos;
sendo uma das dimenses tecnolgicas capturantes que d
a "cara" de um certo modelo de ateno;
TESE 12 - para compreender os modelos tecnolgicos e
assistenciais em sade, portanto, deve tomar-se com') eixo
analtico vital o processo de efetivao da tecnologia leve e
os seus modos de articulao com as outras;
TESE 13 - a tecnologia em sade, dividida em tecnologia
leve, leve-dura e dura, permite expor a dinmica do proces-
so de captura do u-abalho vivo pelo morto, e vice-ver-sa, no
interior dos distintos modelos tecnoassistenciais em sade,
e at mesmo a configurao Lecnolgica de um certo pro-
ceSROprodutivo em sade, um certo modo de produzir ocuidado;
TESE 14 - a efetivao da tecnologia leve do trabalho vivo
em ato na sade expressa-se como processo de produo
de relaes interseoras" em uma de suas dimenses-chave,
O termo interseores est sendo usado aqui com sentido semelhante ao de Deleuze, nolivro Conversaes, que discorre sobre a interseo que Deleuze e Guattari
, rio final.xrue " "que e o seu encontro com o usuario nna ,que representa ,em ltima instncia, necessidades de sade como sua
intencionalidade, e, portanto, o que pode, com seu
interesse particular, "publicizar" as distintas
intencionalidades dos vrios agentes em cena, do trabalho
em sade;"
TESE 15 - neste encontro do trabalho vivo em ato com ousurio final que se expressam alguns componentes vitais
da tecnologia leve do trabalho em sade: as tecnologias ar-
ticuladas produo dos processos interseores, as das re-
laes, que se configuram, por exemplo, por meio das pr-
ticas de acolhimento, vnculo, autonomizao, entre outras;
TESE 16 - desse lugar, pode-se interrogar o formato de
realizao da tecnologia das relaes, como um mecanismo
analisador estratgico dos modelos de ateno em sade
que tem capacidade de expor intensamente "as falhas" do
mundo do trabalho em sade, como o "jogo" dos sentidos e
sem sentidos das prticas de sade;
(!C.JlIHlil.llr r UI1l quundo pnJlJII~il:unl o vru Antiedipo, tp.w no um sumutr-io de um, comoutro e produto de quatro mos, mas um "inter", interventor, Assim, uso esse termopara designar o que se produz nas relaes entre "sujeitos", no espao das suas interse-CH, que li um produto que existe pnrn 08 "doi"," em nto e no tem cxistnciu sem omomento da relao em processo, c na qual os intcr se colocam como instituintes nubusca de novos processos, mesmo um em relao ao outro. Trato com mais detalhes aquesto, em Merhy, E. E. O SUS e um dos seus dilemas: mudar a gesto e a lgica doprocesso de trabalho em sade. In: Teixeira, S. M. F. (org.). Movimento sanitrio: 20anos de democracia. So Paulo: Lemos, 1998.
7 Nesse particular, recomendo de novo a leitura de Merhy, E. E. Em busca do tempoperdido: a micropoltica ... , obra citada.
~~~------liIi;j
52 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:TESE 17 _ o sentido desse interrogar deve ser o de repen-
sar as lgicas das intencionalidades, que permita caminhar
para a "publicizao" do espao da gesto do processo de
trabalho em sade no qual elas se efetivam, pondo em jogo
a possibilidade de incorporao de um outro campo de tec-
nologias, que o que se articula com os processos de "go-c_vernar" estabelecimentos (como organizaes), e nos quais
se faz presente o encontro do trabalho vivo em ato com os
distintos agentes, com seus projetos e com seus mtodos,
referentes aos diferentes espaos da gesto.h) esse processo polarizado de possveis capturas totais
do trabalho humano vivo em ato pelo trabalho morto que
so expressas na tenso autonomia versus controle, no
estranho aos diferentes pensadores da sociedade contem-
pornea, e em particular de dois deles, que se situaram em
lugares bem diferenciados quanto a esse debate, a quem
me reportarei para ajudar nas reflexes sobre algumas das
distintas temticas que esto implicadas na discusso da
ao hUIlUlIHI em nmbicnl:Cs produtivos.Trabalharei adiante comFrederick Winslow Taylor e Karl
Marx, em busca do debate que fazem esses dois autores
sobre protagonismos/liberdade e captura, e o mundo do
trabalho.
UMA QUESTO INSTITUCIONAL 53
Imaginando uma polmica entre Marx e Taylor sobre oprotagonismo/liberdade, e algumas idias em torno damicropoltica do trabalho vivo em ato
Recorro a esses pensadores, para refletir sobre as dife-
rentes implicaes, no campo da sade, entre as aes hu-
manas, que em ato so capturadas pelas lgicas que co-
mandam as organizaes dos processos de trabalho medi-
ante o trabalho morto, versus aquelas aes que em ato,
em virtude da imposio dominante da presena do traba-
lho vivo como seu componente, apontam para uma pro-
funda possibilidade descapturunte do agir humano das l-
gicas que o querem amarrar, que o querem conter.
Marx, anticapitalista convicto, entendia que um
trabalhador ao atuar em uma linha de produo dentro de
um estabelecimento fabril, por exemplo, estava totalmente
subordinado, no seu agir, lgica do modo duro e
estruturado que a produo impunha por meio dos vrios
processos capturantes da sua capacidade de trabalhar, Isto
, o grau de liberdade de um operrio agir a seu modo nasatividades pr-odu tivas era zer-o, C a possibilidade de peJlsar'
sua libertao estava dada por "algo" que, influenciando
sua conscincia, a tornasse umaeonscincia de classe
anticupitalista, abrindo, ento, cluince de lima atuao
organizada, eomo a de um grupo de trabalhadores
.5Ll UMA QUESTO INSTITUCIONAL .55A MICHOPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:consciente, que imporia resistncias aos processos de
explorao do capital. Marx apostava na fora determinante
do capital para organizar as atividades do trabalhador, e
imaginava que sua libertao estaria marcada pelas chances
de desamarrar essa determinao pela produo de uma
outra conscincia operria, que permitiria possibilidades
de descapturas do trabalhador em relao a dominao
capitalista. Marx era um anticapitalista que admitia a total
captura do trabalho vivo pelo morto e apostava na formao
da conscincia de classe, produto de processos externos ao
mundo das atividades produtivas em si."Taylor, capitalista convicto, umas trs dcadas aps a
mor-te de Marx, defendeu a idia de que o modo como se
organizam os processos de trabalho altera as relaes entre
a mquiJ)a e o trabalhador, pois pode Impactar os seus
movimentos no tempo. Relata que aprendeu isso "olhando"
os prprios trabalhadores nas suas atividades produtivas,
onde exerciam graus de liberdade diferenciadas sobre as
dimenses do processo de trabalho, impondo
produtividades distintas para as mesmas mquinas e linhas
de produo na realizao dos mesmos produtos. Taylor
advogava que o operrio, sem o controle do capitalista, faria
uma fbrica do seu jeito, e que nem sempre esse jeito era o
melhor para quem visava a lucratividade e a competio
no mercado. Desse modo, acabou elaborando um conjunto
de tecnologias de gesto de processos de trabalho que
permitia capturar a autonomia do trabalhador no exerccio
do seu trabalho vivo, a fim de suhordin-lo aos interesses
capitalistas da empresa. Pois s a captura realizada pelas
tecnologias duras no era suficiente."
De certa maneira, Taylor confirma o que Marx advogou,
que o estabelecimento um lugar de intensa dominao,
porm partindo do princpio de que se essa dominao
no for permanentemente pensada para os exerccios dos
atos dos trabalhadores, estes tendem a abrir "linhas de fu-
gas" no interior das lgicas de produo e construir uma
produo a seu modo. Taylor era um capitalista que admi-
tia a permanente descaptura do trabalho vivo diante do
mundo definido pelo trabalho morto e apostava em tecno-
logias gerenciais para as organizaes produtivas que cap-
turassem o trabalhador nos seus exerccios de liberdade e
autonomia, no terreno do trabalho vivo em ato.
Alis, de passagem, esta a histria das teorias adminis-
trativas e gerenciais: a produo de tecnologiasleve-duras,
no campo da gesto organizacional, que visam a captura
do trabalho vivo, t:ransformando-o em morto. Ou seja, a
NCHH(~ partieulur, indico u leituru do texto Marx, K, O 18 hrumr-io. I,,: 0111 brumrioe Cartas a Kugelmann, 4"Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982,
9 Ver o debute sobre o tayloriamo exposto por ChiClVCIlCllo,I,IlItl'Oduiio teoria geral daadministrao, So Paulo: MacGraw-Hill, 1990,
I;1.;
56 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:
produo de caixas de ferramentas gestoras de processos
organizacionais produtivos.
Voltando ao tema da sade, fixando conceitos
Bem, com estas falas procuro introduzir o leitor no
universo de alguns conceitos bsicos que o permitam ser
um analisado r mais aguado do mundo da produo em
geral e da material em particular. Mas h ainda algumas
idias no muito fceis de serem entendidas sobre a distino
de certos processos produtivos, que necessitam ser agregadas
a e~te conjunto de conceitos que estou elaborando, e que
fazem parte de uma leitura mais aprimorada dos processos
de produo. Em particular, vale mostrar algumas questes-
chave para compreender a distino de um processo
tipicamente fabril, de um outro mais vinculado ao setor de
servios - como o de sade -, no que se refere s
caractersticas centradas ou no trabalho morto ou no
trabalho vivo, e s diferentes questes levantadas nesta
distino para a relao dos produtos realizados nesses
setores de produo e o mundo das necessidades do seu
consumidor.Um trabalho fabril tpico relaciona-se com o consumidor
por intermdio do produto que este usa, ao passo que, em
um trabalho de servio, o ato de produo do produto e de
seu consumo ocorrem ao mesmo tempo. Por isso, denomi-
UMA QUESTO INSTITUCIONAL 57
no que no primeiro caso a relao objetal e no segundo"interseora", e, nesta ltima situao, o modo como o con-
sumidor valoriza a utilidade do produto para si est sem-~
pre presente na relao imediata de produo e consumo,
ao IUlSAO flUC no do tipo objeta] a utilidade do pr-oduto panl
o consumidor s ir realizar-se na obteno do produto e
de seu consumo, c que OCOl"rC de modo separado do mun-
do da produo do produto.
Veja isto no texto e no painel, colocados adianter'"
Quando um trabalhador de sade se encontra com um
usurio, no interior de um processo de trabalho, em
particular clinicamente dirigido para a produo dos atos
de cuidar, estabelece-se entre eles um espao interseor que
sempre existir nos seus encontros, mas s nos seus
encontros, e em ato. A imagem desse espao semelhante
da construo de um espao comum de interseo entre
dois conjuntos, ressalvando que no s na sade que h
processos interseores. E, alm de reconhecer a existncia
desse processo singular, fundamental, na anlise dos
processos de trabalho, descobrir o tipo de interseo que
se constitui e os distintos motivos que operam no seu
interior.
1. Os esquemas mais comuns em processos de trabalho
como os da sade, que realizam atos imediatamente de
10 O texto que scgue retirado de Mcrhy, E. E. O SUS e um de seus dilemas: mudar agesto c a lgica do processo de trabalho em sade ... , obra cilada.
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58 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:
ass istncin com o usurio, apresenLam-se corno () do
diagrama abaixo, a que chamo de uma "interseopartilhnda".
trabalhador
2. Os que se constituem nos casos mais tpicos de proces-
sos de trabalho, como o de um marceneiro que produz uma
cadeira, mostram que o usurio externo ao processo, pois
o momento intercessor se d com a "madeira", que plena-
mente eontidn pelo espao do L,'abalhador, corno lima "in-terseo objetar'.
marceneiro
xxx xxx xmadeiraxxxxxxx cadeira usurio
Esta distino da constituio dos processos interseores
mostra como a dinmica entre o produtor e o consumidor e
os jogos entre necessidades ocorrem em espaos bem dis-
Lintos, e Lambm como os possveis modelos de confi.gura-
/'"
59U~[A QUESTO INSTITUCIONAL
o desta drnmica podem ser mais ou menos pcrmcavcia a
essas caractersticas.
No jogo de necessidades que se pe para o processo de
trabalho possvel ento pensar:
1 - que no processo de trabalho em sade h um encon-
tro do agente produtor, com suas ferramentas (conhecimen-
tos, equipamentos, tecnologias de modo geral), com o agen-
te consumidor, tornando-o em parte objeto da ao daque-
le produtor, mas sem que com isso deixe de ser tambm um
agente que, em ato, pe suas intencionalidades, conheci-
mentos e representaes, expressos como um modo de sen-
tir e elaborar necessidades de sade, para o momento do I.,.trabalho; e
2. que no seu inter-ior h uma busca de realizao de um
produto/finalidade. Como, por exemplo, a sade que um
valor de uso para o usurio, que a representa como algo
til por lhe permitir- csuu- no mundo c poder viv-Io, de modo
auto determinado, e dentro do seu universo de representa-
es, do que isso possa significar, e que assimilado como
um processo distinto pelos agentes envolvidos, mas que, no
entanto, poder at mesmo coincidir.
O que revela que a anlise do processo intercessor que se
efetiva no cotidiano dos encontros pode evidenciar a
maneira como os agentes se pem como "portadores/
elabora dores " de necessidades nesse processo de "interseo
partilhada" .
i:
/y
60 A MICROPOLTICA DO THABALHO VIVO EM ATO:
J
O d id ~" d "s agentes pro utores e consumi ores sao porta oresde necessidades macro e micropoliticamente constitudas,
bem como so instituidores de necessidades singulares, que
atravessam o modelo institudo no jogo do trabalho vivo e
morto ao qual esto vinculados.
A conformao das necessidades d-se, portanto, em
processos sociais e histricos definidos pelos agentes em
ato, como positividades, e no exclusivamente como
carncias, determinadas de fora para dentro. Aqui no
interessa o julgamento de valor acerca de qual necessidade
mais legtima que outra, esta uma posio necessriapara a ao mas no pode ser um a priori para a anlise,porque o importante perceber que todo o processo detrabalho e de interseo atravessado por distintas lgicas
que se apresentam para o processo em ato como
necessidades, que disputam, com~ foras instituintes, suas
instituies.
o papel transformador do trabalho vivo em ato na sade esuas dobras tecnolgicaa"
o processo de trabalho em sua micropoltica deve serentendido como um cenrio de disputa de distintas foras
inatituintca: desde Io ras presentes clarnmento nos modos
II G'"Ullflc JJUI,"lc! fio texto 'l'w vem LI Heguir f~)i rctirndo de Me.-lIY,E. E. Em Lusen do 1.(~I11POperdido ... , obru cilada.
UMA QUESTO INSTlTUClONAL 61de produo - fixadas, por exemplo, como trabalho mor-to,
e mesmo operando como trabalho vivo em ato -, at as que
se apresentam nos processos imaginrios e desejantes, e no
campo do conhecimento que os distintos "homens emao "12 constituem.
Na micropoltica do processo de trabalho, no cabe a
noo de nlpotncia, pois se o processo de trabalho est
sempre aberto presena do trabalho vivo em ato, por-
que ele pode ser sempre "atravessado" por distintas lgicas
que o trabalho vivo pode comportar. Exemplo disso a cri-
atividade permanente do trabalhador em ao numa di-
menso pblica e coletiva, podendo ser "explorada" para
inventar novos processos de trabalho, e mesmo para abri-Io
em outras direes no pensadas.
Mas no se pode desconhecer que isso pode ocorrer nos
momentos em que se abrem fissuras nos processos
institudos e em que a lgica estruturada da produo, bem
como o seu sentido, so postos em xeque, incluindo a prpria
maneira como est sendo gerida pelos trabalhos vivos
precedentes, que se cristalizaram, alis, na potncia dotrabalhador.
12 A pretenso tJIlC lCU10tl aqui murem- UUIU posiiio diHllnln do rucioun1iSIllo que operucom a noo de homem da razo, subsumindo essa racionalidadc aos processos quegovernam o homem cru situno e nu ao, como se posiuinnnm autores como Mnlus, C.P,)lfti(tJ./~/(lIlUiCllti() UKflfJtII""O "l,nl (Oilntln, t~IIU~HlllO l'nIH~IlIlnH,.J. Tf"(',.(U rl lu nccin.cOII/./lfcalitla.l\1utlr;: Tuurua, 1987. Sobrc este ltimo autor vcrtruubm HOUIIIlCl,P.S. &. Frcltug, B. (orgs.).llal,,,rmas. So Paulo. tiCIl, 1980.
62A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:
Portanto, atuar nesses processos "trabalho vivo
dependentes" permite sair em busca da construo de
distintas linhas de fuga, como, por exemplo, em relao
lgica que preside o processo de trabalho como produo e
satisfao de necessidades; ao modo de como se sabe
trahalhar, isto , sua configurao tecnolgica; maneira
coroo o espao institucional, da gesto desse processo, estordenado.
Repensar a potncia e a impotncia como uma caracte-
rstica situacional que pode ser atravessada por distintos
processos instituintes - e mesmo agenciada - torna-se, as-sim, uma ousadia.
Uma anlise mais detalhada das interfaces entre os su-
jeitos institudos, seus mtodos de ao e o modo como es-
ses sujeitos se intersecionam, permite realizar uma nova com-
preenso sobre o tema da tecnologia em sade, ao se tomar
como eixo norteador o trabalho vivo em ato, que essenci-
almente um tipo de fora que opera permanentemente emprocesso e em relaes.13
Por isso, os que apostam na possibilidade de se
constituir tecnologias da ao do trnhalho v.ivo em ato e
mesmo de gesto desse trabalho, abrindo fissuras e possveis
linhas de fuga nas aes produLivas institutdas, como a
Ateno Gerenciada, tm conseguido realizar intervenestt
13 Veja de novo o tema dos intercessores , j abordado anteriormente.
L
63UMA QUESTO INSTITUCIONAL
que focalizam o sentido da "captira" sofrido pelo trabalho
vivo, abrindo-o para novas direcionalidades.
Entender essa dupla dimenso da ao do trabalho vivo
em ato, de gerir processos institucionais e de realizar pro-
dues propriamente ditas, assim como as possibilidades
de toc-Ia com processos diretamente referentes aos seus
modos tecnolgicos de existir, primordial na reflexo que
se est propondo, pois permite compreender como se pode
interferir nos modos como o trabalho vivo opera uma dada
produo concreta - como um modo essencialmente inter-
seor de ser e atravs de suas formas tecnolgicas leves de
agir, capturadas de determinadas maneiras em relao ao
trabalho morto que opera coetneo consigo -, ao mesmo
tempo que permite tocar nas maneiras como institucional-
mente esse processo um espao de ao governamental,
privado e pblico, que define os processos de "penetrahili-
dade" mais ampla ou restrita, das arenas onde se decide o
sentido da instituio. Quero pensar as tecnologias que po-
dem tanto redefinir os processos de "captura" do trabalho
vivo em ato, como um dado modelo de ateno, quanto
tornar mais phlieo os proecs8os que governam a sua dirc-
cionalidade. Quero compreender como os que disputam
esses proecssos eatio dispondo de caixus de ferramenLas
para suas intervenes.
64 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:
Enfim .. 14
Retomando o tema central posto por esta tese: o da
contribuio ao estudo da reestruturao produtiva do setor
sade, com foco particular sobre os processos produtivos
em sade, suas composies tecnolgicas e os modos de
govern-Ios, e ao entendimento da composio da caixa de
ferramentas dos gestores das organizaes de sade, a partir
da categoria analtica trabalho vivo em ato, creio que at
agora problematizei e demonstrei a noo de que na
micropoltica dos processos de trabalho em sade
necessrio compreender que os ncleos de intervenes
tecno16gicas - no campo das tecnologias duras, leve-duras
e leves - permitem processos muito singulares de transies
para processos de reestruturaes produtivas no setor
sade, marcados pelo lugar central ocupado pelo territrio
das tecnologiasleves.
Seja na sua forma atual hegemnica, da medicina
neoliheral tecnolgica, na qual os mdicos, privatizando,
tomam posse dos espaos microdecisrios, que definem o
modelo de ateno e a incorporao de tecnologias duras e
H Parte desta conclu8rl, quc remete ao captulo seguintc, esui inspirada no texto produ-zido por Merhy, E. E.; Iriart, C. B. &Waitzkin, H. Atell{o gerenciada: da microdecisoclnica .. , obra citada.
UMA QUESTO INSTITUCIONAL 65
leve-duras; seja na forma da ateno gereneiada, como parte
do projeto do capital financeiro para a organizao
produtiva do setor sade, na qual este capital cria
mecanismos para retirar do mdico aquela privatizao dos
espaos microdecisrios, alterando o modo de agregar as
tecnologias; ou s}~ja,enfim, nos modelos que se propem
seguir o eixo das necessidades dos usurios como seu
ovdcnudo r, nos quais os processos de incorporao
tecnolgica tm de superar tanto aquelas privatizaes dos
espaos microdecisrios, quanto a reduo do bem sade a
um bem de mercado.
Assim, fica evidente que as anlises sobre as transies
tecnolgicas em sade e as possibilidades de operar
reestruturaes produtivas devem, analiticamente, procurar
entender de modo articulado o lugar que o ncleo das
tecnologias leves ocupam e seu modo de operar os processos
produtivos, bem como os tipos de disputas que os modelos
em competio impem neste territrio, e a composio das
caixas de ferramentas utilizadas pelos seus protagonistas,
para dar sentido s suas aes de manuteno ou de
superao de um certo processo produtivo hegemnico.
Hoje, ainda neste momento de grande hegemonia do
modelo da medicina tecnolgica neoliberal, com a entrada
em cena das modalidades tecnoassistenciais, que com ele
disputam os processos produtivos, procurando imprimir
uma transio tecnolgica no setor e apostando na
66 A MICROPOLTICA DO TRABALHO VIVO EM ATO:
possibilidade de uma definitiva reestruturao produtiva,
o enmpo hegcmnico est mais impr-eciso.
Do lado do prprio capital e articulado ao financeiro,
aparece com fora o projeto da Ateno Gerenciada, do
lado anti-hegemnico, os projetos que apostam na sade
como um bem pblico, patrimnio de toda a sociedade, e
valor de uso inestimvel, tanto individual, quanto coletivo.
CAPTULO 3OS DESAFIOS POSTOS PELA ATENOGERENCIADA PARA PENSAR UMA TRANSIOTECNOLGICA DO SETOR SADE
E STE TE X T O produto de uma investigao, j citada,sobre a Ateno Gerenciada na Amrica Latina. Aps o
final da investigao foram elaborados vrios relatrios mos-
trando os resultados obtidos. Com o apoio do Conselho
Nae io uu l de Det;(Jllvolvimell\.o Cionlfic:o (J '1.'I\(~lloI6gieo
(CNPq), pude atuar nesta investigao dos anos 1997 para
c. Como relatrio da investigao no Brasil, produzi um
material do qual fiz um resumo, apresentado ao CNPq em
1999, e que servir para a composio deste captulo.
Os trechos que retirei desse material para apresentar aqui
podem, do meu ponto de vista, expressar o que estou pro-
curando estudar neste trabalho. Alm disso, para uma an-
lise mais precisa, acresci partes de outro' texto, que apre-
1 Grande purte dessa concluso est inspirada no texto produzido por Merhy, E.E.; Iriart, C. B. & \Vuilzkill, lI. Ateno gaenc;m{a: do m;crod",;;sliu elinica it
administrativa .. , obra citada.
67
68 OS DESAFIOS POSTOS PELA ATENO GERENCIADA
sentei no 7Congresso Latino-Americano de Medicina Soci-
al, com alguns dos membros da equipe internacional aci-
ma citada, e que considera a interveno tecnolgica da
Ateno Gerenciada, no terreno da gesto do cuidado e dos
processos de trabalho, como focos de anlise.
A Ateno Gerenc~ada como analisadora da atual
transio tecnol6gica do setor sade
A investigao realizada tinha como mote a relao en-
tre os esforos de reformar os sistemas nacionais de sade
na Amrica Latina e a presena do iderio da Ateno Ge-
renciada, produzida e disseminada a partir do processo dedisputa entre o modelo mdico-hegemnico, que predomi-
nou na organizao do sistema de sade americano, neste
sculo, e o da Ateno Gerenciada capitaneada pelo capi-
tal financeiro vinculado aos seguros de sade.
Um dos fatos interessantes no desenvolvimento dessa
pesquisa foi dado pela contemporaneidadc do estudo com
a emergncia do prprio fenmeno analisado no Brasil.
Entre o incio da coleta do material (1997) e o incio da
anlise (1998) foi possvel perceber o nascimento da impor-
tncia da A. G. para o debate da reforma do sistema de
sade.Se, por um lado, isso trouxe uma situao muito especial
para o que se pretendia na investigao, explicitada pela
PARA PENSAR UMA TRANSIO TECNOLGICA 69
d ,. "1 "dcrescente presena o tema nos varros ugares on e odebate se fez presente, por outro, criou certas dificuldades
metodolgicas que senti ao ter de seguir um protocolo de
investigao estr'uturudo para um estudo comparativo en-
tre quatro pases Iatino-americanos - Brasil, Argentina, Chile
e Equador, o que ficou bem evidente no momento das an-
lises mais conjuntas que foram realizadas pela equipe da
investigao, em mbito internacional.
A apario da A. G., nos E.U.A., remonta construo
de propostas interessadas na criao de parmetros e crit-
rios que contribussem para uma deciso governamental,
diante dos planos de ao no perodo da Guerra do Vietn,tendo como idia-base um clculo sobre a "otimizao" entre
custos de aes de guerra e resultados estratgicos militares
atingidos. No correr dos anos 70, uma metodologia com
perspectivas semelhantes introduzida para a elaborao
de projetos no campo da sade, centrada no diagnstico
do altssimo custo das aes de assistncia e na sua vincula-
o ao processo particular de microdeciso clnica, que ocor-. .
na nos servios.
Toma-se a possibilidade de transferncia do processo de
deciso, sobre as aes de sade a serem realizadas nos ser-
vios, do campo das corporaes mdicas para o dos admi-
nistradores, como uma estratgia vital para atacar a rela-
o custo-benefcio do sistema. Mas este no o campo res-
trito de interveno dessas propostas, pois ela tambm se
70 OS DESAFIOS POSTOS PELA ATENO GERENCIADA
filia a um outro conjunto de estratgias que visam a reorga-
nizao dos modelos de ateno partindo da ao dos pres-
tadores privados, centrados nas polticas das instituiesseguradoras e financeiras.
J, quando se olha a partir de pases da Amrica Latina,
eS8e~'anorama sofre algumas rotaes .
.IJoje na Argentina. em nome de todo um projeto polti-
co-social- o denominado Ajuste Econmico-Social, consi-
derado necessrio para "modernizar" os pases do terceiro
mundo, tirando o peso de um aparato estatal pesado, anti-
go e ineficiente -, ganha corpo um iderio privatizante, que
opera micropoliticamente a criao de projetos nos distin-
tos espaos organizacionais, e neoliberal, que opera com a
noo d que qualquer forma de direito social conquistado privilgio que fere as regras do mercado, a "nova coquelu-
che" direcionadora do jogo entre produo de bens e ne-cessidades dos "cidados".
Nesse cenrio, o setor sade tem-se dirigido para um de-
senho insLil.ueiofluJque se or-dona pela gcr'ao da ofer-tade
uma "cesta mnima" de consumo de aes bsicas de sa-Q
de, que deve atingir' a Lodosos agrupamentos sociais, a par-
tir da qual, por um acesso pelo mercado a prestadores pri-
vados, se podem agregar novas modalidades de consumo
no campo da assistncia.
J
2 ClO,como fonte fundamental para compreender o processo argentino, a tese dedouloramento de Iriart, C. Ateno gerenciada ... , obra citada.
PARA PENSAR UMA TRANSIO TECNOLGICA 71
Os governos dos pases latino-americanos, vinculados a
essas perspectivas, tomam de emprstimo um elenco de
propostas de reorganizao da gesto dos equipamentos
organizacionais em sade, na direo de um processo pri-
vatizante, e como mecanismo de operacionalizao do que
denominam de "modcrnizao" dos servios de sade. No
outro o sentido do projeto argentino do Hospital de Auto-gesto e de algumas propostas do governo brasileiro de trans-
formao dos hospitais pblicos em Equipamentos Soci-
ais, que buscariam seus complementos fmanceiros no "mer-
cado de consumidores" individuais e, ou, coletivos, dispo-
nvel.
Mesmo que com possveis efeitos paradoxais, a Ateno
Gerenciadatem sido "olhada" com carinho pelos governos
locais e tambm por organizaes internacionais que tm
grande influncia para criar temticas nos projetos de re-
formas do setor sade. Nessa direo, a prpria Organiza-
o Pan-Americana da Sade, em 1995, abriu um espaoeditorial publicando uma bibliografia comentada sobre a
questo," que no mnimo v com bons olhos a proposta
como eficaz receita para operar projetos de reformas em
servios.Mesmo que a A. G. seja de modo freqente descrita como
uma proposta de reforma recentemente desenvolvida,4 seus
3 Paganini, J. M. Nuevas modalidades ... , obra citada.Walzkin, H. El dilema de Ia salud en EE.UU ... , obra citada.
72 OS DESAFIOS POSTOS PELA ATENO GERENCIADA
antecedentes remontam dcada de 1960, particularmen-
te nos trabalhos de Alain Enthoven, economista estaduni-
dense.' Em seus trabalhos, Enthoven desenvolve uma pro-
posta de programao, planificao e oramentao para
o Departamento de Defesa Americano, com a finalidade de
analisar os custos e benefcios de cada novo mtodo de con-
duzir a guerra.Em 1977, ofereceu administrao Carter'' um projeto
sohre um plano de sade por escolha do consumidor, base-
ado em uma competio regulada no mercado privado. Este
projeto foi construdo a partir das iniciativas de Paul
Ellwood, em torno de "uma estratgia de manuteno da
sade", e de Scott Fleming,7 na de "uma competio estru-
turada dentro do setor privado". A proposta centrava-se
em um papel fundamental, nos servios, do controle admi-
"nistrativo sobre as decises clnicas, com a pretenso de re-duzir exames complementares e tratamentos custosos; e em
uma competio, de mercado, entre grandes organizaes
prestadoras de servios ou de financiamentos para estabe-
lecer disputas por preos.
Waitzkin, n. The stral1gc carecr of 11"""1gC
74 OS DESAFIOS POSTOS PELA ATENO GERENCIADA~.
de novos funcionrios das grandes companhias de seguros
privados dos E.U.AY
Durante a campanha presidencial de Bill Clinton, ado-
tou-se a orientao da Ateno Gerenciada como compo-
nente do plano de governo para a composio de uma