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JORNADA INTERDISCIPLINAR DO PPGCOM/UFT PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE
Palmas, TO, 8 a 11 de novembro de 2016
A música tocantinense como valor simbólico e sua difícil inserção como bem de
consumo1
Paulo Roberto Albuquerque de LIMA2
Verônica Dantas MENESES3
Universidade Federal do Tocantins
Resumo
O artigo é uma primeira análise da música regional tocantinense a partir de duas
observações: a construção da identidade tocantinense e a sua inserção no mercado de bens
culturais. Partimos do pressuposto de que a música local é um entre-lugar, na concepção de
Homi Bhabha, que mobiliza novas e velhas identidades numa permanente construção do
sujeito. Também destacamos que a difusão de uma identidade tocantinense por meio da
música está ligada à sua condição de bem de consumo. Neste sentido é que são utilizados
estudos de pensadores que vão desde a indústria cultural até os mais modernos defensores
do inexorável hibridismo, que defendem a inexistência de culturas puras. A música
tocantinense e seus produtores terão de aprender sobre o tempo e o lugar em que estão
inseridos e definitivamente reinventarem-se, sob a pena de não conseguirem sequer
apresentarem-se como possibilidade tanto no presente, quanto no futuro.
Palavras-chave: Música; mediação cultural; identidades; Tocantins.
Abstract
The article is a first analysis of the regional tocantinense music from two observations: the
construction of Tocantins identity and their inclusion in the cultural goods market. I assume
that local music is a between-place in the design of Homi Bhabha, mobilizing new and old
identities in a permanent construction of the subject. We also highlight that the spread of a
tocantinense identity through music is linked to its consumer good condition. In this sense
it is that they are used studies of thinkers ranging from the cultural industry to the modern
advocates of relentless hybridity, who defend the lack of pure cultures. The tocantinense
music and its producers will have to learn about the time and place in which they live and
definitely re-invent, under penalty of failing to even present themselves as a possibility
both at present and in the future.
Keywords: Music; cultural mediation; identities; Tocantins.
1 Trabalho apresentado não GT 3 – Comunicação, cultura e território da I Jornada Interdisciplinar do PPGCom, 2016. 2 Mestrando em Comunicação e Sociedade/UFT. E-mail: pauloalbuka@gmail.com 3 Docente dos cursos de Jornalismo e Mestrado em Comunicação e Sociedade da UFT. E-mail: veronica@uft.edu.br
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Resumen
Artículo un primer análisis de la música regional Tocantinense a partir de dos
observaciones: la construcción de la identidad Tocantins y su inclusión en el mercado de
bienes culturales. Asumo que la música local es un lugar de encuentro entre en el diseño de
Bhabha, la movilización de nuevas y viejas identidades en una construcción permanente del
sujeto. También destacamos que la difusión de una identidad Tocantinense través de la
música está ligada a su consumo buenas condiciones. En este sentido, es que están los
estudios de pensadores que van desde la industria cultural a los defensores modernos de la
hibridación implacable, que defienden la falta de cultivos puros utilizados. La música
Tocantinense y sus productores tendrán que aprender acerca de la hora y el lugar en el que
viven y definitivamente re-inventan, bajo pena de no poder siquiera presentarse a sí mismos
como una posibilidad, tanto en la actualidad como en el futuro.
Palabras claves: La música. Mediación cultural. Identidades. Tocantins.
Introdução
A sociedade pós-moderna experimenta uma quantidade considerável de mudanças
nos conceitos e práticas sociológicas, culturais e comunicacionais, típico de períodos
revolucionários. A tecnologia utilizada nas comunicações sociais e interpessoais funciona
como motor de alta propulsão que ignora a angústia dos que ainda estão presos a velhas
práticas e, sem qualquer piedade, amplia a agonia destes com tantas alterações de
comportamento, entendimento de mundo, gostos, credos, fetiches etc.
É certo que o “progresso não se processa uniformemente na sociedade”, como ensina
o sociólogo e folclorista Florestan Fernandes4 (2003), mas nem por isso deve-se ignorar a
onda cibernética que cresce, permitindo que ícones e conceitos renovados se apresentem
aos mais escondidos rincões por meio de satélites ou antenas de telefonia móvel.
4 O Folclore em questão, São Paulo, 2003, p. 40. Para Florestan, camadas da população não participam do
desenvolvimento desta mesma sociedade, e por isso não refletem integralmente a evolução cultural da sociedade, muito
embora, em alguns casos a tudo acompanhem com o evidente retardamento.
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A revolução comunicacional, que à esmagadora maioria liberta para um entrevero de
trocas de mensagens sem fim sem quaisquer barreiras geográficas e bem poucas barreiras
econômicas, quase na mesma proporção a encarcera em redomas simbólicas e conceituais.
E isto não acontece por obra do acaso e nem deve crédito apenas à tecnologia aprimorada
nas últimas décadas. O todo compõe um processo previsível e compreensível de
dominação, tão caro ao capitalismo.
Este artigo identifica algumas das ideias correntes difundidas por pensadores
importantes sobre os temas em questão, exceto os aspectos tecnológicos, irrelevantes para
os fins deste estudo. O objetivo é aproveitar o estudo que faremos desses conceitos para
tentar entender os processos de produção e de divulgação da denominada música típica do
Tocantins. A meta é vislumbrar a pertinência da crítica sobre a dominação midiática em
detrimento dos sentidos e sentimentos paroquiais. Outro recorte que se faz é uma
abordagem sucinta sobre o estilo do compositor Braguinha Barroso.
Não dá para ignorar a lógica imposta e atualmente predominante no meio fonográfico.
Mesmo sem usufruir por ora dos espaços ideais na mídia para atingir a publicização
almejada, as produções dos compositores contemporâneos locais, inclusive de Braguinha
Barroso, estão todas elas já enquadradas às estruturas ditadas pela indústria cultural.
As obras tocantinenses em geral têm o formato padrão, que em tudo se assemelha ao
tipo definido pela indústria. Enredos, arranjos, clichês, tempo de execução, as partes
componentes, tais como: solo introdutório, verso, solo intermediário, verso novamente e
encerramento, tudo está devidamente no lugar, ou seja, onde está destinado a ficar, ou,
onde nos ‘acostumamos a ouvir’. Se, no dizer de Adorno e Horkheimer (1990), “o mundo
inteiro passou pelo crivo da indústria cultural” nada acontece fora do eixo que comanda e
controla o que as pessoas irão ver, ouvir, sentir ou falar. Mesmo o que se apresenta como
‘novo’ no mercado nada mais é do que recriação, um ajuste ou adaptação que se faz para
que o esquematismo da produção não fique enfadonho a ponto de afastar a ‘clientela’.
Adorno e Horkheimer (1990) escreveram há mais de cinco décadas sobre a
permanente antecipação da indústria cultural, que ‘adivinha’ os desejos do homem. Este
caráter preventivo se dá não pela mera necessidade de impor-se à criação com regras
absolutas, mas sim, para garantir a manutenção do ciclo de consumo patrocinado pela
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publicidade que é desencadeada a partir de cada ‘inovação’ destinada ao mercado
consumidor.
É certo que existem movimentos, ideias, atitudes que, na intenção de expressar
significados locais, insurgem-se de um jeito marginal. Estes também buscam espaços
privilegiados na mídia. José Marques de Melo aponta em seu livro Mídia e Cultura Popular
(2008) que as culturas regionais não estão moribundas, e, sim, tentando, com toda a energia
possível, entrar no processo globalizado. “(...) é reflexo da luta das culturas periféricas no
sentido de ocupar espaços apropriados no mosaico multicultural propiciado pelas novas
tecnologias de difusão simbólica” (MELO, 2008).
Mas quais são as vertentes e a música do Tocantins? Onde estão concentradas? Quem
as produz? Elas estão na mídia? Poderiam colaborar na formação identitária do
tocantinense?
Este é nosso foco.
Por isso, e para atender aos objetivos deste estudo, nos propomos a recolher e avaliar
conceitos de identidade, nação e indústria cultural. Nosso trabalho também precisa
reconhecer os principais estágios da formação histórica do Tocantins e as características
culturais primitivas.
O Tocantins é a mais jovem unidade administrativa da federação brasileira, mas com
um histórico de povoamento que o remete ao princípio do Brasil-Colônia. Como vértice
para este artigo, trazemos um tantinho deste passado valendo-nos de reconhecidos
apontamentos utilizados na historiografia oficial que chega às escolas e determina a
formação das crianças e adolescentes.
Cultura como lugar híbrido
O Estado do Tocantins, como se sabe, é novo, mas o povoamento da região tem data
bem antiga. Por isso, para entender a composição da sociedade em especial a mais antiga, é
necessário perscrutar no tempo. Esta é, aliás, a ferramenta disponível para tentar
compreender os fenômenos sociológicos e, a partir daí estabelecer sintonia com os fatos e
tendências atuais e futuras do povo que habita o Estado. O viés histórico é o canal
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adequado a ser utilizado pelos interessados em descobrir a identidade da ‘nação’
tocantinense; ou, ao menos, para tentar responder se ela de fato existe.
Segundo pesquisas relatadas em livros didáticos, e aqui cito um dos mais atuais, de
Liz Andréia Dalfré e outros (2013), utilizado na formação dos estudantes pré-adolescentes
do Estado, os silvícolas; os invasores franceses que vieram do Maranhão; os paulistas que
rumaram para ‘dentro’ do Brasil em busca de ouro; a mão de obra negra; os povoamentos
que aconteceram a partir do século XIX entrando no século XX fizeram nascer
comunidades nas duas margens do rio Tocantins.
Em 1958 foram iniciadas as obras da rodovia Belém-Brasília e este é o marco da
profusão da ocupação, com Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul ‘cedendo’ boa
parte de seus filhos para essa área. Os frequentes deslocamentos populacionais deram cara
ao ‘povo’ norte goiano, hoje, tocantinense. Apesar da miscigenação cultural típica de
lugares que recebem influências variadas e da compreensível dificuldade para identificar
laços culturais, o entendimento aqui é de que há uma ‘nação’ nesta região do Brasil. E para
sua melhor identificação, os pioneiros não podem ser ignorados.
As várias ‘nações’ brasileiras se fazem presentes nos vários brasis. Desde o início de
seu povoamento o Tocantins, que completa 28 anos em 2016, é autenticado por
manifestações culturais que começaram com os índios passando pelos demais
agrupamentos humanos que continuam a chegar. Cada coletivo destes ajustou seus tijolos
na construção da cultura tocantinense, ainda em curso. É neste ajuntamento, vivências e
culturas diversas que respira com a ajuda de aparelhos um determinado jeito primitivo, um
misto de sincretismo religioso e culturas antigas simbolizadas por dança e, principalmente
por canto e música.
Assim, no alvorecer do século XXI e mesmo com os avanços tecnológicos que
transformaram o cidadão em um ativo emissor de conteúdos, permanecem em lados
opostos os conceitos (e práticas) da indústria cultural (desacreditados por inúmeros
teóricos, mas ainda causando efeitos); e os símbolos/valores culturais regionais que, se não
encontram eco nos veículos de comunicação de massa não podem, por isso, usufruir da
projeção que o mercado reconhece apenas quando chancelado pelos canais de comunicação
tradicionais.
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DOS ANJOS (2015) traz um importante estudo sobre identidade e cultura, com o
foco em elementos naturais que foram utilizados por governantes na tentativa de impor
uma marca, colocar luz sobre um símbolo que fosse associado ao Estado do Tocantins.
Citando Bhabha, dos Anjos (2015) refere-se aos processos identitários em contextos pós-
coloniais como “transpassados por conjunturas socioeconômica e históricas, as quais
‘opõem’ o ‘eu’ (nativo) em relação ao ‘outro’ (colonizador/estrangeiro)”. É neste espaço de
disputas que residem os principais questionamentos sobre preservação do ‘eu’ nativo ante o
seu mais cruel e dominador oponente e sobre o papel dos veículos de comunicação.
Thompson (2002 p. 209) relacionou com competência os temas ao citar a ação de
legisladores no esforço de regular a indústria da mídia, dando assim oportunidade para o
desenvolvimento de “novos centros de poder simbólico fora da esfera de controle dos
conglomerados”. Se as identidades regionais irão se aproveitar de mecanismos como a lei
para emergir por meio dos veículos de comunicação de massa ainda é cedo para cravar
como sendo absolutamente verdade. Assim como também não se deve ignorar nos dias de
hoje que (para o bem e para o mal) o receptor não é (e talvez nunca tenha sido) o ser
passivo que a tudo absorve, segundo as previsões pessimistas dos pensadores
frankfurtianos.
O certo é que as identidades receberam a atenção do legislador, e isto novamente
lembra Thompson (2002. p. 209), que pronuncia em seu “pluralismo regulado” a existência
da mídia sob a ótica da liberdade vigiada. Forte exemplo vem da própria Constituição
Brasileira, denominada “Cidadã”. Ela destinou um capítulo especial à Comunicação Social
e determinou que no futuro uma lei complementar deve (ria) definir em letras claras quanto
(em percentual) da programação de emissoras locais seria ocupada com a reprodução de
produtos culturais que representem a identidade regional. No caso brasileiro, o desânimo
momentâneo se dá porque até agora, quase 28 anos depois, a norma ainda carece de
regulamentação.
Parte-se do princípio que é necessário o espaço que garanta sobrevida às coisas
regionais, e é sob este prisma e à luz das possibilidades da lei que se pensa no rádio como o
canal mais apropriado para a tarefa. As diversidades não se estabelecem a não ser sob a
proteção de quem lhes deve isto: a sociedade organizada em instituições, os produtores
culturais e os canais de comunicação.
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Castells (2006) eficientemente ensina que a mídia é a extensão de nossa cultura, e que
nossa cultura se propaga melhor por intermédio dos conteúdos que são veiculados nesta
mídia. Isto se relaciona com a preservação da cultura regional, pois o que não estiver na
mídia ficará restrito às redes interpessoais, sem qualquer poder e ainda com a possibilidade
de esvair-se enquanto identidade, sendo suplantado pelo ideário das culturas centrais.
Um dos aspectos mais interessantes quando se analisa a força do global sobre o
regional é sem dúvida o risco que aquele representa para a extinção deste, embora não se
deva ignorar a obstinação de algumas manifestações descobertas nos quintais do mundo,
que passam a integrar as altas rodas de consumo, viabilizando-se como produto e como
mensagem. Importante salientar aqui a positividade do conceito de hibridismo cultural,
defendido por Stuart Hall, que é um dos portentosos autores a dar crédito às fusões que
acontecem entre diferentes tradições culturais. “São uma poderosa fonte criativa,
produzindo novas formas de cultura, mais apropriadas à modernidade tardia que às velhas e
contestadas identidades do passado” (HALL, 1999, p. 91).
O hibridismo produz, sim, efeitos positivos quando conecta agentes produtores locais
às manifestações de outras localidades, assimilando conceitos e até se apropriando de
passagens e novos paradigmas oportunizando o vai-e-vem de culturas, abrindo ou
fortalecendo mercados importantes.
Temos, no mesmo Tocantins, alheio à música, que é o objeto do nosso estudo, o caso
recente do capim dourado. Há neste produto genuinamente local e nos consequentes
artefatos (chapéus, bolsas, utensílios domésticos e adornos femininos) uma sintonia com o
que é aceito pela indústria cultural. Traz, também, fundamentos da hibridização, haja vista
que as peças são moldadas à semelhança de outras que já foram inculcadas no consumo
mundial. Tanto é verdade que Dona Miúda5 e sua gente ganharam o Brasil e o mundo com
suas peças quase sem a estranheza dos mercados.
A tudo explica a engrenagem montada ao jeito iluminista e aperfeiçoada pelo sistema
que a convalida. Adorno e Horkheimer abordam este assunto muito bem quando
estabelecem que os chefes executivos não produzem ou admitem nada que não se assemelhe ao
que já está sendo produzido. Há leis para este movimento, e elas estão em ‘tábuas’.
5 Guilhermina Ribeiro da Silva, dona Miúda, fundadora da Associação do Capim Dourado no Tocantins e líder da
Comunidade Mumbuca, no Jalapão. Falecida em 2010, em Palmas.
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O capim dourado, pois, sempre foi assemelhado às “tábuas de lei” citadas pelos
autores, faltava-lhe a descoberta pelos produtores de bens culturais globais. E não só por
isso. Os produtos e produtores culturais talentosos não encontram qualquer dificuldade para
se adaptar às leis do mercado e este é o viés a ser perseguido: apurar a produção e
apresentá-la a quem possa ou tenha os canais para estabelecer o elo com o consumo de
massa.
Aqui não nos cabe avaliar os reveses que os puristas alardeiam sobre os ‘prejuízos’
que a massificação possa causar à arte e à aura de pureza dos trabalhos ou dos produtos.
Esta pureza já estaria subjugada à força dos novos tempos. Há, ao contrário disso, uma
visão mais moderna e inovadora que reconhece as diferenças e as subjetividades e que
propõe uma impulsão, uma busca por interação, uma reelaboração das estratégias para
justamente ocupar lugar. Bhabha (2007) adota o termo “entre-lugares” como os espaços
reais e virtuais que estão disponíveis aos que querem estabelecer com colaboração e
contestação, é claro, uma nova sociedade.
Há, no dizer de Bhabha (2007), uma “tenebrosa sensação de sobrevivência” em
todos nós. Neste sentido, e principalmente neste início de século, tudo está para além do
‘pós’ (modernismo, colonialismo, feminismo) que forçosamente nos engaja e nos faz andar
nestas fronteiras que não delimitam tempo ou espaço. O além, bem entendido, não significa
necessariamente uma novidade absurda, e muito menos uma pedra sobre o passado cultural.
O além mora na instabilidade, fruto de um “movimento exploratório incessante” que não
permite solidez e nem normas duras. O ‘entre-lugar’ fornece o ambiente, ou melhor, ele
próprio é o lugar para subjetividades que conduzem a novas identidades para os que
perderam ou nunca estiveram no domínio.
É na emergência dos interstícios – a sobreposição e o deslocamento
dos domínios da diferença – que as experiências intersubjetivas e
coletivas de nação, o interesse comunitário ou o valor são
negociados. De que modo que se formam sujeitos nos ‘entre-
lugares’ nos excedentes da soma das ‘partes’ da diferença? De que
modo chegam a ser formuladas estratégias de representação ou
aquisição de poder no interior das pretensões concorrentes de
comunidades em que, apesar de histórias comuns de privação e
discriminação, o intercâmbio de valores, significados e prioridades
pode nem sempre ser colaborativo e dialógico, podendo ser
profundamente antagônico, conflituoso e até incomensurável?
(BHABHA, 2007, p. 20).
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É no ‘além’, dito pelo referido autor, que está o devir; e é preciso negociar com este
‘lugar’ e estar pronto para o embate em todos os campos e níveis. O empoderamento, para
usar um termo atual, depende da convicção do que se tem em mãos, mas, além disto, de
estar com disposição para transigir e intercambiar valores. Os valores culturais regionais
podem acusar desvantagem mercadológica no presente, se consideramos o número de
pessoas que vieram para cá a partir da fundação do estado e o lugar ocupado por estas
pessoas nos postos de irradiação cultural. Ainda assim, é preciso reinscrever-se, renovar
leituras, atentar para os fenômenos de hibridização, mesmo que isso implique no abandono
de determinados postulados tradicionais, ou que encete batalhas ferozes na busca por
espaços no mercado local. É preciso que destes embates surja uma nação, a nação
tocantinense.
A soberania política do Tocantins e a imediata definição do espaço geográfico, que
têm como marco o ano de 1988, não são suficientes para assentar a ideia de nação. É
preciso incluir aí as pessoas com suas histórias individuais e coletivas.
Em Comunidades Imaginadas, Benedict Anderson (2008) considera que nação é
uma comunidade com limites, é bem verdade, mas com a indispensável soberania. Ele não
vê soberania apenas como um definidor político-administrativo, mas já como pressuposto
de identidade comum, que tem raízes na própria noção que se tem de comunidade. Quanto
aos limites, parte deles está na impossibilidade real de contato entre todos os que estão sob
o mesmo manto identitário. Mas as pessoas sabem das redes que os ligam. E Anderson vai
mais longe ao cravar que não se concebe nação sem narrativa de identidade. As pessoas, a
gente sabe, passam, mas a formação cultural da nação é construída pelo acúmulo das
histórias e vivências que só podem se perpetrar pelo meio que Anderson denomina “recuos
no tempo”. História, portanto.
O problema está no fato de não sabermos até quando o Tocantins terá forças para
manter-se sem a discussão da formação de ‘sua nação’; se esta nação consegue firmar-se
sem o apoio dos veículos de comunicação de massa; ou ainda, se a música tocantinense
pode contribuir com seus símbolos para firmar a identidade local.
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A música e a identidade como produto cultural do Tocantins
A música e o ser humano são dependentes; este daquela e vice versa. A construção e
a execução da música dependem do homem, que se utiliza de mil meios e instrumentos
para externá-la. E o homem, sob determinadas situações ou pressões, só consegue dizer-se
com a ajuda da música. O fascínio desta relação e a fortaleza do elo são, por vezes,
inexplicáveis ou incompreensíveis. Mas ainda assim podem ser comprovados. Meneses
(2015) analisou a programação da televisão regional e constatou que a música, em suas
mais diversas formas de apresentação nos programas locais, constituiu-se uma importante
mediadora cultural, portadora de símbolos que reforçam laços sociais regionais e locais.
Para Adorno (1991), a relação do homem com a música é de fetiche. “Se
perguntarmos a alguém se ‘gosta’ de uma música de sucesso lançada no mercado, não
conseguiremos furtar-nos a suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem ao
estado real”. A crítica deste, que é um dos mais influentes críticos da indústria cultural,
ecoa nos dias de hoje se considerarmos situações corriqueiras em que o cidadão
bombardeado pela publicidade que se faz de determinados gêneros por vezes ‘se vê’
cantarolando ou assoviando alguns trechos ou notas de ‘obras’, que em sã consciência não
lhe admite o gosto. É a inconsciência instada pela publicidade atuando em alto grau de
traição. Para Adorno (1991), a gênese do capital e a ascensão da burguesia de certa forma
explicam a proliferação deste fetiche que vive pela banalidade “do que é da moda e
melodioso”.
A música produzida no Tocantins em quase nada difere das de outros locais do país,
pois traz marcas das várias nações de um Brasil plural. Do Amazonas ao Rio Grande do Sul
é fácil observar ritmos que se assemelham ou gêneros híbridos que vão se transmutando em
obras que ganham ares de regionalidade devido a instrumentos específicos ou sotaques
locais. O certo é que há raízes em comum na música brasileira e, mesmo correndo o
inevitável pecado do reducionismo, deduz-se que elas aparecem nos batuques dos negros,
na melodiosidade dos cantos indígenas fortemente marcados pelos compassos binários, e
no universo europeu, que por si já traz outro universo maior considerando a profunda
história de aculturação dos nossos colonizadores com povos de origem oriental.
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Apesar das reconhecidas características comuns há variantes na música regional
brasileira que de alguma forma registram-se como peculiares à localidade. No Tocantins,
algumas destas manifestações, bem poucas, foram devidamente registradas em um material
recolhido e lançado em 2002 pelo Sistema Fieto. A obra Cantos do Tocantins - O som, o
ritmo e o povo é um registro fono, foto e videográfico de manifestações culturais variadas
com destaque para as folclóricas e religiosas.
Esta foi a primeira e única vez que se fez um registro desta magnitude. Ali, o
organizador, Genésio Tocantins, teve o cuidado de recolher manifestações espontâneas de
grupos sociais e culturais importantes para a identidade tocantinense: negros e indígenas.
Mas, atento ao mercado, Genésio selecionou obras contemporâneas para intercalar com o
que recolheu in natura. A intenção clara do projeto era reconhecer o elo entre o folclore,
não habituado a frequentar o mundo da cultura sistematizada, e a produção estandardizada,
estabelecida enquanto padrão apropriado ao consumo. Registre-se que a divulgação, pouca,
desta coletânea se deu por meio das chamadas músicas contemporâneas. E nem todas foram
sequer tocadas nas emissoras de rádio em funcionamento no Estado.
Um artigo do historiador Everton Francisco da Silva, conhecido musicalmente
como Everton dos Andes, e que foi publicado no livro ‘Entre o costume e a lei: superando o
silêncio e descortinando a história afro-brasileira, organizado por Maria Aparecida de
Oliveira Lopes (2011), traz uma interessante pesquisa sobre algumas das vertentes da
música tocantina. O historiador se debruça sobre manifestações da Sussa e do Tambor,
como marcas da identidade regional.
SILVA (2011) identifica a manifestação dos objetos de seu estudo nos festejos
religiosos cristãos e folias, mas reconhece que nestes ambientes também são fermentados
outros gêneros comuns ao Brasil, tais como as congadas, catiras, taieiras, curraleiras entre
outras. É um misto de canto e dança ao som de tambores, violas e violões. Ele mesmo,
Everton, tem vários recortes destas manifestações em músicas gravadas em seus discos
aproveitando-se de trechos dos cantos e melodias recolhidos.
Citado na pesquisa de SILVA (2011), Braguinha Barroso é considerado por quase a
unanimidade dos conhecedores da música local como o mais genuíno pesquisador da
música tocantinense. Em seu artigo, SILVA destaca Riacho, uma das canções de Barroso.
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Essa música traz os primeiros acordes da ‘catira urbana’ produzida
no Tocantins (...). Essa música reúne aspectos de uma transição que
se anunciava entre a temática da natureza e os temas da cultura
popular, que marcariam a obra de vários artistas. A música é
importante para a análise porque incorpora duplamente as duas
perspectivas” (SILVA, 2011).
Everton se refere à abordagem poética: “Riacho, água que desce da serra / beleza
que encanta e inspira a canção / Pra falar do bem-ti-vi, trago uma pontinha aqui / de
saudade de você, menina / Talvez você não sabe / mas toda vez que te vejo o desejo me
invade / Você é meu querer”; ao ritmo empregado pelo compositor; e à forte inclusão
percussiva de instrumentos que completam com leveza o andamento ditado pelo swing
tocado ao violão em compasso quaternário, que destaca a primeira nota como a mais forte
da divisão.
Em outra obra essencial de Braguinha vamos encontrar um trabalho mais recente,
Estrela de Muquém, com as mesmas características da musicalidade tocantinense, que se
inspira nas pessoas e manifestações populares e traz na melodia e na divisão dos tempos a
semelhança com Riacho.
“Você não sabe de onde eu venho
Venho do amor que eu tenho
do canto do coração.
Venho do giro das ‘congada’
Do calor da minha amada
Valorizo o amor que tenho
Você já sabe de onde eu venho
Venho do sonho que eu tenho
Do coração do Brasil
Sou dos congos das taieiras
Das ‘fulia’, das benzedeiras
De uma beirada de rio
Você já sabe de onde eu venho
Sou dos gerais, sou dos engenhos
Sou a Estrela de Muquém
Eu sou a sombra das paineiras
Eu sou do sol, eu sou da feira
Sou de quem me querer bem”
Braguinha Barroso e outros compositores que pesquisam os costumes e a gente do
lugar não encontram espaço nos veículos de comunicação de massa e, em consequência
disso, não conseguem chegar ao grande público que poderia, ao se apropriar das
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abordagens oferecidas, identificar-se consigo e com o lugar, adquirindo assim as condições
necessárias para melhor negociar as interações culturais a que está exposto todos os dias.
Adorno (1990), crítico mordaz da Indústria Cultural é mais um que ensina que a “a
repetição torna as determinações familiares”. Não pode haver assimilação suficiente sem a
aliança com a publicidade. É o que se deduz.
Em seu livro Negócios no ritmo da música, o executivo mais famoso da MTV e
responsável pela expansão dos negócios do conglomerado mundo afora por mais de 20
anos, Bill (ROEDY, 2011), explica como revolucionou a indústria cultural a partir de suas
estratégias de negócio. “Eu tinha de encontrar uma maneira de levar nosso produto até o
mercado – distribuição, distribuição, distribuição”. (p. 41). E mais: “nem mesmo o melhor
produto do mundo, se estiver no fundo da carroceria do caminhão, terá valor”. (p. 52).
Considerações finais
A música se evidencia na região como um símbolo da construção da identidade
local desde antes da criação do Estado. Esta música é a fixação simbólica de um espaço que
desde antes de se conhecer como nação já carregava o estigma de lugar com algumas
importantes especificidades culturais.
Não há como desconsiderar que o espaço geopolítico vem sofrendo profundas
alterações e influenciando o entendimento que se tem das comunidades humanas. Bhabha
(2007) se pergunta sobre esta realidade que altera nosso entendimento sobre o que seria
‘local ou transnacional’, dando uma ideia da difícil missão que se tem para indicar o que é a
soberania cultural. Isto só aumenta a responsabilidade da música tocantinense em sua a
missão de potencializar a construção de laços de pertencimento, de ser este entre-lugar em
que uma nova identidade surge a partir da presença de elementos de uma cultura anterior e
de sua inerente substituição.
Resta saber como esta produção regionalista pode se envolver com a indústria e se
inserir nos contextos midiáticos que poderão torná-la mais visível, reconhecida e ouvida,
criando contextos e públicos e garantindo audição permanente.
É preciso intervir no presente. E isto significa “residir no além”, como vaticina
Bhabha (2007). Mas além não está no futuro isoladamente e nem no passado puro e
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simples. É preciso compreender e agir na contemporaneidade cultural. No caso da música
tocantinense, é necessário encontrar o novo sem estar preso às reminiscências. Uma frase
feliz de Bhabha diz: “O passado presente torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia,
de viver”.
Não é utopia pensar que um novo produto musical tocantinense possa estar
definitivamente no mercado. Mas para que isso aconteça não dá para prescindir de uma
atitude orquestrada, ou, planejada, que respeite a lógica desse mercado e incentive os que já
dominam o conhecimento dos ritmos, história e musicalidade local. Mais do isso: que se
criem políticas públicas que invistam na descoberta de novos talentos com pré-disposição e
jeito para continuar a obra.
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