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8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler
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Pequena Antologia .
para se ler Jorge Luis Borges
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O homem sempre se
percebe no fim dos tempos.
Jorge Luis Borges
No criei personagens.
Tudo o que escrevo
autobiogrfico. Porm, no
expresso minhas emoes
diretamente, mas por meio de
fbulas e smbolos. Nunca fiz
confisses. Mas cada pgina
que escrevi teve origem em
minha emoo
Jorge Lus Borges
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A Rosa de Paracelso ................................................................................. 5
A Aproximao a Al-Mu' tasim ..............................................................10
A Escrita do Deus ................................................................................... 17
Ulrica ......................................................................................................22
O livro de areia .......................................................................................27
A Casa de Asterion ..................................................................................33
As coisas .................................................................................................. 36
Funes, o Memorioso ...............................................................................37
A biblioteca de Babel .............................................................................. 45
O Outro ...................................................................................................54
Do rigor na cincia ................................................................................. 63
O forasteiro .............................................................................................64
A loteria da Babilnia .............................................................................66
Um telogo na morte ..............................................................................73
Sereias ..................................................................................................... 75
Arte potica ............................................................................................. 77
Emma Zunz .............................................................................................79
O Livro ....................................................................................................85
Fragmentos de um Evangelho Apcrifo ................................................95
Poema dos dons ...................................................................................... 98
O Guardio dos Livros .........................................................................100
A seduo do tigre .................................................................................103
A prova .................................................................................................. 104
Hino ...................................................................................................... 105
O Nosso .................................................................................................107
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Elogio da sombra .................................................................................. 108
Aqui hoje...............................................................................................111
O labirinto .............................................................................................112
Uma orao ...........................................................................................113
Mistrios dolorosos e gozosos de Dom Jorge ......................................115
VIDA E OBRA ......................................................................................120
Crtica ....................................................................................................123
Frases ...................................................................................................125
Bibliografia ........................................................................................... 128
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A Rosa de Paracelso
Jorge Luis Borges
De Quincey: Writings, XIII, 345
Em sua oficina, que abarcava os dois cmodos do poro,
Paracelso pediu a seu Deus, a seu indeterminado Deus, a qualquer
Deus, que lhe enviasse um discpulo.
Entardecia. O escasso fogo da lareira arrojava sombras
irregulares. Levantar-se para acender a lmpada de ferro era demasiado
trabalho. Paracelso, distrado pela fadiga, esqueceu-se de sua prece. A
noite havia apagado os empoeirados alambiques e o atanor quando
bateram porta. O homem, sonolento, levantou-se, subiu a breve
escada de caracol e abriu uma das portadas. Entrou um desconhecido.
Tambm estava muito cansado. Paracelso lhe indicou um banco; o
outro sentou-se e esperou. Durante um tempo no trocaram uma
palavra.
O mestre foi o primeiro que falou:
Lembro-me de caras do Ocidente e de caras do Oriente
falou, no sem certa pompa No me lembro da tua. Quem s e quedesejas de mim?
O meu nome no importa replicou o outro Trs dias e trs
noites tenho caminhado para entrar em tua casa. Quero ser teu
discpulo. Trago-te todos os meus bens e tirou um taleigo que
colocou sobre a mesa. As moedas eram muitas e de ouro.
F-lo com a mo direita. Paracelso lhe havia dado as costas para
acender a lmpada. Quando se voltou, viu que na mo esquerda ele
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segurava uma rosa, que o inquietou. Recostou-se, juntou as pontas dos
dedos e falou:
Acreditas que sou capaz de elaborar a pedra que transforma
todos os elementos em ouro e ofereces-me ouro. No ouro o queprocuro, e se o ouro te importa, no sers meu discpulo.
O ouro no me importa respondeu o outro. Essas moedas
no so mais do que uma parte da minha vontade de trabalho. Quero
que me ensines a Arte; quero percorrer a teu lado o caminho que
conduz Pedra.
Paracelso falou devagar:
O caminho a Pedra. O ponto de partida a Pedra. Se no
entendes estas palavras, nada entendes ainda. Cada passo que deres
a meta.
O outro o olhou com receio. Falou com voz diferente:
Mas, h uma meta?
Paracelso riu-se.
Os meus difamadores, que no so menos numerosos que
estpidos, dizem que no, e me chamam de impostor. No lhes dou
razo, mas no impossvel que seja uma iluso. Sei que h um
Caminho.
Estou pronto a percorr-lo contigo, ainda que devamos
caminhar muitos anos. Deixa-me cruzar o deserto. Deixa-me divisar, ao
menos de longe, a terra prometida, ainda que os astros no me deixem
pis-la. Mas quero uma prova antes de empreender o caminho.
Quando? falou com inquietude Paracelso.
Agora mesmo respondeu com brusca deciso o discpulo.
Haviam comeado a conversa em latim; agora falavam em alemo.
O garoto elevou no ar a rosa.
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Uma palavra? perguntou com estranheza o discpulo O
atanor est apagado e esto cheios de p os alambiques. O que faras
para que ressurgissem?
Paracelso olhou-o com tristeza.
O atanor est apagado reiterou e esto cheios de p os
alambiques. Nesta etapa de minha longa jornada uso outros
instrumentos.
No me atrevo a perguntar quais so falou o moo, deixando
Paracelso na dvida se foi com astcia ou com humildade. E continuou
Falastes do que usou a divindade para criar os cus e a terra.
Falastes do invisvel Paraso em que estamos e que o pecado original
nos oculta. Falastes da Palavra que nos ensina a cincia da Cabala.
Peo-te, agora, a merc de mostrar-me o desaparecimento e o
aparecimento da rosa. No me importa que operes com alambiques ou
com o Verbo.
Paracelso refletiu. Depois disse:
Se eu o fizesse, diras que se trata de uma aparncia impostapela magia dos teus olhos. O prodgio no te daria a F que buscas:
Deixa, pois, a Rosa.
O jovem o olhou, sempre receoso. O mestre elevou a voz e lhe
disse:
Alm disso, quem s tu para entrar na casa de um mestre e
exigir um prodgio? Que fizeste para merecer semelhante dom?
O outro replicou, temeroso:
J que nada tenho feito, peo-te, em nome dos muitos anos
que estudarei tua sombra, que me deixes ver a cinza, e depois a Rosa.
No te pedirei mais nada. Acreditarei no testemunho dos meus olhos.
Tomou com brusquido a rosa encarnada que Paracelso havia
deixado sobre a cadeira e a atirou s chamas. A cor se perdeu e s ficou
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um pouco de cinza. Durante um instante infinito, esperou as palavras e
o milagre.
Paracelso no havia se alterado. Falou com curiosa clareza:
Todos os mdicos e todos os boticrios de Basilia afirmam que
sou um farsante. Talvez eles estejam certos. A est a cinza que foi a
rosa e que no o ser.
O jovem sentiu vergonha. Paracelso era um charlato ou um mero
visionrio e ele, um intruso que havia franqueado a sua porta e o
obrigava agora a confessar que as suas famosas artes mgicas eram
vs.
Ajoelhou-se, e falou:
Tenho agido de maneira imperdovel. Tem-me faltado a F que
exiges dos crentes. Deixa-me continuar a ver as cinzas. Voltarei quando
for mais forte e serei teu discpulo e no final do Caminho, verei a Rosa.
Falava com genuna paixo, mas essa paixo era a piedade que
lhe inspirava o velho mestre, to venerado, to agredido, to insigne e
portanto to oco. Quem era ele, Johannes Grisebach, para descobrir
com mo sacrlega que detrs da mscara no havia ningum? Deixar-
lhe as moedas de ouro seria esmola. Retomou-as ao sair.
Paracelso acompanhou-o at ao p da escada e disse-lhe que em
sua casa seria sempre bem-vindo. Ambos sabiam que no voltariam a
ver-se. Paracelso ficou s. Antes de apagar a lmpada e de se recostar
na velha cadeira de braos, derramou o tnue punhado de cinza na mo
cncava e pronunciou uma palavra em voz baixa. A Rosa ressurgiu.
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A Aproximao a Al-Mu' tasim
Jorge Luis Borges
traduo de Carlos Nejar
Philip Guedalla escreve que o romance The approach to Al-
Mutasim, do advogado Mir Bahadur Ali, de Bombaim, " uma
combinao um tanto incmoda (a rather uncomfortable combination)
desses poemas alegricos do Isl que raras vezes deixam de interessar
seu tradutor, e daqueles romances policiais que inevitavelmente
superam John H. Watson e aperfeioam o horror da vida humana nas
mais irrepreensveis penses de Brighton". Antes, o Sr. Cecil Roberts
denunciara no livro de Bahadur "a dplice, inverossmel tutela de
Wilkie Collins e do ilustre persa do sculo XII, Ferid Eddin Attar"
pacfica observao que Guedalla repete sem novidade, mas num
dialeto colrico. Essencialmente, ambos os escritores concordam: os
dois indicam o mecanismo policial da obra, e seu undercurrentmstico.
Essa hibridao pode levar-nos a imaginar certa semelhana com
Chesterton; logo comprovaremos que no h tal coisa.
A editio princeps da Aproximao a Almotsim apareceu em
Bombaim, em fins de 1932. O papel era quase papel-jornal; a capa
anunciava ao comprador que se tratava do primeiro romance policial
escrito por um nativo de Bombay City. Em poucos meses, o pblico
esgotou quatro edies de mil exemplares cada uma. A Bombay
Quaterly Review, a Bombay Gazette, a Calcutta Review, a Hindustan
Review (de Alahabad) e o Calcutta Englishman dispensaram-lhe seu
ditirambo. Ento Bahadur publicou uma edio ilustrada que intitulou
The conversation with the man called Al-Mutasim e que subtitulou
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magnificamente: A game with shifting mirros(um jogo com espelhos que
se deslocam). Essa edio a que Vtor Gollanez acaba de reproduzir
em Londres, com prlogo de Dorothy L. Sayers e com omisso qui
misericordiosa das ilustraes. Tenho-a vista; no consegui obter a
primeira, que pressinto muito superior. Autoriza-me a isso um
apndice, que resume a diferena fundamental entre a verso primitiva
de 1932 e a de 1934. Antes de examin-la e de discuti-la convm
que eu indique rapidamente o curso geral da obra.
Seu protagonista visvel nunca se nos diz seu nome
estudante de Direito em Bombaim. Blasfematoriamente, descr da f
islmica de seus pais, mas, ao declinar a dcima noite da lua demuharram, encontra-se no centro de um tumulto civil entre
muulmanos e hindus. noite de tambores e invocaes: entre a
multido adversa, os grandes plios de papel da procisso muulmana
abrem caminho. Um ladrilho hindu voa de uma sotia; algum afunda
um punhal num ventre; algum muulmano, hindu? morre e
pisoteado. Trs mil homens lutam: basto contra revlver, obscenidade
contra imprecao. Deus, o Indivisvel, contra os Deuses. Atnito, oestudante livre-pensador entra no motim. Com as mos desesperadas,
mata (ou pensa haver morto) um hindu. Atroadora, eqestre, semi-
adormecida, a polcia do Sirkar intervm com rebencaos imparciais.
Foge o estudante, quase sob as patas dos cavalos. Busca os ltimos
arrabaldes. Atravessa duas vias ferrovirias ou duas vezes a mesma via.
Escala o muro de um desordenado jardim, com uma torre circular no
fundo. Uma chusma de ces cor de lua (a lean and evil mob ofmooncoloured hounds) emerge dos rosais negros. Acossado, busca
amparo na torre. Sobe por uma escada de ferro faltam alguns lances
e no terrao, que tem um poo enegrecido no centro, d com um
homem esqulido, que est urinando vigorosamente, agachado, luz da
lua. Esse homem lhe confia que sua profisso roubar os dentes de
ouro dos cadveres trajados de branco que os parses deixam nessa
torre. Diz outras coisas vis e menciona que faz quatorze noites que nose purifica com bosta de bfalo. Fala com evidente rancor de certos
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ladres de cavalos de Guzerat, "comedores de ces e de lagartos,
homens enfim to infames como ns dois". Est clareando: no ar h um
vo baixo de abutres gordos. O estudante, aniquilado, adormece;
quando desperta, j com o sol bem alto, desapareceu o ladro.
Desapareceram tambm um par de charutos de Trichinpoli e umas
rupias de prata. Diante das ameaas projetadas pela noite anterior, o
estudante resolve perder-se na ndia. Pensa que se mostrou capaz de
matar um idlatra, mas no de saber com segurana se o muulmano
tem mais razo que o idlatra. O nome de Guzerat no o deixa, e o de
uma malka-sansi (mulher da casta dos ladres) de Palanpur, muito
preferida pelas imprecaes e dio do despojador de cadveres. Argi
que o rancor de um homem to minuciosamente vil importa em elogio.
Decide sem maior esperana busc-la. Reza e empreende com
lentido firme o longo caminho. Assim acaba o segundo captulo da
obra.
Impossvel traar as peripcias dos dezenove restantes. H uma
vertiginosa pululao de dramatis personae para no falar de uma
biografia que parece esgotar os movimentos do esprito humano (desdea infmia at a especulao matemtica) e de um peregrinar que
compreende a vasta geografia do Indosto. A histria comeada em
Bombaim segue nas terras baixas de Palanpur, demora-se uma tarde e
uma noite porta de pedra de Bikanir, narra a morte de um astrlogo
cego numa cloaca de Benares, conspira no palcio multiforme de
Katmandu, reza e fornica no fedor pestilencial de Calcut, no Machua
Bazar, contempla nascer os dias no mar desde um cartrio de Madras,v morrer as tardes no mar de uma sacada no Estado de Travancor,
vacila e mata em Indapur e conclui sua rbita de lguas e de anos na
mesma Bombaim, a poucos passos do jardim dos ces cor de lua. O
fugitivo que conhecemos, cai entre pessoas da classe mais vil e se
acomoda a elas, numa espcie de certame de infmias. De sbito com
o milagroso espanto de Robinson ante a pegada de um p humano na
areia percebe certa mitigao dessa infmia: uma ternura, umaexaltao, um silncio, num dos homens detestveis. "Foi como se
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tivesse cruzado armas no dilogo um interlocutor mais complexo. "
Sabe que o homem vil que est conversando com ele incapaz desse
momentneo decoro; da postula que este refletiu um amigo, ou amigo
de um amigo. Repensando o problema, chega a uma convico
misteriosa: Em algum ponto da Terra h um homem de quem procede
essa claridade; nalgum ponto da Terra est o homem que igual a essa
claridade. O estudante resolve dedicar sua vida a encontr-lo.
J o argumento geral se entrev: a busca insacivel de uma alma
atravs dos tnues reflexos que esta deixou em outras: no princpio, o
leve rastro de um sorriso ou de uma palavra; no fim, esplendores
diversos e crescentes da razo, da imaginao e do bem. medida queos homens interrogados conheceram mais de perto Almotsim, sua
poro divina maior, mas se acredita que so simples espelhos. O
tecnicismo matemtico aplicvel: o pesado romance de Bahadur
uma progresso ascendente, cujo termo final o pressentido "homem
que se chama Almotsim". O imediato antecessor de Almotsim um
livreiro persa de suma cortesia e felicidade; o que precede esse livreiro
um santo... Ao cabo dos anos, o estudante chega a uma galeria "emcujo fundo h uma porta e uma esteira barata com muitas contas e
atrs um resplendor". O estudante bate palmas uma e duas vezes e
pergunta por Almotsim. Uma voz de homem a incrvel voz de
Almotsim convida-o a passar. O estudante abre a cortina e avana.
Nesse ponto o romance acaba.
Se no me engano, a boa elaborao de tal argumento impe ao
escritor duas obrigaes: uma, a variada inveno de rasgos profticos;
outra, a de que o heri prefigurado por esses rasgos no seja mera
conveno ou fantasma. Bahadur satisfaz a primeira; no sei at onde a
segunda. Em outras palavras: o inaudito e no contemplado Almotsim
deveria deixar-nos a impresso de um carter real, no de uma
desordem de superlativos inspidos. Na verso de 1932, as notas
sobrenaturais rareiam: "o homem chamado Almotsim" tem seu bocado
de smbolo, mas no carece de traos idiossincrsicos, pessoais.
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Infelizmente, essa boa conduta literria no persistiu. Na verso de
1934 a que tenho vista o romance decai em alegoria: Almotsim
emblema de Deus e os pontuais itinerrios do heri so, de alguma
forma, os progressos da alma na ascenso mstica. H pormenores
aflitivos: um judeu negro de Kochin, ao falar de Almotsim, diz que sua
pele escura; um cristo o descreve sobre uma torre com os braos
abertos; um lama vermelho recorda-o sentado "como essa imagem de
manteiga de iaque que modelei e adorei no mosteiro de Tashilhunpo".
Essas declaraes querem insinuar um Deus unitrio que se acomoda
s desigualdades humanas. A meu ver, a idia pouco estimulante.
No direi o mesmo desta outra: a conjetura de que tambm o Todo-
Poderoso est em busca de Algum, e esse Algum de Algum superior
(ou simplesmente imprescindvel e igual) e assim at o Fim ou melhor,
o Sem-Fim do Tempo, ou em forma cclica. Almotsim (o nome
daquele oitavo Abssida que foi vencedor em oito batalhas, gerou oito
vares e oito mulheres, deixou oito mil escravos e reinou durante o
espao de oito anos, de oito luas e de oito dias) quer dizer
etimologicamente O procurador de amparo. Na verso de 1932, o fato de
que o objeto da peregrinao fosse um romeiro justificava de maneira
oportuna a dificuldade de encontr-lo; na de 1934, d margem
teologia extravagante que mencionei. Mir Bahadur Ali, vimo-lo,
incapaz de soslaiar a mais burlesca das tentaes da arte: a de ser um
gnio.
Releio o anterior e temo no ter destacado suficientemente as
virtudes do livro. H particularidades muito civilizadas: por exemplo,certa disputa do captulo dezenove na qual se pressente que amigo de
Almotsim um contendor que no rebate os sofismas do outro, "para
no ter razo de forma triunfal".
Entende-se ser honroso que um livro atual derive de um antigo: j
que a ningum agrada (como disse Johnson) nada dever a seus
contemporneos. Os repetidos mas insignificantes contatos do "Ulisses"
de Joyce com a "Odissia" homrica continuam escutando nunca
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saberei por que a atordoada admirao da crtica; os do romance de
Bahadur com o venerado "Colquio dos pssaros" de Farid ud-din Attar
conhecem o no menos misterioso aplauso de Londres, e ainda de
Alahabad e Calcut. Outras derivaes no faltam. Certo investigador
enumerou algumas analogias da primeira cena do romance com a
narrativa de Kipling On the City Wall; Bahadur as admite, mas alega
que seria muito anormal que duas pinturas da dcima noite de
muharram no coincidissem... Eliot, com mais justia, recorda os
setenta cantos da incompleta alegoria The Farie Queene, nos quais no
aparece uma nica vez a herona, Gloriana - como salienta uma
censura de Richard William Church (Spencer, 1879). Eu, com toda
humildade, assinalo um precursor distante e possvel: o cabalista de
Jerusalm, Isaac Luria, que no sculo XVI propagou que o esprito de
um antepassado ou mestre pode entrar na alma de um infeliz, para
confort-lo ou instru-lo. Chama-se Ibbr essa variedade da
metempsicose1.
1 No decurso desta notcia, referi-me a Mantiq al-Tayr (Colquio
dos pssaros),do mstico persa Farid al-Din Abu Talib Muhammad ben
Ibrahim Attar, a quem os soldados de Tule mataram, filho de Zingis
Jan, quando Nishapur foi espoliada. Talvez no consiga resumir o
poema. O remoto rei dos pssaros, o Simurg, deixa cair no centro da
China uma pluma esplndida; os pssaros resolvem busc-lo, cansados
de sua antiga anarquia. Sabem que o nome de seu rei quer dizer trinta
pssaros; sabem que sua fortaleza est no Kaf, a montanha circular que
rodeia a Terra. Empreendem a quase infinita aventura; superam sete
vales, ou mares; o nome do penltimo Vertigem; o ltimo se chama
Aniquilao. Muitos peregrinos desertam; outros perecem. Trinta,
purificados pelos trabalhos, pisam a montanha do Simurg. Enfim o
contemplam: percebem que eles so o Simurg e que o Simurg cada
um deles e todos. (Tambm Plotino - Enadas, V, 8, 4 - descreve uma
extenso paradisaca do princpio de identidade: Tudo, no cu
inteligvel, est em todas as partes. Qualquer coisa todas as coisas. O
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A Escrita do Deus
Jorge Luis Borges
O crcere profundo e de pedra; sua forma de um hemisfrio quase
perfeito, embora o piso (tambm de pedra) seja algo menor que um
crculo mximo, fato que de algum modo agrava os sentimentos deopresso e de grandeza. Um muro corta-o pelo meio; este, apesar de
altssimo, no toca a parte superior da abbada; de um lado estou eu,
Tzinacan, mago da pirmide Qaholom, que Pedro de Alvarado
incendiou; do outro h um jaguar, que mede com secretos passos iguais
o tempo e o espao do cativeiro. Ao nvel do cho, uma ampla janela
com barrotes corta o muro central. Na hora sem sombra (o meio-dia)
abre-se um alapo no alto e um carcereiro que os anos foramapagando manobra uma roldana de ferro, e nos baixa, na ponta de um
cordel, cntaros de gua e pedaos de carne. A luz entra na abbada;
neste instante posso ver o jaguar.
Perdi o nmero dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui
jovem e podia caminhar nesta priso, no fao outra coisa seno
aguardar, na postura de minha morte, o fim que os deuses me
destinam. Com a longa faca de pedernal abri o peito das vtimas e agora
no poderia, sem magia, levantar-me do p.
Na vspera do incndio da Pirmide, os homens que desceram de
altos cavalos me castigaram com metais ardentes para que revelasse o
lugar de um tesouro escondido. Abateram, diante de meus olhos, a
imagem do deus, mas este no me abandonou e me mantive silencioso
entre os tormentos. Feriram-me, quebraram-me, deformaram-me e
depois despertei neste crcere, que no mais deixarei nesta vida mortal.
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Premido pela fatalidade de fazer algo, de povoar de alguma forma
o tempo, quis recordar, em minha sombra, tudo o que sabia. Gastei
noites inteiras lembrando a ordem e o nmero de algumas serpentes de
pedra ou a forma de uma rvore medicinal. Assim fui vencendo os anos,
assim fui entrando na posse do que j era meu. Uma noite, senti que
me aproximava de uma lembrana precisa; antes de ver o mar, o
viajante sente uma agitao no sangue. Horas depois, comecei a avistar
a lembrana; era uma das tradies do deus. Este, prevendo que no fim
dos tempos ocorreriam muitas desventuras e runas, escreveu no
primeiro dia da Criao uma sentena mgica, capaz de conjurar esses
males. Escreveu-a de maneira que chegasse s mais distantes geraes
e que no tocasse o azar. Ningum sabe em que ponto a escreveu nem
com que caracteres, mas consta-nos que perdura, secreta, e que um
eleito a ler. Considerei que estvamos, como sempre, no fim dos
tempos e que meu destino de ltimo sacerdote do deus me daria acesso
ao privilgio de intuir essa escritura. O fato de que uma priso me
cercasse no me vedava esta esperana; talvez eu tivesse visto milhares
de vezes a inscrio de Qaholom e s me faltasse entend-la.
Esta reflexo me animou e logo me intuiu uma espcie de
vertigem. No mbito da terra existem formas antigas, formas
incorruptveis e eternas; qualquer uma delas podia ser o smbolo
buscado. Uma montanha podia ser a palavra do deus, ou um rio ou o
imprio ou a configurao dos astros. Mas no curso dos sculos as
montanhas se aplainam e o caminho de um rio costuma desviar-se e os
imprios conhecem mutaes e estragos e a figura dos astros varia. Nofirmamento h mudana. A montanha e a estrela so indivduos e os
indivduos caducam. Busquei algo mais tenaz, mais invulnervel.
Pensei nas geraes do cereais, dos pastos, dos pssaros, dos homens.
talvez em minha face estivesse escrita a magia, talvez eu mesmo fosse o
fim de minha busca. Estava nesse af quando recordei que o jaguar era
um dos atributos do deus.
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Um dia ou uma noite entre meus dias e minhas noites que
diferena existe? sonhei que no cho do crcere havia um gro de
areia. Voltei a dormir, indiferente; sonhei que despertava e que havia
dois gros de areia. Voltei a dormir, sonhei que os gros de areia eram
trs. Foram, assim, multiplicando-se at encher o crcere e eu morria
sob este hemisfrio de areia. Compreendi que estava sonhando; com um
enorme esforo, despertei. O despertar foi intil: a inumervel areia me
sufocava. Algum me disse: "No despertaste para a viglia, mas para
um sonho anterior. Esse sonho est dentro de outro, e assim at o
infinito, que o nmero dos gros de areia. O caminho que ters que
desandar interminvel e morrers antes de haver despertado
realmente".
Senti-me perdido. A areia me enchia a boca, mas grite: "Nenhuma
areia sonhada pode matar-me nem existem sonhos dentro de sonhos".
Um resplendor me despertou. Na treva superior abria-se um crculo de
luz. Via a face e as mos do carcereiro, a roldana, o cordel, a carne e os
cntaros.
Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu
destino; um homem , afinal, suas circunstncias. mais que um
decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote do deus, eu era um
encarcerado. Do incansvel labirinto de sonhos regressei dura priso
como minha casa. Bendisse sua umidade, bendisse seu tigre,
bendisse meu velho corpo dolorido, bendisse a treva e a pedra.
Ento ocorreu o que no posso esquecer nem comunicar. Ocorreu
a unio com a divindade, com o universo (no sei se estas palavras
diferem). O xtase no repete seus smbolos; h quem tenha visto Deus
num resplendor, h quem o tenha percebido numa espada ou nos
crculos de uma rosa. Eu vi uma Roda altssima, que no estava diante
de meus olhos, nem atrs, nem nos lados, mas em todas as partes, a
um s tempo. Essa Roda estava feita de gua, mas era tambm de fogo,
e era (embora visse a borda) infinita. Entretecidas, formavam-na todas
as coisas que sero, que so e que foram, e eu era um dos fios dessa
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trama total, e Pedro de Alvarado, que me atormentou, era outro. Ali
estavam as causas e os efeitos e me bastava ver essa roda para
entender tudo, interminavelmente. Oh, felicidade de entender, maior
que a de imaginar ou a de sentir! Vi o Universo e vi os ntimos desgnios
do universo. Vi as origens narradas pelo Livro do Comum. Vi as
montanhas que surgiram na gua, vi os primeiros homens com seu
bordo, vi as tinalhas que se voltaram contra os homens, vi os ces que
lhes desfizeram os rostos. Vi o deus sem face que h por trs dos
deuses. Vi infinitos processos que formavam uma s felicidade e,
entendendo tudo, consegui tambm entender a escrita do tigre.
uma frmula de catorze palavras casuais (que parecem casuais)e me bastaria diz-la em voz alta para ser todo-poderoso. Bastaria diz-
la para abolir este crcere de pedra, para que o dia entrasse em minha
noite, para ser jovem, para ser imortal, para que o tigre destrusse
Alvarado, para afundar o santo punhal em peitos espanhis, para
reconstruir a pirmide, para reconstruir o imprio. Quarenta slabas,
quatorze palavras, e eu, Tzinacan, regeria as terras que Montezuma
regeu. Mas eu sei que nunca direi estas palavras, porque eu no melembro de Tzinacan.
Que morra comigo o mistrio que est escrito nos tigres. Quem
entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desgnios do universo
no pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou
desventuras, mesmo que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e
agora no lhe importa. Que lhe importa a sorte daquele outro, que lhe
importa a nao daquele outro, se ele agora ningum? Por isto no
pronuncio a frmula, por isso deixo que os dias me esqueam, deitado
na escurido.
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Um dos presentes comentou:
No a primeira vez que os noruegueses entram em York.
Pois disse ela. a Inglaterra foi nossa e a perdemos, se
que algum pode ter algo ou algo pode ser perdido.
Foi ento que a olhei. Uma linha de William Blake fala de moas
de suave prata ou furioso ouro, porm em Ulrica estavam o ouro e a
suavidade. Era leve e alta, de traos afilados e de olhos cinzentos.
Menos que seu rosto, impressionou-me seu ar de tranqilo mistrio.
Sorria facilmente e o sorriso parecia afast-la. Vestia-se de preto, o que
raro em terras do Norte, que tentam alegrar com cores o apagado do
ambiente. Falava um ingls ntido e preciso e acentuava levemente os
erres. No sou observador; essas coisas descobri pouco a pouco.
Apresentaram-nos. Disse-lhe que eu era professor da
Universidade de los Andes em Bogot. Esclareci que era colombiano.
Perguntou-me de modo pensativo:
O que ser colombiano?
No sei respondi. um ato de f.
Como ser norueguesa assentiu.
Nada mais posso recordar do que se disse nessa noite. No dia
seguinte, desci cedo para a sala de jantar. Pelas vidraas vi que havia
nevado; os pramos se perdiam na da manh. No havia ningum mais.
Ulrica me convidou para a sua mesa. Disse que lhe agradava sair para
caminhar sozinha.
Lembrei-me de um chiste de Schopenhauer e respondi:
A mim tambm. Podemos sair juntos os dois.
Afastamo-nos da casa, sobre a neve recente. No havia uma alma
nos campos. Propus que fssemos a Thorgate, que fica rio abaixo, a
algumas milhas. Sei que j estava enamorado de Ulrica; no teria
desejado a meu lado nenhuma outra pessoa.
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Ouvi subitamente o distante uivo de um lobo. Nunca tinha ouvido
um lobo uivar, mas sei que era um lobo. Ulrica no se alterou.
Em seguida, disse, como se pensasse em voz alta:
As poucas e pobres espadas que vi ontem em York Minster me
comoveram mais que as grandes naves do museu de Oslo.
Nossos caminhos se cruzavam. Ulrica, nessa tarde, prosseguiria a
viagem em direo a Londres; eu, at Edimburgo.
Em Oxford Street ela disse-me repetirei os passos de
Quincey, que procurava a sua Anna perdida entre as multides de
Londres.
De Quincey respondi deixou de procur-la. Eu, ao longo
do tempo, continuo procurando-a.
Talvez disse em voz baixa a tenhas encontrado.
Compreendi que uma coisa inesperada no me estava proibida e
a beijei-lhe a boca e os olhos. Afastou-me com suave firmeza e depois
declarou:
Serei tua na pousada de Thorgate. Peo-te, enquanto isso, que
no me toques. melhor que assim seja.
Para um celibatrio entrado em anos, o amor um dom que j
no se espera. O milagre tem direito de impor condies. Pensei em
minha mocidade em Popayn e em uma moa do Texas, clara e esbelta
como Ulrica, que me havia negado seu amor.
No incorri no erro de lhe perguntar se me amava. Compreendi
que no era o primeiro e que no seria o ltimo. Essa aventura, talvez a
derradeira para mim, seria uma de tantas para essa resplandecente e
resoluta discpula de Ibsen.
De mo dadas, seguimos.
Tudo isto como um sonho disse e eu nunca sonho.
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Como aquele rei replicou Ulrica que no sonhou at que
um feiticeiro o fez dormir numa pocilga.
Acrescentou em seguida:
Ouve. Um pssaro est prestes a cantar.
Pouco depois ouvimos o canto.
Nestas terras disse pensam que quem est para a morrer
prev o futuro.
E eu estou para morrer disse ela.
Olhei-a, atnito.
Cortemos pelo bosque apressei-a Chegaremos mais
rpido a Thorgate.
O bosque perigoso replicou.
Seguimos pelos pramos.
Eu gostaria que este momento durasse para sempre
murmurei.
"Sempre" uma palavra que no permitida aos homens
afirmou Ulrica e, para minorar a nfase, pediu-me que repetisse o meu
nome, que no ouvira bem.
Javier Otrola disse-lhe.
Quis repeti-lo e no pde. Fracassei, igualmente, com o nome
Ulrikke.
Vou te chamar Sigurd declarou com um sorriso.
Se sou Sigurd repliquei, tu sers Brynhild.
Havia atrasado o passo.
Conheces a saga? perguntei-lhe.
Naturalmente disse. A trgica histria que os alemes
estragaram com seus tardios Nibelungos.No quis discutir e respondi:
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Brynhild, caminhas como se quisesses que entre os dois
houvesse uma espada no leito.
Estvamos de repente diante da pousada. No me surpreendeu
que se chamasse, como a outra, Northern Inn.
Do alto da escada, Ulrica me gritou:
Ouviste o lobo? J no h lobos na Inglaterra. Apressa-te.
Ao subir para o andar de cima, notei que as paredes estavam
empapeladas maneira de William Morris, de um vermelho muito
profundo, com entrelaados frutos e pssaros. Ulrica entrou primeiro. O
aposento escuro era baixo, com um teto de duas guas. O esperadoleito se duplicava em um vago cristal e a polida caoba recordou-me o
espelho da Escritura. Ulrica j se havia despido. Chamou-me pelo meu
verdadeiro nome, Javier. Senti que a neve aumentava. J no havia
nem espelhos. No havia uma espada entre os dois. Como a areia,
escoava o tempo. Secular na sombra fluiu o amor, e possu pela
primeira e ltima vez a imagem de Ulrica.
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O livro de areia
Jorge Luis Borges
... Thy rope of sands...
George Herbert (1593-1623)
A linha consta de um nmero infinito de pontos, o plano, de um
nmero infinito de linhas; o volume, de um nmero infinito de planos, o
hipervolume, de um nmero infinito de volumes... No, decididamente
no este, more geometrico, o melhor modo de iniciar meu relato.
Afirmar que verdico , agora, uma conveno de todo relato
fantstico; o meu, no entanto, verdico.
Vivo s, num quarto andar da Rua Belgrano. Faz alguns meses,
ao entardecer ouvi uma batida na porta. Abri e entrou um
desconhecido. Era um homem alto, de traos mal conformados. Talvez
minha miopia os visse assim. Todo seu aspecto era de uma pobreza
decente. Estava de cinza e trazia uma valise cinza na mo. Logo senti
que era estrangeiro. A princpio achei-o velho; logo percebi que seu
escasso cabelo ruivo, quase branco, maneira escandinava, me havia
enganado. No decorrer de nossa conversa, que no duraria uma hora,
soube que procedia das Orcadas.
Apontei-lhe uma cadeira. O homem demorou um pouco a falar.
Exalava melancolia, como eu agora.
Vendo bblias disse.
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Trata-se de uma verso da Escritura em alguma lngua
indostnica, no verdade?
No replicou.
Logo baixou a voz como que para me confiar um segredo:
Adquiri-o em uma povoao da plancie, em troca de algumas
rupias e da Bblia. Seu possuidor no sabia ler. Suspeito que no Livro
dos Livros viu um amuleto. Era da casta mais baixa; as pessoas no
podiam pisar sua sombra sem contaminao. Disse que seu livro se
chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princpio
ou fim.
Pediu-me que procurasse a primeira folha.
Apoiei a mo esquerda sobre a portada e abri com o dedo polegar
quase pegado ao indicador. Tudo foi intil: sempre se interpunham
vrias folhas entre a portada e a mo. Era como se brotassem do livro.
Agora procure o final.
Tambm fracassei; apenas consegui balbuciar com uma voz que
no era minha:
Isto no pode ser.
Sempre em voz baixa o vendedor de bblias me disse:
No pode ser, mas . O nmero de pginas deste livro
exatamente infinito. Nenhuma a primeira; nenhuma, a ltima. No sei
por que esto numeradas desse modo arbitrrio. Talvez para dar a
entender que os termos de uma srie infinita admitem qualquer
nmero.
Depois, como se pensasse em voz alta:
Se o espao infinito, estamos em qualquer ponto do espao.
Se o tempo infinito, estamos em qualquer ponto do tempo.
Suas consideraes me irritaram. Perguntei:
O senhor religioso, sem dvida?
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Sim, sou presbiteriano. Minha conscincia est limpa. Estou
seguro de no ter ludibriado o nativo quando lhe dei a Palavra do
Senhor em troca de seu livro diablico.
Assegurei-lhe que nada tinha a se recriminar e perguntei-lhe seestava de passagem por estas terras. Respondeu que dentro de alguns
dias pensava em regressar sua ptria. Foi ento que soube que era
escocs, das ilhas Orcadas. Disse-lhe que a Esccia eu estimava
pessoalmente por amor de Stevenson e de Hume.
E de Robbie Burns corrigiu.
Enquanto falvamos eu continuava explorando o livro infinito.
Com falsa indiferena perguntei:
O senhor se prope a oferecer este curioso espcime ao Museu
Britnico?
No. Ofereo-o ao senhor replicou e fixou uma soma
elevada.
Respondi, com toda a verdade, que essa soma era inacessvel
para mim e fiquei pensando. Ao fim de poucos minutos, havia urdido
meu plano.
Proponho-lhe uma troca disse. O senhor obteve este volume
por algumas rupias e pela Escritura Sagrada; eu lhe ofereo o montante
de minha aposentadoria que acabo de cobrar, e a Bblia de Wiclif em
letras gticas. Herdei-a de meus pais.
A black letterWiclif! murmurou.
Fui ao meu dormitrio e trouxe-lhe o dinheiro e o livro. Virou as
pginas e estudou a capa com fervor de biblifilo.
Trato feito disse.
Assombrou-me que no regateasse. S depois compreenderia que
havia entrado em minha casa com a deciso de vender o livro. No
contou as notas e guardou-as.
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Falamos da ndia, das Orcadas e dos Jarls noruegueses que as
governaram. Era noite quando o homem se foi. No voltei a v-lo nem
sei o seu nome.
Pensei em guardar o Livro de Areia no vo que havia deixado oWiclif, mas optei finalmente por escond-lo atrs de uns volumes
desemparelhados de As mil e uma Noites.
Deitei-me e no dormi. s trs ou quatro da manh, acendi a luz.
Procurei o livro impossvel e virei suas folhas. Em uma delas vi gravada
uma mscara. O ngulo levava uma cifra, j no sei qual, elevada
nona potncia.
No mostrei a ningum meu tesouro. ventura de possu-lo se
agregou o temor de que o roubassem e, depois, o receio de que no
fosse verdadeiramente infinito. Estas duas preocupaes agravaram
minha j velha misantropia. Restavam-me alguns amigos; deixei de v-
los. Prisioneiro do Livro, quase no saa rua. Examinei com uma lupa
a lombada gasta e as capas e rechacei a possibilidade de algum artifcio.
Comprovei que as pequenas ilustraes distavam duas mil pginas uma
da outra. Fui anotando-as em uma caderneta alfabtica, que no
demorei a encher. Nunca se repetiram. De noite, nos escassos
intervalos que a insnia me concedia, sonhava com o livro.
O vero declinava e compreendi que o livro era monstruoso. De
nada me serviu considerar que no menos monstruoso era eu, que o
percebia com olhos e o apalpava com dez dedos com unhas. Senti que
era um objeto de pesadelo, uma coisa obscena que infamava ecorrompia a realidade.
Pensei no fogo, mas temi que a combusto de um livro infinito
fosse igualmente infinita e sufocasse o planeta de fumaa.
Lembrei haver lido que o melhor lugar para ocultar uma folha
um bosque. Antes de me aposentar trabalhava na Biblioteca Nacional,
que guarda novecentos mil livros; sei que mo direita do vestbulo,
uma escada curva se some no sto, onde esto os peridicos e os
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mapas. Aproveitei um descuido dos empregados para perder o Livro de
Areia em uma das midas prateleiras. Tratei de no me fixar em que
altura, nem a que distncia da porta.
Sinto um pouco de alvio, mas no quero passar pela Rua Mxico.
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A Casa de Asterion
Jorge Luis Borges
Para Marta Mosquera Eastman
E a rainha deu luz um
filho que se chamou Asterion.
APOLODORO: Biblioteca, III, I.
Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez
de loucura. Tais acusaes (que castigarei no devido tempo) so
irrisrias. verdade que no saio de casa, mas tambm verdade que
as suas portas (cujo nmero infinito*) esto abertas dia e noite aos
homens e tambm aos animais. Que entre quem quiser. No encontraraqui pompas femininas nem o bizarro aparato dos palcios, mas sim a
quietude e a solido. Por isso mesmo, encontrar uma casa como no
h outra na face da terra. (Mentem os que declaram existir uma
parecida no Egito.) At meus detratores admitem que no h um s
mvel na casa. Outra afirmao ridcula que eu, Asterion, seja um
prisioneiro. Repetirei que no h uma porta fechada, acrescentarei que
no existe uma fechadura? Mesmo porque, num entardecer, pisei narua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me infundiram os rostos
da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mo aberta. O sol j se
tinha posto mas o desvalido pranto de um menino e as preces rudes do
povo disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, se
prosternava; alguns se encarapitavam na estilbata do templo das
Tochas, outros juntavam pedras. Algum deles, creio, se ocultou no mar.
No em vo que uma rainha foi minha me; no posso confundir-mecom o vulgo, ainda que o queira minha modstia.
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O fato que sou nico. No me interessa o que um homem possa
transmitir a outros homens; como filsofo, penso que nada
comunicvel pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais mincias no
encontram espao em meu esprito, capacitado para o grande; jamais
guardei a diferena entre uma letra e outra. Certa impacincia generosa
no consentiu que eu aprendesse a ler. s vezes o deploro, porque as
noites e os dias so longos.
Claro que no me faltam distraes. Como o carneiro que vai
investir, corro pelas galerias de pedra at cair no cho, estonteado.
Oculto-me sombra duma cisterna ou volta de um corredor e divirto-
me com que me busquem. H terraos donde me deixo cair, atensangentar-me. A qualquer hora posso fazer que estou dormindo,
com os olhos cerrados e a respirao contida. (s vezes durmo
realmente, s vezes j outra a cor do dia quando abro os olhos.) Mas,
de todos os brinquedos, o que prefiro o do outro Asterion. Finjo que
ele vem visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes referncias,
lhe digo "Agora voltamos encruzilhada anterior" ou "Agora
desembocamos em outro ptio" ou "Bem dizia eu que te agradaria estepequeno canal" ou "Agora vais ver uma cisterna que se encheu de areia"
ou "J vais ver como o poro se bifurca". s vezes me engano e rimo-nos
os dois, amavelmente.
No tenho pensado apenas nesses brinquedos; tenho tambm
meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes,
qualquer lugar outro lugar. No h uma cisterna, um ptio, um
bebedouro, um pesebre; so catorze (so infinitos) os pesebres,
bebedouros, ptios, cisternas. A casa do tamanho do mundo; ou
melhor, o mundo. Todavia, de tanto andar por ptios com uma
cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi
o templo das Tochas e o mar. No entendi isso at uma viso noturna
me revelar que tambm so catorze (infinitos) os mares e os templos.
Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas h no mundo
que parecem existir uma s vez: em cima, o intrincado sol; embaixo,
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Asterion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa,
mas j no me lembro.
A cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os
liberte de todo o mal. Ouo seus passos ou sua voz no fundo dasgalerias de pedra e corro alegremente para busc-los. A cerimnia dura
poucos minutos. Um aps outro caem sem que eu ensangente as
mos. Onde caram, ficam, e os cadveres ajudam a distinguir uma
galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles, na hora
da morte, profetizou que um dia vai chegar meu redentor. Desde ento
a solido no me magoa, porque sei que meu redentor vive e que por fim
me levantar do p. Se meu ouvido alcanasse todos os rumores domundo, eu perceberia seus passos. Oxal me leve para um lugar com
menos galerias e menos portas. Como ser meu redentor? me
pergunto. Ser um touro, ou um homem? Ser talvez um touro com
cara de homem? ou ser como eu?
O sol da manh rebrilhou na espada de bronze, j no restava
qualquer vestgio de sangue.
Acreditars, Ariadne? disse Teseu. O minotauro apenas
se defendeu.
*O original diz catorze, mas sobram motivos para inferir que, na
boca de Asterion, esse adjetivo numeral valha por infinitos.
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As coisas
Jorge Luis Borges
A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dcil fechadura, as tardias
Notas que no lero os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro.
Um livro e em suas pginas a seca
Violeta, monumento a uma tarde
Sem dvida inolvidvel e j olvidada,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusria aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, taas, cravos,
Nos servem como tcitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Duraro para alm de nosso esquecimento;
Nunca sabero que nos fomos num momento.
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Funes, o Memorioso
Jorge Luis Borges
Recordo-o (no tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado,
apenas um homem na terra teve o direito e tal homem est morto) com
uma obscura passiflrea na mo, vendo-a como ningum jamais a vira,
ainda que a contemplasse do crepsculo do dia at o da noite, uma vida
inteira. Recordo-o, o rosto taciturno e indianizado e singularmente
remoto, por trs do cigarro. Recordo (creio) suas mos delicadas de
tranador. Recordo prximo dessas mos um mate, com as armas da
Banda Oriental, recordo na janela da casa uma esteira amarela, com
uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente a sua voz; a voz
pausada, ressentida e nasal de orillero antigo, sem os assobios italianos
de agora. Mais de trs vezes no o vi; a ltima, em 1887... Parece-me
muito feliz o projeto de que todos aqueles que o conheceram escrevam
sobre ele; meu testemunho ser por certo o mais breve e sem dvida o
mais pobre, porm no o menos imparcial do volume que vs editareis.
A minha deplorvel condio de argentino impedir-me- de incorrer no
ditirambo - gnero obrigatrio no Uruguai; quando o tema um
uruguaio. Literato, cajetilla, porteo. Funes no disse essas palavras
injuriosas, mas de um modo suficiente me consta que eu representava
para ele tais desventuras. Pedro Leandro Ipuche escreveu que Funes
era um precursor dos super-homens; "Um Zaratustra cimarrn e
vernculo"; no o discuto, mas no se deve esquecer que era tambm
natural de Fray Bentos, com certas limitaes incurveis.
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conhecidos e, finalmente, pelo "cronomtrico Funes". Responderam-me
que um redomo o havia derrubado na estncia de San Francisco, e
que havia se tornado paraltico, sem esperana. Recordo a sensao de
incmoda magia que a notcia despertou-me: a nica vez que eu o vi,
vnhamos a cavalo de So Francisco e ele andava em um lugar alto; o
fato, na boca do meu primo Bernardo, tinha muito de sonho elaborado
com elementos anteriores. Disseram-me que no se movia da cama, os
olhos repousados na figueira do fundo ou em uma teia de aranha. Ao
entardecer, permitia que o levassem para perto da janela. Levava a
arrogncia ao ponto de simular que era benfico o golpe que o havia
fulminado... Duas vezes o vi atrs da relha, que toscamente enfatizava a
sua condio de eterno prisioneiro; uma, imvel, com os olhos cerrados;
outra, imvel tambm, absorto na contemplao de um aromtico galho
de santonina.
No sem um certo orgulho havia iniciado naquele tempo o estudo
metdico do latim. A minha mala inclua o De viris illustribus de
Lhamond, o Thesaurus de Quicherat, os comentrios de Jlio Csar e
um volume mpar da Naturalis historia de Plnio, que excedia (econtinua excedendo) as minhas modestas virtudes de latinista. Tudo se
propaga em um povoado; Ireneo, em seu rancho das orillas, no tardou
em enteirar-se da chegada desses livros anmalos. Dirigiu-me uma
carta florida e cerimoniosa, na qual recordava no encontro,
desditosamente fugaz, "do dia 7 de Fevereiro de 1884", ponderava os
gloriosos servios que Don Gregorio Haedo, meu tio, falecido nesse
mesmo ano, "havia prestado s duas ptrias na valorosa jornada deItuzaing", e me solicitava o emprstimo de qualquer dos volumes,
acompanhado de um dicionrio "para a boa inteleco do texto original,
pois todavia ignoro o latim". Prometia devolv-los em bom estado, quase
imediatamente. A letra era perfeita, muito perfilada; a ortografia, do tipo
que Andrs Bello preconizou: i por y, j por g. A princpio, suspeitei
naturalmente tratar-se de uma zombaria. Meus primos asseguraram
que no, que eram coisas de Ireneo. No sabia se atribua aoatrevimento, ignorncia ou estupidez a idia de que o rduo latim
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no requeresse mais instrumento do que um dicionrio; para
desencoraj-lo completamente enviei-lhe o Gradus ad parnassum de
Quicherat e a obra de Plnio.
No dia 14 de Fevereiro telegrafaram-me de Buenos Aires quevoltasse imediatamente, pois meu pai no estava "nada bem". Deus me
perde; o prestgio de ser o destinatrio de um telegrama urgente, o
desejo de comunicar a toda Fray Bentos a contradio entre a forma
negativa da notcia e o peremptrio advrbio, a tentao de dramatizar a
minha dor, fingindo um estoicismo viril, talvez distraram-me de toda a
possibilidade de dor. Ao fazer a mala, notei que me faltavam o Gradus e
o primeiro tomo da Naturalis historia. O "Saturno" sarpava no diaseguinte, pela manh; essa noite, depois da janta, dirigi-me casa de
Funes. Assombrou-me que a noite fora no menos pesada que o dia.
No humilde rancho, a me de Funes recebeu-me.
Disse-me que Ireneo estava no quarto dos fundos e que no me
estranhasse encontr-lo s escuras, pois Ireneo preferia passar as
horas mortas sem acender a vela. Atrevessei o ptio de lajota, o
pequeno corredor; cheguei ao segundo ptio. Havia uma parreira; a
escurido pareceu-me total. Ouvi prontamente a voz alta e zombeteira
de Ireneo. Essa voz falava em latim; essa voz (que vinha das trevas)
articulava com moroso deleite um discurso, ou prece, ou encantamento.
Ressoavam as slabas romanas no ptio de terra; o meu temor as
tomava por indecifrveis, interminveis; depois, no enorme dilogo
dessa noite, soube que formavam o primeiro pargrafo do 24 captulo
do 7 livro da Naturalis historia. O tema desse captulo a memria: as
ltimas palavras foram ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum.
Sem a menor mudana de voz, Ireneo disse-me o que se passara.
Estava na cama, funmando. Parece-me que no vi o seu rosto at a
aurora; creio lembrar-me da brasa momentnea do cigarro. O quarto
exalava um vago odor de umidade. Sentei-me, repeti a histria do
telegrama e da enfermidade de meu pai.
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Chego, agora, ao ponto mais difcil do meu relato. Este ( bem
verdade que j o sabe o leitor) no tem outro argumento seno esse
dilogo de h j meio sculo. No tratarei de reproduzir as suas
palavras, irrecuperveis agora. Prefiro resumir com veracidade as
muitas coisas que me disse Ireneo. O estilo indireto remoto e dbil; eu
sei que sacrifico a eficcia do meu relato; que os meus leitores
imaginem os perodos entrecortados que me abrumaram essa noite.
Ireneo comeou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de
memria prodigiosa registrados pela Naturalis historia: Ciro, rei dos
persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus
exrcitos; Metradates e Eupator, que administrava a justia dos 22idiomas de seu imprio; Simnides, inventor da mnemotecnia;
Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado
de uma s vez. Com evidente boa f maravilhou-se de que tais casos
maravilharam. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o
azulego o derrubou, ele havia sido o que so todos os cristos; um cego,
um surdo, um tolo, um desmemoriado. (Tratei de recordar-lhe a
percepo exata do tempo, a sua memria de nomes prprios; no mefez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem
ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair,
perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase
intolervel de to rico e to ntido, e tambm as memrias mais antigas
e mais triviais. Pouco depois averiguou que estava paraltico. Fato
pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preo
mnimo. Agora a sua percepo e sua memria eram infalveis.
Num rpido olhar, ns percebemos trs taas em uma mesa;
Funes, todos os brotos e cachos e frutas que se encontravam em uma
parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta
de abril de 1882 e podia compar-los na lembrana s dobras de um
livro em pasta espanhola que s havia olhado uma vez e s linhas da
espuma que um remo levantou no Rio Negro na vspera da ao de
Quebrado. Essas lembranas no eram simples; cada imagem visual
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estava ligada a sensaes musculares, trmicas, etc. Podia reconstruir
todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou trs vezes havia
reconstrudo um dia inteiro, no havia jamais duvidado, mas cada
reconstruo havia requerido um dia inteiro. Disse-me: Mais
lembranas tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o
mundo mundo. E tambm: Meus sonhos so como a vossa viglia. E
tambm, at a aurora; Minha memria, senhor, como depsito de lixo.
Uma circunferncia em um quadro-negro, um tringulo retngulo; um
losango, so formas que podemos intuir plenamente; o mesmo se
passava a Ireneo com as tempestuosas crinas de um potro, com uma
ponta de gado em um coxilha, com o fogo mutante e com a cinza
inumervel, com as muitas faces de um morto em um grande velrio.
No sei quantas estrelas via no cu.
Essas coisas me disse; nem ento nem depois coloquei-as em
dvida. Naquele tempo no havia cinematgrafos nem fongrafos; , no
entanto, verossmil e at incrvel que ningum fizera um experimento
com Funes. O crto que vivemos postergando todo o postergvel;
talvez todos saibamos pronfundamente que somos imortais e que maiscedo ou mais tarde, todo homem far todas as coisas e saber tudo.
A voz de Funes, vinda da escurido, seguia falando.
Disse-me que em 1886 havia elaborado um sistema original de
numerao e que em muito poucos dias havia ultrapassado vinte e
quatro mil. No o havia escrito, porque o pensado uma s vez j no
podia desvanecer-lhe. Seu primeiro estmulo, creio, foi o
descontentamento de que os trinta e trs uruguaios requeressem dois
signos e trs palavras, em lugar de uma s palavra e um s signo.
Aplicou logo esse desparatado princpio aos outros nmeros. Em lugar
de sete mil e treze, dizia (por exemplo) Mximo Prez; em lugar de sete
mil e catorze, A Ferrovia; outros nmeros eram Luis Melin Lafinur,
Olivar, enxofre, os rsticos, a baleia, o gs, a caldeira, Napoleo,
Agustn de Vedia. Em lugar de quinhentos, dizia nove. Cada palavra
tinha um signo particular, uma espcie de marca; as ltimas eram
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muito complicadas... Eu tratei de explicar-lhe que essa rapsdia de
vozes desconexas era precisamente o contrrio de um sistema de
numerao. Eu lhe observei que dizer 365 era dizer trs centenas, seis
dezenas, cinco unidades; anlise que no existe nos "nmeros". O Negro
Timoteo a manta de carne. Funes no me entendeu ou no quis me
entender.
Locke, no sculo XVII, postulou (ou reprovou) um idioma
impossvel no qual cada coisa individual, cada pedra, cada pssaro e
cada ramo tivesse um nome prprio; Funes projetou alguma vez um
idioma anlogo, mas o desejou por parecer-lhe demasiado geral,
demasiado ambgo. De fato, Funes no apenas recordava cada folha decada rvore de cada monte, mas tambm cada uma das vezes que a
havia percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas
jornadas pretritas a umas setenta mil lembranas, que definiria logo
por cifras. Dissuadiram-no duas consideraes: a conscincia de que a
tarefa era interminvel, a conscincia de que era intil. Pensou que na
hora da morte no havia acabo ainda de classificar todas as lembranas
da infncia.
Os dois projetos que foi indicado (um vocabulrio infinito para a
srie natural dos nmeros, um intil catlogo mental de todas as
imagens da lembrana) so insensatos, mas revelam certa balbuciante
grandeza. Nos deixam vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de
Funes. Este, no o esqueamos, era quase incapaz de idias gerais,
platnicas. No apenas lhe custava compreender que o smbolo genrico
co abarcava tantos indivduos dspares de diversos tamanhos e diversa
forma; perturbava-lhe que o co das trs e catorze (visto de perfil)
tivesse o mesmo nome que o co das trs e quatro (visto de frente). Sua
prpria face no espelho, suas prprias mos, surpreendiam-no cada
vez. Comenta Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento
do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os avanos
tranqilos da corrupo, das cries, da fatiga. Notava os progressos da
morte, da umidade. Era o solitrio e lcido espectador de um mundo
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multiforme, instantneo e quase intolerantemente preciso. Babilnia,
Londres e Nova York tm preenchido com feroz esplendor a imaginao
dos homens; ningum, em suas torres populosas ou em suas avenidas
urgentes, sentira o calor e a presso de uma realidade to infatigvel
como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre
subrbio sulamericano. Era-llhe muito difcil dormir. Dormir distrair-
se do mundo; Funes, de costas na cama, na sombra, figurava a si
mesmo cada rachadura e cada moldura das casas distintas que o
redoavam. (Repito que o menos importante das suas lembranas era
mais minucioso e mais vivo que nossa percepo de um gozo fsico ou
de um tormento fsico). Em direo ao leste, em um trecho no
pavimentado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava
negras, compactas, feitas de treva homognea; nessa direo virava o
rosto para dormir. Tambm era seu costume imaginar-se no fundo do
rio, mexido e anulado pela corrente.
Havia aprendido sem esforo o ingls, o francs, o portugus, o
latim. Suspeito, contudo, que no era muito capaz de pensar. Pensar
esquecer diferenas, generalizar, abstrair. No mundo abarrotado deFunes no havia seno detalhes, quase imediatos.
A receosa claridade da madrugada entrou pelo ptio de terra.
Ento vi a face da voz que toda a noite havia falado. Ireneo tinha
dezenove anos; havia nascido em 1868; pareceu-me to monumental
como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior s profecias e s
pirmides. Pensei que cada uma das minhas palavras (que cada um dos
meus gestos) perduraria em sua implacvel memria; entorpeceu-me o
temor de multiplicar trejeitos inteis.
Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congesto pulmonar.
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A biblioteca de Babel
Jorge Luis Borges
By this art you may contemplate the variation of the 23 letters...
The Anataomy of Melancholy, part. 2, sect.II, mem. IV.
O universo (que outros chamam a Biblioteca) compe-se de um
nmero indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos
poos de ventilao no centro, cercados por balaustradas baixssimas.
De qualquer hexgono, vem-se os andares inferiores e superiores:
interminavelmente. A distribuio das galerias invarivel. Vinteprateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os
lados menos dois; sua altura, que a dos andares, excede apenas a de
um bibliotecrio normal. Uma das faces livres d para um estreito
vestbulo, que desemboca em outra galeria, idntica primeira e a
todas. esquerda e direita do vestbulo, h dois sanitrios
minsculos. Um permite dormir em p; outro, satisfazer as
necessidades fsicas. Por a passa a escada espiral, que se abisma e seeleva ao infinito. No vestbulo ha um espelho, que fielmente duplica as
aparncias. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca
no infinita (se o fosse realmente, para qu essa duplicao ilusria?),
prefiro sonhar que as superfcies polidas representam e prometem o
infinito... A luz procede de algumas frutas esfricas que levam o nome
de lmpadas. H duas em cada hexgono: transversais. A luz que
emitem insuficiente, incessante.
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Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude;
peregrinei em busca de um livro, talvez do catlogo de catlogos; agora
que meus olhos quase no podem decifrar o que escrevo, preparo-me
para morrer; a poucas lguas do hexgono em que nasci. Morto, no
faltaro mos piedosas que me joguem pela balaustrada; minha
sepultura ser o ar insondvel; meu corpo cair demoradamente e se
corromper e dissolver no vento gerado pela queda, que infinita.
Afirmo que a Biblioteca interminvel. Os idealistas argem que as
salas hexagonais so uma forma necessria do espao absoluto ou, pelo
menos, de nossa intuio do espao. Alegam que inconcebvel uma
sala triangular ou pentagonal. (os msticos pretendem que o xtase lhes
revele uma cmara circular com um grande livro circular de lombada
contnua, que siga toda a volta das paredes; mas seu testemunho
suspeito; suas palavras, obscuras. Esse livro cclico Deus). Basta-me,
por ora, repetir o preceito clssico: "A Biblioteca uma esfera cujo
centro cabal qualquer hexgono, cuja circunferncia inacessvel".
A cada um dos muros de cada hexgono correspondem cinco
estantes; cada estante encerra trinta e dois livros de formato uniforme;cada livro de quatrocentas e dez pginas; cada pgina, de quarenta
linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor preta. Tambm h
letras no dorso de cada livro; essas letras no indicam ou prefiguram o
que diro as pginas. Sei que essa inconexo, certa vez, pareceu
misteriosa. Antes de resumir a soluo (cuja descoberta, apesar de suas
trgicas projees, talvez o fato capital da histria), quero rememorar
alguns axiomas.
O primeiro: a Biblioteca existe ab aeterno. Dessa verdade cujo
corolrio imediato a eternidade futura do mundo, nenhuma mente
razovel pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecrio, pode ser
obra do acaso ou dos demiurgos malvolos; o universo, com seu
elegante provimento de prateleiras, de tomos enigmticos, de
infatigveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecrio
sentado, somente pode ser obra de um deus. Para perceber a distncia
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que h entre o divino e o humano, basta comparar esses rudes
smbolos trmulos que minha falvel mo garatuja na capa de um livro,
com as letras orgnicas do interior: pontuais, delicadas, negrssimas,
inimitavelmente simtricas.
O segundo: O nmero de smbolos ortogrficos vinte e cinco.1
Essa comprovao permitiu, depois de trezentos anos, formular uma
teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que
nenhuma conjectura decifrara: a natureza disforme e catica de quase
todos os livros. Um, que meu pai viu em um hexgono do circuito
quinze noventa e quatro, constava das letras M C V perversamente
repetidas da primeira linha ate ltima. Outro (muito consultado nestarea) um simples labirinto de letras, mas a pgina penltima diz Oh,
tempo tuas pirmides. J se sabe: para uma linha razovel com uma
correta informao, h lguas de insensatas cacofonias, de confuses
verbais e de incoerncias. (Sei de uma regio montanhosa cujos
bibliotecrios repudiam o supersticioso e vo costume de procurar
sentido nos livros e o equiparam ao de procur-lo nos sonhos ou nas
linhas caticas da mo... Admitem que os inventores da escritaimitaram os vinte e cinco smbolos naturais, mas sustentam que essa
aplicao casual, e que os livros em si nada significam. Esse ditame,
j veremos, no completamente falaz).
Durante muito tempo, acreditou-se que esses livros impenetrveis
correspondiam a lnguas pretritas ou remotas. verdade que os
homens mais antigos, os primeiros bibliotecrios, usavam uma
linguagem assaz diferente da que falamos agora; verdade que algumas
milhas direita a lngua dialetal e que noventa andares mais acima
incompreensvel. Tudo isso, repito-o, verdade, mas quatrocentas e dez
pginas de inalterveis M C V no podem corresponder a nenhum
idioma, por dialetal ou rudimentar que seja. Uns insinuaram que cada
letra podia influir na subsequente e que o valor de M C V na terceira
linha da pgina 71 no era o que pode ter a mesma srie noutra posio
de outra pgina, mas essa vaga tese no prosperou. Outros pensaram
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em criptografias; universalmente essa conjectura foi aceite, ainda que
no no sentido em que a formularam seus inventores.
H quinhentos anos, o chefe de um hexgono superior2 deparou
com um livro to confuso quanto os outros, porm que possua quaseduas folhas de linhas homogneas. Mostrou o seu achado a um
decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em
portugus; outros lhe afirmaram que em idiche. Antes de um sculo
pde ser estabelecido o idioma: um dialeto samoiedo-lituano do
guarani, com inflexes de rabe clssico. Tambm decifrou-se o
contedo: noes de anlise combinatria, ilustradas por exemplos de
variantes com repetio ilimitada. Esses exemplos permitiram que umbibliotecrio de gnio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. Esse
pensador observou que todos os livros, por diversos que sejam, constam
de elementos iguais: o espao, o ponto, a vrgula as vinte e duas letras
do alfabeto. Tambm alegou um fato que todos os viajantes
confirmaram: "No h, na vasta Biblioteca, dois livros idnticos".
Dessas premissas incontrovertveis deduziu que a Biblioteca total e
que suas prateleiras registram todas as possveis combinaes dos vintee tantos smbolos ortogrficos (numero, ainda que vastssimo, no
infinito), ou seja, tudo o que dado expressar: em todos os idiomas.
Tudo: a histria minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o
catlogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catlogos falsos, a
demonstrao da falcia desses catlogos, a demonstrao da falcia do
catalogo verdadeiro, o evangelho gnstico de Basilides, o comentrio
desse evangelho, o comentrio do comentrio desse evangelho, o relatoverdico de tua morte, a verso de cada livro em todas as lnguas, as
interpolaes de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pde
escrever (e no escreveu) sobre a mitologia dos saxes, os livros
perdidos de Tcito.
Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a
primeira impresso foi de extravagante felicidade. Todos os homens
sentiram-se senhores de um tesouro intacto e secreto. No havia
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problema pessoal ou mundial cuja eloquente soluo no existisse: em
algum hexgono. o universo estava justificado, o universo bruscamente
usurpou as dimenses ilimitadas da esperana. Naquele tempo falou-se
muito das Vindicaes: livros de apologia e de profecia, que para
sempre vindicavam os actos de cada homem do universo e guardavam
arcanos prodigiosos para seu futuro. Milhares de cobiosos
abandonaram o doce hexgono natal e precipitaram-se escadas acima,
premidos pelo vo propsito de encontrar sua Vindicao. Esses
peregrinos disputavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras
maldies, estrangulavam-se nas escadas divinas, jogavam os livros
enganosos no fundo dos tneis, morriam despenhados pelos homens de
regies remotas. Outros enlouqueceram... As Vindicaes existem (vi
duas que se referem a pessoas do futuro, a pessoas talvez no
imaginarias) mas os que procuravam no recordavam que a
possibilidade de que um homem encontre a sua, ou alguma prfida
variante da sua, computvel em zero.
Tambm se esperou ento o esclarecimento dos mistrios bsicos
da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. verosmil queesses graves mistrios possam explicar-se em palavras: se no bastar a
linguagem dos filsofos, a multiforme Biblioteca produzir o idioma
inaudito que se requer e os vocabulrios e gramticas desse idioma. Faz
j quatro sculos que os homens esgotam os hexgonos... Existem
investigadores oficiais, inquisidores. Eu os vi no desempenho de sua
funo: chegam sempre estafados; falam de uma escada sem degraus
que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o bibliotecrio;s vezes, pegam o livro mais prximo e o folheiam, procura de
palavras infames. Visivelmente, ningum espera descobrir nada.
A desmedida esperana, sucedeu, como e natural, uma depresso
excessiva. A certeza de que alguma prateleira em algum hexgono
encerrava livros preciosos e de que esses livros preciosos eram
inacessveis afigurou-se quase intolervel. Uma seita blasfema sugeriu
que cessassem as buscas e que todos os homens misturassem letras e
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smbolos, at construir, mediante um improvvel dom do acaso, esses
livros cannicos. As autoridades viram-se obrigadas a promulgar ordens
severas. A seita desapareceu, mas na minha infncia vi homens velhos
que demoradamente se ocultavam nas latrinas, com alguns discos de
metal num fritilo proibido, e debilmente arremedavam a divina
desordem.
Outros, inversamente, acreditaram que o primordial era eliminar
as obras inteis. Invadiam os hexgonos, exibiam credenciais nem
sempre falsas, folheavam com fastio um volume e condenavam
prateleiras inteiras: a seu furor higinico, asctico, deve-se a insensata
perda de milhes de livros. Seu nome execrado, mas aqueles quedeploram os "tesouros" destrudos por seu frenesi negligenciam dois
fatos notrios. Um: a Biblioteca to imensa que toda reduo de
Origem humana resulta infinitesimal. Outro: cada exemplar nico,
insubstituvel, mas (como a Biblioteca total) h sempre vrias
centenas de milhares de fac-smiles imperfeitos: de obras que apenas
diferem por uma letra ou por uma virgula. Contra a opinio geral,
atrevo-me a supor que as consequncias das depredaes cometidaspelos Purificadores foram exageradas graas ao horror que esses
fanticos provocaram. Urgia-lhes o delrio de conquistar os livros do
Hexgono Carmesim: livros de formato menor que os naturais;
onipotentes, ilustrados e mgicos.
Tambm sabemos de outra superstio daquele tempo: a do
Homem do Livro. Em alguma estante de algum hexgono (raciocinaram
os homens) deve existir um livro que seja a cifra e o compndio perfeito
de todos os demais: algum bibliotecrio o consultou e anlogo a um
deus. Na linguagem desta rea persistem ainda vestgios do culto desse
funcionrio remoto. Muitos peregrinaram procura d'Ele. Durante um
sculo trilharam em vo os mais diversos rumos. Como localizar o
venerado hexgono secreto que o hospedava? algum props um
mtodo regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um
livro B, que indique o lugar de A; para localizar o livro B, consultar
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previamente um livro C, e assim at o infinito... Em aventuras como
essas, prodigalizei e consumi meus anos. No me parece inverosmil que
em alguma prateleira do universo haja um livro total;3 rogo aos deuses
ignorados que um homem um s, ainda que seja h mil anos! o
tenha examinado e lido. Se a honra e a sabedoria e a felicidade no
esto para mim, que sejam para outros. Que o cu exista, embora meu
lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num
instante, num ser, Tua enorme Biblioteca Se justifique.
Afirmam os mpios que o disparate normal na Biblioteca e que o
razovel (e mesmo a humilde e pura coerncia) quase milagrosa
exceo. Falam (eu o sei) de "a Biblioteca febril, cujos fortuitos volumescorrem o incessante risco de transformar-se em outros e que tudo
afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira". Essas
palavras, que no apenas denunciam a desordem mas que tambm a
exemplificam, provam, evidentemente, seu gosto pssimo e sua
desesperada ignorncia. De fato, a Biblioteca inclui todas as estruturas
verbais, todas as variantes que permitem os vinte e cinco smbolos
ortogrficos, porm nem um nico disparate absoluto. Intil observarque o melhor volume dos muitos hexgonos que administro intitula-se
Trono Penteado, e outro A Cibra de Gessoe outro Axaxaxas ml. Essas
proposies, primeira vista incoerentes, sem dvida so passveis de
uma justificativa criptogrfica ou alegrica; essa justificativa verbal e,
ex hypothesi, j figura na Biblioteca. No posso combinar certos
caracteres
dhcmrlchtdj
que a divina Biblioteca no tenha previsto e que em alguma de
suas lnguas secretas no contenham um terrvel sentido. Ningum
pode articular uma slaba que no esteja cheia de ternuras e de
temores; que no seja em alguma dessas linguagens o nome poderoso
de um deus. Falar incorrer em tautologias. Esta epstola intil e
palavrosa j existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um
dos incontveis hexgonos e tambm sua refutao. (Um numero nde
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linguagens possveis usa o mesmo vocabulrio; em alguns, o smbolo
biblioteca admite a correta definio ubquo e perdurvel sistema de
galerias hexagonais, mas bibliotecapooupirmideou qualquer outra
coisa, e as sete palavras que a definem tem outro valor. Voc, que me l,
tem certeza de entender minha linguagem?)
A escrita metdica distrai-me da presente condio dos homens.
A certeza de que tudo est escrito nos anula ou nos fantasmagrica.
Conheo distritos em que os jovens se prostram diante dos livros e
beijam com barbrie as pginas, mas no sabem decifrar uma nica
letra. As epidemias, as discrdias herticas, as peregrinaes que
inevitavelmente degeneram em bandoleirismo, dizimaram a populao.Acredito ter mencionado os suicdios, cada ano mais frequentes. Talvez
me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espcie humana
a nica est por extinguir-se e que a Biblioteca perdurar: iluminada,
solitria, infinita, perfeitamente imvel, armada de volumes preciosos,
intil, incorruptvel, secreta.
Acabo de escrever infinita. No interpolei esse adjetivo por
costume retrico; digo que no ilgico pensar que o mundo infinito.
Aqueles que o julgam limitado postulam que em lugares remotos os
corredores e escadas e hexgonos podem inconcebivelmente cessar o
que absurdo. Aqueles que o imaginam sem limites esquecem que os
abrange o nmero possvel de livros. Atrevo-me a insinuar esta soluo
do antigo problema: A Biblioteca ilimitada e peridica. Se um eterno
viajante a atravessasse em qualquer direo, comprovaria ao fim dos
sculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que,
reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solido alegra-se com
essa elegante esperana.4
NOTAS:
1 O manuscrito original no contem algarismos ou maisculas. A
pontuao foi limitada virgula e ao ponto. Esses dois signos, o espao
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e as vinte e duas letras do alfabeto so os vinte e cinco smbolos
suficientes que enumera o desconhecido. (Nota do Editor.)
2 Antes, em cada trs hexgonos havia um homem. O suicdio e
as enfermidades pulmonares destruram essa proporo. Lembrana deindizvel melancolia: s vezes, viajei muitas noites por corredores e
escadas polidas sem encontrar um nico bibliotecrio.
3 Repito-o: basta que um livro seja possvel para que exista.
Somente est excludo o impossvel. Por exemplo: nenhum livro
tambm uma escada, ainda que, sem dvida, haja livros que discutam e
neguem e demonstrem essa possibilidade e outros cuja estrutura
corresponde de uma escada
4 Letizia lvarez Toledo observou que a vasta Biblioteca intil; a
rigor, bastaria um nico volume, de formato comum, impresso em
corpo nove ou em corpo dez, composto de um nmero infinito de folhas
infinitamente delgadas. (Cavalieri, em princpios do sculo XVII, disse
que todo corpo slido superposio de um nmero infinito de planos.)
O manuseio desse vade mecum sedoso no seria cmodo: cada folha
aparentemente se desdobraria em outras anlogas; a inconcebvel folha
central no teria reverso.
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O Outro
Jorge Luis Borges
O fato ocorreu no ms de fevereiro de 1969, ao norte de Boston,
em Cambridge. No o escrevi imediatamente, porque meu primeiro
propsito foi esquec-lo para no perder a razo. Agora, em 1972, pensoque, se o escrevo, os outros o lero como um conto e, com os anos, o
ser talvez para mim.
Sei que foi quase atroz enquanto durou e mais ainda durante as
noites desveladas que o seguiram. Isto no significa que seu relato
possa comover a um terceiro.
Seriam dez da manh. Eu estava recostado em um banco,
defronte ao rio Charles. A uns quinhentos metros minha direita havia
um alto edifcio cujo nome nunca soube. A gua cinzenta carregava
grandes pedaos de gelo. Inevitavelmente, o rio fez com que eu pensasse
no tempo. A milenar imagem de Herclito. Eu havia dormido bem;
minha aula da tarde anterior havia conseguido, creio, interessar aos
alunos. No havia ningum vista.
Senti, de repente, a impresso (que, segundo os psiclogos,
corresponde aos estados de fadiga) de j ter vivido aquele momento. Na
outra ponta de meu banco, algum se havia sentado.
Teria preferido estar s, mas no quis levantar em seguida, para
no me mostrar descorts. O outro se havia posto a assobiar. Foi ento
que ocorreu a primeira das muitas inquietaes dessa manh. O que
assobiava, o que tentava assobiar (nunca fui muito entoado), era o
estilo crioulo de La Taperade Elias Regules. O estilo me reconduziu aum ptio j desaparecido e memria de lvaro Mellin Lafinur, morto
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h muitos anos. Logo vieram as palavras. Eram as da dcima do
princpio. A voz no era a de lvaro, mas queria parecer-se com a de
lvaro. Reconheci-a com horror.
Aproximei-me e disse-lhe:
O senhor oriental ou argentino?
Argentino, mas desde o ano de 1914 vivo em Genebra foi a
resposta.
Houve um silncio longo. Perguntei-lhe:
No nmero dezessete da Malagnou, em frente igreja russa?
Respondeu-me que sim.
Neste caso disse-lhe resolutamente o senhor se chama
Jorge Luis Borges. Eu tambm sou Jorge Luis Borges. Estamos em
1969, na cidade de Cambridge.
No respondeu-me com a minha prpria voz um pouco
distante.
Ao fim de um tempo insistiu:
Eu estou aqui em Genebra, em um banco, a alguns passos do
Rdano. 0 estranho que nos parecemos, mas o senhor muito mais
velho, com a cabea grisalha.
Respondi:
Posso te provar que no minto. Vou te dizer coisas que um
desconhecido no pode saber. L em casa h uma cuia de prata comum p de serpentes, que nosso bisav trouxe do Peru. H tambm uma
bacia de prata que pendia do aro. No armrio do teu quarto, h duas
filas de livros. Os trs volumes das Mil e Uma Noites de Lane, com
gravaes em ao e notas em corpo menor entre os captulos, o
dicionrio latino de Quicherat, a Germania de Tcito em latim e na
verso de Gordon, um Dom Quixote da casa Garnier, as Tbuas de
Sanguede Rivera Indarte, o Sartor Resartusde Carlyle, uma biografiade Amiel e, escondido atrs dos demais, um livro em brochura sobre os
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costumes sexuais dos povos balcnicos. No esqueci tampouco um
entardecer em um primeiro andar da praa Dubourg.
Dufour corrigiu.
Est bem. Dufour. Te basta, tudo isto?
No respondeu Essas provas no provam nada. Se eu
estou sonhando, natural que eu saiba o que sei. Seu catlogo prolixo
totalmente vo.
A objeo era justa. Respondi:
Se esta manh e este encontro so sonhos, cada um de ns
dois tem que pensar que o sonhador ele. Talvez deixemos de sonhar,
talvez no. Nossa evidente obrigao, enquanto isto, aceitar o sonho,
como aceitamos o universo e termos sido engendrados e olharmos com
os olhos e respirarmos.
E se o sonho durasse? disse com ansiedade.
Para tranqiliz-lo e me tranqilizar, fingi uma serenidade que
certamente eu no sentia. Disse-lhe:
Meu sonho j durou setenta ano