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8/8/2010 27SALVADOR DOMINGO26 SALVADOR DOMINGO 8/8/2010
surpreendentedehistórias talvezcontadas
por Jorge Amado, é a única resposta.
CANOAS E CATRAIASA algumas dezenas de metros da Ladei-
ra da Conceição, na direção da Igreja da
Conceição da Praia, o Mercado Modelo é
outro núcleo da Salvador de Jorge Amado.
SededaBarracaSãoJorge,depropriedade
do obá Camafeu de Oxóssi – que aparece
nos livros e realmente existiu –, “o Merca-
do Modelo era um mundo, onde ao lado
do peixe fresco, da carne-de-sol, da alva fa-
rinha de mandioca, da pimenta-de-cheiro
e da pimenta-malagueta, do azeite-de-
-dendê, das frutas inúmeras, funcionavam
as barracas de comida e as de artesanato.
Figuras pitorescas da cidade ali tinham seu
habitat, exibiam sua picardia, seu saber,
sua arte”, escreveu o romancista.
Testemunhas da história, velhos pesca-
doresdaRampadoMercadorefletemode-
clínio no comércio local. “Era caixa, peixe,
gente pra todo lado. Acabou tudo”, diz Flo-
risvaldo Oliveira, puxador de redes desde
62,hojeumdosoitoounovemoradoresda
Rampa,quedormemembaixodecanoase
catraias e nem sempre trazem do mar o su-
ficiente para um prato de comida.
No cais da Rampa do Mercado, saveiris-
tas como Guma, de Mar Morto, não são
mais vistos. Barcos a motor, que rebocam
navios e transportam seus tripulantes, do-
minam o atracadouro. “O ferryboat aca-
bou com o transporte de carga para o Re-
côncavo”, culpa o pescador.
E arruinou também o Porto da Lenha,
em Itapagipe, na Cidade Baixa, de onde os
canoeiros partiam carregados para atra-
vessar a baía. Mas o porto, a rampa, o cais
ainda veem saltar no mar seus capitães da
areia. Personagens subalternos, como to-
dos os preferidos de Jorge Amado, que
continuam a habitar a Cidade da Bahia. «
O mar do Porto
da Lenha: parque
de diversão dos
garotos da
Cidade Baixa
«As canoas noPorto da Lenhase agitavam eos canoeirosresolveram nãovoltar naquelanoite para ascidadezinhas doRecôncavo»Mar morto (1936)
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JORGE AMADO
Texto VITOR PAMPLONA vpamplona@grupoatarde.com.brFotos THIAGO TEIXEIRA thiagoteixeira@grupoatarde.com.br
O que resta da cidade que inspirou oromancista baiano e que foi imortalizada emseus livros? A equipe de Muito percorreupaisagens que saltaram do real para a ficção
O Pelourinho, coração cultural e
histórico da velha Cidade da Bahia
«Parecia um velho sobradocomo os outros, apertadona Ladeira do Pelourinho»Suor (1934)
MARA MÉRCIA / ARQUIVO A TARDE
SÉCULO 21
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Em 1944, Jorge Amado sen-
tou-se em frente à máquina de
escrever para criar um guia tu-
rístico de Salvador. Um guia
nãoconvencional.BahiadeTo-
dos os Santos – Guia de Ruas e
Mistérioséumareuniãodecrônicasdecos-
tumes, conduzidas pela descrição da cida-
de. Ao estranho que a desconhece, o livro
instrui: “A Cidade da Bahia se divide em
duas: a Cidade Baixa e a Alta. Entre o mar e
o morro, a Cidade Baixa é do grande co-
mércio”.Bem,aCidadeBaixadeixoudeser
a do grande comércio, que lá minguou, su-
biu o morro e se espalhou.
Mas a explicação prossegue, falando da
noite silenciosa, casas comerciais fecha-
das, saveiros de velas arriadas. É quando
“a Cidade Alta movimenta-se para os cine-
mas, para as festas, para as visitas”. Meio
século depois, casarões foram demolidos
ou viraram ruínas. Não há mais saveiros e
A meia-lua do capoeirista mestre Luís no Terreiro de Jesus: quase um Jubiabá
os cinemas estão quase todos trancafiados
nos shopping centers. Mas alguns misté-
rios sobrevivem na velha Bahia.
Na semana em que Jorge Amado com-
pletaria 98 anos, Muito homenageia o es-
critor nascido em 10 de agosto de 1912
com um passeio pela Salvador de seus li-
vros em pleno século 21. Ruas, praças,
bairrosepersonagensqueformamumaci-
dade dentro da cidade e que, antes de des-
pertarem nos livros, são reais.
CORAÇÃODe todos os recantos de Salvador que
aparecem na obra de Jorge Amado, ne-
nhum tem mais importância do que o Pe-
lourinho, “o coração da vida popular baia-
na”.Suasladeiras, igrejas,botecosesobra-
dos testemunharam o velório de Quincas
Berro d’Água, esconderam a misteriosa
Tenda dos Milagres e abrigaram as pros-
titutas lideradas por Tereza Batista.
“Toda a riqueza do baiano, em graça e
civilização, e toda sua pobreza infinita, to-
do seu drama e toda a sua magia”, escre-
veu o romancista, “nascem e estão presen-
tes nesta antiga parte da cidade”. Ainda
hoje, imerso nas polêmicas em torno de
uma nova revitalização, o Pelourinho tem
um centro nevrálgico: o Terreiro de Jesus.
É onde ficavam as pensões estudantis,
onde se armava o ringue de boxe para An-
tônio Balduíno em Jubiabá e onde sua tia,
Luíza, aprontava o tabuleiro para vender
mungunzá e mingau de puba. Há décadas,
haja turistas ou não, o centro do Terreiro é
ocupado por gente como José Luiz Aleluia,
40.“Sounascidoecriadoaqui.Fugiadaes-
cola para a capoeira”, resume a autobio-
grafia. A profissão virou codinome e valeu
a Luiz Capoeira lances de Balduíno.
“Tudoénahoracertaenomomentocer-
to”, expõe as condições para a dança virar
luta. “Numa noite, eu estava indo na paz
«Terreiro de Jesus,tudo misturado naBahia, professor. OAdro de Jesus, oTerreiro de Oxalá,Terreiro de Jesus»Tenda dos Milagres (1969)
para casa. Saltei do ônibus e vi uma con-
fusão,pertodeumbar,comumconhecido.
Usei minha habilidade como defesa”.
Ao contrário de Balduíno, desclassifica-
do de uma luta de boxe por aplicar um gol-
pe de capoeira, foi Luiz quem afastou o ad-
versário.“Opéentrou,comosediznagíria.
Ele tombou e viu que não dava”.
Para o capoeirista de rua, os baques são
outros. A sobrevivência, reconhece, de-
pendedaajudadosturistas.“OPelourinho
é de fase, tem altos e baixos. Agora, nas
férias, está bombando”. Se o movimento
enfraquece, a alternativa é buscar o pão
em outras praças. “No momento, estou só
com a capoeira, mas trabalhei como segu-
rança, com um parente policial. Vigiava lo-
ja no Comércio”, detalha.
TOSTÃODas lojas do Comércio ao Pelourinho, a
Ladeira do Tabuão servia, segundo Jorge
Amado, àqueles que economizavam – ou
nãotinham–otostãodoElevadorLacerda.
Dos fundos da Associação Comercial, ela
serpenteia entre fachadas desbotadas até
separar a antiga Ladeira do Pelourinho, re-
batizada de largo, da Ladeira do Carmo.
“A Ladeira do Tabuão, durante as horas
do dia, joga gente na Baixa dos Sapateiros
e dela recebe gente em busca da Cidade
Baixa”, anotou o escritor em Bahia de To-
dos os Santos. Na literatura, o Tabuão tor-
nou-se célebre por abrigar a mágica Tenda
dos Milagres, que reunia pessoas de todos
os credos e classes sociais.
Os artesãos e santeiros da rua, que nou-
tros tempos fabricavam “indiferentemen-
te imagens católicas, Nossa Senhora e Je-
sus Cristo, e ídolos negros, Iansã e Ogum”,
foram substituídos pelos comerciantes de
tecidoseestofados,apontodeoTabuãose
tornar uma meca dos reformadores de so-
fá. Mas os sapateiros que deram nome à
Os casarões do Tabuão, bairro da Tenda dos Milagres, que faz ligação entre o Pelourinho e o Santo Antônio Além do Carmo
«Durante o dia,a vida regurgita,pobre mas ardente,nesta ladeira suja evelha. Durante anoite, um hospitalde alucinação. (...)Assim é a Ladeirado Tabuão»Bahia de Todos os Santos (1945)
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Baixacontinuamlá.Emoficinasprecáriase
ruínas abjetas. “Reforma-se sapato”, per-
siste o anúncio na porta, enquanto do lado
de dentro dezenas de pares envelhecidos
ignoram o esquecimento dos donos. Em
lugarescomooTabuão,aBahiadoslivrose
da vida real se separa por uma calçada.
“O Pelourinho, lugar de mendigos e va-
dios no século 19, recuperado para o turis-
mo, voltou a ser centro de circulação de
uma população negra e mestiça, que afir-
ma sua identidade de forma expansiva”,
acredita a pesquisadora Eneida Leal Cu-
nha, especialista na obra de Amado. A pai-
sagem é a mesma dos livros, mas, para a
pesquisadora, a questão racial é diluída.
“Em Jubiabá, a questão de classe tem pre-
ponderância sobre a racial”.
LÁGRIMASEmsuaobra,JorgeAmadomenciona97
bairros e 46 ruas de Salvador, de acordo
com levantamento do pesquisador Jac-
quesSalah,autordeABahiadeJorgeAma-
do, tese que esmiúça a geografia física e
social dos livros. Ex-cônsul honorário da
França na Bahia, ele expõe o grau de par-
ticipaçãodacidadenaliteraturadobaiano.
“Ela é personagem, autor, mensagem do
romance. Sua função, de cenário natural, é
aumentada para cenário vivo”.
Salah dedica uma análise aos bordéis e
prostitutas, personagens assíduas do uni-
verso do escritor. Lembra que, em Tereza
Batista Cansada de Guerra, Jorge situa o
“vasto e inquietante território da zona do
meretrício”daBarroquinhaaoPelourinho,
do Maciel à Ladeira da Montanha, do Ta-
buão à Rua da Carne-Seca – praticamente
todo o Centro Histórico. Há casas de luxo,
que atraem comerciantes e coronéis de fu-
moecacau,ebordéispopularesaondevão
boêmios, estudantes e marginais.
No primeiro estilo, a casa mais típica era
a Pensão Monte Carlo, citada em Suor, Ju-
biabá e Os Velhos Marinheiros. Neste ro-
mance,Jorgegarantequeapensãodefato
existiu, no 1º andar do prédio onde funcio-
nou o extinto Diário da Bahia, no início da
Rua Carlos Gomes, perto da Praça Castro
Alves. Ali, nos arredores da Montanha,
apenas a prostituição popular sobreviveu.
Os prédios em ruínas dão abrigo a tra-
gédias, da degradação pessoal a acidentes
mais visíveis, como o desabamento que
matou uma mulher e feriu outras três pes-
soas, há um mês, na Ladeira da Conceição.
A rua é, há quase três décadas, o endereço
de Marinalva Oliveira, 49, segundo a car-
teira de identidade, mais outros tantos vi-
vidos antes do registro civil. Em seu “bar de
tolerância”, cercadadeboiasdenavio,Ma-
rinalva é amiga, conselheira, mãe e madri-
nha de jovens prostitutas.
“Estouaquihámuitosanos”,desconver-
sasobrecomoiniciousuavidaprofissional.
Ao ouvir o nome de Jorge Amado, sua ex-
pressão paralisa. A mão vai à cabeça. Os
olhos enchem-se de lágrimas. “Meu gran-
de amigo”, afirma. “Ele vinha muito aqui,
mais durante o dia. Sentávamos naquela
mesa”, aponta. Chamava-a de Marri.
“Conversávamos sobre os problemas da
vida, histórias. Ele dizia: Marri, será que
vou conseguir publicar isso?”. O que era
“isso”? A risada de Marinalva, fonte viva e
A Rampa do Mercado Modelo, que servia de abrigo aos boêmios de Dona Flor, ainda acolhe pescadores sob suas catracas
«Quando pelamadrugadasaíssem do cabaré,a última dobrada noite da Bahiaos atendia nosmistérios doPelourinho (...), nomar e nos saveirosda Rampa»Dona Flor e seus dois maridos (1966)
Marinalva
Oliveira, que
mantém um
prostíbulo na
Ladeira da
Conceição. Ao
lado, a Ladeira
da Montanha
«Moças sedebruçam nasjanelas doscasarões antigos»Capitães da areia (1937)
MAR
COAU
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