Post on 09-Nov-2018
João do Rio: um flâneur às portas da modernidade
Déllin Ramos de PAULA1
Giovanna Oliveira de SOUZA2
Rodrigo Marques de OLIVEIRA3
Resumo
Este estudo propõe uma análise dos traços característicos que marcaram várias das
crônicas do autor João do Rio e de como elas refletem sua percepção crítica de um
momento de extremas mudanças pelas quais passava a capital federal do Brasil no início
do século XX. Seu olhar de artista sobre as belezas e mazelas da sociedade carioca da
Belle Époque traduz não só a sua consciência crítica acerca das tensões presentes no
processo de modernização da cidade, mas também lhe servem de matéria poética ao
retirar do cotidiano experiências estéticas universais. Algumas das diversas crônicas do
autor foram selecionadas com o objetivo de evidenciar como as tensões referidas foram
engendradas na representação do Rio de Janeiro de sua época.
Palavras-chave: João do Rio. Crônicas. Belle Époque carioca.
Abstract
The aim of this study is to analyze the characteristic features which distinguished a
large number of chronicles written by João do Rio and to show how these texts reflect
his critical perception of a moment of extreme changes in the federal capital of Brazil at
the beginning of the twentieth century. The artist’s perception of the beauties and
misfortunes of the society of Rio de Janeiro at the time of Belle Époque reflects not only
his critical thinking about the tension involved in the modernization of the city, but also
provides him with poetic content taking universal aesthetic from everyday experiences.
Some of the various chronicles of this author were chosen in order to give evidence of
1 Graduado em Letras pelo Centro Universitário Barão de Mauá - CEP 14090-180 – Ribeirão Preto – SP –
E-mail: dellinrp@hotmail.com
2 Graduada em Letras pelo Centro Universitário Barão de Mauá - CEP 14090-180 – Ribeirão Preto – SP –
E-mail: giosouza@gmail.com
3 Doutor em Estudos Literários (UNESP / Araraquara) - Docente do Centro Universitário Barão de Mauá
- CEP 14090-180 – Ribeirão Preto – SP – E-mail: rodrigo.oliveira@baraodemaua.br
how the mentioned tensions were engendered in the portrait of Rio de Janeiro of his
time.
Keywords: João do Rio. Chronicles. Belle Époque. Rio de Janeiro.
Introdução
A literatura do Pré-Modernismo brasileiro tem como uma de suas características
a manifestação do inconformismo dos autores no que se refere aos aspectos sociais e
políticos. Tal postura, presente na maior parte das obras desse período, é também
característica fundamental em João do Rio, jornalista, cronista e crítico que, sobretudo,
registrou com profundo olhar crítico as mudanças ocorridas na cidade do Rio de Janeiro
no período de passagem do século XIX para o XX.
O objetivo deste artigo é, pois, analisar a maneira como o autor carioca
posicionava-se diante dessas transformações e, principalmente, como as retratava em
seus textos, tecendo um interessante jogo de dualidades, em que as faces múltiplas do
Rio de Janeiro vão se revelando a cada jornada das personagens de João do Rio no
espaço da urbe.
1. O autor e a Belle Époque carioca
João do Rio é um dos pseudônimos do escritor João Paulo Emílio Cristóvão dos
Santos Coelho Barreto, mulato e de origem humilde, que nasceu em 1881 no Rio de
Janeiro, filho do educador Alfredo Coelho Barreto e de Florência Cristóvão dos Santos
Barreto. Recebeu a educação elementar de seu pai, então professor do Colégio Pedro II.
Segundo artigo da Academia Brasileira de Letras, Alfredo Coelho foi adepto da igreja
positivista, fundada por Auguste Comte na França. Apesar, porém, de a Igreja Comtista
ter uma filosofia muito respeitada na época, para o nosso autor ela foi apenas tema de
seus trabalhos como jornalista, profissão em que ingressou aos dezesseis anos e que o
colocou em contato com o mundo literário.
Talvez seja essa proximidade com a literatura que o levou a adotar pseudônimos,
em especial o de João do Rio, usado pela primeira vez, de acordo com o professor e
pesquisador Raúl Antelo (2008, p. 9), em 1903, para compor a autoria da crônica “O
Brasil lê”, publicada na primeira página do jornal Gazeta de Notícias. Como João do
Rio, o autor obteve grande destaque no jornalismo ao conseguir cerzir, numa mesma
tessitura discursiva, importantes reflexões sobre o Rio de Janeiro de seu tempo,
entrelaçadas às inúmeras referências que só um erudito, admirador tanto da filosofia
grega como de Oscar Wilde, poderia realizar.
Dedicou duas décadas de sua vida à escrita de artigos, em sua maioria crônicas,
nas quais registrava a sua observação do dia a dia da capital carioca. João do Rio era
fascinado por observar o mundo a sua volta, captando as cenas corriqueiras com seu
olhar de flâneur, como ele mesmo se autodenominava. O termo flâneur, que se origina
do verbo francês flâner (caminhar, vagar), indica uma pessoa que anda pelas ruas
aparentemente sem um objetivo, mas que observa e experimenta tudo a sua volta por
meio de seus sentidos.
Ele criou, então, o verbo flanar, que, em sua definição, “[...] é ser vagabundo e
refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem.
[...]” (2008, p. 31). E, assim, andava pelas ruas do Rio de Janeiro, observando,
compreendendo e imaginando os cenários que criava para suas crônicas.
Na pele desse aguçado observador, João do Rio imprime em sua obra o jogo
entre o local e o universal. Os personagens que insere em suas crônicas são
representantes do local, pois representam figuras populares de fato encontradas nas ruas
cariocas, como tatuadores, prostitutas, vendedores ambulantes. Ao mesmo tempo, vê-se
a presença do universal na análise psicológica que o autor realiza das ruas da capital,
procurando fazer relação com o espaço urbano de Nova Iorque e Paris, mostrando que
os paradoxos existentes na sociedade carioca são representação do que acontecia em
grande parte das metrópoles na transição do século XIX ao XX.
Inspirado pelas contradições que percebe na sociedade, o autor traz, em seus
textos, suas percepções desse momento da história da capital carioca, considerado por
muitos estudiosos como a Belle Époque tropical. Ele participou da discussão, com
muitos literatos da época, sobre o surgimento de uma identidade literária no Brasil.
O final do século XIX e os anos iniciais do século XX marcaram a entrada de
muitas influências no Brasil, sejam elas culturais, filosóficas ou tecnológicas, muitas
delas provenientes da França e Inglaterra, países que, na época, eram grandes potências
mundiais. O Rio de Janeiro tornou-se, assim, o primeiro centro urbano a receber as
novidades estrangeiras e a propagá-las para o restante do Brasil. João do Rio noticiou,
em seus textos, essas mudanças, os novos hábitos, os estrangeirismos e a cara nova de
uma sociedade que desejava ser civilizada e bela, mas ainda escondia sob suas
aparências muitos defeitos, principalmente sociais e políticos.
Uma das mudanças sociais que mais refletem esse mascaramento da cidade na
tentativa de transformar a capital brasileira em uma Paris latino-americana está na ação
do prefeito Pereira Passos, que consistiu na derrubada de muitas casas que estavam
situadas em vielas estreitas e que dariam lugar à Avenida Central. Essa ação, que ficou
conhecida como “Bota-abaixo”, não levou em consideração as pessoas pobres que lá
moravam. Forçadas a encontrarem outro lugar para viver, migraram para os morros e
subúrbios, dando origem às favelas, um problema social que perdura até os dias de hoje
(IVO, 2012, p. 6-8).
Foi no meio dessas mudanças que João do Rio viveu, observou e escreveu, com
um olhar quase fotográfico, os costumes, os defeitos, a hipocrisia, sem deixar de notar
algumas qualidades de uma sociedade que estava para ingressar no século XX e
aspirava por ser moderna e bela, mas nem sempre justa. Sua busca por inspiração se deu
nas ruas, mostrando a realidade do povo, dos pobres em especial, em suas crônicas e
contos, andando pela cidade muitas vezes no período noturno.
Nos anos iniciais da República, havia um grande receio quanto à fragmentação
territorial, que, desde o período do primeiro império, sempre foi uma realidade e, a cada
revolta ou rebelião, fazia o poder de coerção do governo mostrar-se necessário para
manter a unidade do país. No meio literário, isso também aconteceu: devido às
diferenças regionais e culturais entre norte e sul, cogitava-se a formação de escolas
literárias distintas, além das disputas existentes entre os novos e antigos escritores da
época. Nesse cenário de opiniões instáveis, João do Rio elaborou, sob moldes franceses,
uma enquete para os escritores e literatos contemporâneos a ele, que dá informações
preciosas acerca dessa divisão de opiniões, no que se refere ao alcance da leitura e à
propagação da literatura brasileira. As respostas foram compiladas em um livro de
fundamental importância a nossa literatura, chamado de O momento literário.
Entre março e maio de 1905, portanto, o cronista percorre a República das
Letras, indo a Academia Brasileira de Letras, recém-inaugurada, à Livraria
Garnier, na rua do Ouvidor, e dessa viagem resulta um livro de entrevistas
com escritores, O Momento Literário, em que salienta em implacável galeria
de grotescos a inserção compulsória do Brasil da nova ordem mundial: art
nouveau, armamentismo, nacionalismo (IVO, 2012, p. 18).
Nesse livro, fica evidente a falta de unidade entre os autores e literatos da época,
tanto em questões que se referem à situação política e de produção literária no Brasil
quanto à formação da Academia Brasileira de Letras e ao alcance da leitura no país.
Sobre a unidade literária no Brasil, o poeta Olavo Bilac, um dos seus entrevistados,
relatou a falta de identidade própria e as lacunas na formação moral e intelectual do
povo, que aceita todos os estrangeirismos e não possui nenhum senso crítico.
Nós nunca tivemos propriamente uma literatura. Temos imitações, cópias,
reflexos. Onde o escritor que não recorde o outro escritor estrangeiro, onde a
escola que seja nossa? [...] Somos uma raça em formação, na qual lutam pela
supremacia diversos elementos étnicos. Não pode haver uma literatura
original, sem que a raça esteja formada, e já é prodigiosa a nossa inteligência,
que consegue ser esse reflexo superior e se faz representativa do espírito
latino na América. (BILAC apud RIO, 2006, p. 17)
O poeta enfatizou a falta de originalidade na literatura nacional, decorrente,
principalmente, da ausência de criticismo dos nossos autores e da falta de uma escola
literária fundada por brasileiros. Nessa fase conturbada do país, em que os anos iniciais
da República dividiam as opiniões sobre política, formação cultural e intelectual,
buscava-se uma identidade própria, inclusive no que se refere à crítica literária.
Bilac concluiu o raciocínio sobre as influências francesas em relação à filosofia
e à literatura no Brasil afirmando que talentos e livros belos não são suficientes para que
haja uma literatura. E acrescentou
[...] Nós nos regulamos pela França. A França não tem agora lutas de escola,
nós também não; a França tem alguns moços extravagantes, nós também; há
uma tendência mais forte, a tendência humanitária, nós começamos a fazer
livros socialistas. Esta última corrente arrasta, no mundo, todos quanto se
apercebem da angústia dos pobres e do sofrimento dos humildes. (BILAC
apud RIO, 2006, p. 19)
O autor fez uma consideração apropriada sobre três dos problemas sociais do
país, cujas soluções julgava serem essenciais para a formação de uma nação e,
consequentemente, para a iniciação de uma literatura com identidade própria. O
primeiro problema referia-se ao vasto território brasileiro, que precisava ser povoado; o
segundo tratava das condições péssimas de saneamento em muitas cidades; e, por fim, a
ignorância do povo. Esses eram, para ele, os principais obstáculos a serem superados e
estavam interligados de forma que a solução de apenas um deles não resultaria em
melhora nas condições de vida do povo e da sociedade como um todo (BILAC apud
RIO, 2006, p. 18-19).
Nesse mesmo livro, encontra-se outro autor importante da época que
compartilha com Olavo Bilac a ideia de o país não possuir uma identidade literária.
Medeiros e Albuquerque também considera que não há como existir literatura
genuinamente brasileira sem que haja uma nacionalidade definida e descarta a
possiblidade de desenvolvimento de centros literários distintos, pois não existia riqueza
intelectual ou tamanha distinção cultural para que isso ocorresse.
Nós por ora, somos uma “mistura”, sem propriedades definidas... Para dizer
mais claramente: é impossível pensar em literatura nacional –
caracteristicamente “nacional” – quando ainda não somos uma nacionalidade,
nem temos um ideal definido do que poderia ser a futura nacionalidade
brasileira. [...] O que há entre nós é a falta de meios de comunicação e falta
de instrução primária. Quase ninguém lê, quase ninguém se vê. Daí a
existência efêmera desses grupinhos estaduais, que são forçados ao elogio
mútuo e exagerado pela estreiteza do meio e pela dificuldade de serem
conhecidos no resto do país. Mas desde que um livro publicado no Amazonas
for tão facilmente lido lá como aqui ou no Rio Grande do Sul, ninguém
pensará mais na fantasia das literaturas estaduais (ALBUQUERQUE apud
RIO, 2006, p. 55).
O poeta Lima Campos faz um comentário sobre a literatura nacional da época
em relação ao Rio de Janeiro, dando a ele o status de difusor intelectual das ideias e da
produção literária, afirmando também que, mesmo com formações diferentes nas
províncias, para os autores, era necessária a mudança para a capital carioca se sua
intenção fosse o reconhecimento pelo público e pela crítica. Caso contrário, eles “se
estiolarão gradualmente até o atrofiamento, o estacionamento completo” (CAMPOS
apud RIO, 2006, p. 64). Ou seja, ele comparou, também nesse aspecto, o Rio de Janeiro
a Paris, pois ambas as capitais figuram como o núcleo dos méritos literários de seus
países.
No que diz respeito à importância da cidade do Rio de Janeiro, podemos
destacar a sua relevância como capital da República, portanto centro político e
intelectual, e também como propulsora na formação de uma unidade literária brasileira.
A chegada da modernidade modificava os hábitos e a maneira de pensar primeiramente
na capital e somente depois no restante do país, tornando o Rio de Janeiro uma
metrópole cosmopolita e difusora das novidades que vinham de fora, principalmente da
Europa.
Mesmo com avanços que abrangiam desde a arquitetura da cidade até sua
organização estrutural, problemas antigos como a pobreza, o analfabetismo e o
saneamento básico ainda eram uma realidade e, por isso, tornaram-se tema do autor
João do Rio. Dualidades como o local e o universal, a beleza e a monstruosidade, o rico
e o pobre, o novo e o antigo, o moderno e o obsoleto podem ser encontradas como
temas de diversos textos que escreveu até o ano de sua morte, em 1921. E são
exatamente essas dualidades, tomadas aqui como objeto de estudo, que retratam os
conflitos pelos quais passava o Brasil nos anos iniciais do novo regime político e na sua
inserção no século XX.
2. A crônica e seus desdobramentos
A produção de João do Rio abrange diversos gêneros textuais, como o conto, o
romance, o teatro, a novela e a crônica. Nota-se, no entanto, que sua obra é composta
por um grande número de crônicas, que figuram em diferentes coletâneas. Foi este o
gênero selecionado para compor este estudo, pois é em suas crônicas que se concentram
as dualidades que serão analisadas no próximo capítulo. Para que a análise seja bem
compreendida, é necessário que sejam retomados os principais traços desse gênero,
assim como sua origem.
A nação vivia um momento de rápidas transformações de âmbito social, político
e intelectual. Erudição e intelectualidade eram adjetivos distantes da maioria da
população. O jornal tornou-se um meio fundamental de propagação dos trabalhos
literários, dos líricos aos críticos, dos "folhetins" às crônicas. Nesse espaço de
divulgação, João do Rio retratou tudo aquilo que, como flâneur, observou à sua volta,
relatando, quase que fotograficamente, os costumes do povo em uma capital que
mudava, criando, assim, uma feição que, hoje, só a crônica brasileira possui.
Em sua prosa imagística, de uma vivacidade e modulação incomparáveis,
desfilam a frivolidade, a banalidade e a hipocrisia de uma sociedade
cosmética e desespiritualizada, e extremamente ciosa das vantagens e
privilégios de sua superioridade hierárquica. Esse mundo do poder do
dinheiro, dos ademanes4 e etiquetas, do ócio herdado, do prazer e de uma
licença sexual mascarada em elegância, pudicícia e segredos de alcova foi
por ele retratado ora em cores quentes e fortes, ora num claro-escuro
impressionista. (IVO, 2012, p. 12)
4 Trejeitos, gestos.
Analisando as crônicas como gênero textual, pode-se dizer que elas nem sempre
tiveram as características que têm hoje. Muito de sua forma atual, assim como sua
ampla difusão e popularização, deve-se ao trabalho de João do Rio e outros autores
consagrados dessa mesma época. Para compreender melhor as transformações desse
gênero, é necessário regressar ao surgimento do termo, na Grécia antiga.
A palavra crônica é derivada de khrónos, que, na mitologia grega, representava o
deus do tempo, Cronos, pai de Zeus. Passou para o latim como chronica, e no início da
era cristã referia-se a uma lista de acontecimentos ordenados sequencialmente de acordo
com a linearidade de suas ocorrências; era um registro dos fatos sem aprofundamento
ou interpretações. (MOISÉS, 2012, p. 623)
Foi no século XIX que a crônica começou a ostentar características modernas,
quando, liberta do historicismo, passou a ter sentido literário, beneficiando-se então do
jornal como meio de propagação nos feuilletons, termo traduzido posteriormente para
folhetim (MOISÉS, 2012, p. 623). O professor de retórica Julien-Louis Geoffroy fazia
crítica da arte dramática no Journal de Débats (1799), e sobre esses textos é possível
afirmar que são uma forma embrionária de crônica, pois os artigos foram reunidos em
seis volumes chamados de Cour de Littérature Dramatique (1819 – 1820). Não
demorou muito para que ele tivesse seu trabalho imitado no Brasil, inicialmente
seguindo o modelo dos folhetins, pois eram impressos nos rodapés dos jornais, fazendo
uma recapitulação dos acontecimentos mais importantes da semana.
Antes de ser crônica propriamente dita foi “folhetim”, ou seja, um artigo de
rodapé sobre as questões do dia – políticas, sociais, artísticas e literárias. [...]
Aos poucos o folhetim foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar
de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou
francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é
hoje. (CANDIDO, 2012, p. 15)
Esse novo formato de crônica ganhou realmente notoriedade com João do Rio,
no período inicial do século XX, e logo após, com Rubem Braga, a partir de 1930.
[...] Mas já na segunda metade daquela centúria o vocábulo ‘crônica’
começou a ser largamente utilizado (também no sentido de “narrativa
histórica”): vários escritores do tempo, desde Alencar até Machado de Assis,
cultivaram a nova modalidade de intervenção literária. Entretanto, a essa fase
inicial sucedeu a de esplendor na publicação de crônicas: principiando por
João do Rio (1900 e 1920), alcançou larga difusão e aceitação com Rubem
Braga, na década de 1930, exemplo depois seguido por uma legião de
escritores [...]. (MOISÉS, 2012, p. 623)
Como é possível perceber, a crônica sempre teve uma relação direta com o
“tempo”, mas sua estrutura mudou com o passar dos anos, adquirindo certa brasilidade
em decorrência das mudanças pelas quais passava o Brasil e do modo com que elas
afetavam nossos autores, citando em especial os que na capital viviam, tornando a
crônica não só brasileira, mas também carioca. Esse fato é percebido até por estudiosos
norte-americanos interessados no assunto, como Moser.
Não só os mais brilhantes cronistas estão vinculados ao Rio, como também
seus comentários refletem a implicante malícia, de mistura com solidária
sentimentalidade e irônico ceticismo que tem sido associados com o carioca.
(MOSER apud MOISÉS, 1971, p. 221)
O debate gerado pela nacionalidade desse gênero textual preza por sua
brasilidade, mas, de fato, ocorreram mudanças até que a crônica possuísse as
características que tem hoje. Mesmo havendo ótimos cronistas em todo território
brasileiro no período de transição entre os séculos XIX e XX, foi no Rio de Janeiro que
se deu maior continuidade a esses trabalhos.
E tal naturalização não se processou sem profunda metamorfose, que explica
o entusiasmo com que alguns estudiosos defendem a cidadania brasileira da
crônica: ao menos em relação à crônica dos nossos dias, tudo faz crer que
raciocinam corretamente. De qualquer modo, a crônica tal qual se
desenvolveu entre nós, parece não ter similar em outras literaturas, salvo por
influencia de nossos escritores, como na moderna língua portuguesa.
(MOISÉS, 2012, p. 624)
O gênero crônica apresenta características específicas. Trata-se de uma narrativa
breve, de um texto de curta dimensão, característica que se estabeleceu devido ao fato
de o texto ter que se ajustar a meia coluna de jornal.
A subjetividade é outra característica relevante. O foco narrativo da crônica está
quase sempre na 1ª pessoa do singular, inclusive nos textos em que não se foca no “eu”,
pois os fatos narrados sempre perpassam pela visão pessoal do narrador e é a sua visão
desses fatos que importam tanto ao cronista quanto ao leitor. Quando em 3ª pessoa,
ainda prevalece o caráter subjetivo.
Essa subjetividade leva, naturalmente, o narrador a um diálogo com o leitor.
Moisés (2012, p. 636) considera esse diálogo essencial para a relação do texto com o
cotidiano.
Voltado ao mesmo tempo para o cotidiano e para suas ressonâncias nas arcas
do “eu”, o cronista está em diálogo virtual com um interlocutor mudo, mas
sem o qual a sua incursão ao mundo real se torna impossível.
Outra característica desse gênero é a utilização da linguagem coloquial como
recurso para aproximar o texto do leitor. Trata-se de um texto direto, claro, espontâneo e
de fácil compreensão, como afirma Candido (1992, p. 13):
Por meio dos assuntos, da composição solta, do ar de coisa sem necessidade
que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia.
Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso
modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta
humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a
outra mão certa profundidade de significado e certo acabamento de forma,
que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à
perfeição.
Por fim, cabe destacar a efemeridade como característica da crônica. Como foi
feita para jornais, é natural que não tenha sido concebida para durar, mas para se esgotar
juntamente com seu veículo. Quando os autores decidem selecionar algumas de suas
crônicas e publicá-las em livros, tem-se uma durabilidade maior, mas, como afirma
Moisés (2012, p. 638), nem assim elas resistem ao tempo.
Admitamos, contudo, que o envoltório do livro funcione como recurso
preservador de total decomposição, e lá teremos, ao fim de tudo, a
mumificação, que significa enganosa e falsa vitória sobre o poder implacável
das horas. Os livros de crônicas condenam-se à seção de obras raras ou de
ínfima circulação [...]. Quem procura em livro as crônicas que leu ou deixou
de ler no jornal preferido ou revista de grande público?
Essa efemeridade, no entanto, não diminui o valor da crônica. Ela é um gênero
de menor representatividade se comparada aos romances, poemas ou contos. Mas é
justamente aí que está o seu valor, como diz Candido (1992, p. 13):
A crônica não é um “gênero maior”. Não se imagina uma literatura feita de
grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas,
dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um
cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um
gênero menor.
“Graças a Deus”, - seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto de
nós.
É esse o valor da crônica, estar perto de seus leitores, imprimindo um retrato da
realidade de uma época de maneira a criar um texto de fácil entendimento, propondo
reflexões sobre situações que são comuns a todos.
3. As dualidades em João do Rio
Dentre os trabalhos de João do Rio, as crônicas destacam-se dos demais gêneros
produzidos por ele no que se refere a quantidade de textos publicados. Infere-se, pois,
que sua maior dedicação foi ao trabalho de retratar os cenários, os costumes, a nova
vida que se construía ao seu redor. Dessa forma, o objeto de estudo deste capítulo são as
crônicas selecionadas do livro A alma encantadora das ruas, coletânea de textos que se
referem às transformações do Rio de Janeiro durante a Belle Époque. Busca-se, por
meio da leitura crítica de algumas de suas crônicas, identificar e discutir algumas
tensões e dualidades comuns a todas elas.
Com base nos relatos feitos por João do Rio sobre as mudanças dessa época, é
possível alcançar algum conhecimento sobre o que acontecia no Rio de Janeiro, sem que
seja necessário recorrer somente a documentos e cartas oficiais do governo.
No caso específico das crônicas cariocas produzidas na passagem do século
XIX ao século XX, é possível uma leitura que as considere “documentos” na
medida em que se constituem como um discurso polifacético que expressa,
de forma certamente contraditória, um “tempo social” vivido pelos
contemporâneos como um momento de transformações. [...] É enquanto se
apresentam como “imagens de um “tempo social” e “narrativas do
cotidiano”, ambos considerados como “construções” e não como “dados”,
que as crônicas são aqui consideradas como “documentos”. (NEVES, 1992,
p. 76)
Considerando o jogo entre estético e histórico, entre o que era sofisticado e o
considerado obsoleto, entre o belo e o feio, nota-se que João do Rio é o autor de
ambiguidades, assim como alguns outros cronistas contemporâneos a ele. As dualidades
estão presentes não só nos seus relatos sobre a cidade que o rodeia, mas em sua própria
pessoa, que era de origem humilde, mas se apresentava à sociedade como um dândi, ou
seja, como um homem culto, erudito, de extremo bom gosto e apurado senso estético, e
com preferências a retratar assuntos de viés popular e humilde.
As tensões retratadas nas crônicas mostram o que havia de comum entre o Rio
de Janeiro e as grandes metrópoles europeias, desde a beleza gerada pelo progresso até
os cenários mais decadentes, como se vê nos excertos da crônica “Visões d’ópio” (RIO,
2008, p. 103-110):
Era às seis da tarde, defronte do mar. Já o sol morrera e os espaços eram
pálidos e azuis. As linhas da cidade se adoçavam na claridade de opala da
tarde maravilhosa. Ao longe, a bruma envolvia as fortalezas, escalava os
céus, cortava o horizonte numa longa barra cor de malva e, emergindo dessa
agonia de cores, mais negros ou mais vagos, os montes, o Pão de Açúcar, São
Bento, o Castelo apareciam num tranquilo esplendor. [...] A aragem
rumorejava em cima a trama das grandes mangueiras folhudas, dos
tamarindeiros e dos flamboyants, e a paisagem tinha um ar de sonho. (RIO,
2008, p. 103)
[...] Câimbras de estômago fazem-me um enorme desejo de vomitar. Só o
cheiro do veneno desnorteia. Vejo-me nas ruas de Tien-Tsin, à porta das
cagnas5, perseguido pela guarda imperial, tremendo de medo; vejo-me nas
bodegas de Cingapura, com os corpos dos celestes arrastados em jinriquixás6
, entre malaios loucos brandindo kriss7 assassinos! Oh! o veneno sutil,
lágrima do sono, resumo do paraíso, grande Matador do Oriente! Como eu o
ia encontrar num pardieiro de Cosmópolis, estraçalhando uns pobres trapos
das províncias da China! (RIO, 2008, p. 109-110)
Observam-se essas mesmas oposições – entre o belo e o feio, entre o lugar do
povo e o lugar do autor – na crônica “Sono calmo” (RIO, 2008, p. 174-180), no trecho
em que João do Rio faz a descrição da Rua da Misericórdia, na periferia do Rio de
Janeiro, e mais adiante, quando já está no interior de uma “hospedaria barata”.
Trechos inteiros da calçada, imersos na escuridão, encobriam cafajestes de
bombacha branca, gingando, e constantemente o monótono apito do guarda
noturno trilava, corria como um arrepio na artéria do susto, para logo outro
responder mais longe e mais longe ainda outro ecoar o seu áspero trilo. No
alto, o céu era misericordiosamente estrelado e uma doce tranquilidade
parecia escorrer do infinito. (RIO, 2008, p. 175)
[...]
A atmosfera sufocava. Mais um pavimento e arrebentaríamos. Parecia que
todas as respirações subiam, envenenando as escadas, e o cheiro, o fedor, um
fedor fulminante, impregnava-se nas nossas próprias mãos, desprendia-se das
paredes, do assoalho carcomido, do teto, dos corpos sem limpeza. Em cima,
então, era a vertigem. (RIO, 2008, p. 179)
5 Palhoça.
6 Carro de duas rodas puxado por um homem.
7 Punhal malaio de lâmina sinuosa.
Nesses trechos, pode-se notar que, para João do Rio, é imperioso mostrar que,
por mais que ele desça ao submundo carioca, observe seu cotidiano e seus habitantes,
ele não pertence a esse ambiente e precisa, sempre, afastar-se dele e retornar para o
lugar que é seu. Para João do Rio, a matéria que lhe serve de inspiração é retirada do
cotidiano, mas a maneira de descrever os lugares e os acontecimentos deixa latente que,
além da sua erudição, o autor possui um senso de humor por muitas vezes perverso e
com certa dose de ironia, que disfarçam o seu esnobismo (CANDIDO, 1992, p. 16).
Diferentemente de João do Rio, um outro escritor contemporâneo a ele, também
de origem humilde e empregado no ramo jornalístico, tirava das tensões do dia a dia, em
especial dos marginalizados ou desamparados da sociedade, a essência de seus textos,
principalmente das crônicas, indo na contramão das tendências literárias do final do
século XIX. Trata-se de Lima Barreto.
Como João do Rio, Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de
Janeiro, exatamente no mesmo ano, 1881, oriundo de uma família humilde e também
mulato. Escritor de romances e crônicas, foi na direção contrária às tendências literárias
da época e retratou de forma crítica a marginalização que o povo humilde sofria nesses
tempos da Belle Époque carioca.
Mesmo nas páginas mais breves, entendia, sentia e amava as criaturas mais
insignificantes e comuns, os esquecidos, os lesados e os evitados pelo
establishment8. Ali estavam, para ele, as pessoas mais importantes do seu
tempo, mexendo-se no mutirão de pingentes urbanos, sobreviventes
escorraçados lá no “refúgio dos infelizes”, o subúrbio – gentes que não deram
certo em canto nenhum do Rio de Janeiro. Mas eram o povo carioca, a
periferia da corte que se dizia civilizada. (ANTÔNIO, 1995, p. 10)
Apesar de não citar nomes ao compará-lo com outros autores, a introdução de
uma coletânea de crônicas de Lima Barreto, elaborada pelo jornal Folha de S. Paulo
(1995), de autoria de João Antônio, enfatiza esse trato crítico que Barreto dava aos seus
textos, criando narrativas que contavam as amarguras e a vida difícil dos marginalizados
pela ordem social estabelecida. Os textos de Lima Barreto trazem uma imagem mais
latente de desigualdade social e desamparo, retratam de forma mais contundente os
sofrimentos que atingiam os pobres nessa época. Sofrimentos pelos quais ele mesmo
passava por ser de origem humilde e mestiço, e não ter participação direta na política,
8 Ordem social estabelecida.
de maneira que seus protestos sobre as injustiças presentes em seu tempo ficaram
registradas, em sua maioria, nas crônicas que escreveu.
Há escritores em que o leitor vê atrás deles uma biblioteca, uma sapientia,
uma sofisticação intelectual, uma aflição estética, antes de ver os
personagens. E há escritores atrás, e mesmo ao lado, dos quais logo se vê, de
pronto um povo – com suas caras, roupas, cheiros, as maneiras todas de ser.
Assim era e é Lima Barreto. E no cronista, devido ao trato com o cotidiano,
essa característica cresce e excede. E vamos conhecendo um Brasil evitado
pelo establishment. (ANTÔNIO, 1995, p. 10)
Nota-se que João Antônio não menciona o nome de João do Rio ao citar autores
que prezam pela sofisticação intelectual e pela estética, mas é evidente seu
enquadramento dentro das características citadas por ele. Essas diferentes maneiras de
viver o mundo e o momento presente, e que são subjetivadas nos textos, deixam
transparecer não só o estilo estético dos dois autores, mas também mostram como a
percepção das tensões dessa época pode ser diferente entre escritores de mesma origem
social, temporal e local. Ao comparar duas crônicas, uma de cada autor, em que aparece
a figura feminina, é possível deixar mais clara essa diferença estética e de viés social. A
crônica com o título “Tenho esperança que...”, de Lima Barreto, inicia-se com o autor
descendo do bonde que o leva da periferia ao centro da cidade, e no trajeto faz reflexões
sobre as escolas, seu passado como aluno, tratando como tema central, as dificuldades
que a moças da época encontravam para realizar os estudos secundários.
Tudo têm os sábios da Prefeitura imaginado no intuito de dificultar a entrada.
Creio mesmo que já se exigiu Geometria Analítica e Cálculo Diferencial,
para crianças de doze a quinze anos; mas nenhum deles se lembrou da
medida mais simples. Se as moças residentes no Município do Rio de Janeiro
mostram de tal forma vontade de aprender, de completar o seu curso primário
com um secundário profissional, o governo só deve e tem a fazer uma coisa:
aumentar o número de escolas de quantas houver necessidade.
[...]
Verdadeiramente, não há estabelecimentos públicos destinados ao ensino
secundário às moças. O governo federal não tem nenhum, apesar da
Constituição impor-lhe o dever de prover essa espécie de ensino no Distrito.
[...] (BARRETO, 1995, p. 17-18)
Logo, Lima Barreto, sem demonstrar nenhum receio em relação à crítica feita
aos políticos, deixa seu relato sobre as dificuldades de moças jovens para entrar na
escola secundária, atribuindo a responsabilidade ao governo por não dedicar verbas ou
mesmo por não dar a devida atenção à educação.
Essa atenção à representação da figura feminina aparece também em algumas
das crônicas de João do Rio. Na crônica “As mariposas do luxo”, encontrada na
coletânea A alma encantadora das ruas, é possível notar a visão irônica e, por vezes,
esnobe do autor em relação às trabalhadoras que, ao voltarem da sua jornada diária de
trabalho, passavam pela Rua do Ouvidor e ficavam admiradas com as vitrines das lojas
de luxo.
Elas, coitaditas! passam todos os dias a essa hora indecisa, parecem sempre
pássaros assustados, tontos de luxo, inebriados de olhar. Que lhes destina no
seu mistério a vida cruel? Trabalho, trabalho; a perdição, que é a mais fácil
das hipóteses; a tuberculose ou o alquebramento numa ninhada de filhos.
Aquela rua não as conhecerá jamais. Aquele luxo será sempre a sua quimera.
São mulheres. Apanham as migalhas da feira. São as anônimas, as fulanitas
do gozo, que não gozam nunca. [...] Os vestidos são pobres: saias escura
sempre as mesmas; blusa de chitinha rala. Nos dias de chuva um parágua e a
indefectível pelerine. Mas essa miséria é limpa, escovada. As botas brilham,
a saia não tem uma poeira, as mãos foram cuidadas. [...] (RIO, 2008, p. 156)
Na passagem do século XIX para o XX, a mulher começava a se desvencilhar do
estereótipo de dona de casa e passava a exercer novas atividades que contribuíram para
sua emancipação familiar e financeira. João do Rio, no excerto acima, mostra essa
mulher, cheia de sonhos e desejos, deslumbrada diante do luxo das vitrines da cidade.
Com certo ar de soberba, ela as descreve como “fulanitas”, “anônimas”, vestidas
dignamente com sua “chitinha rala”, desejando uma vida que nunca teriam. Nesse
momento, o contraste entre o belo e o feio se faz na presença dessas jovens pobres no
cenário de luxo da Rua do Ouvidor.
Outra dualidade que está presente em dois dos textos analisados, “Visões
d’ópio” e “Sono calmo”, é a relação com o mito da descida aos infernos e a ascensão
aos céus, usada como recurso estético ao referir-se indiretamente à obra A Divina
Comédia, de Dante Alighieri. A primeira crônica trata da visita assistida de João do Rio
às antigas fumeries, casas destinadas ao público consumidor de ópio, lugar em que
registrou suas impressões acerca da ação do consumo da droga e das características do
local e de seus frequentadores. A segunda crônica, “Sono calmo” relata a visita que o
autor faz às hospedarias e pensões baratas da parte humilde da cidade, acompanhado de
um delegado e de mais alguns policiais.
As descrições negativas sobre o que testemunhou são comparadas à visita de
Dante aos círculos infernais, como é perceptível neste trecho inicial da crônica, “Sono
calmo”:
[...] Um delegado, outro dia, conversando dos aspectos sórdidos do Rio, teve
a amabilidade de dizer:
– Quer vir comigo visitar esses círculos infernais?
Não sei se o delegado quis dar-me apenas a nota mundana de visitar a
miséria, ou se realmente, como Virgílio, o seu desejo era guiar-me através de
uns tantos círculos de pavor, que fossem outros tantos ensinamentos. (RIO,
2008, p. 174)
Quando ao fim da visita, o autor se sente desconfortável pela experiência que
testemunhou, pelas características do lugar e de seus visitantes, e encerra a crônica,
como se chegasse a um dos nove céus do Paraíso dantesco, e fecha seu texto utilizando
as palavras “ouro”, “estrelas” e “céu”:
As suas mãos, maquinalmente esticaram-se, e os nossos olhos acompanhando
aquele gesto elegante de ceticismo mundano, deram no céu, recamado de
ouro. Todas as estrelas palpitavam, por cima da casaria estendia-se uma
poeira de ouro. Naquela chaga incurável, chaga lamentável da cidade, a luz
gotejava do infinito como um bálsamo. (RIO, 2008, p. 180)
De maneira muito similar, encerra a crônica “Visões d’ópio”, quando narra seu
grande incômodo por estar dentro de um recinto cuja atmosfera é insuportável e
considerado implicitamente por ele como um dos círculos infernais da obra de Dante.
Ele reencontra a paz ao observar o céu estrelado de verão, assim como na ascensão de
Dante aos Campos Elíseos, ou seja, o paraíso greco-romano.
Apertei a cabeça entre as mãos, abri a boca numa ânsia.
– Vamos, ou eu morro!
O meu amigo, então, empurrou os três chins9, atirou-se à janela, abriu-a. Uma
lufada de ar entrou, as lâmpadas tremeram, a nuvem de ópio oscilou, fendeu,
esgueirou-se, e eu caí de bruços, a tremer diante dos chins apavorados e nus.
Fora, as estrelas recamavam de ouro o céu de verão... (RIO, 2008, p. 110)
Na obra de Dante, a descida aos nove círculos infernais é feita de maneira
vertical, indo de cima para baixo, de maneira que aqueles que eram condenados por
pecados mais graves residiam nos círculos mais profundos do inferno. A parte
relacionada ao purgatório é também efetuada em um movimento vertical, mas de baixo
para cima, onde as almas menos impuras ocupam os patamares mais altos da montanha,
que no texto representa o local de expurgação dos pecados cometidos. Esses dois
9 Nome dado aos chineses que imigravam para o Brasil no século XIX.
movimentos, de descida e subida, são classificados como catábase e anábase
respectivamente.
O movimento de declínio e ascensão, além de elementos alegóricos e estéticos,
retrata esse sentimento de não pertencimento àquele lugar, deixando claro que o autor
estava ali apenas como observador e, assim como no poema de Dante, o inferno
(declínio) é um momento de tristeza, e a subida aos céus (ascensão), com a visão das
estrelas de ouro, mencionada por João do Rio, é o momento de encontro com a alegria e
retorno a sua realidade própria.
Outro aspecto presente nas crônicas analisadas faz com que se perceba uma
outra tensão, que está na maneira como João do Rio se posiciona diante dos
marginalizados que figuram em seus textos. Além de seu sentimento de não pertencer
ao mundo que retrata, há a necessidade de se destacar desse mundo por meio de seu
status de literato, buscando a ascensão literária por meio da simbólica “descida aos
infernos”, do contato com os socialmente excluídos.
É sabido que as ambiguidades presentes na Belle Époque carioca não estão
presentes somente nas obras de João do Rio, mas também são característica marcante
em textos de Lima Barreto e Euclides da Cunha, entre outros.
Com conotações positivas e negativas, conforme o cronista, as múltiplas
associações entre “progresso”, “civilização”, “ordem”, “trabalho”,
“saneamento”, “racionalidade” e “cidadania” se repetem como sinais do
novo, em sua relação essencial com a República e o modelo cultural francês e
seu caráter de superação das mazelas da colonização portuguesa, quase
sempre associada aos conceitos opostos de “atraso”, “barbárie”, ‘desordem”,
“ociosidade”, “doença”, “irracionalidade” e “anarquia”. (NEVES, 1992, p.
85)
Contudo, mesmo sendo uma marca da época, as dualidades presentes nos textos
de João do Rio, constroem uma imagem mais clara das tensões vividas no Rio de
Janeiro de sua época. O cronista-flâneur, foco desta análise crítica, buscou mostrar
como as mesmas tensões presentes em Paris e outras capitais europeias podiam
manifestar-se também na capital carioca, retratando assim o que era universal; ao
mesmo tempo, dedicou-se a destacar o que a capital carioca tinha de único em relação
às outras, inserindo, dessa maneira, o conceito de local em seus textos.
Por se tratar de um homem essencialmente ambíguo que pertence a um cenário
de transformações, é natural que a oposição de ideias esteja presente não apenas em sua
vida, mas tenha sido transferida para suas crônicas, e que, mesmo retratando a vida e os
hábitos dos humildes, ele o fez de maneira ímpar, inserindo em seus relatos citações ou
descrições de grandes eruditos da literatura clássica e contemporânea, transformando
suas crônicas – textos originalmente concebidos para serem efêmeros – em obras de
grande valor histórico e literário.
Considerações finais
A leitura crítica realizada neste trabalho baseou-se em dados da vida do autor
João do Rio e de seu tempo, e avaliou como sua formação pessoal e seu modo de vida
foram decisivos para o posicionamento de seu olhar como escritor – mesmo olhar que
lançou sobre a sociedade carioca e as contradições presentes no período de transição
entre os séculos XIX e XX, considerado por muitos pesquisadores como a Belle Époque
carioca. Serviram como material de pesquisa de sua vida e dados sociais os livros O
momento literário e A alma encantadora das ruas, ambos publicados por João do Rio
no começo do século XX, a biografia João do Rio, realizada pelo autor Ledo Ivo a
serviço da Academia Brasileira de Letras, com publicação datada de 2012.
Por meio da leitura dessas obras, explicou-se, de forma sucinta, o contexto
social, histórico e político que é entrelaçado com os dados biográficos do autor e de
escritores contemporâneos a ele. O momento literário é uma obra de fundamental
importância para compreensão da situação dos autores e da própria literatura brasileira
da época. Foi possível também relatar as ambiguidades presentes na sociedade carioca e
que, enquanto geradoras de tensões sociais, serviram de matéria de inspiração para as
crônicas que escreveu e que foram analisadas no terceiro capítulo deste trabalho.
As pesquisas relativas à delimitação das características do gênero crônica,
realizada no segundo capítulo, compuseram uma importante e difícil etapa de nosso
trabalho, pois esse gênero mutante percorreu caminhos variados ao longo de sua
história, tornando-se múltiplo e de fugidia sistematização. Mesmo assim, parece-nos
que a crônica manteve como características fundamentais a representação do tempo, da
realidade social e, sobretudo, da reprodução de ações de personagens em ações
ordinárias, em que as cenas do cotidiano abrem-se desde uma leitura filosófica da
realidade à encenação textual de um evento cômico.
Para realizar essa complexa tarefa – a de tentar definir esse gênero textual –, os
conceitos sobre crônica foram retirados dos livros A criação literária, de Massaud
Moisés, e A crônica: O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, composto
por estudos e artigos de vários autores, entre eles Antônio Candido e Raúl Antelo.
Desse material, obteve-se uma base muito firme sobre a definição do que hoje é
considerado como crônica, gênero que foi o objeto de estudo deste trabalho.
Outro aspecto a ser destacado é a intertextualidades presente nas crônicas
estudadas, como a menção à obra “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, que deixa
clara a erudição do autor, mesmo estando presente em crônicas feitas primeiramente
para ocupar páginas de um jornal. Ela compõe um elemento estético que acabava por
provocar a reflexão dos leitores acerca do assunto tratado e mostram que tanto o texto
quanto a época vivida por ele dialogam com outros textos e momentos vividos por
autores de culturas diferentes.
Dentre os vários trabalhos, de gêneros distintos, escritos por João do Rio, a
análise presente neste trabalho foi feita sobre as crônicas contidas no livro A alma
encantadora das ruas, obra que se faz de uma coletânea de relatos do cotidiano carioca
do início do século passado e, por apresentarem dualidades decorrentes das tensões
pelas quais o Rio passava, servem tanto como uma análise das qualidades e
peculiaridades, enquanto obra literária, quanto como documentação histórica acerca das
dualidades presentes na capital carioca, daí a sua fundamental importância. Essa
relevância deve ser considerada em relação não só aos textos de João do Rio, mas à sua
vida enquanto escritor e ao legado deixado pela sua obra, que contribuiu para a
formação da crônica como a conhecemos hoje e, não menos importante, para reconhecer
um Rio de Janeiro situado em um passado recente, mas que só conseguimos observar
pela leitura de seus textos.
Referências bibliográficas
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em: http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=32
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Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, p. 153-161.
BARRETO, Lima. Crônicas escolhidas. São Paulo: Ática, 1995.
CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: CANDIDO, Antonio et al. A crônica:
o gênero, sua fixação e sua transformação no Brasil. Campinas: Ed. Unicamp; Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, p. 13-22.
IVO, Lêdo. João do Rio. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012, p.
5 -6.
MOISÉS, Massaud. A criação literária. São Paulo: Cultrix, 2012.
NEVES, Margarida de Souza. Uma escrita do tempo: memória, ordem e progresso nas
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