João do Rio: um flâneur às portas da modernidade · momento de extremas mudanças pelas quais...

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João do Rio: um flâneur às portas da modernidade Déllin Ramos de PAULA 1 Giovanna Oliveira de SOUZA 2 Rodrigo Marques de OLIVEIRA 3 Resumo Este estudo propõe uma análise dos traços característicos que marcaram várias das crônicas do autor João do Rio e de como elas refletem sua percepção crítica de um momento de extremas mudanças pelas quais passava a capital federal do Brasil no início do século XX. Seu olhar de artista sobre as belezas e mazelas da sociedade carioca da Belle Époque traduz não só a sua consciência crítica acerca das tensões presentes no processo de modernização da cidade, mas também lhe servem de matéria poética ao retirar do cotidiano experiências estéticas universais. Algumas das diversas crônicas do autor foram selecionadas com o objetivo de evidenciar como as tensões referidas foram engendradas na representação do Rio de Janeiro de sua época. Palavras-chave: João do Rio. Crônicas. Belle Époque carioca. Abstract The aim of this study is to analyze the characteristic features which distinguished a large number of chronicles written by João do Rio and to show how these texts reflect his critical perception of a moment of extreme changes in the federal capital of Brazil at the beginning of the twentieth century. The artist’s perception of the beauties and misfortunes of the society of Rio de Janeiro at the time of Belle Époque reflects not only his critical thinking about the tension involved in the modernization of the city, but also provides him with poetic content taking universal aesthetic from everyday experiences. Some of the various chronicles of this author were chosen in order to give evidence of 1 Graduado em Letras pelo Centro Universitário Barão de Mauá - CEP 14090-180 Ribeirão Preto SP E-mail: [email protected] 2 Graduada em Letras pelo Centro Universitário Barão de Mauá - CEP 14090-180 Ribeirão Preto SP E-mail: [email protected] 3 Doutor em Estudos Literários (UNESP / Araraquara) - Docente do Centro Universitário Barão de Mauá - CEP 14090-180 Ribeirão Preto SP E-mail: [email protected]

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João do Rio: um flâneur às portas da modernidade

Déllin Ramos de PAULA1

Giovanna Oliveira de SOUZA2

Rodrigo Marques de OLIVEIRA3

Resumo

Este estudo propõe uma análise dos traços característicos que marcaram várias das

crônicas do autor João do Rio e de como elas refletem sua percepção crítica de um

momento de extremas mudanças pelas quais passava a capital federal do Brasil no início

do século XX. Seu olhar de artista sobre as belezas e mazelas da sociedade carioca da

Belle Époque traduz não só a sua consciência crítica acerca das tensões presentes no

processo de modernização da cidade, mas também lhe servem de matéria poética ao

retirar do cotidiano experiências estéticas universais. Algumas das diversas crônicas do

autor foram selecionadas com o objetivo de evidenciar como as tensões referidas foram

engendradas na representação do Rio de Janeiro de sua época.

Palavras-chave: João do Rio. Crônicas. Belle Époque carioca.

Abstract

The aim of this study is to analyze the characteristic features which distinguished a

large number of chronicles written by João do Rio and to show how these texts reflect

his critical perception of a moment of extreme changes in the federal capital of Brazil at

the beginning of the twentieth century. The artist’s perception of the beauties and

misfortunes of the society of Rio de Janeiro at the time of Belle Époque reflects not only

his critical thinking about the tension involved in the modernization of the city, but also

provides him with poetic content taking universal aesthetic from everyday experiences.

Some of the various chronicles of this author were chosen in order to give evidence of

1 Graduado em Letras pelo Centro Universitário Barão de Mauá - CEP 14090-180 – Ribeirão Preto – SP –

E-mail: [email protected]

2 Graduada em Letras pelo Centro Universitário Barão de Mauá - CEP 14090-180 – Ribeirão Preto – SP –

E-mail: [email protected]

3 Doutor em Estudos Literários (UNESP / Araraquara) - Docente do Centro Universitário Barão de Mauá

- CEP 14090-180 – Ribeirão Preto – SP – E-mail: [email protected]

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how the mentioned tensions were engendered in the portrait of Rio de Janeiro of his

time.

Keywords: João do Rio. Chronicles. Belle Époque. Rio de Janeiro.

Introdução

A literatura do Pré-Modernismo brasileiro tem como uma de suas características

a manifestação do inconformismo dos autores no que se refere aos aspectos sociais e

políticos. Tal postura, presente na maior parte das obras desse período, é também

característica fundamental em João do Rio, jornalista, cronista e crítico que, sobretudo,

registrou com profundo olhar crítico as mudanças ocorridas na cidade do Rio de Janeiro

no período de passagem do século XIX para o XX.

O objetivo deste artigo é, pois, analisar a maneira como o autor carioca

posicionava-se diante dessas transformações e, principalmente, como as retratava em

seus textos, tecendo um interessante jogo de dualidades, em que as faces múltiplas do

Rio de Janeiro vão se revelando a cada jornada das personagens de João do Rio no

espaço da urbe.

1. O autor e a Belle Époque carioca

João do Rio é um dos pseudônimos do escritor João Paulo Emílio Cristóvão dos

Santos Coelho Barreto, mulato e de origem humilde, que nasceu em 1881 no Rio de

Janeiro, filho do educador Alfredo Coelho Barreto e de Florência Cristóvão dos Santos

Barreto. Recebeu a educação elementar de seu pai, então professor do Colégio Pedro II.

Segundo artigo da Academia Brasileira de Letras, Alfredo Coelho foi adepto da igreja

positivista, fundada por Auguste Comte na França. Apesar, porém, de a Igreja Comtista

ter uma filosofia muito respeitada na época, para o nosso autor ela foi apenas tema de

seus trabalhos como jornalista, profissão em que ingressou aos dezesseis anos e que o

colocou em contato com o mundo literário.

Talvez seja essa proximidade com a literatura que o levou a adotar pseudônimos,

em especial o de João do Rio, usado pela primeira vez, de acordo com o professor e

pesquisador Raúl Antelo (2008, p. 9), em 1903, para compor a autoria da crônica “O

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Brasil lê”, publicada na primeira página do jornal Gazeta de Notícias. Como João do

Rio, o autor obteve grande destaque no jornalismo ao conseguir cerzir, numa mesma

tessitura discursiva, importantes reflexões sobre o Rio de Janeiro de seu tempo,

entrelaçadas às inúmeras referências que só um erudito, admirador tanto da filosofia

grega como de Oscar Wilde, poderia realizar.

Dedicou duas décadas de sua vida à escrita de artigos, em sua maioria crônicas,

nas quais registrava a sua observação do dia a dia da capital carioca. João do Rio era

fascinado por observar o mundo a sua volta, captando as cenas corriqueiras com seu

olhar de flâneur, como ele mesmo se autodenominava. O termo flâneur, que se origina

do verbo francês flâner (caminhar, vagar), indica uma pessoa que anda pelas ruas

aparentemente sem um objetivo, mas que observa e experimenta tudo a sua volta por

meio de seus sentidos.

Ele criou, então, o verbo flanar, que, em sua definição, “[...] é ser vagabundo e

refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem.

[...]” (2008, p. 31). E, assim, andava pelas ruas do Rio de Janeiro, observando,

compreendendo e imaginando os cenários que criava para suas crônicas.

Na pele desse aguçado observador, João do Rio imprime em sua obra o jogo

entre o local e o universal. Os personagens que insere em suas crônicas são

representantes do local, pois representam figuras populares de fato encontradas nas ruas

cariocas, como tatuadores, prostitutas, vendedores ambulantes. Ao mesmo tempo, vê-se

a presença do universal na análise psicológica que o autor realiza das ruas da capital,

procurando fazer relação com o espaço urbano de Nova Iorque e Paris, mostrando que

os paradoxos existentes na sociedade carioca são representação do que acontecia em

grande parte das metrópoles na transição do século XIX ao XX.

Inspirado pelas contradições que percebe na sociedade, o autor traz, em seus

textos, suas percepções desse momento da história da capital carioca, considerado por

muitos estudiosos como a Belle Époque tropical. Ele participou da discussão, com

muitos literatos da época, sobre o surgimento de uma identidade literária no Brasil.

O final do século XIX e os anos iniciais do século XX marcaram a entrada de

muitas influências no Brasil, sejam elas culturais, filosóficas ou tecnológicas, muitas

delas provenientes da França e Inglaterra, países que, na época, eram grandes potências

mundiais. O Rio de Janeiro tornou-se, assim, o primeiro centro urbano a receber as

novidades estrangeiras e a propagá-las para o restante do Brasil. João do Rio noticiou,

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em seus textos, essas mudanças, os novos hábitos, os estrangeirismos e a cara nova de

uma sociedade que desejava ser civilizada e bela, mas ainda escondia sob suas

aparências muitos defeitos, principalmente sociais e políticos.

Uma das mudanças sociais que mais refletem esse mascaramento da cidade na

tentativa de transformar a capital brasileira em uma Paris latino-americana está na ação

do prefeito Pereira Passos, que consistiu na derrubada de muitas casas que estavam

situadas em vielas estreitas e que dariam lugar à Avenida Central. Essa ação, que ficou

conhecida como “Bota-abaixo”, não levou em consideração as pessoas pobres que lá

moravam. Forçadas a encontrarem outro lugar para viver, migraram para os morros e

subúrbios, dando origem às favelas, um problema social que perdura até os dias de hoje

(IVO, 2012, p. 6-8).

Foi no meio dessas mudanças que João do Rio viveu, observou e escreveu, com

um olhar quase fotográfico, os costumes, os defeitos, a hipocrisia, sem deixar de notar

algumas qualidades de uma sociedade que estava para ingressar no século XX e

aspirava por ser moderna e bela, mas nem sempre justa. Sua busca por inspiração se deu

nas ruas, mostrando a realidade do povo, dos pobres em especial, em suas crônicas e

contos, andando pela cidade muitas vezes no período noturno.

Nos anos iniciais da República, havia um grande receio quanto à fragmentação

territorial, que, desde o período do primeiro império, sempre foi uma realidade e, a cada

revolta ou rebelião, fazia o poder de coerção do governo mostrar-se necessário para

manter a unidade do país. No meio literário, isso também aconteceu: devido às

diferenças regionais e culturais entre norte e sul, cogitava-se a formação de escolas

literárias distintas, além das disputas existentes entre os novos e antigos escritores da

época. Nesse cenário de opiniões instáveis, João do Rio elaborou, sob moldes franceses,

uma enquete para os escritores e literatos contemporâneos a ele, que dá informações

preciosas acerca dessa divisão de opiniões, no que se refere ao alcance da leitura e à

propagação da literatura brasileira. As respostas foram compiladas em um livro de

fundamental importância a nossa literatura, chamado de O momento literário.

Entre março e maio de 1905, portanto, o cronista percorre a República das

Letras, indo a Academia Brasileira de Letras, recém-inaugurada, à Livraria

Garnier, na rua do Ouvidor, e dessa viagem resulta um livro de entrevistas

com escritores, O Momento Literário, em que salienta em implacável galeria

de grotescos a inserção compulsória do Brasil da nova ordem mundial: art

nouveau, armamentismo, nacionalismo (IVO, 2012, p. 18).

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Nesse livro, fica evidente a falta de unidade entre os autores e literatos da época,

tanto em questões que se referem à situação política e de produção literária no Brasil

quanto à formação da Academia Brasileira de Letras e ao alcance da leitura no país.

Sobre a unidade literária no Brasil, o poeta Olavo Bilac, um dos seus entrevistados,

relatou a falta de identidade própria e as lacunas na formação moral e intelectual do

povo, que aceita todos os estrangeirismos e não possui nenhum senso crítico.

Nós nunca tivemos propriamente uma literatura. Temos imitações, cópias,

reflexos. Onde o escritor que não recorde o outro escritor estrangeiro, onde a

escola que seja nossa? [...] Somos uma raça em formação, na qual lutam pela

supremacia diversos elementos étnicos. Não pode haver uma literatura

original, sem que a raça esteja formada, e já é prodigiosa a nossa inteligência,

que consegue ser esse reflexo superior e se faz representativa do espírito

latino na América. (BILAC apud RIO, 2006, p. 17)

O poeta enfatizou a falta de originalidade na literatura nacional, decorrente,

principalmente, da ausência de criticismo dos nossos autores e da falta de uma escola

literária fundada por brasileiros. Nessa fase conturbada do país, em que os anos iniciais

da República dividiam as opiniões sobre política, formação cultural e intelectual,

buscava-se uma identidade própria, inclusive no que se refere à crítica literária.

Bilac concluiu o raciocínio sobre as influências francesas em relação à filosofia

e à literatura no Brasil afirmando que talentos e livros belos não são suficientes para que

haja uma literatura. E acrescentou

[...] Nós nos regulamos pela França. A França não tem agora lutas de escola,

nós também não; a França tem alguns moços extravagantes, nós também; há

uma tendência mais forte, a tendência humanitária, nós começamos a fazer

livros socialistas. Esta última corrente arrasta, no mundo, todos quanto se

apercebem da angústia dos pobres e do sofrimento dos humildes. (BILAC

apud RIO, 2006, p. 19)

O autor fez uma consideração apropriada sobre três dos problemas sociais do

país, cujas soluções julgava serem essenciais para a formação de uma nação e,

consequentemente, para a iniciação de uma literatura com identidade própria. O

primeiro problema referia-se ao vasto território brasileiro, que precisava ser povoado; o

segundo tratava das condições péssimas de saneamento em muitas cidades; e, por fim, a

ignorância do povo. Esses eram, para ele, os principais obstáculos a serem superados e

estavam interligados de forma que a solução de apenas um deles não resultaria em

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melhora nas condições de vida do povo e da sociedade como um todo (BILAC apud

RIO, 2006, p. 18-19).

Nesse mesmo livro, encontra-se outro autor importante da época que

compartilha com Olavo Bilac a ideia de o país não possuir uma identidade literária.

Medeiros e Albuquerque também considera que não há como existir literatura

genuinamente brasileira sem que haja uma nacionalidade definida e descarta a

possiblidade de desenvolvimento de centros literários distintos, pois não existia riqueza

intelectual ou tamanha distinção cultural para que isso ocorresse.

Nós por ora, somos uma “mistura”, sem propriedades definidas... Para dizer

mais claramente: é impossível pensar em literatura nacional –

caracteristicamente “nacional” – quando ainda não somos uma nacionalidade,

nem temos um ideal definido do que poderia ser a futura nacionalidade

brasileira. [...] O que há entre nós é a falta de meios de comunicação e falta

de instrução primária. Quase ninguém lê, quase ninguém se vê. Daí a

existência efêmera desses grupinhos estaduais, que são forçados ao elogio

mútuo e exagerado pela estreiteza do meio e pela dificuldade de serem

conhecidos no resto do país. Mas desde que um livro publicado no Amazonas

for tão facilmente lido lá como aqui ou no Rio Grande do Sul, ninguém

pensará mais na fantasia das literaturas estaduais (ALBUQUERQUE apud

RIO, 2006, p. 55).

O poeta Lima Campos faz um comentário sobre a literatura nacional da época

em relação ao Rio de Janeiro, dando a ele o status de difusor intelectual das ideias e da

produção literária, afirmando também que, mesmo com formações diferentes nas

províncias, para os autores, era necessária a mudança para a capital carioca se sua

intenção fosse o reconhecimento pelo público e pela crítica. Caso contrário, eles “se

estiolarão gradualmente até o atrofiamento, o estacionamento completo” (CAMPOS

apud RIO, 2006, p. 64). Ou seja, ele comparou, também nesse aspecto, o Rio de Janeiro

a Paris, pois ambas as capitais figuram como o núcleo dos méritos literários de seus

países.

No que diz respeito à importância da cidade do Rio de Janeiro, podemos

destacar a sua relevância como capital da República, portanto centro político e

intelectual, e também como propulsora na formação de uma unidade literária brasileira.

A chegada da modernidade modificava os hábitos e a maneira de pensar primeiramente

na capital e somente depois no restante do país, tornando o Rio de Janeiro uma

metrópole cosmopolita e difusora das novidades que vinham de fora, principalmente da

Europa.

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Mesmo com avanços que abrangiam desde a arquitetura da cidade até sua

organização estrutural, problemas antigos como a pobreza, o analfabetismo e o

saneamento básico ainda eram uma realidade e, por isso, tornaram-se tema do autor

João do Rio. Dualidades como o local e o universal, a beleza e a monstruosidade, o rico

e o pobre, o novo e o antigo, o moderno e o obsoleto podem ser encontradas como

temas de diversos textos que escreveu até o ano de sua morte, em 1921. E são

exatamente essas dualidades, tomadas aqui como objeto de estudo, que retratam os

conflitos pelos quais passava o Brasil nos anos iniciais do novo regime político e na sua

inserção no século XX.

2. A crônica e seus desdobramentos

A produção de João do Rio abrange diversos gêneros textuais, como o conto, o

romance, o teatro, a novela e a crônica. Nota-se, no entanto, que sua obra é composta

por um grande número de crônicas, que figuram em diferentes coletâneas. Foi este o

gênero selecionado para compor este estudo, pois é em suas crônicas que se concentram

as dualidades que serão analisadas no próximo capítulo. Para que a análise seja bem

compreendida, é necessário que sejam retomados os principais traços desse gênero,

assim como sua origem.

A nação vivia um momento de rápidas transformações de âmbito social, político

e intelectual. Erudição e intelectualidade eram adjetivos distantes da maioria da

população. O jornal tornou-se um meio fundamental de propagação dos trabalhos

literários, dos líricos aos críticos, dos "folhetins" às crônicas. Nesse espaço de

divulgação, João do Rio retratou tudo aquilo que, como flâneur, observou à sua volta,

relatando, quase que fotograficamente, os costumes do povo em uma capital que

mudava, criando, assim, uma feição que, hoje, só a crônica brasileira possui.

Em sua prosa imagística, de uma vivacidade e modulação incomparáveis,

desfilam a frivolidade, a banalidade e a hipocrisia de uma sociedade

cosmética e desespiritualizada, e extremamente ciosa das vantagens e

privilégios de sua superioridade hierárquica. Esse mundo do poder do

dinheiro, dos ademanes4 e etiquetas, do ócio herdado, do prazer e de uma

licença sexual mascarada em elegância, pudicícia e segredos de alcova foi

por ele retratado ora em cores quentes e fortes, ora num claro-escuro

impressionista. (IVO, 2012, p. 12)

4 Trejeitos, gestos.

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Analisando as crônicas como gênero textual, pode-se dizer que elas nem sempre

tiveram as características que têm hoje. Muito de sua forma atual, assim como sua

ampla difusão e popularização, deve-se ao trabalho de João do Rio e outros autores

consagrados dessa mesma época. Para compreender melhor as transformações desse

gênero, é necessário regressar ao surgimento do termo, na Grécia antiga.

A palavra crônica é derivada de khrónos, que, na mitologia grega, representava o

deus do tempo, Cronos, pai de Zeus. Passou para o latim como chronica, e no início da

era cristã referia-se a uma lista de acontecimentos ordenados sequencialmente de acordo

com a linearidade de suas ocorrências; era um registro dos fatos sem aprofundamento

ou interpretações. (MOISÉS, 2012, p. 623)

Foi no século XIX que a crônica começou a ostentar características modernas,

quando, liberta do historicismo, passou a ter sentido literário, beneficiando-se então do

jornal como meio de propagação nos feuilletons, termo traduzido posteriormente para

folhetim (MOISÉS, 2012, p. 623). O professor de retórica Julien-Louis Geoffroy fazia

crítica da arte dramática no Journal de Débats (1799), e sobre esses textos é possível

afirmar que são uma forma embrionária de crônica, pois os artigos foram reunidos em

seis volumes chamados de Cour de Littérature Dramatique (1819 – 1820). Não

demorou muito para que ele tivesse seu trabalho imitado no Brasil, inicialmente

seguindo o modelo dos folhetins, pois eram impressos nos rodapés dos jornais, fazendo

uma recapitulação dos acontecimentos mais importantes da semana.

Antes de ser crônica propriamente dita foi “folhetim”, ou seja, um artigo de

rodapé sobre as questões do dia – políticas, sociais, artísticas e literárias. [...]

Aos poucos o folhetim foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar

de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou

francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é

hoje. (CANDIDO, 2012, p. 15)

Esse novo formato de crônica ganhou realmente notoriedade com João do Rio,

no período inicial do século XX, e logo após, com Rubem Braga, a partir de 1930.

[...] Mas já na segunda metade daquela centúria o vocábulo ‘crônica’

começou a ser largamente utilizado (também no sentido de “narrativa

histórica”): vários escritores do tempo, desde Alencar até Machado de Assis,

cultivaram a nova modalidade de intervenção literária. Entretanto, a essa fase

inicial sucedeu a de esplendor na publicação de crônicas: principiando por

João do Rio (1900 e 1920), alcançou larga difusão e aceitação com Rubem

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Braga, na década de 1930, exemplo depois seguido por uma legião de

escritores [...]. (MOISÉS, 2012, p. 623)

Como é possível perceber, a crônica sempre teve uma relação direta com o

“tempo”, mas sua estrutura mudou com o passar dos anos, adquirindo certa brasilidade

em decorrência das mudanças pelas quais passava o Brasil e do modo com que elas

afetavam nossos autores, citando em especial os que na capital viviam, tornando a

crônica não só brasileira, mas também carioca. Esse fato é percebido até por estudiosos

norte-americanos interessados no assunto, como Moser.

Não só os mais brilhantes cronistas estão vinculados ao Rio, como também

seus comentários refletem a implicante malícia, de mistura com solidária

sentimentalidade e irônico ceticismo que tem sido associados com o carioca.

(MOSER apud MOISÉS, 1971, p. 221)

O debate gerado pela nacionalidade desse gênero textual preza por sua

brasilidade, mas, de fato, ocorreram mudanças até que a crônica possuísse as

características que tem hoje. Mesmo havendo ótimos cronistas em todo território

brasileiro no período de transição entre os séculos XIX e XX, foi no Rio de Janeiro que

se deu maior continuidade a esses trabalhos.

E tal naturalização não se processou sem profunda metamorfose, que explica

o entusiasmo com que alguns estudiosos defendem a cidadania brasileira da

crônica: ao menos em relação à crônica dos nossos dias, tudo faz crer que

raciocinam corretamente. De qualquer modo, a crônica tal qual se

desenvolveu entre nós, parece não ter similar em outras literaturas, salvo por

influencia de nossos escritores, como na moderna língua portuguesa.

(MOISÉS, 2012, p. 624)

O gênero crônica apresenta características específicas. Trata-se de uma narrativa

breve, de um texto de curta dimensão, característica que se estabeleceu devido ao fato

de o texto ter que se ajustar a meia coluna de jornal.

A subjetividade é outra característica relevante. O foco narrativo da crônica está

quase sempre na 1ª pessoa do singular, inclusive nos textos em que não se foca no “eu”,

pois os fatos narrados sempre perpassam pela visão pessoal do narrador e é a sua visão

desses fatos que importam tanto ao cronista quanto ao leitor. Quando em 3ª pessoa,

ainda prevalece o caráter subjetivo.

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Essa subjetividade leva, naturalmente, o narrador a um diálogo com o leitor.

Moisés (2012, p. 636) considera esse diálogo essencial para a relação do texto com o

cotidiano.

Voltado ao mesmo tempo para o cotidiano e para suas ressonâncias nas arcas

do “eu”, o cronista está em diálogo virtual com um interlocutor mudo, mas

sem o qual a sua incursão ao mundo real se torna impossível.

Outra característica desse gênero é a utilização da linguagem coloquial como

recurso para aproximar o texto do leitor. Trata-se de um texto direto, claro, espontâneo e

de fácil compreensão, como afirma Candido (1992, p. 13):

Por meio dos assuntos, da composição solta, do ar de coisa sem necessidade

que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia.

Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso

modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta

humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a

outra mão certa profundidade de significado e certo acabamento de forma,

que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à

perfeição.

Por fim, cabe destacar a efemeridade como característica da crônica. Como foi

feita para jornais, é natural que não tenha sido concebida para durar, mas para se esgotar

juntamente com seu veículo. Quando os autores decidem selecionar algumas de suas

crônicas e publicá-las em livros, tem-se uma durabilidade maior, mas, como afirma

Moisés (2012, p. 638), nem assim elas resistem ao tempo.

Admitamos, contudo, que o envoltório do livro funcione como recurso

preservador de total decomposição, e lá teremos, ao fim de tudo, a

mumificação, que significa enganosa e falsa vitória sobre o poder implacável

das horas. Os livros de crônicas condenam-se à seção de obras raras ou de

ínfima circulação [...]. Quem procura em livro as crônicas que leu ou deixou

de ler no jornal preferido ou revista de grande público?

Essa efemeridade, no entanto, não diminui o valor da crônica. Ela é um gênero

de menor representatividade se comparada aos romances, poemas ou contos. Mas é

justamente aí que está o seu valor, como diz Candido (1992, p. 13):

A crônica não é um “gênero maior”. Não se imagina uma literatura feita de

grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas,

dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um

cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um

gênero menor.

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“Graças a Deus”, - seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto de

nós.

É esse o valor da crônica, estar perto de seus leitores, imprimindo um retrato da

realidade de uma época de maneira a criar um texto de fácil entendimento, propondo

reflexões sobre situações que são comuns a todos.

3. As dualidades em João do Rio

Dentre os trabalhos de João do Rio, as crônicas destacam-se dos demais gêneros

produzidos por ele no que se refere a quantidade de textos publicados. Infere-se, pois,

que sua maior dedicação foi ao trabalho de retratar os cenários, os costumes, a nova

vida que se construía ao seu redor. Dessa forma, o objeto de estudo deste capítulo são as

crônicas selecionadas do livro A alma encantadora das ruas, coletânea de textos que se

referem às transformações do Rio de Janeiro durante a Belle Époque. Busca-se, por

meio da leitura crítica de algumas de suas crônicas, identificar e discutir algumas

tensões e dualidades comuns a todas elas.

Com base nos relatos feitos por João do Rio sobre as mudanças dessa época, é

possível alcançar algum conhecimento sobre o que acontecia no Rio de Janeiro, sem que

seja necessário recorrer somente a documentos e cartas oficiais do governo.

No caso específico das crônicas cariocas produzidas na passagem do século

XIX ao século XX, é possível uma leitura que as considere “documentos” na

medida em que se constituem como um discurso polifacético que expressa,

de forma certamente contraditória, um “tempo social” vivido pelos

contemporâneos como um momento de transformações. [...] É enquanto se

apresentam como “imagens de um “tempo social” e “narrativas do

cotidiano”, ambos considerados como “construções” e não como “dados”,

que as crônicas são aqui consideradas como “documentos”. (NEVES, 1992,

p. 76)

Considerando o jogo entre estético e histórico, entre o que era sofisticado e o

considerado obsoleto, entre o belo e o feio, nota-se que João do Rio é o autor de

ambiguidades, assim como alguns outros cronistas contemporâneos a ele. As dualidades

estão presentes não só nos seus relatos sobre a cidade que o rodeia, mas em sua própria

pessoa, que era de origem humilde, mas se apresentava à sociedade como um dândi, ou

seja, como um homem culto, erudito, de extremo bom gosto e apurado senso estético, e

com preferências a retratar assuntos de viés popular e humilde.

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As tensões retratadas nas crônicas mostram o que havia de comum entre o Rio

de Janeiro e as grandes metrópoles europeias, desde a beleza gerada pelo progresso até

os cenários mais decadentes, como se vê nos excertos da crônica “Visões d’ópio” (RIO,

2008, p. 103-110):

Era às seis da tarde, defronte do mar. Já o sol morrera e os espaços eram

pálidos e azuis. As linhas da cidade se adoçavam na claridade de opala da

tarde maravilhosa. Ao longe, a bruma envolvia as fortalezas, escalava os

céus, cortava o horizonte numa longa barra cor de malva e, emergindo dessa

agonia de cores, mais negros ou mais vagos, os montes, o Pão de Açúcar, São

Bento, o Castelo apareciam num tranquilo esplendor. [...] A aragem

rumorejava em cima a trama das grandes mangueiras folhudas, dos

tamarindeiros e dos flamboyants, e a paisagem tinha um ar de sonho. (RIO,

2008, p. 103)

[...] Câimbras de estômago fazem-me um enorme desejo de vomitar. Só o

cheiro do veneno desnorteia. Vejo-me nas ruas de Tien-Tsin, à porta das

cagnas5, perseguido pela guarda imperial, tremendo de medo; vejo-me nas

bodegas de Cingapura, com os corpos dos celestes arrastados em jinriquixás6

, entre malaios loucos brandindo kriss7 assassinos! Oh! o veneno sutil,

lágrima do sono, resumo do paraíso, grande Matador do Oriente! Como eu o

ia encontrar num pardieiro de Cosmópolis, estraçalhando uns pobres trapos

das províncias da China! (RIO, 2008, p. 109-110)

Observam-se essas mesmas oposições – entre o belo e o feio, entre o lugar do

povo e o lugar do autor – na crônica “Sono calmo” (RIO, 2008, p. 174-180), no trecho

em que João do Rio faz a descrição da Rua da Misericórdia, na periferia do Rio de

Janeiro, e mais adiante, quando já está no interior de uma “hospedaria barata”.

Trechos inteiros da calçada, imersos na escuridão, encobriam cafajestes de

bombacha branca, gingando, e constantemente o monótono apito do guarda

noturno trilava, corria como um arrepio na artéria do susto, para logo outro

responder mais longe e mais longe ainda outro ecoar o seu áspero trilo. No

alto, o céu era misericordiosamente estrelado e uma doce tranquilidade

parecia escorrer do infinito. (RIO, 2008, p. 175)

[...]

A atmosfera sufocava. Mais um pavimento e arrebentaríamos. Parecia que

todas as respirações subiam, envenenando as escadas, e o cheiro, o fedor, um

fedor fulminante, impregnava-se nas nossas próprias mãos, desprendia-se das

paredes, do assoalho carcomido, do teto, dos corpos sem limpeza. Em cima,

então, era a vertigem. (RIO, 2008, p. 179)

5 Palhoça.

6 Carro de duas rodas puxado por um homem.

7 Punhal malaio de lâmina sinuosa.

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Nesses trechos, pode-se notar que, para João do Rio, é imperioso mostrar que,

por mais que ele desça ao submundo carioca, observe seu cotidiano e seus habitantes,

ele não pertence a esse ambiente e precisa, sempre, afastar-se dele e retornar para o

lugar que é seu. Para João do Rio, a matéria que lhe serve de inspiração é retirada do

cotidiano, mas a maneira de descrever os lugares e os acontecimentos deixa latente que,

além da sua erudição, o autor possui um senso de humor por muitas vezes perverso e

com certa dose de ironia, que disfarçam o seu esnobismo (CANDIDO, 1992, p. 16).

Diferentemente de João do Rio, um outro escritor contemporâneo a ele, também

de origem humilde e empregado no ramo jornalístico, tirava das tensões do dia a dia, em

especial dos marginalizados ou desamparados da sociedade, a essência de seus textos,

principalmente das crônicas, indo na contramão das tendências literárias do final do

século XIX. Trata-se de Lima Barreto.

Como João do Rio, Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de

Janeiro, exatamente no mesmo ano, 1881, oriundo de uma família humilde e também

mulato. Escritor de romances e crônicas, foi na direção contrária às tendências literárias

da época e retratou de forma crítica a marginalização que o povo humilde sofria nesses

tempos da Belle Époque carioca.

Mesmo nas páginas mais breves, entendia, sentia e amava as criaturas mais

insignificantes e comuns, os esquecidos, os lesados e os evitados pelo

establishment8. Ali estavam, para ele, as pessoas mais importantes do seu

tempo, mexendo-se no mutirão de pingentes urbanos, sobreviventes

escorraçados lá no “refúgio dos infelizes”, o subúrbio – gentes que não deram

certo em canto nenhum do Rio de Janeiro. Mas eram o povo carioca, a

periferia da corte que se dizia civilizada. (ANTÔNIO, 1995, p. 10)

Apesar de não citar nomes ao compará-lo com outros autores, a introdução de

uma coletânea de crônicas de Lima Barreto, elaborada pelo jornal Folha de S. Paulo

(1995), de autoria de João Antônio, enfatiza esse trato crítico que Barreto dava aos seus

textos, criando narrativas que contavam as amarguras e a vida difícil dos marginalizados

pela ordem social estabelecida. Os textos de Lima Barreto trazem uma imagem mais

latente de desigualdade social e desamparo, retratam de forma mais contundente os

sofrimentos que atingiam os pobres nessa época. Sofrimentos pelos quais ele mesmo

passava por ser de origem humilde e mestiço, e não ter participação direta na política,

8 Ordem social estabelecida.

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de maneira que seus protestos sobre as injustiças presentes em seu tempo ficaram

registradas, em sua maioria, nas crônicas que escreveu.

Há escritores em que o leitor vê atrás deles uma biblioteca, uma sapientia,

uma sofisticação intelectual, uma aflição estética, antes de ver os

personagens. E há escritores atrás, e mesmo ao lado, dos quais logo se vê, de

pronto um povo – com suas caras, roupas, cheiros, as maneiras todas de ser.

Assim era e é Lima Barreto. E no cronista, devido ao trato com o cotidiano,

essa característica cresce e excede. E vamos conhecendo um Brasil evitado

pelo establishment. (ANTÔNIO, 1995, p. 10)

Nota-se que João Antônio não menciona o nome de João do Rio ao citar autores

que prezam pela sofisticação intelectual e pela estética, mas é evidente seu

enquadramento dentro das características citadas por ele. Essas diferentes maneiras de

viver o mundo e o momento presente, e que são subjetivadas nos textos, deixam

transparecer não só o estilo estético dos dois autores, mas também mostram como a

percepção das tensões dessa época pode ser diferente entre escritores de mesma origem

social, temporal e local. Ao comparar duas crônicas, uma de cada autor, em que aparece

a figura feminina, é possível deixar mais clara essa diferença estética e de viés social. A

crônica com o título “Tenho esperança que...”, de Lima Barreto, inicia-se com o autor

descendo do bonde que o leva da periferia ao centro da cidade, e no trajeto faz reflexões

sobre as escolas, seu passado como aluno, tratando como tema central, as dificuldades

que a moças da época encontravam para realizar os estudos secundários.

Tudo têm os sábios da Prefeitura imaginado no intuito de dificultar a entrada.

Creio mesmo que já se exigiu Geometria Analítica e Cálculo Diferencial,

para crianças de doze a quinze anos; mas nenhum deles se lembrou da

medida mais simples. Se as moças residentes no Município do Rio de Janeiro

mostram de tal forma vontade de aprender, de completar o seu curso primário

com um secundário profissional, o governo só deve e tem a fazer uma coisa:

aumentar o número de escolas de quantas houver necessidade.

[...]

Verdadeiramente, não há estabelecimentos públicos destinados ao ensino

secundário às moças. O governo federal não tem nenhum, apesar da

Constituição impor-lhe o dever de prover essa espécie de ensino no Distrito.

[...] (BARRETO, 1995, p. 17-18)

Logo, Lima Barreto, sem demonstrar nenhum receio em relação à crítica feita

aos políticos, deixa seu relato sobre as dificuldades de moças jovens para entrar na

escola secundária, atribuindo a responsabilidade ao governo por não dedicar verbas ou

mesmo por não dar a devida atenção à educação.

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Essa atenção à representação da figura feminina aparece também em algumas

das crônicas de João do Rio. Na crônica “As mariposas do luxo”, encontrada na

coletânea A alma encantadora das ruas, é possível notar a visão irônica e, por vezes,

esnobe do autor em relação às trabalhadoras que, ao voltarem da sua jornada diária de

trabalho, passavam pela Rua do Ouvidor e ficavam admiradas com as vitrines das lojas

de luxo.

Elas, coitaditas! passam todos os dias a essa hora indecisa, parecem sempre

pássaros assustados, tontos de luxo, inebriados de olhar. Que lhes destina no

seu mistério a vida cruel? Trabalho, trabalho; a perdição, que é a mais fácil

das hipóteses; a tuberculose ou o alquebramento numa ninhada de filhos.

Aquela rua não as conhecerá jamais. Aquele luxo será sempre a sua quimera.

São mulheres. Apanham as migalhas da feira. São as anônimas, as fulanitas

do gozo, que não gozam nunca. [...] Os vestidos são pobres: saias escura

sempre as mesmas; blusa de chitinha rala. Nos dias de chuva um parágua e a

indefectível pelerine. Mas essa miséria é limpa, escovada. As botas brilham,

a saia não tem uma poeira, as mãos foram cuidadas. [...] (RIO, 2008, p. 156)

Na passagem do século XIX para o XX, a mulher começava a se desvencilhar do

estereótipo de dona de casa e passava a exercer novas atividades que contribuíram para

sua emancipação familiar e financeira. João do Rio, no excerto acima, mostra essa

mulher, cheia de sonhos e desejos, deslumbrada diante do luxo das vitrines da cidade.

Com certo ar de soberba, ela as descreve como “fulanitas”, “anônimas”, vestidas

dignamente com sua “chitinha rala”, desejando uma vida que nunca teriam. Nesse

momento, o contraste entre o belo e o feio se faz na presença dessas jovens pobres no

cenário de luxo da Rua do Ouvidor.

Outra dualidade que está presente em dois dos textos analisados, “Visões

d’ópio” e “Sono calmo”, é a relação com o mito da descida aos infernos e a ascensão

aos céus, usada como recurso estético ao referir-se indiretamente à obra A Divina

Comédia, de Dante Alighieri. A primeira crônica trata da visita assistida de João do Rio

às antigas fumeries, casas destinadas ao público consumidor de ópio, lugar em que

registrou suas impressões acerca da ação do consumo da droga e das características do

local e de seus frequentadores. A segunda crônica, “Sono calmo” relata a visita que o

autor faz às hospedarias e pensões baratas da parte humilde da cidade, acompanhado de

um delegado e de mais alguns policiais.

As descrições negativas sobre o que testemunhou são comparadas à visita de

Dante aos círculos infernais, como é perceptível neste trecho inicial da crônica, “Sono

calmo”:

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[...] Um delegado, outro dia, conversando dos aspectos sórdidos do Rio, teve

a amabilidade de dizer:

– Quer vir comigo visitar esses círculos infernais?

Não sei se o delegado quis dar-me apenas a nota mundana de visitar a

miséria, ou se realmente, como Virgílio, o seu desejo era guiar-me através de

uns tantos círculos de pavor, que fossem outros tantos ensinamentos. (RIO,

2008, p. 174)

Quando ao fim da visita, o autor se sente desconfortável pela experiência que

testemunhou, pelas características do lugar e de seus visitantes, e encerra a crônica,

como se chegasse a um dos nove céus do Paraíso dantesco, e fecha seu texto utilizando

as palavras “ouro”, “estrelas” e “céu”:

As suas mãos, maquinalmente esticaram-se, e os nossos olhos acompanhando

aquele gesto elegante de ceticismo mundano, deram no céu, recamado de

ouro. Todas as estrelas palpitavam, por cima da casaria estendia-se uma

poeira de ouro. Naquela chaga incurável, chaga lamentável da cidade, a luz

gotejava do infinito como um bálsamo. (RIO, 2008, p. 180)

De maneira muito similar, encerra a crônica “Visões d’ópio”, quando narra seu

grande incômodo por estar dentro de um recinto cuja atmosfera é insuportável e

considerado implicitamente por ele como um dos círculos infernais da obra de Dante.

Ele reencontra a paz ao observar o céu estrelado de verão, assim como na ascensão de

Dante aos Campos Elíseos, ou seja, o paraíso greco-romano.

Apertei a cabeça entre as mãos, abri a boca numa ânsia.

– Vamos, ou eu morro!

O meu amigo, então, empurrou os três chins9, atirou-se à janela, abriu-a. Uma

lufada de ar entrou, as lâmpadas tremeram, a nuvem de ópio oscilou, fendeu,

esgueirou-se, e eu caí de bruços, a tremer diante dos chins apavorados e nus.

Fora, as estrelas recamavam de ouro o céu de verão... (RIO, 2008, p. 110)

Na obra de Dante, a descida aos nove círculos infernais é feita de maneira

vertical, indo de cima para baixo, de maneira que aqueles que eram condenados por

pecados mais graves residiam nos círculos mais profundos do inferno. A parte

relacionada ao purgatório é também efetuada em um movimento vertical, mas de baixo

para cima, onde as almas menos impuras ocupam os patamares mais altos da montanha,

que no texto representa o local de expurgação dos pecados cometidos. Esses dois

9 Nome dado aos chineses que imigravam para o Brasil no século XIX.

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movimentos, de descida e subida, são classificados como catábase e anábase

respectivamente.

O movimento de declínio e ascensão, além de elementos alegóricos e estéticos,

retrata esse sentimento de não pertencimento àquele lugar, deixando claro que o autor

estava ali apenas como observador e, assim como no poema de Dante, o inferno

(declínio) é um momento de tristeza, e a subida aos céus (ascensão), com a visão das

estrelas de ouro, mencionada por João do Rio, é o momento de encontro com a alegria e

retorno a sua realidade própria.

Outro aspecto presente nas crônicas analisadas faz com que se perceba uma

outra tensão, que está na maneira como João do Rio se posiciona diante dos

marginalizados que figuram em seus textos. Além de seu sentimento de não pertencer

ao mundo que retrata, há a necessidade de se destacar desse mundo por meio de seu

status de literato, buscando a ascensão literária por meio da simbólica “descida aos

infernos”, do contato com os socialmente excluídos.

É sabido que as ambiguidades presentes na Belle Époque carioca não estão

presentes somente nas obras de João do Rio, mas também são característica marcante

em textos de Lima Barreto e Euclides da Cunha, entre outros.

Com conotações positivas e negativas, conforme o cronista, as múltiplas

associações entre “progresso”, “civilização”, “ordem”, “trabalho”,

“saneamento”, “racionalidade” e “cidadania” se repetem como sinais do

novo, em sua relação essencial com a República e o modelo cultural francês e

seu caráter de superação das mazelas da colonização portuguesa, quase

sempre associada aos conceitos opostos de “atraso”, “barbárie”, ‘desordem”,

“ociosidade”, “doença”, “irracionalidade” e “anarquia”. (NEVES, 1992, p.

85)

Contudo, mesmo sendo uma marca da época, as dualidades presentes nos textos

de João do Rio, constroem uma imagem mais clara das tensões vividas no Rio de

Janeiro de sua época. O cronista-flâneur, foco desta análise crítica, buscou mostrar

como as mesmas tensões presentes em Paris e outras capitais europeias podiam

manifestar-se também na capital carioca, retratando assim o que era universal; ao

mesmo tempo, dedicou-se a destacar o que a capital carioca tinha de único em relação

às outras, inserindo, dessa maneira, o conceito de local em seus textos.

Por se tratar de um homem essencialmente ambíguo que pertence a um cenário

de transformações, é natural que a oposição de ideias esteja presente não apenas em sua

vida, mas tenha sido transferida para suas crônicas, e que, mesmo retratando a vida e os

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hábitos dos humildes, ele o fez de maneira ímpar, inserindo em seus relatos citações ou

descrições de grandes eruditos da literatura clássica e contemporânea, transformando

suas crônicas – textos originalmente concebidos para serem efêmeros – em obras de

grande valor histórico e literário.

Considerações finais

A leitura crítica realizada neste trabalho baseou-se em dados da vida do autor

João do Rio e de seu tempo, e avaliou como sua formação pessoal e seu modo de vida

foram decisivos para o posicionamento de seu olhar como escritor – mesmo olhar que

lançou sobre a sociedade carioca e as contradições presentes no período de transição

entre os séculos XIX e XX, considerado por muitos pesquisadores como a Belle Époque

carioca. Serviram como material de pesquisa de sua vida e dados sociais os livros O

momento literário e A alma encantadora das ruas, ambos publicados por João do Rio

no começo do século XX, a biografia João do Rio, realizada pelo autor Ledo Ivo a

serviço da Academia Brasileira de Letras, com publicação datada de 2012.

Por meio da leitura dessas obras, explicou-se, de forma sucinta, o contexto

social, histórico e político que é entrelaçado com os dados biográficos do autor e de

escritores contemporâneos a ele. O momento literário é uma obra de fundamental

importância para compreensão da situação dos autores e da própria literatura brasileira

da época. Foi possível também relatar as ambiguidades presentes na sociedade carioca e

que, enquanto geradoras de tensões sociais, serviram de matéria de inspiração para as

crônicas que escreveu e que foram analisadas no terceiro capítulo deste trabalho.

As pesquisas relativas à delimitação das características do gênero crônica,

realizada no segundo capítulo, compuseram uma importante e difícil etapa de nosso

trabalho, pois esse gênero mutante percorreu caminhos variados ao longo de sua

história, tornando-se múltiplo e de fugidia sistematização. Mesmo assim, parece-nos

que a crônica manteve como características fundamentais a representação do tempo, da

realidade social e, sobretudo, da reprodução de ações de personagens em ações

ordinárias, em que as cenas do cotidiano abrem-se desde uma leitura filosófica da

realidade à encenação textual de um evento cômico.

Para realizar essa complexa tarefa – a de tentar definir esse gênero textual –, os

conceitos sobre crônica foram retirados dos livros A criação literária, de Massaud

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Moisés, e A crônica: O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, composto

por estudos e artigos de vários autores, entre eles Antônio Candido e Raúl Antelo.

Desse material, obteve-se uma base muito firme sobre a definição do que hoje é

considerado como crônica, gênero que foi o objeto de estudo deste trabalho.

Outro aspecto a ser destacado é a intertextualidades presente nas crônicas

estudadas, como a menção à obra “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri, que deixa

clara a erudição do autor, mesmo estando presente em crônicas feitas primeiramente

para ocupar páginas de um jornal. Ela compõe um elemento estético que acabava por

provocar a reflexão dos leitores acerca do assunto tratado e mostram que tanto o texto

quanto a época vivida por ele dialogam com outros textos e momentos vividos por

autores de culturas diferentes.

Dentre os vários trabalhos, de gêneros distintos, escritos por João do Rio, a

análise presente neste trabalho foi feita sobre as crônicas contidas no livro A alma

encantadora das ruas, obra que se faz de uma coletânea de relatos do cotidiano carioca

do início do século passado e, por apresentarem dualidades decorrentes das tensões

pelas quais o Rio passava, servem tanto como uma análise das qualidades e

peculiaridades, enquanto obra literária, quanto como documentação histórica acerca das

dualidades presentes na capital carioca, daí a sua fundamental importância. Essa

relevância deve ser considerada em relação não só aos textos de João do Rio, mas à sua

vida enquanto escritor e ao legado deixado pela sua obra, que contribuiu para a

formação da crônica como a conhecemos hoje e, não menos importante, para reconhecer

um Rio de Janeiro situado em um passado recente, mas que só conseguimos observar

pela leitura de seus textos.

Referências bibliográficas

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