Post on 06-Feb-2018
INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE LINGSTICA, LNGUAS CLSSICAS E VERNCULA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LINGSTICA
JARDLIA MOREIRA DOS SANTOS
LETRAMENTO MULTIMODAL
E O TEXTO EM SALA DE AULA
Braslia-DF
2006
JARDLIA MOREIRA DOS SANTOS
LETRAMENTO MULTIMODAL
E O TEXTO EM SALA DE AULA
Dissertao submetida ao Departamento de Lingstica, Lnguas
Clssicas e Verncula como requisito parcial para a obteno do Grau
de Mestre em Lingstica pela Universidade de Braslia.
Prof. Dr. Josenia Antunes Vieira
Orientadora
Braslia-DF
2006
JARDLIA MOREIRA DOS SANTOS
LETRAMENTO MULTIMODAL
E O TEXTO EM SALA DE AULA
Dissertao submetida ao Departamento de Lingstica,
Lnguas Clssicas e Verncula como requisito parcial para a
obteno do Grau de Mestre em Lingstica pela Universidade
de Braslia.
Aprovada em _______de________ de 2006 __________________________________________ Professora Doutora Josenia Antunes Vieira Orientadora (UnB) __________________________________________ Professora Doutora Denise de Arago Costa Martins Membro (UnB) ____________________________________________ Professora Doutora Maria Christina Diniz Leal Membro (UnB) ____________________________________________ Professor Doutor Marcos Arajo Bagno Membro Suplente (UnB)
iv
Si los textos son siempre multimodales, entonces la cuestin de las fronteras de
un texto se convierte en un problema central. En cualquier pgina, resulta en alto
grado problemtico leer solamente la significacin transmitida de modo lingstico.
Kress, Leite-Garcia e van Leeuwen (2000)
v
Jade, minha pequena jia, pela
compreenso e pelo carinho, durante essa jornada,
mesmo sendo uma criana.
vi
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais: Carmindo e Jardlia, aqueles que, primeiro possibilitaram-me ver
os dados do mundo com mais argcia, conduzindo-me a uma sala de aula.
Aos meus irmos e irms: Carmlia, Roblia, Giovannia, Edilce, Cristhyane, Jos
Neto, Geovah, Giovanni e Carmindo Jr., pelo carinho, por se preocuparem tanto comigo,
sempre querendo saber por que estudo tanto.
professora Dr. Josenia A.Vieira, pela orientao deste trabalho, marcada por
apontamentos desafiadores rumo construo de uma conscincia crtica, por ter
acreditado que eu seria capaz.
Ao Edivam, esposo e companheiro, pela compreenso, pelo cuidado e por ter
compreendido as minhas constantes ausncias.
s amigas: Cristina Leite, Lia da Silva, Leni de Ftima, Marisa Almeida, Nelma
dos Santos e Suely Nunes, pela fora, pela assistncia e pelo encorajamento.
Mestra Vera Lcia C.da Conceio, aquela que me despertou para o mundo da
Cincia da linguagem, meu eterno agradecimento.
Professora Doutora Eliana Fernanda Cunha Ferreira, por ter me apresentado
s suas leituras cruzadas, saudades mil.
Cordlia, que colaborou para a concluso deste trabalho, mostrando-me o
significado da palavra companheirismo.
Aos colegas da Anlise de Discurso, principalmente, Alessandra ngelo,
Edgleuba Queiroz, Elda Ivo e Luiza Kuwae, pelo companheirismo, pela amizade e pela
cooperao, durante toda a nossa jornada, sem vocs teria sido mais fatigante.
s irms Ana Paula e rica Marques, pela ajuda que ultrapassou os limites de
uma grande amizade.
vii
RESUMO
A Pesquisa Letramento multimodal e o texto em sala de aula o resultado
da anlise de prticas discursivas utilizadas pelas professoras em uma turma de 7 srie,
no Ensino Fundamental, em uma escola pblica de Ceilndia, cidade do Distrito Federal.
Investiguei em que medida as prticas discursivas adotadas pelas professoras do
Ensino Fundamental influenciaram no interesse pela leitura de textos multimodais. Os
fundamentos tericos desta dissertao so: (i) Anlise de Discurso Crtica formulada
por Fairclough (1989, 1992, 2001, 2003) e por Chouliaraki e Fairclough (1999); (ii)
Multimodalidade conforme Chouliaraki e Fairclough (1999), Kress e van Leeuwen (1996).
(iii) Letramento defendido por Barton (1994); Barton e Hamilton (1998,2000); Hasan
(1996); Heath (1982, 1983) e Street (1984, 1993,1995). O trabalho foi desenvolvido com
base na metodologia qualitativa e tem como arcabouo terico, principalmente, os
postulados de Bauer e Gaskell (2003) e Flick (2004). Na anlise, trabalhei para verificar
de que a maneira as professoras orientam as prticas discursivas de seus alunos em
relao aos textos multimodais e se esse trabalho contribui para a construo crtica do
discurso do aluno e, ainda, quais so as orientaes quanto s mltiplas funes e os
significados dos Letramentos, subjacentes s prticas discursivas utilizadas pelas
professoras. O emprego das categorias analticas possibilitou, ainda, a constatao de
que as imagens integram argumentos discursivos parte do discurso falado ou escrito e
de que a composio das linguagens verbal e visual no neutra. Portanto, a escola
deve buscar construir e transformar a realidade por meio de um ensino de produo e
de leitura de textos multimodais.
Palavras-chave: Letramento; Multimodalidade; Anlise de Discurso Crtica (ADC);
Multiletramentos; Semitica Social.
viii
ABSTRACT
The Research Multimodal literacy and the text in classroom is the result of
the analysis of discoursive practices used for the teachers in a 7 grade, of Basic
Education class, in a public school of Ceilndia, city of the Federal District. I
investigated in what measure the discoursive practices adopted by the teachers of
Basic Education had influenced in the interest for the reading of multimodal
texts.Theoretical basis of this dissertation are: (i) Critical Discourse Analysis (CDA),
formulated by Fairclough (1989, 1992, 2001, 2003) and by Chouliaraki and
Fairclough (1999); (ii) Multimodality agreement by Chouliaraki and Fairclough (1999),
Kress and van Leeuwen (1996). (iii) Literacies defended by Barton (1994); Barton
and Hamilton (1998, 2000); Hasan (1996); Heath (1982, 1983) and Street (1984,
1993,1995). The work was developed with basis on the qualitative methodology and
has its mainly original theoretical basis on the postulates of Bauer and Gaskell (2003)
and Flick (2004). In the analysis, I worked to verify in which way the teachers guide
their pupils on the discoursive practices in relation to the multimodal texts and if this
work contributes for the critical construction of the speech of the pupil and, still, which
are the orientations as for the multiple functions and meanings of the Literacies,
underlying the discoursive practices used by teachers. The application of the
analytical categories made possible, also prove that the images complete
discoursive arguments from part of the spoken speech or written and that the
composition of the verbal and visual language is not neutral. Therefore, the school
must search to build and transform the reality, by means of an education of
production and reading of multimodal texts.
Key Words: Literacy; Multimodality; Multiliteracies; Critical Discourse Analysis (CDA);
Social Semiotic
ix
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Letramento como prtica social 47
Quadro 2 - Regras para a utilizao da pesquisa qualitativa 74
Quadro 3 - Aspectos da pesquisa qualitativa 75
x
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Correlao entre Fairclough, Halliday e Foucault 29
Figura 2 - Concepo tridimensional do discurso 33
Figura 3 - Assentamento inicial 78
Figura 4 - Vista area Ceilndia Sul 79
Figura 5 - Casa do Cantador de Braslia 80
Figura 6 - Sala de aula 81
Figura 7 - Blocos B e C 81
Figura 8 - Hall do Centro de Ensino 19 82
xi
SUMRIO
INTRODUO 14
1 DESCOBRINDO O ENSINO CRTICO EM LNGUA PORTUGUESA 17
1.1 O ensino de Lngua Portuguesa 20
1.2 Conjunto de Prticas Sociais: nova concepo de Lngua e de Texto 22
2 CONSTRUINDO AS TEORIAS PARA ANLISE 24
2.1 Anlise de Discurso Crtica (ADC) 24
2.1.1 Conceituando Discurso 26
2.1.2 Lingstica Sistmico - Funcional (LSF) 26
2.1.3 Os significados textuais segundo Fairclough 28
2.1.4 Representao dos eventos sociais 30
2.1.5 As noes de espao-tempo de Harvey 31
2.1.6 Concepo Tridimensional do Discurso 32
2.1.6.1 Prtica lingstica: discurso como texto 33
2.1.6.2 Prtica discursiva 35
2.1.6.3 Discurso como prtica social 37
2.2 Letramento em Reviso 38
2.2.1 Mudana de Perspectiva: a construo de novo objeto de anlise 40
2.2.2 Alfabetizao, escolarizao e Letramento 44
2.2.3 Eventos e prticas: componentes do Letramento 46
2.2.4 O binmio de Street 48
2.2.4.1 Modelo Autnomo 48
2.2.4.2 Modelo Ideolgico 49
2.2.5 Outras concepes sobre Letramento 51
2.2.6 Letramento no panorama mundial 52
2.2.7 Letramento no Brasil 54
2.2.8 Multiletramentos: um novo conceito 57
2.3 Multimodalidade: mudana no cenrio da comunicao 58
2.3.1 Lingua(gem) e imagem 61
2.3.2 Teoria de representao 62
2.3.3 A semitica clssica: Christian Metz e Roland Barthes 63
xii
2.3.4 Semitica Social 65
2.3.5 Caractersticas dos textos multimodais 67
2.3.6 Categorias para a anlise visual 69
2.3.6.1 Valor da informao 69
2.3.6.2 Salincia/projeo 69
2.3.6.3 Framing 71
3. EM BUSCA DE RESPOSTAS: OS CAMINHOS QUE TRILHEI 73
3.1 Qualidades da Metodologia 73
3.2 Aspectos relevantes para a Pesquisa 75
3.3 Categorias de Anlise 76
3.4 Questes da Pesquisa 77
3.5 Os Sujeitos Pesquisados 77
3.6 O Macro Contexto da Pesquisa: a Construo de Ceilndia 77
3.7 O Micro Contexto da Pesquisa 80
3.8 Instrumentos de Coleta de Dados 83
3.9 O Corpus 83
3.9.1Questes 84
4 OS RESULTADOS: A ANLISE DO CORPUS 86
4.1 Textos explorados em sala de aula pelas professoras 86
4.1.1 Texto n 1 87
4.1.2 Texto n 2 89
4.2 Categorias analticas de Fairclough 92
4.2.1 Vocabulrio 92
4.2.2 Gramtica 93
4.3 Categorias analticas de Fairclough 94
4.3.1 Processos 95
4.3.2 Participantes 96
4.3.3 Linguagem 96
4.4 Categorias analticas de Kress e van Leeuwen 97
4.5 Orientaes para o Letramento 98
4.6 Notas de campo 99
4.6.1 Nota de Campo 1(NC1) 99
4.6.1.1 Interpretando a Nota de Campo 1 (NC1) 100
4.6.2 Nota de Campo 2 (NC2) 100
xiii
4.6.2.1 Interpretando a Nota de Campo 2 (NC2) 102
4.6.3 Nota de Campo 3 (NC3) 102
4.6.3.1 Interpretando a Nota de Campo 3 (NC3) 103
4.6.4 Nota de Campo 4 (NC4) 104
4.6.4.1 Interpretando a Nota de Campo 4 (NC4) 105
4.7 Analisando o Questionrio 106
4.8 Consideraes Finais da Anlise dos Dados 109
5 CONCLUSO 111
6 REFERNCIAS 114
ANEXOS 120
14
INTRODUO
Por que o Letramento multimodal?
As imagens carregam uma significao cultural com marcas geogrficas,
religiosas e sociais que permitem ao leitor mltiplas e infinitas possibilidades de leitura.
Ler as imagens, interpretando um texto verbal um desafio que se corporifica nesse
mundo, marcado pela proliferao de imagens que nos bombardeiam: outdoors,
noticirios, propagandas, multimdia etc.
Qualquer que seja o texto escrito, ele multimodal, composto por mais de um
modo de representao. Alm de palavras, elementos no-verbais, como fotos,
desenhos, tabelas, grficos, quadros, diagramao da pgina (layout), interferem na
mensagem a ser comunicada; bem como a cor e a qualidade do papel, o formato e a cor
(ou as cores) das letras e a formatao do pargrafo etc.
O grau de dificuldade dessa leitura depende da familiaridade da pessoa com o
tipo de recurso grfico, com o assunto tratado e com a salincia da informao, tanto
quanto do material lingstico. medida que esse tipo de texto trabalhado em sala de
aula, o aluno poder perceber com mais facilidade que a leitura, como construo de
sentido, requer no s os efeitos de sentido desencadeados pela lngua, mas tambm
outros elementos.
s vezes, as imagens dispensam as palavras, e, se o leitor tem habilidade para
lidar com esses elementos no-verbais, pode estabelecer relaes e ser capaz de
relacionar e de perceber como se completam informaes advindas dessas fontes, na
construo de significados para o texto.
15
Foi esse cenrio instigante que me motivou a pesquisar com maior afinco e
dedicao o fenmeno do Letramento multimodal. Considero-o relevante para que os
alunos possam se familiarizar com textos multimodais e adquirir habilidades para lidar
com elementos no-verbais.
Na anlise do corpus, investigo as relaes entre a prtica discursiva e a social,
as propriedades dos textos associadas s propriedades sociais dos eventos discursivos.
Investigo, tambm, por meio da comparao com outros dados (questionrio e textos
trabalhados em sala de aula), se o texto multimodal trabalhado em sala de aula e qual
a sua contribuio para a construo do discurso crtico do aluno.
A dissertao est organizada em seis partes: a introduo, quatro captulos e a
concluso.
No captulo 1, Descobrindo o ensino crtico em Lngua Portuguesa, apresento as
novas concepes do ensino da Lngua Portuguesa, sugeridas pelo Ministrio da
Educao e as novas concepes de linguagem no contexto contemporneo. O apoio
terico vem das idias de Fairclough (1989, 1992, 2001, 2003) e de Chouliaraki e
Fairclough (1999).
No captulo 2, Construindo as teorias para anlise, subdividido em trs partes, na
primeira, trabalharei a Anlise de Discurso Crtica, segundo Fairclough (1989, 1992,
2001, 2003) e Chouliaraki e Fairclough (1999). Na segunda parte, apresento os
resultados de pesquisas sobre o Letramento no panorama mundial, bem como na
pesquisa nacional. Barton (1994); Barton e Hamilton (1998, 2000); Heath (1982,1983);
Hasan (1995, 1996) e Street (1984,1993, 1995); Kleiman (1995); Marcuschi (2004);
Soares (1998); Vieira (2003) fornecem-me a sustentao terica. Apresento, na terceira
parte, consideraes acerca da Multimodalidade: de acordo com Chouliaraki e
16
Fairclough (1999); Kress e van Leeuwen (1996); Kress, Leite - Garcia e van Leeuwen
(2000) e Trevisan (2002).
No captulo 3, Em busca de respostas: os caminhos que trilhei, mostro os
aspectos da metodologia; os sujeitos pesquisados, o contexto sociocultural, os
instrumentos, a coleta dos dados e a organizao do corpus. As categorias de anlise,
no campo da ADC, sero referentes s dimenses do vocabulrio no que se refere ao
sentido da palavra e metfora, e da gramtica no que tange passivizao e
nominalizao e as representaes dos eventos sociais: processos, participantes,
linguagem, propostas por Fairclough (2003).
Da Multimodalidade, sigo as propostas de Kress, Leite-Garcia e van Leeuwen
(2000); Kress e van Leeuwen (1996). Procurei, ainda, identificar orientaes quanto aos
letramentos subjacentes s prticas docentes, de acordo com Barton (1994); Barton e
Hamilton (1998, 2000); Heath (1982,1983) e Street (1984, 1993, 1995). A anlise de
cunho qualitativo com reinterpretao dos dados, de acordo com Bauer e Gaskell (2003)
e Flick (2004).
No captulo 4, Os resultados: a anlise do corpus, realizo uma anlise crtica dos
dados coletados em que o texto visto como representao, luz dos pressupostos
tericos e analticos de Fairclough (2001, 2003). A Multimodalidade, segundo Kress e
van Leeuwen (1996), Kress, Leite - Garcia e van Leeuwen (2000), fundamentar as
anlises. Sobre o Letramento, ancorada em Street (1984, 1993, 1995), procurei
identificar orientaes quanto s mltiplas funes e aos significados do Letramento,
subjacentes s prticas utilizadas pelas professoras.
17
CAPTULO 1
El Anlisis crtico del discurso
interpreta el discurso - el uso del lenguaje em el habla y em la
escritura - como una forma de prctica social (Fairclough e
Wodak, 2001, p.367).
DESCOBRINDO O ENSINO CRTICO EM LNGUA PORTUGUESA
No Brasil, o ensino de Lngua Portuguesa tem sido desde os anos 70, o centro
da discusso acerca da necessidade de melhorar a qualidade de ensino. Porm, as
propostas de reformulao indicavam mudanas no modo de ensinar: pouco
considerando os contedos de ensino; valorizando a criatividade e orientando pela
perspectiva gramatical. (PCNs de Lngua Portuguesa, p. 17).
Os Parmetros Curriculares Nacionais - PCNs - orientam para que a escola
organize atividades que possibilitem ao aluno desenvolver o domnio da expresso oral
e escrita em situaes de uso pblico da linguagem, alm disso esperam que o aluno
Amplie o conjunto de conhecimentos discursivos, semnticos e gramaticais
envolvidos na construo dos sentidos dos textos; reconhea a contribuio
complementar dos elementos no-verbais (gestos, expresses faciais,
postura corporal); utilize a linguagem escrita, quando for necessrio,
quando apoio para registro, documentao e anlise; amplie a capacidade
de reconhecer as intenes do enunciador, sendo capaz de aderir ou
recusar as posies ideolgicas sustentadas em seu discurso. (PCNs de
Lngua Portuguesa, p. 49).
Para atender aos novos direcionamentos, o ensino de Lngua Portuguesa
necessita considerar as prticas discursivas dos alunos como modo no s de valoriz-
18
los, mas tambm de valorizar sua comunidade. Vrios so os textos oficiais que
suscitam discusses acerca da necessidade de repensar o ensino de Lngua
Portuguesa.
Nessa perspectiva, a escola deve assumir o compromisso de garantir que a sala
de aula seja um espao em que cada sujeito tenha o direito palavra e que isso possa
ser reconhecido como legtimo.
O Sistema Nacional de Avaliao da Educao Bsica - Saeb - do Ministrio da
Educao, criado em 1990, constitui relevante instrumento para subsidiar e induzir
polticas orientadas para a melhoria da qualidade da educao brasileira. O Saeb avalia
a qualidade, a eqidade e a eficincia do ensino e da aprendizagem no mbito do
Ensino Fundamental e do Ensino Mdio. Em Lngua Portuguesa, so avaliadas as
seguintes competncias e habilidades:
procedimentos de leitura;
implicaes de suporte, do gnero e/ou enunciador, na compreenso dos
textos;
relao entre textos;
coeso e coerncia no processamento de textos;
relaes entre recursos expressivos e efeitos de sentido;
variao lingstica.
Os testes aplicados aos alunos contm itens que avaliam as habilidades
(descritores) relacionadas nas Matrizes de Referncia do Saeb. Cada item construdo
19
para avaliar um nico descritor. Sobre o ensino da Lngua, h, no Saeb (2001, p.10
-15), dois nveis de exigncia:
1) que o aluno seja usurio competente da lngua;
2) que o aluno seja crtico, reflexivo e independente.
Assim, surge tambm nova exigncia em relao ao trabalho do professor. Ele,
que antes detinha os conhecimentos e objetivava transmiti-los, agora tem como objetivo
o desenvolvimento de habilidades.
Essa mudana de foco significa que cabe ao professor o papel fundamental de
organizar aes que possibilitem aos alunos o olhar crtico e reflexivo sobre os aspectos
das prticas sociais; inclusive sobre aqueles que no foram percebidos inicialmente
como intenes, valores, ideologias, articulados ao conhecimento dos recursos
discursivos e lingsticos. Assim, necessrio que o professor tenha clareza das
finalidades do ensino e dos conhecimentos que precisam ser construdos.
O Currculo da Educao Bsica das Escolas Pblicas do Distrito Federal,
fundamentado nos Parmetros Curriculares Nacionais - PCNs -, apresenta proposta de
reavaliao e de reflexo da prtica pedaggica do ensino e da aprendizagem da
Lngua Portuguesa:
O ensino da Lngua Portuguesa deve integrar-se aos demais componentes curriculares e aos
principais temas sociais, deve contribuir para a formao global do cidado, possibilitando a ampliao do
domnio da lngua e da linguagem. Para interagir por meio da lngua e da linguagem, o aluno necessita
desenvolver conhecimentos discursivos e lingsticos, sabendo adequar suas produes orais e escritas a
diferentes situaes de interlocuo. (Currculo da Educao Bsica das Escolas Pblicas do Distrito
Federal, 2002, p.27).
20
Dessa forma, interagir, usando a linguagem, significa empreender ao que se
realiza nas prticas sociais, a qual se manifesta por meio do texto. Portanto, o ensino da
lngua, na escola, deve privilegiar o texto, no apenas como modelo, mas como eixo
central das aulas.
Ainda que apresentem propostas louvveis de reformulao das prticas
tradicionais de ensino de lngua, os Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de
Lngua Portuguesa e os documentos dele decorrentes esto redigidos de modo que sua
leitura se revela, extremamente difcil para a maioria dos professores brasileiros,
principalmente para os que atuam em escolas pblicas, que no foram preparados, em
seus cursos de formao, para ler esse gnero textual que pressupe o conhecimento
prvio de teorias lingsticas especficas (Bagno, 2002, p.15).
Elas so veiculadas em terminologia que no compreensvel para o professor-
leitor como parece ser para os produtores do texto, os tcnicos do Ministrio da
Educao.
1.1 O ensino de Lngua Portuguesa
O objeto de ensino-aprendizagem de Lngua Portuguesa o conhecimento
lingstico e discursivo que o aluno opera ao participar de prticas sociais mediadas pela
linguagem. Linguagem, aqui, entendida como ao interindividual orientada por uma
finalidade especfica, que se realiza nas prticas sociais (PCNs de Lngua Portuguesa,
p.20).
Assim, a escola deve articular situaes de uso da linguagem com as relaes
sociais e o professor deve ter em mente que a escola um espao de interao social
em que prticas sociais acontecem e se circunstanciam.
21
Segundo os PCNs (p.23), no se devem tomar como unidades bsicas do
processo de ensino-aprendizagem as prticas que decorrem de anlise de estratos,
como letras, fonemas, slabas, palavras, sintagmas ou frases, que, descontextualizadas,
so apenas exemplos de estudo gramatical, e pouco ou nada se relacionam com a
competncia discursiva.
Os alunos, nas suas prticas sociais, na busca de servios, nas tarefas
profissionais, nos encontros institucionalizados, na defesa de seus direitos, sero
avaliados na medida em que forem capazes de responder s diferentes demandas de
fala e de escrita adequadas aos diferentes papis sociais, nunca com base em anlise
de estratos, portanto esse modelo no funciona.
O ensino crtico de Lngua Portuguesa passa a ser discutido em funo das
novas teorias lingsticas como a Anlise de Discurso Crtica, o Letramento, a
Multimodalidade. A escola v-se, ento, obrigada a ampliar seus paradigmas, suas
concepes.
Diante desses novos paradigmas, a unidade bsica do ensino deve ser o texto.
Utilizo, aqui, texto como Fairclough (2003, p.3), em sentido amplo: qualquer exemplo de
linguagem em uso um texto. Considerando tambm que textos so partes de eventos
sociais.
Alguns eventos tm carter altamente textual, outros no. Textos impressos e
escritos, como listas de compras e artigos de jornal, so textos; cpias de conversas e
de entrevistas (faladas) tambm o so, assim como televiso e pginas na Internet.
22
1.2 Conjunto de prticas sociais: nova concepo de lngua e de texto
Para Fairclough (2003, p.23), a relao entre estruturas e eventos sociais
mediada pelas prticas sociais. As estruturas sociais so entidades muito abstratas,
pensadas como algo potencial, como grupo de possibilidades, ao passo que os eventos
sociais constituem o que real. As prticas sociais podem ser tidas como meios de
controlar a seleo de certas possibilidades estruturais e a excluso de outras e so
padronizadas pelas instituies e pelas relaes de poder, esto inseridas em prticas
culturais e metas sociais mais amplas.
Prticas so estabelecidas em rede de modo particular e cambiante enquanto os
eventos sociais so causativamente moldados por redes de prticas sociais. A essas
redes de prticas sociais (no aspecto lingstico), Fairclough (2003, p.24) chamou-as de
ordem de discurso, cujos elementos so:
gneros - so modos diferentes de (inter)agir discursivamente em eventos
sociais;
discursos - so modos de representar aspectos do mundo (o fsico, o
social e o material), so representaes que fazem parte de prticas sociais;
estilos - so modos de ser, so identidades sociais ou pessoais
particulares.
A linguagem um elemento do social em todos os nveis ao passo que, os textos
so efeitos de estruturas lingsticas, de ordens de discurso, bem como efeitos de
outras estruturas sociais, e de prticas sociais em todos os seus aspectos, de modo que
difcil separar os fatores que modelam os textos (Fairclough, 2003, p.24).
23
Portanto, a escola deve considerar o universo social do aluno, promovendo a sua
ampliao, de modo que ele se torne capaz de interpretar textos diversos que circulam
socialmente, de defender suas opinies, de produzir textos eficazes nas mais variadas
situaes.
Ao confrontar o que apresentado nos textos oficiais com as prticas discursivas,
constatei que h uma lacuna entre o que se prope para o ensino de Lngua Portuguesa
e o que de fato ocorre nas instituies de ensino. A comear pela prpria terminologia
dos textos oficiais, que incompreensvel para a maioria dos professores.
Alm disso, o texto ainda no tomado como unidade de ensino, quer seja na
forma oral ou escrita; a mudana dessa prtica permitir aos alunos a expanso e a
construo de habilidades que ampliem sua competncia discursiva, por meio da
anlise e da reflexo sobre os mltiplos aspectos envolvidos nas prticas de leitura e de
escrita de textos, nas atividades de Lngua Portuguesa.
Assim, penso que as diferentes correntes da Lingstica, como a ADC, o
Letramento e a Multimodalidade podem prestar contribuies significativas ao ensino de
Lngua Portuguesa na escola, desde que haja abertura e disposio de ambas as partes
- Governo e profissionais - para a efetivao de mudanas concretas.
No captulo subseqente, apresentarei a fundamentao terica que dar
sustentao anlise dos dados.
24
CAPTULO 2
El anlisis crtico del discurso est
bastante relacionado com el hecho de establecer
nexos entre estructuras y procesos sociales y
culturales por un lado, y con las propiedades del texto
por el otro (Fairclough e Wodak, 2001, p.395)
CONSTRUINDO AS TEORIAS PARA ANLISE
Neste captulo, apresento a fundamentao terica que norteia a minha
dissertao. Apresento, na primeira parte, a Anlise de Discurso Crtica na Concepo
Tridimensional de Fairclough (2001), bem como discorro sobre a reelaborao dessa
perspectiva para o discurso, lanada em Fairclough (2003). A segunda parte dedicada
aos estudos dos Letramentos, propostos por Barton (1994); Barton e Hamilton (1998,
2000); Heath (1982,1983); Street (1984,1993, 1995); Kleiman (1995); Marcuschi (2004);
Soares (1998) e Vieira (2003), que repensam as prticas sociais em diferentes culturas
e linguagens. E, por fim, trabalho com a Multimodalidade, de acordo com Chouliaraki e
Fairclough (1999); Kress e van Leeuwen (1996); Kress, Leite - Garcia e van Leeuwen
(2000), que destacam outras modalidades de discurso no-verbal.
2.1 Anlise de Discurso Crtica (ADC)
A anlise de Discurso apresenta duas vertentes: crticas e no-crticas. A linha de
ADC possui como diferencial sua nfase sobre a esfera da prtica social. Esta linha
confere linguagem um papel central e dependente dos determinantes culturais e das
estruturas de poder que as configuram, no contexto social.
A ADC torna-se um projeto em nvel transdisciplinar com perspectivas sobre a
linguagem e o discurso imersos na teoria e pesquisa social para desenvolver a
25
capacidade de analisar textos como elementos do processo social. A
transdisciplinaridade teoria ou ao mtodo analtico uma questo de trabalhar com
categorias sociolgicas, por exemplo, para desenvolver uma teoria do discurso e
mtodos para analisar textos, em virtude de no enfocar somente as propriedades
discursivas (produo, distribuio e consumo dos textos) e textuais, mas por v-los
como prtica social nas instituies e nas relaes com o poder e nos projetos
hegemnicos em nvel social.
Fairclough (2003, p. 28) afirma que a Anlise de Discurso influenciada pela obra
de Foucault, a qual representa uma importante contribuio para uma teoria social do
discurso em reas como a relao entre discurso e poder, a construo discursiva de
sujeitos sociais e do conhecimento e o funcionamento do discurso na mudana social.
A anlise de texto parte importante de Anlise de Discurso, porm a Anlise de
Discurso no apenas a anlise lingstica de textos, algo que oscila entre o foco em
textos especficos e o foco em ordem de discurso, que a estruturao social de uma
lngua e sua parceria com determinadas prticas sociais, a ADC, alm de ser linha
terica tambm modelo de anlise e por isso foi escolhida para nortear o meu trabalho.
A linha de Anlise de Discurso no-crtica, por sua vez, considera o sujeito
somente como agente dos processos sociais e o contexto como no fundamental para o
processo de socializao dos sujeitos, por meio da linguagem.
A seguir sero apresentados conceitos-chave para o entendimento da ADC e
para sua utilizao como ferramenta terica e metodolgica.
26
2.1.1 Conceituando Discurso
Para Fairclough (2003, p. 26), a anlise de qualquer discurso envolve vrios
fatores e diferentes domnios. O autor utiliza o termo discurso em dois sentidos:
abstratamente, como linguagem ou como outros tipos de semiose; e concretamente,
como modos particulares de representar partes do mundo.
Discursos representam o mundo como ele (ou melhor, como ele visto). Eles
tambm so projetivos ou imaginrios, representando mundos possveis que so
diferentes do mundo real, e inseridos em projetos de mudar o mundo em direes
particulares (Fairclough, 2003, p.124).
Sendo assim, o discurso sinaliza a viso particular da linguagem em uso, como
um elemento da vida social que fortemente conectado a outros elementos. Ao usar o
termo discurso, ao longo desta dissertao, proponho considerar o uso da linguagem
como forma de prtica social e no como atividade puramente individual ou reflexo de
variveis situacionais.
2.1.2 Lingstica Sistmico-Funcional
Fairclough (2003, p.5) considera a Lingstica Sistmico-Funcional (LSF) como a
principal referncia para a anlise de texto. LSF uma teoria lingstica e um conjunto
de mtodos analticos, associados a Halliday (1978), que se preocupam com a relao
entre lngua, outros elementos e aspectos da vida social.
A anlise lingstica de textos orientada ao carter social dos textos. Mas,
Fairclough considera que as perspectivas de anlise entre a ADC e a LSF no
coincidem, porque a ADC v a necessidade de abordagens textuais por meio de um
dilogo transdisciplinar com perspectivas sobre linguagem e discurso, imersos na teoria
27
e na pesquisa social para desenvolver a capacidade de analisar textos como elementos
do processo social, ao passo que a LSF no v essa necessidade.
Fairclough (2003, p.26-27) considera as funes propostas por Halliday
(1978,1985) porque os textos, simultaneamente, representam aspectos do mundo (o
mundo fsico, o social e o mental); interpretam as relaes sociais entre os participantes
de eventos sociais e as atitudes, desejos e valores dos participantes; alm de conectar-
se com seus contextos situacionais, ou seja, os textos apresentam, ao mesmo tempo,
as funes propostas por Halliday:
funo ideacional, a representao e a significao do mundo e da
experincia;
funo interpessoal, a constituio (estabelecimento, reproduo,
negociao) das identidades dos participantes da interao e as relaes sociais e
pessoais entre eles;
funo textual, distribuio da informao dada versus nova, e da
informao foco versus aquela de pano de fundo.
Fairclough (2003) denomina-as ideacional, identitria e relacional e no faz
distino de uma funo textual. As funes identitria e relacional so reunidas por
Halliday como a funo interpessoal. Essa unio realizada porque o autor relaciona a
funo identitria aos modos pelos quais as identidades sociais so estabelecidas no
discurso enquanto a funo relacional diz respeito ao modo como as relaes sociais
entre os participantes do discurso so representadas e negociadas.
28
A Lingstica Sistmico-Funcional, a respeito da anlise lingstica de textos,
sempre orientada ao carter social dos textos e essa postura faz da LSF um valioso
recurso para a Anlise de Discurso Crtica. Utilizarei os pressupostos tericos e
analticos da ADC, mas no sero utilizadas as categorias da LSF, porque considerei
apenas a sua influncia sobre a ADC.
2.1.3 Os significados textuais segundo Fairclough
Fairclough (2003) concorda com as abordagens funcionais da linguagem que
enfatizam a multifuncionalidade dos textos, ainda que o faa de maneira diferente, de
acordo com a distino entre gnero, discurso e estilo como as trs maneiras em que o
discurso figura como parte da prtica social, respectivamente: ao, representao e
identificao.
A ao seria o modo de (inter)agir em eventos sociais; corresponderia funo
interpessoal, embora a nfase esteja no texto, representando relaes sociais. A
representao, modo de representar o mundo material, equivaleria funo ideacional;
e a identificao, modo particular de ser, identidade social ou particular, est includa,
tambm, na funo interpessoal.
Fairclough faz distines muito semelhantes aos trs eixos de Foucault (1994,
apud Fairclough, 2003, p.27): o eixo do conhecimento, o eixo do poder e o eixo da tica,
os quais apontam, tambm, para o carter dialtico e a complexidade entre eles:
ao est relacionada, de modo genrico, com a relao com os outros,
mas tambm com a ao sobre os outros e com o poder;
representao tem a ver com o conhecimento e, por meio dele, com o
controle sobre as coisas;
29
identificao liga-se com as relaes com a prpria pessoa, com a tica e
com os assuntos morais.
Figura 1 - Correlao entre os enfoques de Fairclough, Halliday e Foucault
Fairclough Halliday Foucault
ao interpessoal poder
representao ideacional conhecimento
identificao interpessoal tica
Com base em Fairclough, 2003, p. 27-28.
Devido complexidade relacionada aos trs aspectos de significado, posso
abordar, em um texto, ou at mesmo, em um perodo simples, aspectos do mundo fsico
(seus processos, seus objetos, suas relaes, seus parmetros de espao e de tempo);
aspectos do mundo mental (pensamentos, sentimentos, sensaes e assim por diante);
alm dos aspectos do mundo social.
Nesta dissertao, ater-me-ei aos aspectos do mundo social porque o objetivo a
representao dos eventos sociais, ainda que o mundo social possa ser representado
de modo mais generalizado e abstrato em relao s estruturas, s relaes, s
tendncias etc.
Os trs tipos de significado: ao, representao e identificao devem ser
levados em considerao quando o foco a orao, sendo que cada um deles oferece
uma perspectiva especfica dele mesmo e de categorias analticas especficas. Mas,
como foi dito anteriormente, o foco desta pesquisa a representao.
30
2.1.4 Representao dos eventos sociais
Para uma anlise com base nos significados representacionais, Fairclough (2003)
prope categorias diferentes: os processos, os participantes e as circunstncias.
necessrio, ainda, considerar relaes sociais e formas institucionais; objetos; meios e
tecnologias; linguagem (e outros tipos de semiose).
As relaes sociais e as formas institucionais representadas podem ser
mencionadas ou no. Os objetos e os meios relacionam-se com a linguagem dos tipos
de eventos e podem estar ou no suprimidos no texto.
Os processos, normalmente, realizam-se sob a forma de verbos e dizem respeito ao
modo como os participantes agem nos eventos sociais; os participantes realizam-se sob
a forma de sujeito, objetos diretos ou indiretos, so os agentes ou os pacientes que
podem estar includos ou excludos; as circunstncias, sob a forma dos diferentes tipos
de elementos adverbiais, como adjuntos adverbiais de tempo ou lugar.
Consoante Fairclough (2003, p.135-136), para analisar os textos, sob a perspectiva
representacional, necessrio verificar quais processos, participantes e circunstncias
esto includos na representao dos eventos observados, quais dos elementos foram
excludos e aos quais foi dada maior importncia; se o evento social est representado
de forma concreta ou abstrata e qual o nvel de generalizao do mesmo.
Os participantes podem ser identificados como agentes ou pacientes no processo.
Podem ser representados pessoal ou impessoalmente, pelo nome (nomeados) ou
classificados, de acordo com as categorias a que pertencem; podem, ainda, referir-se a
um grupo especfico ou a uma classe em geral. Os agentes podem estar excludos ou
31
includos no texto, podendo vir sob a forma de substantivos ou pronomes, usados
anaforicamente para fazer referncia a algo j citado.
As categorias que sero utilizadas no corpus so: os processos, os participantes
e a linguagem.
2.1.5 As noes de espao-tempo de Harvey
De acordo com Harvey (1996), as noes de espao e de tempo so construtos
sociais, isto , so construdas diferentemente em cada sociedade e levam a
discordncias. Alm disso, esto muito interligadas, sendo difcil separ-las. Em
qualquer ordem social, haver diferentes espaos-tempo existindo, sendo, pois,
necessrio analisar como esses diferentes espaos-tempo ligam-se uns aos outros.
H distino entre as representaes de locao (localizao), em que se
determina o lugar exato do evento social e as de extenso (durao, distncia), as quais
se referem dimenso da(s) circunstncia(s). Vrios aspectos lingsticos contribuem
para a representao do tempo, quais sejam: tempo verbal (presente, passado e futuro);
as caractersticas do verbo (distino entre ao progressiva ou no); os advrbios; as
conjunes; e os marcadores temporais.
Harvey (1996, apud Fairclough, 2003, p.151) reconhece a importncia social do
discurso como parte da ao e da construo reflexiva da vida social (significao),
ressaltando, inclusive, o trabalho transformador do discurso. Esse processo
transformador envolve a rearticulao dos discursos na luta pela mudana das
estruturas sociais. Harvey considera, ainda, o discurso como um momento da prtica
social ao lado de outros momentos: relaes sociais, poder, prticas materiais,
crenas/valores/desejos.
32
Apresentei essas categorias porque dizem respeito s representaes (de
locao) dos eventos sociais, porm no elas no sero utilizadas, visto que categorias
de anlise propostas por Fairclough (2003) so abrangentes e contemplam os meus
propsitos de anlise.
2.1.6 Concepo Tridimensional do Discurso
As novas perspectivas para o discurso propostas por Fairclough (2003)
constituem a extenso de um trabalho anterior, o qual mostrava uma anlise lingstica
mais detalhada de textos. Essa abordagem baseada na suposio de que a lngua
uma parte da vida social conectada a outros elementos da vida social.
Objetivando estabelecer a conexo entre a ancoragem e o trabalho anterior,
julguei pertinente a apresentao da Concepo Tridimensional do Discurso porque
aborda questes importantes para a anlise que me proponho a fazer, tendo como base
as prticas discursivas utilizadas pelas professoras em sala de aula.
A Concepo Tridimensional da Anlise de Discurso engloba, simultaneamente,
as trs esferas principais de anlise voltada para a teoria social: texto, prtica discursiva
e prtica social (Fairclough, 2001, p. 89).
33
Figura 2 - Concepo Tridimensional do Discurso
PRTICA DISCURSIVA
TEXTO
PRTICA SOCIAL
Fonte: Fairclough, 2001, p.101.
2.1.6.1 Prtica lingstica: discurso como texto
A dimenso textual do discurso mostra uma orientao simultnea para as formas
lingsticas e para os sentidos. Essa implicao ocorre porque os traos formais de um
texto so potencialmente significativos na anlise de discurso (Fairclough, 2001, p.102).
A anlise de textos implica, invariavelmente, anlises de formas lingsticas e de
significados. Ao contrrio da noo tradicional relativa natureza arbitrria do signo, as
abordagens crticas de Anlise de Discurso consideram signos como motivados
socialmente.
O discurso contribui para a constituio de todas as dimenses da estrutura
social, que, direta ou indiretamente, o moldam e o restringem; suas prprias normas e
convenes, como tambm, relaes, identidades e instituies que lhe so subjacentes.
Fairclough (2001) coloca quatro dimenses na anlise textual: vocabulrio,
gramtica, coeso e estrutura textual.
34
Na esfera do vocabulrio, esto inclusos processos de lexicalizao, de
relexicalizao, de construo de metforas e de significado do mundo, levando-se em
conta os momentos histricos e os grupos sociais envolvidos. A relexicalizao dos
domnios das experincias pode ter significado poltico e ideolgico, uma vez que os
sentidos das palavras podem estar inseridos em lutas hegemnicas. A metfora,
tambm, possui implicaes ideolgicas nos processos das selees estratgicas.
Na dimenso da gramtica, a orao focalizada por representar combinao de
sentidos ideacionais, interpessoais e textuais. A gramtica trata das palavras
combinadas em frases e oraes. Aqui se pode analisar o tipo de orao (declarativa,
interrogativa ou imperativa); o que ou quem o tpico da orao; se usada a voz ativa
ou a passiva; se h ou no apagamento da agente da ao verbal.
Assim, a escolha da estrutura oracional implica escolha sobre o significado de
identidades e das relaes sociais, bem como conhecimento e crena. A dimenso
ideacional da gramtica da orao , usualmente, referida na LSF como transitividade
(Halliday, 1985). A transitividade lida com os processos relacionais e acionais e ainda
com os tipos de participantes envolvidos (Fairclough, 2001, p.221).
Fairclough (2003, p.143) amplia o conceito de metfora, o que antes estava
restrito ao vocabulrio, agora, tambm, tem relao com a gramtica. So exemplos de
metforas gramaticais a nominalizao e a passivizao. A nominalizao a
converso de processos em nomes, que tm o efeito de colocar o processo em si em
segundo plano, alm de, usualmente, no especificar os participantes envolvidos na
ao, de forma que o agente e o paciente so apagados.
A passivizao muda o objeto para a posio inicial de tema, o que significa
apresent-lo como informao j dada ou conhecida. A passivizao permite a omisso
35
do agente, embora isso possa ser motivado pelo fato de que o agente, em alguns casos,
evidente em si mesmo, irrelevante ou desconhecido.
A modalidade a dimenso da gramtica que corresponde funo interpessoal
da linguagem, pois indica o grau de afinidade e de comprometimento do produtor com
seu discurso e o uso da modalidade pode implicar diferentes formas de poder.
A coeso aborda como as oraes so ligadas em frases e como as frases, por
sua vez, so ligadas para formar unidades maiores no texto. Essas ligaes podem se
realizar de diversas maneiras, mediante diferentes mecanismos tais como referncia,
elipse, conjuno e coeso lexical.
A estrutura textual relaciona-se com os aspectos gerais de planejamento textual
de acordo com as convenes de estruturao dos diferentes gneros textuais como
produtos sociais: soneto, romance, entrevista, resenha etc. Essas estruturas fornecem
pistas sobre os sistemas de conhecimentos e de crenas e sobre as relaes sociais e
identidades subjacentes.
2.1.6.2 Prtica discursiva
No mbito da prtica discursiva, Fairclough (2001, p.108 -109) destaca a natureza
dos processos de produo (intertextualidade e interdiscursividade dos textos),
distribuio (fora dos enunciados) e consumo (coerncia), estabelecendo uma relao
entre a prtica discursiva e a etapa interpretativa de Anlise de Discurso Crtica.
A produo textual relaciona-se a contextos situacionais especficos e pressupe
rotina particular que pode ser de natureza coletiva ou individual. O produtor do texto
pode ser desdobrado em diferentes posies de forma consciente e inconsciente.
36
Goffman (1981, p.144 apud Fairclough, 2001, p.107) sugere que estes desdobramentos
do produtor podem ser descritos em termos das seguintes categorias:
animador, aquele que realmente realiza os sons ou as marcas grficas;
autor, que responsvel pela reunio das palavras e pelo texto;
principal, aquele cuja posio est representada no texto.
A distribuio pode ser simples ou complexa de acordo com o contexto imediato
ou mediato. Alm disso, os textos podem ser distribudos em diferentes domnios
institucionais, cada um dos quais com seus padres prprios de consumo.
Os textos so consumidos de forma diversificada, consoante os diferentes
contextos sociais e prticas sociais em que so veiculados. O trabalho interpretativo
particular, pois depende do grau de ateno do leitor, da ateno dividida com outra
atividade, se um texto de consumo individual ou coletivo, entre outros aspectos. Por
sua vez, os textos provocam efeitos em dois sentidos: passivos quando so aceitos e
ativos quando questionados, contestados, discutidos.
Os processos de produo e de consumo dependem das estruturas sociais,
normas e conhecimentos internalizados pelos sujeitos, aqui denominados de recursos
dos membros (Fairclough, 2001, p.109). Portanto, esses processos so, socialmente,
restringidos em um sentido duplo: pelos conhecimentos e convenes incorporadas, e
pela natureza da prtica social da qual so parte.
Para Fairclough (2001, p.109), nos processos de produo e de consumo, esto
envolvidas as dimenses sociocognitivas, que se centralizam entre recursos
37
internalizados dos participantes e o texto. Tais processos tambm so restringidos pelos
recursos disponveis dos membros e pela natureza especfica da prtica social.
Na dimenso do consumo, um texto coerente um texto cujas partes
constituintes (episdios, frases) so relacionadas com um sentido, de forma que o texto
como um todo faa sentido, mesmo na ausncia de marcadores explcitos, isto , os
textos estabelecem posies para os sujeitos intrpretes, que so capazes de
compreend-los e capazes de fazer as conexes e inferncias.
2.1.6.3 Discurso como prtica social: ideologia e hegemonia
O discurso como prtica social relaciona-se com a anlise das prticas sociais (o
discurso em relao com a ideologia e com o poder) no que concerne s estruturas
sociais. Sendo assim, o discurso uma prtica ideolgica que constitui, naturaliza e
transforma significados do mundo, em vrias dimenses nas relaes de poder
(Fairclough, 2001, p.121). Fairclough considera, ainda, trs proposies apresentadas
por Althusser (1971), embora com algumas ressalvas: a existncia material da ideologia
nas prticas, a interpelao dos sujeitos pela ideologia e a idia de que as lutas de
classes ocorrem nos Aparelhos Ideolgicos do Estado.
O foco de Fairclough (2001, p.122) est na luta ideolgica em termos de
transformao (e no naturalizao do senso comum e cimento social proposta por
Althusser) relacionada s prticas, contrastantes tanto em suas estruturas como em
seus eventos discursivos.
Para o autor, os sujeitos no devem ser subestimados no que concerne sua
capacidade de ao contra prticas ideolgicas em prol de mudanas sociais mais
38
amplas. Ressalta, ainda, o lugar do discurso dentro da viso de poder como hegemonia,
considerando uma viso das relaes de poder como lutas hegemnicas.
Fairclough (2001) afirma que hegemonia tanto liderana quanto dominao nas
esferas econmica, poltica, cultural e ideolgica de uma sociedade e que a prtica
discursiva constitui uma faceta da luta hegemnica que contribui em variados graus para
a reproduo ou transformao das ordens de discurso e tambm das relaes sociais e
assimtricas.
Pretendo mostrar, com esta pesquisa, que as perspectivas para o texto,
propostas por Fairclough, podem ir alm do texto verbal, por isso, apresento, nas
prximas sees, os resultados de pesquisas sobre Letramento, entendido como prtica
social e sobre a Multimodalidade, que se preocupa, principalmente, com o texto
imagtico.
2.2 Letramento em Reviso
As sociedades do mundo inteiro esto cada vez mais centradas na escrita, por
isso ser alfabetizado tem se revelado condio insuficiente para responder
adequadamente s demandas contemporneas. necessrio ir alm da aquisio da
escrita, preciso fazer uso da leitura e da escrita no cotidiano, apropriar-se da funo
social dessas duas prticas; preciso letrar-se, conforme nos orienta Soares (2000).
No Brasil, o termo Letramento foi usado pela primeira vez por Mary Kato, em
1986, na obra No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingstica. Em 1988, passa a
representar um referencial no discurso da educao, ao ser definido por Tfouni em
Adultos no alfabetizados: o avesso do avesso e retomado em publicaes
posteriores.
39
Desde ento, passa a ser usado, nos meios acadmicos, em uma tentativa de
separar os estudos sobre o impacto social da escrita (Kleiman, 1995, p.15) dos
estudos sobre a alfabetizao, cujas conotaes escolares destacam as competncias
individuais no uso e na prtica da escrita.
O que provocou esse interesse foi o desenvolvimento social que acompanhou a
expanso dos usos da escrita desde o sculo XVI, como a emergncia do Estado como
unidade poltica e a formao de identidades nacionais.
Devem ser consideradas, tambm, as mudanas socioeconmicas nas grandes
massas que se incorporaram s foras de trabalho industrial, o desenvolvimento das
cincias, a dominncia e a padronizao de uma variante de linguagem, a emergncia
da escola, o aparecimento das burocracias letradas como grupo de poder nas cidades,
enfim as mudanas polticas, sociais, econmicas e cognitivas relacionadas com o uso
extensivo da escrita nas sociedades tecnolgicas (Kleiman, 2004, p.16).
O conceito de Letramento est registrado no dicionrio Houaiss de Lngua
Portuguesa e indica a tendncia fortemente acentuada de ampliar-se a definio de
saber ler e escrever.
Nesse dicionrio, esto mencionadas as seguintes acepes:
Substantivo. 1 Diacronismo: antigo. representao da linguagem falada por
meio de sinais; escrita 2 Rubrica:pedagogia m.q.alfabetizao ('processo')
3 (dec.1980) Rubrica: pedagogia. Conjunto de prticas que denotam a
capacidade de uso de diferentes tipos de material escrito.
40
Consta, tambm, no Dicionrio de Linguagem e Lingstica, de R.L. Trask,
publicado na Inglaterra em 1977 e traduzido por Ilari, publicado em 2004:
Letramento (literacy) - a capacidade de ler e escrever de maneira eficaz. O
letramento a capacidade de ler e escrever, e isso parece bem simples.
Mas no . Entre os dois extremos constitudos pelo domnio
magistralmente perfeito da leitura e escrita, de um lado, e pelo completo
no-letramento, de outro, encontramos um nmero infinito de estgios
intermedirios: o letramento gradual. (...) (Ilari, 2004. p.154 -155).
No Dicionrio de anlise do discurso, de P. Charaudeau e D. Mainguenau,
publicado na Frana em 2002, traduzido por Komesu em 2004, o termo foi assim
registrado:
Letramento - Recentemente difundido, esse termo de uso ainda restrito.
Dele podem se distinguir trs sentidos principais: Em primeiro lugar, remete a
um conjunto de saberes elementares, em parte mensurveis: saber ler,
escrever, contar. (...) Em segundo lugar, o termo designa os usos sociais da
escrita: trata-se de aprender a ler, a escrever e a questionar os materiais
escritos. A terceira parte essencial para a obteno do xito. (...) Parece
legtimo, conceber vrios tipos de letramento: um letramento familiar (Unesco,
1995), um letramento religioso ou, ainda, um letramento digital. (...) Enfim,
em um terceiro sentido, o letramento concebido como uma cultura que se
ope cultura da orality (Ong, 1982). (...) (Komesu, 2004, p.300-301).
Para essa dissertao, considerarei o termo no sentido em que designa os usos
sociais da escrita: aprender a ler, a escrever e a questionar os materiais escritos.
Tambm, julgo a terceira parte - questionar os materiais escritos - como sendo essencial
para a obteno do xito na participao em prticas sociais. Os leitores que so
capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades e os sentidos de um texto,
41
estaro melhor habilitados para responder s diferentes exigncias de uma sociedade
letrada.
A palavra no foi encontrada no Dicionrio da Lngua Portuguesa On-line,
tampouco no Dicionrio de Portugus Caboverdiano. No foi includa no Michaelis,
moderno dicionrio da Lngua Portuguesa, de 1998; nem na edio do Aurlio Sculo
XXI, publicado em 2000, tambm no foi encontrada no Dicionrio de usos do
Portugus do Brasil, de Francisco da Silva Borba, edio de 2002.
Conforme mencionado, embora apaream com freqncia na bibliografia
acadmica, a palavra Letramento e o conceito que ela representa entraram
recentemente no nosso vocabulrio e no nosso uso. ainda palavra quase s dos
pesquisadores. Existem vrios livros que trazem letramento no ttulo, mas preciso
reconhecer que a palavra no foi incorporada, plenamente, pela mdia ou mesmo pelas
escolas e professores.
2.2.1 Mudana de perspectiva: a construo de novo objeto de anlise
Os estudos tradicionais de linguagem concebiam a lngua como entidade de
dupla face, cuja manifestao ou se realizava pela oralidade ou pela escrita. Tal
dicotomia foi substituda, na dcada de 80, pela noo de continuum. Havia uma
superposio dos dois sistemas, fala e escrita interagiam freqentemente. (Tannen,
1982, p.207-218).
Street (1995, p.2) critica essas abordagens pelo fato de o estudo das atividades
de linguagem ser isolado e descontextualizado. Para ele, a escrita , antes de tudo,
prtica social. Essas crticas provocaram o surgimento das novas perspectivas,
intituladas de Letramento. Para Vieira (2003, p.253), a escrita, na concepo do
42
Letramento, no conhecimento adquirido de modo solitrio e individual, pois o
produto de prticas sociais de escrita de determinada cultura.
Letramentos so baseados em sistemas simblicos usados para comunicao e
como tais existem em relao de troca com outros sistemas de informao. Nessa
perspectiva, para refletir sobre o valor simblico e constitutivo da leitura e da escrita em
uma sociedade letrada, preciso, conforme os novos estudos do Letramento,
considerar que leitura e escrita s constituem sentido se imersas nas prticas sociais do
contexto social em geral e da cultura em particular.
Diferentes culturas valorizam e aprendem diferentes formas de Letramento. Os
variados letramentos na vida das pessoas representam tenses, misturam valores,
novas identidades e reconciliam conflitos sobre mudanas de valores. Existem muitos
padres de como o letramento distribudo entre os participantes em diferentes
relacionamentos com o outro, associado s diferentes identidades (Barton e Hamilton,
1998, p.186).
Letramentos no so apenas as habilidades de ler e escrever, nem esto ligados
apenas esfera do ensino, so fenmenos sociais de escrita e de linguagem. Crianas
adquirem lngua e letramento no meio em que convivem (famlia, igreja, vizinhana,
escola, parquinho, clube), e a escola o frum adequado de interao. De acordo com
Kleiman (1995, p.25), a escola , em quase todas as sociedades, a principal agncia de
letramento.
A escola, a famlia, a igreja, a vizinhana mostram orientaes diferentes para o
Letramento. Todos os grupos possuem prticas sociais que do origem a habilidades
especficas em suas crianas. Entretanto, apenas algumas dessas habilidades,
43
culturalmente determinadas, so privilegiadas na escola porque a lngua e seu uso so
resultados de foras sociais.
impossvel investigar Letramento sem referncia direta ao papel da fala e da
escrita no contexto contemporneo, j no se podem observar as semelhanas e as
diferenas entre elas sem considerar seus usos nas prticas sociais. A fala manifesta-se
naturalmente em contextos informais do dia-a-dia e nas relaes sociais e dialgicas
que se instauram desde o momento em que a me d seu primeiro sorriso ao beb.
Marcuschi (2004, p.25) define fala como uma forma de produo textual-
discursiva para fins comunicativos na modalidade oral, sem a necessidade de uma
tecnologia, alm do aparato disponvel pelo prprio ser humano; ele aponta a oralidade
como uma prtica interativa para fins comunicativos que se apresenta sob variadas
formas ou gneros textuais fundados na realidade sonora, vai desde realizaes mais
informais s mais formais, nos mais variados contextos.
A influncia da escrita marcante porque, no cotidiano, ela usada em mltiplos
contextos sociais, quais sejam: o trabalho, a escola, a famlia, o trabalho intelectual etc.
caracterizada por sua constituio grfica, embora envolva, s vezes, elementos
imagticos, ideogrficos e pictricos.
Street (1995, p.2) considera que Letramentos, como prticas sociais, so
formalmente ligados ao uso da escrita, a qual se tornou um bem social indispensvel
para enfrentar o dia-a-dia quer seja nos centros urbanos, quer seja na zona rural. Essas
prticas variam desde uma apropriao mnima da escrita, at uma apropriao
profunda.
44
At os analfabetos esto sob a influncia do que se convencionou chamar de
prticas de Letramentos, isto , processos histrico-sociais que no se confundem com
a realidade representada pela alfabetizao regular e institucional (Marcuschi, 2004,
p.19).
2.2.2 Alfabetizao, escolarizao e Letramento
Embora a alfabetizao no seja pr-requisito para o letramento, ele est
relacionado com a aquisio, com a utilizao e com as funes da leitura imersas em
prticas sociais. Est relacionado, tambm, escolarizao que abrange processos
educativos. Portanto, antes de iniciar a discusso sobre letramento, fao uma distino
entre tais fenmenos, utilizando os conceitos de Marcuschi (2004, p. 24-25).
A alfabetizao sempre uma aprendizagem mediante ensino e compreende o
domnio ativo e sistemtico das habilidades de ler e escrever. A escolarizao, por sua
vez, uma prtica formal e institucional de ensino que visa formao integral do
indivduo.
Quanto ao Letramento, a multiplicidade de significados atribudos sugere que
processo multifacetado, seguindo fenmenos de diferentes tipos; as controvrsias,
porm, tendem a assumir que somente algum aspecto seja relevante, os outros podem
ser ignorados (Hasan, 1996, p.378).
O letramento, por sua natureza social, revela as prticas de escrita e de leitura de
determinado grupo social, sendo capaz, ao mesmo tempo, de mostrar formas
emergentes de letramento em dado contexto sociocultural, conforme nos diz Vieira
(2006), e que agora possvel falar em multiletramentos, como o letramento
computacional, o visual, o tecnolgico entre outros.
45
Ainda, postula Hasan, que entender letramento entender como diversos
aspectos entram na formao daquele complexo conjunto, que ela denomina de
processo multifacetado: Multiletramentos, que englobariam todos os modos de
representao dos aspectos do mundo, quer sejam eles fsicos, mentais ou sociais.
O uso do plural destaca a suposio de que Letramentos, pelo menos em um de
seus sentidos, consiste em fazer sentido de qualquer coisa que pode ser e tomada
como expresso, isto , o indivduo letrado no apenas capaz de ler e de escrever, ele
possui, tambm, a habilidade de ver um fenmeno e represent-lo, alm do mesmo,
atribuindo-lhe sentido.
A escolarizao fica a cargo dos professores e cabe ao professor de Lngua
Portuguesa articular meios de uso da linguagem. Portanto, o professor de Lngua
Portuguesa tem responsabilidade bem mais especfica em relao ao Letramento:
enquanto este instrumento de aprendizagem para os professores das outras reas,
para o professor de Lngua Portuguesa ele o prprio objeto de aprendizagem, o
contedo mesmo de seu ensino.
Um argumento que justifica o uso do termo Letramento, ao invs do tradicional
alfabetizao, o fato de, em certas classes sociais, as crianas serem letradas, no
sentido de possurem estratgias orais letradas, antes mesmo de serem alfabetizadas.
Letramento definido como um estado em que vive o indivduo que sabe ler e
escrever e exerce as prticas sociais de leitura e de escrita que circulam em sua
sociedade: sabe ler e l jornais, revistas, livros; sabe ler e interpretar tabelas, quadros,
formulrios, sua Carteira de Trabalho, suas contas de gua, luz, telefone; sabe escrever
e ler cartas, bilhetes, telegramas sem dificuldade; sabe preencher um formulrio, sabe
46
redigir um ofcio, um requerimento. O Letramento evidenciado por meio dos eventos e
das prticas.
2.2.3 Eventos e prticas: componentes do Letramento
Heath (1982, p.49) foi quem primeiro usou o termo evento de letramento e o
definiu como situaes em que a lngua parte integrante da natureza da interao
entre participantes e de seu processo de interpretao. Essa interao tanto pode
ocorrer oralmente, com a mediao da leitura e da escrita, com os interlocutores face a
face, ou distncia, com a mediao de um texto escrito.
Para Heath (1983, p.76), prticas de letramento so ocasies em que a escrita
(e/ou leitura) parte constitutiva das interaes dos participantes e de seus processos e
estratgias interpretativas, isto , so ocasies em que as palavras quer sejam elas
faladas, sejam escritas, so usadas em uma interao social concreta.
Levando-se em considerao a definio de Heath, os usos da leitura e da escrita
so analisados em contextos contnuos e reais; assim, os eventos passam a ser
situaes comunicativas mediadas por textos escritos; o fenmeno do letramento, ento,
extrapola o mundo da escrita.
Para Street (1995, p.2), prticas so tanto os comportamentos exercidos pelos
participantes em um evento de letramento quanto as concepes sociais e culturais que
o configuram, determinam sua interpretao e do sentido aos usos da leitura e/ou
escrita naquela particular situao.
Nessa dimenso social, os eventos e as prticas de letramento so plurais, so
as duas faces de uma mesma realidade. Barton e Hamilton (2000, p.7) resumem:
prticas de letramentos so os caminhos culturais comuns de utilizao da linguagem
47
escrita que as pessoas delineiam suas vidas. As prticas envolvem valores, atitudes,
sentimentos e relaes sociais que se tornam observveis por meio de eventos.
Quadro 1 Letramento como prtica social.
Letramento melhor entendido como um conjunto de prticas sociais, que podem ser inferidas
de eventos mediados por textos escritos.
H diferentes Letramentos associados a diferentes domnios da vida.
As prticas so padronizadas pelas instituies e pelas relaes de poder, alguns Letramentos
so mais dominantes, visveis, influentes que outros.
Letramento historicamente situado.
Prticas mudam e novas prticas so freqentemente desenvolvidas por meio de processos
informais de aprendizagem e da produo de sentidos.
Fonte: Barton e Hamilton, 2000, p. 8
Eventos so atividades em que o Letramento tem uma funo, normalmente h
um texto escrito, ou textos, isto , so situaes em que a escrita constitui parte
essencial para fazer sentido da situao, tanto em relao interao entre os
participantes como em relao aos processos e s estratgias interpretativas, o que
central para a atividade (Heath, 1982, p.52).
Eventos so episdios observveis que se originam das prticas e so moldados
por elas. As prticas especficas da escola passam a ser, em funo dessa definio,
apenas um tipo de prtica, que desenvolve apenas alguns tipos de habilidades,
principalmente as que privilegiam a escrita. Para tentar compreender melhor as prticas
48
de uso da escrita da escola, Street (1984) prope o binmio modelo autnomo - modelo
ideolgico.
2.2.4 O binmio de Street
Estudos de Street (1984, 1993, 1995) propem o Modelo Autnomo e o Modelo
Ideolgico. Esse binmio proposto para discutir as prticas de letramento na escola e
a relao que se estabelece entre o modelo subjacente a essas prticas e o sucesso ou
o fracasso na construo de contextos facilitadores de transformao dos alunos em
sujeitos letrados.
2.2.4.1 Modelo Autnomo
Ao usar a expresso Modelo Autnomo de Letramento, Street (1984, p.5)
concebe-o como Letramento independente do contexto social, uma varivel autnoma
cujas conseqncias para a sociedade podem ser derivadas do seu carter intrnseco.
Assim, a autonomia refere-se ao fato de que a escrita seria completa em si mesma, ou
seja, no estaria presa ao contexto de sua produo para ser interpretada.
O Modelo Autnomo discrimina a linguagem oral, apresentado de forma
subjacente idia de que a linguagem escrita mais importante, e que, portanto, quem
domina a escrita superior. O conservadorismo do modelo autnomo atribua ao aluno
o fracasso escolar, pois o considerava incapaz de desenvolver os conhecimentos
necessrios para obter o sucesso e a promoo.
Nesse modelo, prticas de leitura e escrita (aparentemente neutras) so
trabalhadas desvinculadas do contexto social, como algo independente, valorizando o
ato cognitivo em si e as competncias de ler e de escrever, reforando a diviso das
pessoas nelas envolvidas em dois grupos: letradas (superiores e dominadoras) e
49
iletradas (inferiores e dominadas). Mas essa concepo recebeu muitas crticas como
nos apresenta Street (1993, p.4) e que so a seguir listadas:
correlao entre a aquisio da escrita e o desenvolvimento cognitivo;
dicotomizao entre a oralidade e a escrita;
atribuio de poderes e de qualidades intrnsecas escrita, e, por
extenso, aos povos ou grupos que a possuem.
As prticas de uso da escrita da escola sustentam-se neste modelo de letramento
que considerado por muitos pesquisadores tanto parcial quanto equivocado. A escola
sempre pautou o ensino pela progresso ordenada de conhecimentos: aprender a falar
a lngua dominante, assimilar as normas do sistema de escrita para fazer uso desse
sistema em formas de manifestao previsveis e valorizadas pela sociedade.
2.2.4.2 Modelo Ideolgico
Em oposio ao Modelo Autnomo de Letramento, Street (1985, p.7) prope o
Modelo Ideolgico de Letramento, o qual sustenta as seguintes asseres:
a linguagem escrita uma prtica social marcada por relaes de poder,
portanto ideolgicas, e ligada a interesses polticos e econmicos;
os aspectos sociais ligados classe, ao gnero social, etnia a aos
grupos etrios em relaes de poder e presentes nas prticas discursivas devem ser
considerados e analisados criticamente;
as prticas sociais de linguagem so mantidas pela ideologia a servio da
dominao.
50
O Modelo Ideolgico de Letramento no separa a oralidade da escrita como faz o
Modelo Autnomo. Trabalha com prticas de Letramento em um processo de
socializao do indivduo, no qual as prticas discursivas acontecem, no apenas na
instituio escolar, mas em todo e qualquer contexto no qual o indivduo possa interagir;
admite, ainda, a pluralidade das prticas letradas, valorizando o seu significado cultural
e o contexto de produo.
Rompendo definitivamente com a diviso entre o momento de aprender e o
momento de fazer uso da aprendizagem, os estudos lingsticos propem a articulao
dinmica e reversvel entre descobrir a escrita (conhecimento de suas funes e de
suas formas de manifestao); aprender a escrita (compreenso das regras e dos
modos de funcionamento) e usar a escrita (cultivo de suas prticas, partindo de um
referencial culturalmente significativo para o sujeito).
Street (1993) destaca o fato de que todas as prticas de Letramentos so
aspectos no apenas da cultura, mas tambm das estruturas de poder em uma
sociedade. Ao falar de prticas, no plural, j estabelecido diferencial quanto ao Modelo
Autnomo, que apresenta apenas um tipo de Letramento, o neutro.
O Modelo Ideolgico considera a pluralidade e a diferena, valorizando o aluno
em si mesmo, e em seu contexto sociocultural. As prticas so social e culturalmente
determinadas, sendo, portanto, mltiplas.
No Modelo Ideolgico no se pressupe relao causal entre Letramento e
progresso ou civilizao, pois, ao invs de estabelecer distino entre oralidade e escrita,
prope-se interface entre tais prticas. Street (1984) aponta a existncia de prticas de
Letramento especficas de grupos considerados iletrados ou com baixo grau de
51
Letramento. As prticas de Letramento so, a um s tempo, a situao emprica de uso
da escrita e as concepes sociais sobre a escrita relacionadas a situaes especficas.
2.2.5 Outras concepes sobre letramento
Scribner e Cole (1981) definem prticas como modos de usar o Letramento,
transportados de uma situao particular para outra situao semelhante. Critico essa
concepo porque o letramento no pode ser considerado apenas como aprendizagem
de habilidades para leitura e escrita que podem ser transportadas para outra situao,
restringindo-se ao mbito do individual.
Street (1984) definiu Letramento como prticas sociais e concepes de leitura e
de escrita e observa que prticas dependem da sociedade e incorporam no apenas
eventos, mas ideologias, crenas e valores que lhe so subjacentes.
De acordo com Barton (1994) , como atividade social, que o letramento pode ser
melhor descrito em termos de prticas utilizadas pelas pessoas em eventos. Em 1998,
ele amplia a discusso, considerando as prticas como meios culturais generalizados de
explorao do Letramento, aos quais o indivduo recorre em um evento. So, por assim
dizer, modelos comuns no uso da leitura e da escrita em que as pessoas utilizam seus
conhecimentos culturais.
Baynham (1995) vai alm dos outros pesquisadores e aponta que as prticas so
atividades humanas envolvendo no somente o que as pessoas fazem com o
Letramento, mas tambm o que elas concluem do que fazem, e acrescenta: eventos
podem ser definidos como momentos e ocasies em que o uso do Letramento assume
um papel ou tenha funo especfica.
52
2.2.6 Letramento no panorama mundial
Mortatti (2004) rene informaes sobre os estudos do Letramento em nvel
mundial, as quais esto registradas nesta seo, porque julguei relevante apresent-las
para depois situar o Letramento no Brasil.
Nos Estados Unidos e na Inglaterra, h grande preocupao com o que
consideram um baixo nvel de literacy da populao, e, periodicamente, realizam-se
testes nacionais para avaliar as habilidades de leitura e de escrita da populao adulta e
para orientar polticas de superao dos eventuais problemas detectados.
No Reino Unido, na Universidade de Lancaster, pesquisadores como D. Barton,
M. Hamilton, R. Ivanic e F. Ormerod, membros do Literacy Research Group, tm
trabalhado juntos, desenvolvendo um entendimento semelhante para os estudos dos
Letramentos.
Para eles, todos os usos da linguagem escrita podem ser vistos como localizados
em tempos e espaos particulares, ou seja, os Letramentos so distintos em contextos
sociais especficos. Seus estudos tm contribudo para a compreenso dos caminhos
nos quais as prticas de Letramentos so partes de processos sociais mais amplos.
Outro exemplo a Frana: os franceses diferenciam illettrisme muito claramente
de analphabtisme. Esse ltimo considerado problema j vencido, com exceo para
imigrantes analfabetos em lngua francesa. J illettrisme surge como problema recente
da populao francesa. A palavra illettrisme s entrou no dicionrio, na Frana, nos
anos 80.
53
Em Portugal tambm recente a preocupao com a questo do Letramento,
que l ganhou a denominao de literacia, em uma traduo ao p da letra do ingls
literacy (the condition of being literate). 1
As sociedades, no mundo inteiro, tornaram-se cada vez mais centradas na leitura
e na escrita. A cada momento, multiplicam-se as demandas por prticas de leitura e de
escrita, no s na chamada cultura do papel, mas tambm na nova cultura da tela, como
os meios eletrnicos, que, ao contrrio do que se costuma pensar, utilizam-se
fundamentalmente da escrita, so novos suportes da escrita. Assim, nas sociedades
letradas, ser alfabetizado insuficiente para vivenciar plenamente a cultura escrita e
responder s demandas de hoje.
O Letramento da ps-modernidade agrega ao texto escrito inmeros recursos
grficos, cores e principalmente, imagens, conforme nos ensina Vieira (2006). Passa a
exigir do sujeito letrado, habilidades interpretativas bsicas que devem atender s
necessidades da vida diria, como as exigidas pelos locais de trabalho do mundo
contemporneo. As habilidades textuais atuais devem, assim, acompanhar os avanos
tecnolgicos do contexto globalizado.
A qualidade mais valorizada nos sujeitos letrados a capacidade de moverem-se
rapidamente entre os diferentes eventos, compostos pela fala e pela escrita, pelas
linguagens visuais e sonoras, alm de todos os recursos computacionais e tecnolgicos,
mostrando competncia na produo e na interpretao de diferentes gneros
discursivos.
1 Condio de ser letrado
54
No Brasil, os estudos sobre o fenmeno tm adquirido fora e abrangncia, tema
que ser abordado na prxima seo.
2.2.7 Letramento no Brasil
Os estudos sobre o Letramento, do mesmo modo como transformaram as
concepes de lngua escrita, redimensionaram as diretrizes para a alfabetizao e
ampliaram a reflexo sobre o significado dessa aprendizagem, obrigando-nos a
reconfigurar o quadro da sociedade leitora, no Brasil. Ao lado do ndice nacional de
16.295.000 analfabetos no Pas (IBGE, 2003), importa considerar um contingente de
indivduos que, embora formalmente alfabetizados, so incapazes de ler textos longos,
de localizar ou relacionar suas informaes.
Dados do Instituto Nacional de Estatstica e Pesquisa em Educao (INEP)
indicam que os ndices alcanados pela maioria dos alunos de 4 srie do Ensino
Fundamental no ultrapassam os nveis crtico e muito crtico. Isso quer dizer que,
mesmo para as crianas que tm acesso escola e que nela permanecem por mais de
trs anos, no h garantia de acesso autnomo s praticas sociais de leitura e escrita.
Independentemente do vnculo escolar, essa mesma tendncia parece se
confirmar pelo Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF, 2000), pesquisa
realizada por amostragem representativa da populao brasileira de jovens e adultos
(entre 15 e 64 anos de idade). Entre os 2000 entrevistados, 1475 eram analfabetos ou
tinham pouca autonomia para ler ou para escrever, e apenas 525 puderam ser
considerados efetivos usurios da lngua escrita.
Ampliando a reflexo sobre o significado dessa aprendizagem, os estudos sobre
o Letramento no Brasil esto em etapa extremamente vigorosa, configurando-se, hoje
55
como uma das vertentes de pesquisa que melhor concretiza a unio do interesse terico,
a busca de descries e de explicaes sobre o fenmeno, com o interesse social, a
formulao de perguntas cujas respostas possam vir a promover transformao de uma
realidade to preocupante como a crescente marginalizao de grupos sociais que
no conhecem a escrita.
Estudiosos brasileiros tm buscado descries e explicaes sobre o fenmeno
do Letramento, que ganha fora e abrangncia nacional em universidades como a
Universidade de Campinas - UNICAMP, a Universidade Federal de Pernambuco - UFPE,
a Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e a Universidade de Braslia - UnB.
Kleiman (1995, p.19) define-o como conjunto de prticas sociais cujos modelos
especficos tm implicaes importantes para as formas pelas quais os sujeitos
envolvidos constroem relaes de identidade e de poder: um conjunto de prticas
sociais que usam a escrita, enquanto sistema simblico e enquanto tecnologia, em
contextos especficos.
Para a autora, as prticas especficas da escola, que forneciam o parmetro de
prtica social, segundo a qual o Letramento era definido, e os sujeitos eram
classificados ao longo da dicotomia alfabetizado ou no-alfabetizado, passam a ser, em
funo dessa definio, apenas um tipo de prtica - de fato, dominante - que desenvolve
alguns tipos de habilidades, mas no outros, e que determina a forma de utilizar o
conhecimento sobre a escrita.
Para ela, a oralidade apenas um objeto de anlise de muitos estudos sobre o
Letramento. Esse, de fato, extrapola o mundo da escrita tal qual ele concebido pelas
instituies que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da
escrita.
56
Soares (1995) observa que no se trata do aparecimento de novo conceito, mas
do reconhecimento de fenmeno que, por no ter, at ento, significado social,
permanecia submerso. Analisa que, desde os tempos do Brasil Colnia, e at muito
recentemente, o problema que enfrentvamos em relao cultura escrita era o
analfabetismo, o grande nmero de pessoas que no sabiam ler e escrever, portanto a
palavra de ordem era alfabetizar.
Esse problema foi, nas ltimas dcadas, relativamente superado, vencido de
forma pelo menos razovel. Mas a preocupao com o Letramento passou a ter grande
presena na escola, ainda que sem o reconhecimento e sem o uso da palavra, traduzido
em aes pedaggicas de reorganizao do ensino e da reformulao dos modos de
ensinar (Soares, 1986).
Para Soares, o conceito de Letramento, bem como a nova concepo de
alfabetizao que decorre dele e tambm das teorias do construtivismo que chegaram
ao campo da educao e do ensino nos anos 80, trouxeram certo exagero na utilizao
de diferentes gneros e de diferentes portadores de texto na sala de aula.
Soares (1998) lamenta que os textos tenham perdido espao nas aulas,
principalmente de Lngua Portuguesa, e sugere que preciso no se esquecer de que,
exatamente porque a leitura tem, no contexto brasileiro, pouca presena na vida diria
dos alunos, cabe escola dar-lhes a oportunidade de conhec-la e dela usufruir,
contribuindo para construo do discurso crtico do aluno.
Para Marcuschi (2004), o Letramento como prtica social formalmente ligado ao
uso da escrita, a qual se tornou bem social indispensvel para enfrentar o dia-a-dia,
quer seja nos centros urbanos, quer seja na zona rural. Varia desde apropriao mnima
da escrita, at apropriao profunda. De acordo com suas idias, at os analfabetos
57
esto sob a influncia do que se convencionou chamar de prticas de Letramento, isto ,
processo histrico e social que no se confunde com a realidade representada pela
alfabetizao regular e institucional.
Para Vieira (2006), todas as mudanas no cenrio da linguagem ensejaram
alteraes nas formas de Letramento que assumem, no contexto contemporneo,
sentido mais amplo. O Letramento, por sua natureza social, revela as prticas de escrita
e de leitura de determinado grupo social, sendo capaz, ao mesmo tempo, de mostrar as
formas emergentes de Letramento em dado contexto sociocultural.
Vieira postula que indispensvel para um sujeito que deseje alcanar o
letramento, que ele saiba utilizar a leitura e a escrita em diferentes papis sociais, alm
de manejar com extrema habilidade os componentes fundamentais da escrita como
letras, palavras, ortografia, regras gramaticais, sem contar com as inmeras noes de
discurso e pragmtica.
Ela julga que seria interessante se em termos de linguagem visual, nos
comportssemos do mesmo modo. Lamenta que a idia de um letramento visual ain