Folha de s_paulo29_de_dezembro_de_2017_primeiro_cadernopag8

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abA8 poder ★ ★ ★ SextA-FeirA, 29 De Dezembro De 2017

ANA LUIZA ALBUQUERQUEENVIADA ESPECIAL A CAPIVARI DOSUL (RS)

“Eufaleiparaaminhafilhaquevocênãoiriamereconhe-cer… Porque esperaria umamulhernegra,né?”,dizMariaJoaquina da Conceição, 75.Depele eolhos claros e ca-

belos vermelhos, “Quina”,como é chamada entre os fa-miliares, carregaanegritudena genética e nasmemórias.Descendente de escravos,

Joaquina levoua reportagemaoquilomboCostadaLagoa,no município de Capivari doSul, 80 km de Porto Alegre(RS).O territóriopossui certi-ficaçãodaFundaçãoCulturalPalmares desde 2006 e abriuprocesso de regularizaçãofundiária no Incra (InstitutoNacional de Colonização eReforma Agrária) em 2011.Oquilomboaindanãocon-

seguiu a titulação, últimopassodoprocesso,masoRe-latórioTécnicode Identifica-ção e Delimitação da terra jáfoipublicado.Nele, apesqui-sa de antropólogos do Incraatesta que a identidade étni-ca do local não é apenas re-memorada,mas“vivenciadae preservada nas relações decompadrio, parentesco e re-ciprocidade”.O relógio marcava 14h e o

sol forte anunciava a proxi-midade do verão. Idosos,adultos e crianças se abriga-vamna sombra das centená-rias figueiras para contar ahistória da comunidade.Cerca de 15 famílias man-

têm relações com o Costa daLagoa. Nem todasmoramali—a vida no quilombo não ésustentável e,por isso,amai-oria dos quilombolas buscaemprego no cultivo do arroz.Aindaassim,estãosempre

reunidos. Descendentes detrês famílias que acabaramcasando entre si (os Concei-ção, osBernardes eosOlivei-ra)dividemorigemepráticas.Os quilombolas relatam

que a decisão de regularizaro território no Incra tomoucorpoquandoalguns lotesdeterra começaramaser vendi-dos para pessoas de fora.Dizem que a terra quilom-

bola não pode ser vendida eque é preciso preservar o es-paço de seus tataravós.Segundoapesquisado In-

cra, a chegadadosnegrosnoquilombo remonta há, pelomenos, 140 anos.Umadashipótesesédeque

a ocupação tenha se dado apartir da herança de um se-nhor de terras, que deixou aregiãoparaaescravaDelfinaBoeira da Conceição, libertano batismo.Sobrinha-neta de Delfina,

ou “Dedê”, Joaquina contaque a origem da terra nuncafoi objeto de discussão entreos habitantes e que as raízessó foram descobertas com aaberturadoprocessonoIncra.“Na nossa cabeça, era nossoepronto.Osmaisvelhosmor-reram, vieram os filhos, osnetos… É a nossa terra”, diz.

COTIDIANOQUILOMBOLAEra na lagoa que dá nome

aoquilomboque,noiníciodoséculo passado, asmulhereslavavam roupas para garan-tir o sustento.Em 1941, a lagoa inundou,

causando uma grande en-chenteno território.Emmeioa esse cenário, Quina nasciaem uma das casas.Suamãeesuaavóatuavam

como parteiras. Ela aindaguardaaespiriteiradaavóSe-rafina, utilizada para esteri-lizara tesouracomaqualcor-tava o cordão umbilical dosrecém-nascidos.Entre aspráticaspassadas

pelas gerações, estava a ofe-renda dos bebês para a lua.“Dizia-se ‘lua, luar, pega

essa criança e ajuda a criar’.Também colocava-se umaroupinhadacriançanumaár-vore cheia de espinhos paraa bruxa não pegar”, conta.Joaquinarelata,ainda,que

nãohaviamédicosparaaten-der a comunidade e que, as-sim, “era sónabasedo chá”.“Quando o adolescente eramuito magrinho, matavamuma coruja e faziam um cal-do. Diziam que tinha muitosingredientesquedeixavamacriança forte.”Deacordocomela,dinhei-

INVISÍVEISraízes

NoRS, comunidades descendentes deescravos buscam regularizarsuas terras emostramque região vai alémdaherança europeia

DE CURITIBA

Ficoupara2018ojulga-mentonoSTFdeumaADI(Ação Direta de Inconsti-tucionalidade) que podealterararegularizaçãodasterras quilombolas. Aaçãofoiajuizadaem2004pelo PFL (hoje DEM).A discussão foi inter-

rompida em novembro,porpedidodevistadomi-nistro Edson Fachin.A ADI 3.239 alega a in-

constitucionalidade dodecreto nº 4.887, assina-do em 2003 pelo ex-pre-sidente Lula. A ação ar-gumenta que a regula-mentação das terras de-veserdefinidapeloLegis-lativo e que não cabe aopoder público desapro-priar áreas privadas.O texto também ques-

tionaocritériodeautode-claração dos quilombos.Emnovembro,oministroDias Toffoli votou pelaprocedência parcial daADI. Ele reconheceua te-se do marco temporal,quegarante somentea ti-tulação das terras que jáestavamocupadaspor re-manescentes de quilom-bos em 1988, ano daConstituição. Toffoli res-saltou que também de-vem ser consideradosquilombolas os territóri-os que não estivessemocupados em função deatos ilícitos de terceiros.OprocuradordaRepú-

blica Leandro Mitidieriafirmaque o receio é queo julgamento crie as cha-madas“condicionantes”.Ele ressaltaqueo reco-

nhecimento da tese domarco temporalestabele-ceanecessidadedecom-provação da expulsãodos povos. “É mais umadificuldade num proces-soextremamentedifícil.”Presidente da Frente

Parlamentar da Agrope-cuária, Nilson Leitão(PSDB)sediz favorávelaomarco temporal e afirmaque a situação atual trazinsegurança.“Oqueestásediscutin-

do é uma questão jurídi-ca, emrelação, inclusive,aodireitoàpropriedade”,diz. “Muitagenteseauto-denominou indígena,quilombola, ede fatonãosão.Temmuito índionas-cendo no Brasil com 40anos de idade, olhos ver-des e cabelo loiro.”

STFdefinirá em2018 regras parademarcação

ronãoexistia.Os fazendeirosentregavam como pagamen-touma fichaque sópodia sertrocada em um armazém es-pecífico na cidadedePalma-res. “[As mães] traziam a co-mida na cabeça e a genteacompanhava. Eram umastrês horas de caminhada.”OCostadaLagoaéapenas

umdos127 territóriosquilom-bolas reconhecidospelaFun-daçãoPalmaresnoRioGran-de do Sul. Somente 4, entre-tanto, já foram titulados pe-lo Incra.Outros92buscamti-tulação, pormeiodeum lon-go processo de seis fases.Apesar da concepção de

que o Sul possui um arranjocultural distinto do resto dopaís, em razão da coloniza-ção europeia, o Rio GrandedoSuléosextoEstadodopa-ís commais quilombos reco-nhecidos.Segundooúltimocensodo

IBGE (2010), das 10 cidadescommaispraticantesdaum-banda, 8 estão no Estado.

Porto Alegre é o terceiromu-nicípio do país com maisadeptos, quase 41 mil.“Talvez a explicação para

estadiscrepânciaestejamaisna formapela qual a históriado Rio Grande do Sul é inter-pretada, que se choca com oprocessohistóricoefetivoqueaconteceu”,afirmaJoséRiva-ir Macedo, professor de his-tória da Universidade Fede-ral do Rio Grande do Sul.Segundooespecialista, to-

das as atividades no Estadocontaram com mão de obraescrava, principalmente pa-ra a atuação nas estâncias[espaço ruraldestinadoàcri-açãodegado] enas charque-adas [onde se produz o char-que, carne típica da região].O professor afirma que o

mito doSul europeizado tema ver com os debates queaconteceramnaprimeirame-tade do século 20, como par-tedeum“projetodebranque-amento” da sociedade.Segundo ele, faltou vonta-

de dos intelectuais de pensarprofundamenteaquestão.“Éummitoqueseretroalimentao tempo inteiro e gera essesaparentes contrassensos.”

QUILOMBOS URBANOSNão é apenas no meio ru-

ral que se encontram os qui-lombos. Porto Alegre temquatrocomunidadesquilom-bolas, entre elas a do Areal.Localizado em um dos bair-ros mais valorizados de Por-to Alegre, o território sofreucomespeculação imobiliária.A telefonistaFabianeXavi-

er, 41, secretária da associa-çãocomunitáriadoAreal,dizqueosmoradores eramasse-diados para que vendessemsuas casas.A prefeitura, dona do ter-

reno, publicou em 2015 umalei que reconhece o territórioquilombola do Areal. A titu-lação é o próximo passo.“O título de propriedade é

importanteporqueresgatato-da a história dos nossos an-

tepassados e vai poder pro-porcionar acessoaváriaspo-líticaspúblicas”,dizFabiane.Comotítulo,osmoradores

querem revitalizar a fachadaseculardocasarãoqueésím-bolo da comunidade.Junto ao Pelourinho e ao

LargoZumbidosPalmares, oAreal era um dos pontos deinteressedoprojeto “Territó-rios Negros”. Alunos da redemunicipal eram levados deônibusparapercorrerumro-teiro que contava a histórianegra da cidade.O programa foi criado em

2008 e suspenso em marçodeste ano. A prefeitura deNelsonMarchezan Jr. (PSDB)afirmaqueasuspensãosede-ve à situação financeira domunicípio e à passagem doprojeto para a Secretaria deEducação.Segundoa secretaria, a re-

tomadada iniciativaéestipu-ladaparamarçode2018,com“nova roupagem” e “ferra-mentas de inovação”.

Maria Joaquina da Conceição, 75, em sua casa no quilombo da cidade de Capivari do Sul, no Rio Grande do Sul

Fotos Eduardo Anizelli/Folhapress

Moradores no Quilombo doAreal, emPorto Alegre (RS), que ainda buscam reconhecimento legal; local tem sofrido efeitos de especulação imobiliária