Post on 28-Nov-2020
FIOS DA MEMÓRIA NA BUSCA DE RASTROS DE UMA IDENTIDADE:
UM ESTUDO DE CASO DOS DESCENDENTES DE ITALIANOS/VÊNETOS
EM COLOMBO/PR
FÁBIO LUIZ MACHIOSKI
MARA FRANCIELI MOTIN
INTRODUÇÃO
A busca pela relação entre história e memória pode revelar ações de sujeitos que
reverberam em uma identidade. Isso porque, mesmo tendo a consciência de que as memórias
são seletivas, e justamente por possuírem esta particularidade das escolhas – sejam elas
conscientes ou não –, cremos que por meio delas podemos perceber os traços marcantes de uma
determinada sociedade.
A partir desta reflexão, o presente trabalho tem como objeto de estudo as memórias de
descendentes de imigrantes italianos/vênetos das antigas colônias do município de Colombo.
Estas foram registradas por meio de relatos orais feitos em Talian, língua de herança dos
entrevistados, coletados no ano de 2019, a partir de experiências e ações envolvendo as
Associações Italiana e Vêneta1 da cidade, em parceria com o Centro de Estudos Vênetos do
Paraná (CEVEP)2.
Por meio dessa interação já foram realizadas 32 entrevistas para o projeto, na cidade de
Colombo. Para este trabalho, optou-se pelo recorte dos participantes com mais de 80 anos,
resultando em 9 entrevistas, sendo 5 mulheres e 4 homens. Para a organização e citação ao
longo do texto, optamos por mencionar estes sujeitos pelo seu sobrenome, sendo eles: Cavassin
(88 anos), Falcade-Wanke (88 anos), Gasparin-Busato (93 anos), Gasparin-Mottin (96 anos),
Mestre em História pelo PPGHIS da Universidade Federal do Paraná junto à linha de pesquisa Intersubjetividade e pluralidade: reflexão e sentimento na História. Gestor do Museu Municipal Cristoforo Colombo. Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Licenciada em Matemática pela mesma
instituição. Atualmente é doutoranda em Educação pela UFPR e professora do programa HNB (Habilidades de Núcleo Básico) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. 1 O município de Colombo conta com essas associações que procuram promover a cultura italiana e vêneta desde
o ano de 2000 e 2009, respectivamente. 2 O grupo de pesquisa CEVEP, cadastrado no CNPq desde maio de 2018,
http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/345590, é composto por integrantes das comunidades italianas de Campo
Largo/PR, Colombo/PR e Santa Felicidade/PR, abarcando com seus pesquisadores áreas da linguística, arquitetura
e patrimônio cultural, história, história da educação e design. Um dos principais objetivos do grupo é valorizar e
resgatar o Talian de Curitiba e Região, tendo como iniciativas entrevistas com falantes de Talian, produção de
material didático, glossário e livreto de palavras significativas.
2
Guarise (90 anos), Maschio (84 anos), Mocelin-Pavin (93 anos), Perin (90 anos) e Toniolo-
Guarise (84 anos).3
Com estes depoimentos, almejamos refletir e identificar nas memórias e nos costumes
relatados, práticas discursivas que podem ser consideradas signos de uma identidade local.
Metodologicamente o roteiro das entrevistas foi organizado com base na sociolinguística, mas
também levando em consideração a memória no âmbito da pesquisa histórica. Para esta
proposta, a análise se apoia sobretudo nas discussões de etnicidade apresentadas por Poutignat
e Streiff-Fenart (1998) e identidade pela diferenciação elaborada por Tomaz Silva (2014).
A ETNICIDADE E A IDENTIDADE PELA DIFERENCIAÇÃO
Pautados na investigação em torno da discussão acerca da construção da etnicidade no
intuito de analisar as memórias de um grupo de descendentes de imigrantes italianos,
consideramos que a identidade étnica é produzida por meio de um processo de diferenciação.
Poutignat e Streiff- Fenart (1998), que foram fortemente influenciados pelo pensamento do
antropólogo social Fredrik Barth, afirmam que “a etnicidade não se manifesta nas condições de
isolamento, é ao contrário, a intensificação das interações características do mundo moderno e
do universo urbano que torna saliente as identidades étnicas [...]” (POUTIGNAT e STREIFF-
FENART, 1998, p. 124).
Nesta perspectiva, é na comunicação interétnica que se produz marcas e fronteiras pelas
quais os membros das sociedades se identificam como um grupo social ao mesmo tempo que
se diferenciam de outros. É possível ressaltar estas marcas na reflexão feita por Silva:
A afirmação “sou brasileiro”, na verdade, é parte de uma extensa cadeia de
“negações”, de expressões negativas de identidade, de diferenças. Por trás da
afirmação “sou brasileiro” deve-se ler: “não sou argentino”, “não sou chinês”, “não sou japonês” e assim por diante, numa cadeia, neste caso, quase interminável.
Admitamos: ficaria muito complicado pronunciar todas essas frases negativas cada
vez que eu quisesse fazer uma declaração sobre minha identidade. A gramática nos
permite a simplificação de simplesmente dizer “sou brasileiro”. Como ocorre em
outros casos, a gramática ajuda, mas também esconde.
Da mesma forma, as afirmações sobre diferença só fazem sentido se compreendidas
em sua relação com as afirmações sobre a identidade. (SILVA, 2014, p. 75).
3 Os sobrenomes duplos referem-se aos entrevistados do sexo feminino, sendo que o primeiro é o sobrenome de
solteira e o segundo aquele adquirido após o casamento.
3
Nessa direção, percebemos que a constituição de uma etnicidade se dá dentro de uma
sociedade multiétnica por meio de declarações de quem pertence e não pertence à determinado
grupo, sendo uma produção pela diferenciação, na qual há uma afirmação perene da existência
de um “nós” e de um “eles”, ou do “nós” perante os “outros”, que Silva (2014) classifica como
além de categorias gramaticais, sendo estas palavras indicadores da posição de sujeitos
marcados por relações de poder.
Na nossa concepção, esse poder na maioria das vezes está ligado a um discurso de
superioridade e tradição. Para defender essa suposta superioridade, o grupo do “nós” faz a
defesa dos indivíduos que a ele pertencem, afirmando que possuem melhores comportamentos
sociais em relação aos “outros”, àqueles que são identificados como membros de grupos que
possuem tradições diferentes que as suas. A diferença leva a comparação, que por sua vez
produz afirmações discursivas por parte do primeiro acerca de sua superioridade, como por
exemplo, nós somos mais religiosos, mais trabalhadores, mais educados, do que “eles”.
Entendemos que a memória coletiva do grupo é capaz de embasar essas representações
de pertencimento à medida que perpetuam esses sinais e discursos a respeito da identidade
assumida. De acordo com o antropólogo Joël Candau, essa se constituirá em uma memória forte
que influenciará no processo de constituição da identidade do sujeito.
Denomino memória forte, uma memória massiva, coerente, compacta e profunda, que
se impõe a uma grande maioria dos membros de um grupo... Uma memória forte é
uma memória organizadora no sentido de que é uma dimensão importante da
estruturação de um grupo, e por exemplo da representação que ele vai ter de sua
própria identidade. (CANDAU, 2012, p. 44).
Nesta relação entre memória forte e identidade coletiva, consideramos que a memória
pode ser construtora e mantenedora desse sentimento de pertença dos grupos étnicos, que é
capaz de produzir uma representação de identidade. Pensamos que é esse tipo de memória que
encontramos nos relatos dos descendentes de italianos entrevistados na cidade de Colombo:
uma memória forte, ancorada no fenômeno da imigração, que ultrapassa o acontecimento da
viagem transoceânica realizada pelos antepassados, mas que ainda é capaz de promover
processos de identificação étnica, mesmo quase um século e meio depois da chegada dos
imigrantes em terras colombenses.
4
Essa nossa ideia vai ao encontro com o que aponta o historiador Alistair Thomson, que
pesquisou histórias de vida e experiências migratórias de senhores australianos. Após se
debruçar sobre as memórias desses sujeitos por meio da história oral, o autor nos apresenta um
conceito mais amplo sobre imigração:
Defino “migração” incluindo tanto migrações internacionais quanto intranacionais
e, como a maioria dos estudos de história oral, enxergo a passagem física da
migração de um lugar para o outro como apenas um evento em uma experiência
migratória que abarca velhos e novos mundos e que continua por toda a vida do
migrante e pelas gerações subsequentes. (THOMSON, 2002, pp. 341-342).
Portanto, estamos nos pautando também nessa ideia ampliada a respeito do que é a
imigração, já usada em outros estudos de história oral, que reconhece que o fenômeno vai além
do deslocamento físico pontual e atinge também os descendentes dos sujeitos que migram.
A IMIGRAÇÃO VÊNETA EM COLOMBO
Desde a segunda metade do século XIX, o governo da então província paranaense
desenvolveu uma política imigratória, sempre visando a criação de núcleos coloniais voltados
para a agricultura de abastecimento, que atraiu uma diversidade de europeus oriundos de várias
regiões daquele continente.
Primeiramente vieram contingentes alemães, suíços, franceses e ingleses e, mais tarde,
italianos e poloneses e, finalmente, ucranianos e holandeses, entre outros. Nesses grupos, os
que mais se destacam na contribuição demográfica do Paraná, em termos de densidade, são:
“Poloneses (49,2%), Ucranianos (14,1%), Alemães (13,3%) e, finalmente, Italianos (8,9%),
formando as outras etnias apenas 14,5%.” (BALHANA, MACHADO, WESTPHALEN, 1969,
p.184).
O grupo específico que pretendemos analisar está inserido entre os 8,9%, representados
pelos imigrantes italianos estabelecidos no Paraná. “Foi a partir de 1875 que esse contingente
começou a chegar em grandes levas, sendo a maioria italianos procedentes do Vêneto.”
(MARTINS, 1941, p. 176).
5
O programa colonizador elaborado na administração do presidente de província
Adolpho Lamenha Lins, direcionou a atividade colonizadora para o entorno do meio urbano de
Curitiba, e de modo geral para o planalto curitibano. (BALHANA; MACHADO;
WESTPHALEN, 1969, p.169). Esse programa colonizador visava implantar colônias agrícolas
nas proximidades dos centros urbanos, com o objetivo de colocá-las em contato com os
mercados consumidores. Este foi o caso da fundação do núcleo Alfredo Chaves, a mais antiga
entre as colônias italianas instaladas em terras que formam hoje o município de Colombo.
Além da colônia Alfredo Chaves, o grupo de imigrantes italianos que estamos
investigando foi formado por mais quatro colônias, sendo que uma delas, o núcleo Antonio
Prado, era misto, e recebeu também imigrantes poloneses. Os principais dados a respeito desses
núcleos coloniais são informados na tabela a seguir4:
TABELA 1 - COLÔNIAS ITALIANAS DE COLOMBO
Ano Município
Atual
Colônia Distância
da
Capital
Área
em
hectares
Número
de
Lotes
Número
de
Imigrantes
Grupos
étnicos
Localidade
1878 Colombo Alfredo
Chaves
24 Km 431,3 40 220 Italianos
Butiatumirim
1886 Colombo
Antônio
Prado
18 Km 414,4 54 248 Italianos
Poloneses
Tamandaré
1886 Colombo Presidente
Faria
20 Km 493,4 50 450 Italianos Canguiri
1887 Colombo
Quatro
Barras
Maria
José
19 Km 128,0 13 78 Italianos Canguiri
1888 Colombo
Bocaiúva
Eufrázio
Correia
34 Km 426,9 33 198 Italianos Capivary
Portanto, nosso objeto de estudo tem como recorte espacial descendentes de italianos
imigrados para essas cinco colônias: Alfredo Chaves (1878), Antonio Prado (1886), Presidente
Faria (1886), Maria José (1887) e Eufrázio Correa (1888).
4 Tabela construída baseada nas informações coletadas nas seguintes obras: BALHANA et al, 1969, pp.165 e 166
e MARTINS, 1941, pp. 148, 152 e 160.
6
Uma característica destes locais é de que os imigrantes italianos vieram sobretudo do
Vêneto, região setentrional da Itália. Em um estudo anterior, pudemos constatar, por meio da
análise dos registros dos casamentos religiosos, que nas colônias italianas que formaram o
município de Colombo, a representatividade dos imigrantes vênetos ultrapassou os 90%.
(MACHIOSKI, 2004, p. 10).
Sobre a origem dos 9 entrevistados, cujos relatos serão analisados logo adiante,
identificamos que todos são descendentes de imigrantes oriundos da região do Vêneto. Em
relação a província de origem, todos possuem algum antepassado de Vicenza, 3 têm
ascendentes de Treviso e 2 originários de Belluno.
Portanto, podemos deduzir que esse grupo de imigrantes possuíam (e consequentemente
seus descendentes possuem) muito mais em comum do que somente a região ou a província de
procedência. Acreditamos que eles apresentavam traços étnicos que os identificavam, capazes
de os classificar como um grupo social particular, e que essas marcas foram acentuadas ao
experimentarem o fenômeno da imigração devido aos contatos interétnicos decorrentes desse
processo histórico, ressaltando também a diferença com os outros.
São esses sinais que afirmaram uma identidade étnica para esses imigrantes e que, como
acreditamos, continuam afirmar um sentimento de pertencimento entre seus descendentes, que
queremos analisar aqui. Para isso, partimos do pressuposto que a língua regional trazida na
bagagem e transmitida por gerações seja a principal marca dessa etnicidade.
O TALIAN, LÍNGUA DE HERANÇA DE COLOMBO
Com base nas discussões da área da linguística, realizadas no grupo de pesquisa CEVEP,
utilizaremos neste trabalho o entendimento do Talian como uma koiné de base vêneta que se
formou no Brasil, falada pelos imigrantes italianos e seus descendentes, principalmente na
região Sul e Sudeste do país. Apesar da forte influência, esta língua é diferente do italiano
standard e do dialeto vêneto ainda falado na Itália.
Uma constante nas entrevistas selecionadas é que todos aprenderam o Talian por meio
dos seus laços ancestrais e o utilizam até os dias de hoje na comunidade; inclusive, em um
período histórico e/ou com determinadas pessoas, esta foi a única língua utilizada por estes
7
falantes para a socialização, principalmente quando esta acontecia com pessoas mais velhas na
época, como os nuni5 destes entrevistados.
A maneira como estes sujeitos organizam a sua comunicação, em Colombo, utilizando
o Talian, mostra-nos que esta é uma língua de herança da cidade, pelos pressupostos de Ortale,
que aponta que “língua de herança é a língua com a qual uma pessoa possui identificação
cultural e sentimento de pertencimento a determinada comunidade que a usa, seja por laços
ancestrais, seja por convivência no mesmo ambiente sociocultural com falantes dessa língua.”
(ORTALE, 2016, p. 27).
Sendo o Talian a língua de herança destes entrevistados, que está atrelada a uma
identificação cultural, todos relataram que nunca sentiram vergonha em utilizá-la. Porém, estes
mesmos sujeitos viveram um período conturbado da história brasileira, em relação às línguas:
a ditadura Varguista. Durante a década de 1940 era proibido que no Brasil se falasse italiano,
alemão e japonês. Toniolo-Guarise (2019) lembra que: “so che me pare el dizea che gera el
tempo dea guerra, che se ciapava qualchedun palando in talian, ‘ndava in prisón.”6
Alguns dos entrevistados não relatam de forma enfática esta proibição, outros se
recordam de que não podiam utilizar o Talian na escola. Cavassin (2019), por exemplo, lembra
que “ghe gera a quinta coluna e che non podea palare nantra ‘engoa... eh... ghe gera a
fiscalizasson... conforme el posto non podea palar nantra lingua”.7
Essa forte campanha de nacionalização passava principalmente pela escola. Era lá que
muitos filhos e netos de imigrantes aprendiam as primeiras palavras em português, chamado
pela maioria de “brasilian”8. Cavassin (2019) também relata que “gera fadiga, parche noantri
casa palavino soeo in Talian. Gera fadiga de intendere in brasilian a scoea parché gerimo
acostumai a palar soeo in Talian.”9
Talvez este não fosse o único motivo, mas pensamos que esta proibição e a dificuldade
para se comunicar encontrada na escola durante a infância, pode ter marcado os caminhos da
permanência e silêncios do Talian em Colombo. Isso justificaria, em partes, o fato desta língua
5 Avós. Esse será o padrão adotado, o Talian aparecerá no corpo do texto e a tradução em nota de rodapé. 6 Sei que meu pai dizia que era o tempo da guerra, que se pagassem alguém falando em Talian, ia para prisão. 7 “Existia a quinta coluna e que não podia falar outra língua...eh... existia a fiscalização... conforme o lugar não
podia falar outa língua”. 8 “Brasileiro”. 9 “Era difícil, porque nós em casa falávamos só em Talian. Era difícil entender o brasileiro na escola porque nós
estávamos acostumados a falar só em Talian.”
8
não ter sido ensinada aos filhos e netos, mesmo sendo um legado dos avós e pais dos
entrevistados, falada com a família e os amigos, e relatarem nas conversas que sentem orgulho
de utilizá-la até hoje.
Em relação ao contato com o outro, mesmo estes sujeitos sendo denominados como
descendentes de italianos, eles reconhecem suas diferenças culturais, principalmente no contato
com a língua italiana standard. Perin (2019) cita em seu relato que em uma ocasião conheceu
um italiano, mas não conseguiu entender nada do que ele falava. Porém, nesta mesma entrevista,
mesmo ressaltando esta diferença, este senhor recitou uma música em italiano, que segundo ele
era cantada por ocasião da eleição de um papa. Cremos que esse último relato demonstra
claramente a criação de uma fronteira étnica por meio da língua de herança, porém, percebemos
da mesma forma que essa não era uma barreira fixa e estável.
O PROCESSO DE IDENTIFICAÇÃO ÉTNICA
A língua, mais do que a comunicação em si, propiciou, segundo as memórias de nossos
entrevistados, algumas práticas culturais que contribuíram para a construção do processo de
identificação por definirem-se como características particulares deste grupo étnico, sendo uma
delas o filò10. Falcade (2019) comenta sobre como era esta prática de visita aos vizinhos:
“Quando papà e a mama nava via, nava con du ciareto e se portava via de note e nava. E de
volte de note se fava prossisson e mi nava. Tuti co’l ciareto.”11
O filò era, portanto, um encontro que acontecia durante à noite, na casa de vizinhos,
onde se reuniam para conversar, trocar experiências, jogar, rezar, etc. principalmente porque
não havia nem rádio e nem televisão. Era um ambiente de socialização interno do grupo étnico,
onde as práticas socioculturais do mesmo podiam ser reforçadas, e mais, passadas adiante. Um
espaço social onde a coesão grupal era reforçada continuamente, fazendo com que as ruas e as
casas dos membros da colônia, habitada por esses indivíduos com uma origem comum, se
tornassem um lugar de pertencimento.
10 “Sarau” noturno realizado com a participação das famílias italianas vizinhas. 11 “Quando o papai e a mamãe iam, iam com dois lampiões que se carregava de noite pra ir. As vezes de noite se
fazia procissão e eu ia. Todos com o lampião.”
9
Essa ideia fica mais evidente ao percebermos a maneira como os entrevistados exaltam
o fato de terem nascido na colônia, como também de afirmarem continuamente que são
descendentes diretos e parentes próximos dos imigrantes italianos, como se ser do lugar e
possuir uma ascendência italiana fossem sinônimos. Assim, ao ser indagada sobre o local de
nascimento Mocelin-Pavin (2019) respondeu: “Quà in Coeonia... Dentro propio quà... Me pare
e me mare, tuti i dui, i gera de quà, so pari de iuri i ze vegnisti del’Italia, ma iuri i ze nassisti
quà.”12 Ao falar do sogro a mesma fez questão de salientar “el’è vegnesto del’ Italia”13. Da
mesma forma Guarise (2019), respondeu com sorriso no rosto, “- Onde zeo che son nassuo?
Quà, vissin quà, davanti... stava me pare eà...”14
Outra manifestação comum ao grupo que veio à tona nas entrevistas, e que denota a
coesão do mesmo, é que entre eles as famílias eram conhecidas por apelidos. De acordo com
Gasparin-Motin (2019) “i disea i Bofi... Iuri stava ‘à so’a Serina... I ze vegnisti de Italia e i stava
eà so’a Serina fin che ze morti... e ora me nona gera Bofa, dei Toniolo.”15 Assim, percebemos
que entre eles os Toniolo eram Bofi, assim como Giani os Ceccon, Parisiti os Guarise, Stefaniti
os Mocelin, Da Noti os Gasparin, etc. Supomos que esta seja uma prática que servia à
identificação e diferenciação do grupo.
Outra característica interessante que podemos destacar, talvez a mais marcante neste
processo de construção de identidade étnica, é a rede matrimonial. Boa parte dos entrevistados
relataram que havia uma orientação, principalmente por parte dos pais, mas também da
comunidade para que o casamento se desse entre descendentes de italianos. Perin (2019)
destacou que ele não podia namorar brasileiras ou pessoas de outras etnias, mesmo este dizendo
não haver preconceito. Já Guarise (2019) relata: “Mi dee volte mi inamorava queste tose in
volte... Me mare se non gera taliana ea me botava... ea disea no no, quea là non serve no...
bresiliana. Ea voea gente che ea cognossea... dopo che mi go tacà inamorar ea, ea là era contenta
12 “Aqui na colônia... bem aqui dentro... Meu pai e minha mãe, todos os dois eram daqui, seus pais vieram da Itália,
mas eles nasceram aqui.” 13 “Ele veio da Itália”. 14 “- Onde foi que eu nasci? Aqui, pertinho aqui, na frente... meu pai morava já ali.” 15 “Eles diziam os Bofi... eles moravam na Serrinha... Eles viram da Itália e moravam lá na Serrinha até morrerem...
então minha vó era Bofa, dos Toniolo.”
10
parche saea che gera gente de quà.”16 A senhora Gasparin-Motin é ainda mais enfática ao
afirmar:
... i no ghi maridà gnanca uno con brasilian... Tá louco, i me copava, Deus me livre...
Non gera pericueo... noantri no vardavimo i brasilian... Si te ve maridarte con un
brasilian per patire a fame... No ma ze vera... I me pare e me mare... Deus o livre se
ghissi vardar un brasilian... cabucri.17 (GASPARIN-MOTIN, 2019).
Este último relato é muito revelador a respeito do tipo de discurso que era usado pela
família e pelo grupo étnico para reforçar a ideia de que o casamento devia acontecer somente
entre os descentes de italianos. Aqui aparece claramente a ideia que apresentamos
anteriormente da “boa sociedade”, pautada em um discurso de superioridade. Neste caso, os
italianos se definiam como os mais trabalhadores, e denegriam a imagem dos brasileiros, aos
quais chamavam pejorativamente de caboclos.
Apenas 2 dos entrevistados, Falcade-Wanke e Maschio, casaram-se com pessoas de
outra etnia. Segundo Maschio (2019), “é un poco diferente, ma poca cosa. No ze parche a gera
breseliana che non da par maridarse o parche iu ze talian e tal... gera normal.”18 Essa preferência
por uma pessoa do mesmo grupo, na nossa opinião, é uma prática na construção de uma
identidade étnica construída a partir das diferenças.
Como já salientamos, muitas vezes essas fronteiras étnicas eram estabelecidas criando
imagens pejorativas para se diferenciar dos indivíduos dos outros grupos, ou seja, a
identificação era promovida por meio da inferiorização do outro. Isso fica evidente na fala a
seguir:
Taliani con taliani... I no voea saer dei brasiliani... I ciamava de quei cabucri
vagabundi... Poeachi i ghea el vissio de bevre, de esser ciuchi... i poeachi i gera ciucatuni... I brasiliani disea pa taliani che i va pa Italia, che quà ze suo... I poeachi
disea: taliani i ze sbrontoiuni. Che i disea massa paroe... Una volta ghe gera dui tri
cabucri e noantri gerimo drio nar sapar soa rossa e i me ga dito: gringhe ve star in
16 “Eu as vezes namorava algumas moças por aí... minha mãe se não era italiana ela me batia... ela dizia não, não,
aquela lá não serve não... é brasileira. Ela queria gente que ela conhecia... depois que eu encontrei, namorei, aí ela
ficou feliz porque sabia que era gente daqui.” 17 “... eles não casaram nenhum com brasileiro... tá louco, eles me matavam, Deus me livre... não tinha perigo...
nós nem olhávamos os brasileiros... Sim, você vai se casar com um brasileiro para sofrer de fome... Não, mas é
verdade... Meu pai e minha mãe... Deus oh livre se olhasse um brasileiro... caboclos.” 18 “...é um pouco diferente, mas pouca coisa. Não é porque ela era brasileira que não dá para casar-se ou porque
ele é italiano e tal... era normal”.
11
Italia che ‘à ze el vostro posto, che qua el Brasil ze nostro.19 (MOCELIN-PAVIN,
2019).
Por meio deste último relato, percebemos claramente que havia a tentativa em classificar
pejorativamente o outro por parte de todos os grupos étnicos que estavam em contato. Ora isso
acontecia por meio da moral social e religiosa, ora por meio do trabalho. Nessa direção, outro
aspecto bastante notório nas entrevistas é o quanto os depoentes caracterizam os indivíduos
pertencentes ao seu grupo étnico como dedicados ao trabalho, ao mesmo tempo, que silenciam
o trabalho do outro, chegando ao ponto de classificar o outro como vagabundo, como lemos no
relato anterior.
Em contrapartida, a solidariedade grupal envolvendo ocasiões de trabalho é exaltada
continuamente. Nesse sentido, Guarise (2019), diz “No ghineimi parche i stropi anca i da pi sol
bagnado. Dora mi nava torli quà al Bacaetava... che gera de Berto Gasparin... El ghea un vimal
beo, sun bagnadon, e el me arrumava ogni ano, el me dava stropi... se tramami a ‘igar i visei.”20
Por sua vez Maschio (2019), relata essa solidariedade em relação ao suprimento da alimentação
dos vizinhos:
Me mare dizea: Idalio, ciapa a sesta e và portare a carne. Portava un toco cada un.
Ma iuri também quando i copava i dava... Che quando vegnea un cognessido de me pare de Curitiba, so’l São João, fasui, risi, eh... macaruni, ghe gera. E dora a mama
dizea: Idalio, va de Angeina che a te empreste du saeadi e du uvi.21 (MASCHIO,
2019).
Essa solidariedade grupal também é muito evidenciada quando se tratava de um trabalho
que era em prol da igreja frequentada pelo grupo, pois da mesma maneira o discurso de
superioridade se dava por meio da religião. Segundo Cavassin (2019), todos ajudavam:
19 “Italianos com italianos... eles não queriam saber dos brasileiros... eles chamavam de aqueles caboclos
vagabundos... Polacos eles tinham o vício de beber, de ser bêbados... os polacos eram beberrões... Os brasileiros
diziam para os italianos que eles fossem para Itália que aqui era deles... Os polacos diziam: italianos são briguentos. Que eles diziam muito palavrões... Uma vez tinha dois três caboclos conversando e nós estávamos carpindo na
roça e eles me disseram: gringas vão morar na Italia que lá é o lugar de vocês, que aqui o Brasil é nosso.” 20 “Não tínhamos porque os vimes também dão mais no banhado. Então, eu ia buscar lá no Bacaetava... que tinha
o Berto Gasparin... ele tinha uma plantação de vimes bonita, em um banhadão, e ele me arrumava todo ano, ele
que me dava os vimes... aí se tramávamos a amarrar as videiras.” 21“Minha mãe dizia: Idalio, pegue a cesta e vá levar a carne. Levava um pedaço para cada um. Mas eles também
quando matavam (o porco, etc.) nos davam. Quando vinha um conhecido de meu pai de Curitiba no São João,
feijão, arroz, eh... macarrão a gente sempre tinha. Então a mamãe dizia: Idalio vá lá na Angelina para que ela te
empreste dois salames e dois ovos.”
12
Un me dava gaina, otro me dava do quarto de fasui, nantro me dava un mas-cieto e
námio vendelo so’l leilon dopo, el di de ‘a festa. Un me dava un cavreto. Metia tuto
em cima a careta. E de’à menava su dei preti. (...) De a Madona del Rosargio e i fava
a Festa de Santo Antonio anca e anca tor su e prende.22 (CAVASSIN, 2019).
CONCLUSÃO: OS SIGNOS DE REPRESENTAÇÃO DA ETNICIDADE
ITALIANA/VENETA EM COLOMBO
As entrevistas analisadas revelaram pelas memórias destes descendentes de italianos
alguns signos de representação de uma etnicidade e identidade italiana/vêneta em Colombo.
Estas características são marcas de uma relação de grupo, que destacam estes sujeitos, mas
também acentuam as diferenças no comparativo com os outros, aqueles que não pertencem a
esta etnicidade.
Um dos pontos fortes para o grupo analisado são as marcas da religião e da moral,
baseados exclusivamente nos princípios católicos. Ir à missa representava o cotidiano desses
entrevistados; às vezes, até mesmo como uma obrigação imposta pelos pais, desde a infância,
tentando reproduzir valores na educação destes, já que: “Prima cossa gera a messa. Se faltasse
messa un di, me pare me tensionava.”23 (GUARISE, 2019). Além das missas, muito da
socialização desses imigrantes e descendentes passava pelo catolicismo por outras formas,
como os terços diários, a catequese, e a participação em festas religiosas.
Junto com a religião, o trabalho fazia parte do cotidiano da vida destes entrevistados,
desde a infância: “Parche queo che ghemo laorà noantri soa nostra vita fioeo da Dio, varda che
no zè stato poco. Mi go scominssià laorar con sete ani... Quando che nava laorar soa rossa me
tocava se mudarse sun un paiò, ti setu?”24 (GASPARIN-MOTIN, 2019). O trabalho, tão caro a
estes sujeitos, representava a oportunidade de construírem uma vida diferente daquela que seus
22 “um me dava uma galinha, outro me dava dois quartos de feijão, um outro me dava um porquinho para
vendermos no leilão depois, no dia da festa. Um me dava um cabrito. Colocava tudo em cima da carroça. E levava
tudo lá para os padres (...) De Nossa Senhora do Rosário e eles faziam a Festa de Santo Antônio também e sempre
ía arrecadar a prendas.” 23 “Antes de qualquer coisa estava a missa. Se faltasse um dia meu pai me reprendia.” 24 “Porque o quanto que nós trabalhamos na nossa vida filho de Deus, olhe que não foi pouco. Eu comecei a
trabalhar com sete anos... Quando que eu ia trabalhar na roça tinha que se mudar para um paiol, sabe o que é isso?”
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antepassados deixaram no outro lado do Atlântico. Este trabalho era sobretudo desenvolvido na
lavoura e pela família.
Com os costumes campesinos sendo uma marca deste grupo de descendentes, muito da
gastronomia deles remonta a produtos primários, produzidos em casa, em um trabalho conjunto
com toda a família, e muitas vezes compartilhados com o grupo. Podemos marcar esta
gastronomia pelo consumo do “vin, poenta, formagio, saeado, minestra, risoto, fortagia”25 e
outros pratos simples feitos de forma caseira, que estavam presentes na mesa de todos os
entrevistados.
Todas estas práticas de socialização (família, gastronomia, religião e trabalho)
destacadas como características e signos de uma etnicidade, traziam como fundo (mas também
suporte) o Talian, que neste artigo demonstramos ser uma língua que circulava entre os de casa,
na família, na igreja e entre os amigos, ou seja, uma língua que se fazia presente em ambientes
restritos de socialização destes sujeitos, que pode ter contribuído para uma aproximação entre
os iguais, mas também uma diferenciação com aqueles que não a falavam, pertencentes a outra
etnias. Em outras palavras, notamos que o Talian, enquanto língua de herança, desempenhou
papel fundamental no processo de identificação etnocultural do grupo estudado.
FONTES ORAIS
CAVASSIN. Depoimento concedido em 13 de abril de 2019.
FALCADE-WANKE. Depoimento concedido em 13 de abril de 2019.
GASPARIN-BUSATO. Depoimento concedido em 18 de maio de 2019.
GASPARIN-MOTIN. Depoimento concedido em 26 de julho de 2019.
GUARISE. Depoimento concedido em 04 de maio de 2019.
MASCHIO. Depoimento concedido em 14 de abril de 2019.
MOCELIN-PAVIN. Depoimento concedido em 04 de maio de 2019.
PERIN. Depoimento concedido em 13 de abril de 2019.
TONIOLO-GUARISE. Depoimento concedido em 04 de maio de 2019.
25 “Vinho, polenta, queijo, salame, sopa, risoto, omelete.”
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REFERÊNCIAS
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Curitiba: Editora Nova Didática, 2000.
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Paraná. 1º vol. Curitiba: GRAFIPAR, 1969
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italiano curato de Colombo, Paraná, 1888 – 1910. Monografia de Graduação em História –
UFPR, Curitiba, 2004.
MARTINS, Romário. Quantos somos e quem somos, dados para a história e a estatística
do povoamento do Paraná. Curitiba: Empresa Gráfica Paranaense, 1941.
ORTALE, Fernanda. A formação de uma professora de italiano como língua de herança: o
Pós-Método como caminho para uma prática docente de autoria. 2016. Tese de Livre-Docência:
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2016. 163f.
POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias de etnicidade: seguido de
grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998.
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Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
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