Post on 09-Nov-2018
FACULDADE CÁSPER LÍBERO
Maria Eugenia Lage da Silva Prado
Jornalismo e Cultura: caminhos possíveis
São Paulo
2015
MARIA EUGENIA LAGE DA SILVA PRADO
Jornalismo e cultura: caminhos possíveis
Dissertação apresentada para a obtenção do
grau de Mestre em Comunicação pela
Faculdade Cásper Líbero.
Orientador: Prof. Dr. Dimas A. Künsch
São Paulo
2015
Prado, Maria Eugenia Lage da Silva
Jornalismo e cultura: caminhos possíveis / Maria Eugenia Lage da Silva
Prado – São Paulo, SP, 2015.
144 f.
Dissertação (Mestrado) – Faculdade Cásper Líbero. Mestrado em
Comunicação, linha B – “Produtos Midiáticos, Jornalismo e
Entretenimento”, 2015.
Orientador: Prof. Dr. Dimas A. Künsch
1. Jornalismo Cultural. 2. Pós-modernidade. 3. Comunicação. 4. Cultura.
Indústria Cultural. 5. Entretenimento. I. Künsch, Dimas A. II. Título.
CDD ____.___
DEDICATÓRIA
Aos meus pais queridos. À minha mãe, Susana, pelo eterno incentivo e apoio em minhas escolhas
e caminhos. Ao meu pai, Caio, que onde quer que esteja, sei que está torcendo e, principalmente,
cuidando de mim.
Ao meu querido filho, Antonio, que me ilumina e deixa a vida repleta de sentido. E ao meu outro
amor, André, que me faz recordar diariamente que a vida é feita de sincronicidade.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao professor Dimas Künsch, meu orientador, pelas aulas sempre inspiradoras, pelo
incentivo e, principalmente, pela enorme paciência.
Aos integrantes da banca, Simonetta Persichetti e Monica Martinez, pelas preciosas contribuições
na banca de qualificação. A ajuda de vocês foi fundamental para o desenvolvimento deste
trabalho.
E aos professores Antonio Roberto Chiachiri Filho e Simonetta Persichetti que também me
guiaram nessa trajetória com conhecimentos, percepções e olhares e, isso tudo, ainda, com uma
didática pedagógica iluminada.
Aos meus irmãos, Caio e João, e a minha cunhada Paula, pelo apoio constante durante essa
trajetória. E também a minha família do coração: Malu, Scandar, Natália, Silvio e Minuca.
Aos meus queridos amigos Kátia Ciccone, Gustavo Gomes da Costa, Carolina Delleva e Ju
Millan, sem o apoio e o carinho de vocês, nada disso teria sido possível.
Meu agradecimento especial à querida amiga Renata Nantes, que não só meu deu força e
esperança nos momentos mais difíceis, como também me ajudou a revisar o trabalho.
Muito obrigada a todos vocês.
RESUMO
A presente pesquisa, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da
Faculdade Cásper Líbero, área de concentração Comunicação na Contemporaneidade e
Linha de Pesquisa Produtos Midiáticos: Jornalismo e Entretenimento, tem por tema
Cultura e jornalismo. Quer se compreender como a mídia concebe e realiza suas escolhas
editoriais no campo da cultura, levando em conta seu contexto histórico e cultural. O
Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo foi escolhido como estudo de caso.
Geralmente, as editorias de cultura apresentam reportagens, entrevistas e notas calcadas
em agendas ou ligadas à divulgação de um produto cultural, presas aos ditames da
Indústria Cultural e do entretenimento. Histórias sem profundidade e pouco conectadas
com a multiplicidade e complexidade de sentidos que a cultura oferece. Neste sentido,
esta pesquisa, além de compreender como o Caderno 2 concebe suas escolhas editoriais,
pretende apontar outros caminhos possíveis para o Jornalismo Cultural, que fujam à
lógica da agenda, da Indústria Cultural e do entretenimento. Para tanto, utiliza como
exemplo o programa semanal Paratodos, da TV Brasil. Autores como Cremilda Medina,
Edgar Morin, Michel Maffesoli, entre outros, dialogam sobre o tema. Por fim, se fez
necessário compreender o que é cultura. Esta dissertação, dentro de suas possibilidades,
pretende dar conta de suas acepções, sua evolução histórica e de suas características
gerais dentro do que se convencionou chamar de Modernidade e de Pós-modernidade, no
mundo e no Brasil. David Harvey, Gilles Lipovetsky, Raymond Williams, Sigmund
Freud, Alfredo Bosi, Renato Ortiz, Jorge Schwarz, E. H. Gombrich, além de outros, são
fundamentais para essa discussão.
Palavras-chave: Jornalismo Cultural. Pós-modernidade. Comunicação. Cultura.
Indústria Cultural. Entretenimento.
ABSTRACT
This research was developed at the Graduate Program in Communication at Casper
Libero College, Area of Concentration Communication in Contemporary and research
line "Media Products: Communication, Journalism and Entertainment”. Culture and
journalism: this is the theme of the research proposed here. This paper wants to
understand how the media designs and builds the editorial choices in the field of culture,
taking into account its historical and cultural context. Caderno 2 of the newspaper O
Estado de S. Paulo was chosed to be a brief case study. Generally, culture editorial
feature articles, interviews and sidewalks notes in diaries are related to the disclosure of a
cultural product, stuck to the dictates of Cultural Industry and entertainment. No depth
stories and little connected with the multiplicity and complexity of meanings that culture
offers. In this regard, this research, in addition to understanding how the Caderno 2 sees
its editorial choices, intends to point out others possibles ways for cultural journalism,
that fleeing the agenda, the Cultural Industry and the entertainment. Therefore, uses as an
example the weekly program Paratodos, of TV Brasil. Authors like Cremilda Medina,
Edgar Morin, Michel Maffesoli, among others, dialogue on the subject. Finally, it was
necessary to understand what is culture. The thesis, within their means, aims to realize its
meaning, its historical evolution and its general characteristics within the so-called
Modernity and Post-modernism in the world and in Brazil. David Harvey, Gilles
Lipovetsky, Raymond Williams, Sigmund Freud, Alfredo Bosi, Renato Ortiz, Jorge
Schwarz, EH Gombrich, among others, are fundamental to this discussion.
Keywords: Cultural Journalism. Postmodernity. Communication. Culture. Cultural
industry. Entertainment.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
CAPÍTULO 1: UMA CONSTELAÇÃO DE CULTURAS 17
1.1. Cultura como o espaço da liberdade 19
1.2. Noção de cultura 22
1.3. Evolução histórica da cultura 29
1.3.1. Cultura primitiva e religiosa: Antiguidade e Idade Média 29
1.3.2. A alvorada da Modernidade 30
1.3.3. Cultura na Modernidade 34
1.3.4. Um pouco da Modernidade na História 37
1.3.5. A consagração da Indústria Cultural 43
1.4. A cultura na contemporaneidade 47
CAPÍTULO 2: CULTURA NO BRASIL 54
2.1. Modernidade e Modernismo no Brasil 54
2.2. Pindorama, Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Brasil 55
2.3. São Paulo, berço do Modernismo 58
2.4. Pré-Modernismo à brasileira 60
2.5. Modernismo Brasileiro 64
2.5.1. Primeira fase do Modernismo no Brasil (1922-1930) 68
2.5.2. Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) 72
2.6. Manifesto Antropófago (1928) 72
2.7. Segunda fase do Modernismo no Brasil (1930-45) 76
2.8. Os anos dourados (1950) 78
2.9. A ditadura e a Indústria Cultural (1964-1985) 80
CAPÍTULO 3: JORNALISMO CULTURAL HOJE 83
3.1. Um breve olhar sobre o “Caderno 2” 83
3.2. Caderno 2: história que conta a evolução do Jornalismo Cultural 83
3.2.1. Os anos 1950: mudanças na Imprensa Brasileira 87
3.3. Caderno 2 surge em 1986 93
3.3.1. Caderno 2: uma visão panorâmica das publicações dominicais 95
3.3.2. Caderno 2: Estudo descritivo sobre textos específicos 97
3.3.3. Caderno 2: Um olhar interpretativo 99
3.3.4. O que faz falta no Caderno 2 105
3.4. Um outro caminho possível: jornalismo compreensivo 107
3.4.1. O afeto como elemento da prática jornalística 109
3.4.2. A importância do “senso comum” – vozes necessárias no jornalismo 110
3.5. Relatos sobre minha experiência jornalística na TV Brasil 111
3.5.1.“Projeto Azu”, outra experiência de Jornalismo Cultural na TV Brasil 113
3.5.2. Da “porca miséria” à transformação de vida através da arte 116
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS 119
REFERÊNCIAS 122
ANEXOS 126
9
INTRODUÇÃO
A Modernidade criou o mundo como conhecemos na atualidade. Ainda
carregamos muito, ou quase tudo, do homem moderno que despontou no final do século
XIX, princípio do XX. Ainda sentimos, intensamente, a herança positivista e o mito
moderno da racionalidade. Nesse contexto do fascínio ou “fascismo” positivista,
algumas coisas deixaram de ser contempladas dentro da cultura, os mitos e as lendas
foram escamoteados num quarto escuro da memória; as grandes narrativas, o senso
comum e a opinião perderam sentido e relevância. E outras se tornaram fundamentais: o
conhecimento virou homogêneo, globalizado e único; a produtividade e a Indústria
Cultural, essenciais. Um mundo desencantado se desenhou no horizonte.
O final do século XX e o princípio do século XXI trouxeram à baila novos
olhares sobre o percurso tomado pela Modernidade. O desfecho, para os intelectuais,
não é nada consensual. A começar por qual seria o nome de batismo deste novo
momento histórico, no qual estaríamos inseridos hoje: pós-modernidade (Harvey),
modernidade líquida (Bauman), hipermodernidade (Lipovetsky e Serroy),
sobremodernidade (Augé) etc.
Mas a pós-modernidade abre novos caminhos. Múltiplos ou misturados, como
sugere Michel Maffesoli, onde é possível encontrar a razão e a emoção caminhando
lado a lado. O discurso diverso, heterogêneo, fragmentado e plural se faz necessário.
Nesse contexto, há um espaço possível para todas as histórias, justificações,
legitimações que, de forma complexa e plural, constituem o discurso social e o mundo.
Sendo possível pensar num Jornalismo Cultural que reintroduza dimensões míticas e
imaginárias na composição do cotidiano e da realidade social, desfazendo aquilo que o
racionalismo ocidental acredita ter apagado há muito tempo.
10
Um pouco de cultura. Cultura contínua, sem data para acabar ou vender. Cultura
que vem de baixo ou de cima: Cultura. Tanto bate até que fura, canta Itamar Assunção.
O mundo não é uniforme como vemos na televisão. Os sotaques múltiplos do
Brasil não circulam nos produtos da Indústria Cultural e tampouco são representados
apenas pelo eixo Rio-São Paulo. O Brasil, em sua enormidade territorial, é rico em
cores, tradições, costumes, culinária, arte, dança, mitos. Revelar essa diversidade é, ao
menos, respeitar e compreender. Revelar então é, possivelmente, valorizar. A nossa
tradição é a miscigenação, a troca, a criatividade e, também, a antropofagia. Somos a
mistura de índios, negros e europeus.
O jeitinho brasileiro, quando usado com ternura e afeto, pode se transformar em
exemplo de cidadania surpreendente, sendo capaz de produzir solidariedade no lugar de
ausência. Mesmo na adversidade, o brasileiro consegue brilhar e manter suas tradições.
Com sua diversidade, o Brasil possui muita história para contar. Histórias que
acontecem no cotidiano, repletas de conhecimento comum. Infelizmente, esse Brasil
ainda não está na mídia, ocorrendo uma espécie de grande espiral do silêncio. O popular
não entra no gosto da elite brasileira, mas fala para todo o resto. O Brasil precisa de
novos espelhos, múltiplos, que mostrem a sua diversidade e riqueza cultural. Iremos
algum dia romper com essa lógica antiga positivista e criar novos caminhos para
realizar outras formas de Jornalismo Cultural?
Cultura e jornalismo: este é o tema da pesquisa aqui proposto. Quer se
compreender como a mídia concebe e realiza suas escolhas editoriais no campo da
cultura, levando em conta seu contexto histórico (da contemporaneidade) e cultural.
Para tanto, será traçado um breve panorama histórico do Jornalismo Cultural no Brasil,
tendo como foco o jornal O Estado de S. Paulo. Ao recontar a história do jornal, desde
1875 até os dias de hoje, veremos qual foi o espaço dedicado à cultura em sua história,
levando em conta a produção cultural de outros impressos. O destaque, no entanto, será
dado para o Caderno 2, que figura nesta dissertação, como um breve estudo de caso.
A presente pesquisa também pretende apontar outros caminhos possíveis para o
Jornalismo Cultural, que fogem da lógica da agenda, da Indústria Cultural e do
entretenimento; utilizando como exemplo o programa semanal Paratodos, da TV Brasil.
Autores como Cremilda Medina, Edgar Morin, Michel Maffesoli, entre outros,
dialogam sobre o tema.
Coloca-se no centro da página a Cultura com inicial maiúscula – com todos os
significados e possibilidades que ela abre. Assim, se fez necessário compreender o que é
11
cultura. A dissertação, dentro de suas possibilidades, pretende dar conta de sua acepção,
sua evolução histórica e de suas características gerais dentro do que se convencionou
chamar de Modernidade e de Pós-modernidade, no mundo e no Brasil. David Harvey,
Gilles Lipovetsky, Raymond Williams, Sigmund Freud, Alfredo Bosi, Renato Ortiz,
Jorge Schwarz, E. H. Gombrich, além de outros, são fundamentais para essa discussão.
Outro ponto importante ressaltado na pesquisa é o impacto da revolução
tecnológica na contemporaneidade. A Pós-modernidade acarretou uma revolução no
comportamento do indivíduo e da sociedade, em todas as esferas, como a política,
econômica, social, ambiental, tecnológica e cultural. Mas, de modo geral, ainda
tomamos conhecimento dessas transformações apenas superficialmente. Para
compreendermos o Jornalismo Cultural hoje produzido no Brasil, se faz necessário
termos uma noção dos impactos provocados pela Pós-modernidade. A pesquisa cuidará
de deixar claro o que esta autora está chamando de Modernidade e, também, de Pós-
modernidade. No campo da comunicação tal como no da cultura, essas mudanças ainda
parecem ocorrer de formas descompassadas. Sem compreender de que forma a Pós-
modernidade transformou a cultura e a comunicação, se torna difícil, e quase inócuo,
refletir sobre os significados e as possibilidades do Jornalismo Cultural na atualidade.
Mesmo diante das novas possibilidades tecnológicas que o mundo digital
oferece (suportes, plataformas, aplicativos, redes sociais etc.), que já acarretam
mudanças na dinâmica de toda mídia (televisão, jornal, rádio e revista) e transformações
evidentes no comportamento da sociedade, a revolução ainda só se dá de fato no
universo tecnológico, quase não resvala para o terreno dos conteúdos e do
conhecimento.
Em pleno século XXI, o jornalismo continua preso ao modelo positivista, seja na
forma como transmite a informação, seja na produção do seu conteúdo. Só que com um
agravante: a velocidade e a quantidade de informações produzidas é infinitamente
maior. Não importa a mídia, o conteúdo e o formato são quase sempre os mesmos,
respeitando a mesma tríade: violência/morte + economia/política +
esporte/entretenimento. Pouco espaço existe para outras formas de conteúdo, que falem
do homem e de sua complexidade no ambiente da cultura.
Isso se agrava diante da crise econômica que o jornalismo atravessa devido ao
crescimento das mídias digitais. As redações esvaziam-se. São extintos cadernos
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culturais como O Sabático, do jornal O Estado de S. Paulo, e veículos como a revista
Bravo1.
Jogado para o escanteio, o Jornalismo Cultural, por sua vez, também continua a
seguir a mesma lógica da ordem científica de matriz positivista, mas com um
ingrediente específico, no que diz respeito ao seu conteúdo: mantém-se preso aos
ditames da Indústria Cultural e do entretenimento. Geralmente, as editorias de cultura
apresentam reportagens, entrevistas, anlises e notas calcadas em agendas ou ligadas à
divulgação de um produto cultural, subordinadas à lógica da Indústria Cultural de massa
e de entretenimento, sem levar muito em conta a amplitude, diversidade e riqueza do
tema. Os subtítulos revelam esse tipo de tratamento: “Estreia hoje o filme do diretor
dinamarquês, O escritor paulistano publica novo romance, Cantor pop lança disco e faz
uma série de shows”. O que vemos nos cadernos de cultura é a cultura enlatada como
um fim em si mesmo, um bem programado para ser consumido e rapidamente
substituído por outro igual. Histórias sem profundidade e pouco conectadas com a
multiplicidade e complexidade de sentidos que a cultura oferece.
O problema principal que esta pesquisa quer investigar é a ausência de um
Jornalismo Cultural compreensivo e complexo, atento às mudanças contemporâneas de
seu objeto: a cultura. Ora, por que a cultura – que carrega em sua essência o afeto, a
imaginação, a criação, a transformação, a diversidade, a liberdade, a cidadania – é
usualmente abordada pelos meios de comunicação apenas sob uma lógica científica e
econômica, quando não cientificista e economicista?
Essa possível e necessária mudança epistemológica dentro do jornalismo deve
acontecer, justamente, no âmbito da cultura e do Jornalismo Cultural, pois é no rico
contexto da cultura que conseguimos falar de complexidade humana, afeto,
solidariedade, de cidadania. Esta pode ser considerada a grande hipótese que move toda
esta pesquisa.
O desafio da contemporaneidade é também o desafio da complexidade. Por
“complexidade” entendemos aqui o que defende Morin no conjunto de sua obra:
sentidos que se tecem em conjunto, um pensamento inclusivo, compreensivo, dialógico
em relação aos diferentes saberes, experiências, sabedorias.
1 A Revista Bravo foi criada pelo cientista político Luiz Felipe d’Avila, em 1997, para tratar dos diversos
campos da cultura. A revista foi referência no campo do Jornalismo Cultural até ser editada pela Editora
Abril. Em 2013, a Bravo encerrou suas atividades.
13
Quando, no parágrafo anterior, se usa o termo “compreensivo”, o entendimento
é o do Grupo de “Pesquisa Comunicação, Jornalismo e Epistemologia da
Compreensão”. Um pensamento compreensivo (KÜNSCH, 2008) renuncia à ideia fixa
de certezas e de verdades, ao dualismo, ao jogo fácil do certo e do errado, para pensar o
conhecimento como construção social de sentidos, como diálogo entre distintos
conhecimentos e saberes, como inclusão – razão pela qual os termos complexidade e
compreensão muito se aproximam nos diversos trabalhos gerados no interior desse
Grupo de Pesquisa, incluindo algumas dissertações de Mestrado.
O presente estudo não pretende dar conta de um levantamento detalhado do
Jornalismo Cultural, hoje, no Brasil. Para abordar como a mídia concebe e realiza suas
escolhas editoriais no campo da cultura, elegeu-se, como estudo de caso, o jornal O
Estado de S. Paulo, particularmente o Caderno 2, concentrando a analise nas edições
dominicais de agosto de 2014. Foram examinadas todas as reportagens, matérias,
notícias, notas, entrevistas publicadas aos domingos nesse mês. Para uma investigação
mais aprofundada, foram selecionados quatro textos que estão indexados no anexo desta
dissertação.
A escolha de analisar o Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo não foi
aleatória. O Estado é um dos jornais com maior circulação em São Paulo. Segundo o
Instituto Verificador de Circulação (IVC), em 2014, o jornal saiu com uma média de
169 mil exemplares diários em abril, se consolidando como o líder em circulação no
Estado de São Paulo. A Folha de S.Paulo, principal concorrente, teve no mesmo
período, a circulação média diária de 133 mil exemplares2. Na comparação nacional, O
Estado de S. Paulo circulou com uma média diária de 237.901 exemplares e ficou atrás
da Folha, que saiu com 351.745 exemplares na média diária3. Diante da projeção do
jornal O Estado de S. Paulo, tanto em São Paulo como no Brasil, fica evidente a
importância do diário como exemplo de jornalismo praticado.
Para apontar outros caminhos possíveis para o Jornalismo Cultural, que fogem à
lógica da agenda, da indústria cultural e do entretenimento, a pesquisa recorda, de
maneira geral, duas reportagens – Projeto Azu e Extramuros – produzidas para a revista
semanal Paratodos, da TV Brasil, televisão pública nacional. Criado em 2009, o
Paratodos é um programa de meia hora, exibido aos sábados, que foca a cultura
popular, de periferia e desconhecida do grande público.
2 Disponível em <http://goo.gl/MG9lTL>. Acessado em 20/06/2015.
3 Disponível em <http://goo.gl/ipoGUH>. Acessado em 20/06/2015.
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No campo específico do estudo sobre a cultura, ou seja, para compreender a
cultura em sua acepção, evolução histórica e características gerais dentro da
Modernidade e da Pós-modernidade, trabalha-se basicamente com as concepções de
David Harvey, Gilles Lipovetsky, Raymond Willian, Terry Eagleton, Sigmund Freud,
Alfredo Bosi, Renato Janine Ribeiro e E. H. Gombrich.
O primeiro capítulo da pesquisa consiste, assim, em apresentar algumas
reflexões sobre o que se entende por cultura: sua acepção, evolução histórica e
características gerais na Modernidade e na Pós-modernidade. E tenta, por sua vez, dar
conta da seguinte pergunta: o que é cultura? Alguns autores como Renato Janine
Ribeiro, Alfredo Bosi, Raymond Williams, David Harvey, Gilles Lipovetsky, Adorno,
Gombrich, Mario Vargas Llosa, entre outros, dialogam sobre essa questão, auxiliando
na compreensão do tema.
Renato Janine Ribeiro, em Filosofia e Cultura (2011), contribui com a defesa da
cultura como espaço da experiência, liberdade e cidadania. Para compreender a acepção
de cultura, usaremos diversos autores, com destaque para três deles: Alfredo Bosi, em
Dialética da Colonização (2013); Terry Eagleton, em A ideia de cultura (2013); e
Raymond Williams, em Cultura e sociedade (1958). Para falar da evolução histórica da
cultura e suas características gerais dentro da Modernidade e da Pós-modernidade,
Gilles Lipovetsky, em A Cultura-Mundo (2013), entra com as três etapas da cultura na
história da humanidade: 1ª etapa – ligada à religião; 2ª etapa – a modernidade; e 3ª etapa
– a pós-modernidade. David Harvey, em A Condição Pós-moderna (2013), contribui
com o detalhamento da passagem da modernidade cultural para a pós-modernidade
cultural. E.H. Gombrich, também exemplifica essas modificações no campo das artes
plásticas, em A história da Arte (1999).
O segundo capítulo segue com a pesquisa sobre a cultura (acepção, evolução
histórica, características gerais etc.), só que centrada no contexto brasileiro.
Diferentemente do primeiro capítulo, este pretende apresentar características gerais da
cultura no Brasil, pincelando alguns momentos históricos, como, por exemplo, o
Modernismo e a ditadura. Para trazer essa discussão para o campo da cultura brasileira,
teremos alguns autores como apoio. Renato Ortiz, em Cultura brasileira e identidade
nacional (1985) é quem cria o norte do capítulo propondo de que forma se dá a
construção da identidade nacional e da cultura brasileira. Jorge Schwartz, em Da
Antropofagia a Brasília (2002), dá o caminho das pedras sobre a trajetória do
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Modernismo entre nós, tomando como baliza inicial a Semana de Arte Moderna de
1922 e, como auge, a construção do plano de Brasília.
O terceiro capítulo pretende traçar um panorama histórico geral do Jornalismo
Cultural praticado no jornal O Estado de S. Paulo, mostrando a evolução histórica
dentro do impresso: os rodapés literários, os suplementos de cultura e, por fim, os
cadernos de cultura. Mas o destaque será dado à produção específica do Caderno 2
durante o mês de agosto de 2014. Neste, investigaremos de que forma o Caderno 2
concebe e realiza suas escolhas editorais. Por se tratar de um caderno diário, decidiu-se
reduzir o escopo de informações a serem investigadas. Foram analisadas todas as
reportagens, matérias, notícias, crônicas, notas, entrevistas publicadas nos cinco
cadernos dominicais que circularam no mês de agosto de 2014.
O domingo foi escolhido porque, em tese, deveria ser o dia no qual o caderno
seria composto por textos reflexivos, permeado por reportagens extensas, entrevistas,
resenhas, além de artigos. O caderno de domingo é a edição da semana que mais se
aproxima do formato de uma revista semanal, pois, teoricamente possui um tempo de
elaboração maior e as reportagens publicadas, geralmente, são fechadas com
antecedência. Algo que não ocorre nas publicações durante a semana – que precisam
estar atentas ao factual e à agenda cultural. Historicamente, na imprensa brasileira, o
domingo era o dia no qual os suplementos de cultura circulavam. Afinal, é o dia em que
o público tem mais tempo para ler e enfrentar uma leitura mais densa, que exige do
leitor maior concentração.
Num primeiro momento, foi realizado um estudo quantitativo e descritivo sobre
as cinco edições dominicais, mostrando qual tipo de cultura atravessa o caderno. Num
segundo momento, uma análise interpretativa tentou dar conta de seu conteúdo: o que o
Caderno 2 está falando sobre cultura? Que conteúdos geralmente aparecem nesse
caderno?
Ainda nesse capítulo, o presente estudo pretende mostrar que há outros
caminhos possíveis para o Jornalismo Cultural, de forma complexa e compreensiva,
utilizando como exemplo duas reportagens do programa Paratodos, da TV Brasil. Na
visão desta pesquisadora, essas reportagens do programa analisadas no trabalho, fogem
à lógica da agenda, da indústria cultural e do entretenimento. Foram escolhidas as
reportagens: Extra Muros e Projeto Azu, de minha autoria. Como produtora desse
conteúdo, a interpretação será, mais do que qualquer coisa, um ensaio, destacando as
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minhas escolhas editoriais e de conteúdo para, assim, tentar delinear o que se
compreende aqui como outras vias para o Jornalismo Cultural.
No campo do estudo sobre a reportagem será usada como ponto de partida da
obra A arte de tecer o presente: narrativa e cotidiano (2003), de Cremilda Medina. Para
iluminar distintos aspectos da reportagem (questões como complexidade, compreensão,
histórias humanas etc.), além dos autores já citados, serão usadas, inicialmente, as
obras: A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento (2003), de
Edgar Morin; Introdução a uma ciência pós-moderna (1989) e A filosofia à venda, a
douta ignorância e a aposta de Pascal (2008), de Boaventura de Sousa Santos; O
conhecimento comum (1985), de Michel Maffesoli; Dialética do esclarecimento (2006),
de Theodor Adorno e Max Horkheimer; Mágica e Técnica, Arte e Política (1985), de
Walter Benjamin; A cultura-mundo (2013), de Gilles Lipovetsky e Jean Serroy;
Civilização do espetáculo (2012), de Mario Vargas Llosa; A cultura no mundo líquido
moderno (2011), de Zygmunt Bauman.
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CAPÍTULO 1
UMA CONSTELAÇÃO DE CULTURAS
Quando se fala sobre cultura na contemporaneidade, as reflexões que despontam
apresentam sentimentos dos mais diversos. Ora violentos e catastróficos, ora
apaixonados e otimistas. De qualquer forma, há um sentimento comum, recorrente, nas
interpretações dos grandes intelectuais do século XXI: o da desorientação. Pode-se
também acrescentar a estupefação e a incerteza. Ninguém sabe, ao certo, o que é cultura
hoje ou o que será dela em breve. O historiador Eric Hobsbawn desabafa em Tempos
fraturados: cultura e sociedade no século XX:
Já não compreendemos o atual dilúvio criativo que inunda o globo de
imagens, sons e palavras, nem sabemos lidar com ele, dilúvio que quase
certamente se tornará incontrolável tanto no espaço como no ciberespaço
(HOBSBAWN, 2013, p. 15).
Hobsbawn se refere a uma época da história que perdeu o rumo e, que nos
primeiros anos do novo milênio, aguarda desgovernada e desorientada um futuro
irreconhecível.
Estamos perdidos no meio de tantas solicitações, informações e publicidades que
clamam por sua porção de cultura, que fica no ar a pergunta: como compreender a
cultura hoje? É o filme norte-americano em cartaz em 200 salas do Cinemark? Ou ainda
o best-seller 50 tons de cinza?
A contemporaneidade ou pós-modernidade é marcada por uma constelação de
culturas. Se por um lado, os contornos nítidos entre alta cultura / baixa cultura, cultura
antropológica / cultura estética, cultura material / cultura ideológica desapareceram; por
outro lado, uma constelação de culturas emerge: cultura de mercado, cultura de massa,
cultura de marca, cultura midiática, cultura de redes, cultura tecnológica, cultura do
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indivíduo, cultura de entretenimento, cultura periférica, cultura da moda, cultura dos
jovens, etc.
O século XXI inaugura um mundo com a ênfase nas novas tecnologias e seu
desdobramento virtual. O impacto tecnológico já é amplamente discutido e, claramente
sentido, em todas as esferas da sociedade. No que diz respeito à cultura, a combinação
de novas tecnologias e o consumo de massa criou um cenário cultural mercantil. Há
uma mercantilização da cultura e, ao mesmo tempo, uma culturalização das
mercadorias. Hoje cultura virou sinônimo de consumo. Ser culto é ser consumidor. As
trocas entre os indivíduos assumem, de certa forma, esse caráter de relação mercantil. E
a oferta de produtos culturais jamais obteve, ao longo de sua história, essa magnitude.
Obras padronizadas, alienantes, efêmeras e perecíveis, feitas para serem consumidas e
descartadas, movidas pelo “eterno retorno” da novidade. São milhares de livros, filmes
e músicas que proliferam diariamente num mercado globalizado.
Como enfatiza Zygmunt Bauman em A cultura no mundo líquido moderno:
A cultura hoje se assemelha a uma das seções de um mundo moldado como
uma gigantesca loja de departamentos em que vivem, acima de tudo, pessoas
transformadas em consumidores. Tal como nas outras seções dessa megastore,
as prateleiras estão lotadas de atrações trocadas todos os dias, e os balcões são
enfeitados com as últimas promoções, as quais irão desaparecer tão
instantaneamente quanto as novidades em processo de envelhecimento que eles
anunciam. (...) Em suma, a cultura na modernidade líquida não tem um
“populacho” a ser esclarecido e dignificado; tem, contudo, clientes a seduzir. A
sedução, em contraste com o esclarecimento e a dignificação, não é uma tarefa
única, que um dia se completa, mas uma atividade com o fim em aberto
(BAUMAN, 2013, p.21).
Diante dessa abundância de produtos, da estimulação hedonista e do
enfraquecimento de controles coletivos, o indivíduo se encontra desorientado e perdido;
sem armas necessárias para compreender o mundo em que vive; o que é e o que não é
cultura. O sentimento de desorientação acompanha a cultura na contemporaneidade,
como lembra Bauman:
Hoje a cultura consiste em ofertas, e não em proibições; em proposições, não em
normas. (...) Se há uma coisa que a cultura para a qual a cultura hoje desempenha o
19
papel de homeostato, esta não é a conservação da atual, mas a poderosa demanda
por mudança (embora, ao contrário da fase iluminista, se trate de uma mudança sem
direção, ou sem um rumo estabelecido de antemão). Seria possível dizer que ela
serve nem tanto às estratificações e divisões da sociedade, mas a um mercado de
consumo orientado para a rotatividade (BAUMAN, 2013, p.18).
Talvez essa seja a chave para enfrentarmos esse descompasso. De nada adianta
vociferar apenas contra o consumo, o mercado, a indústria, etc., mas, talvez, um
caminho possível para reencontrarmos o norte seja justamente buscar a compreensão e
resgatar a complexidade que a palavra cultura carrega.
1.1. Cultura como o espaço da liberdade
Não desprezem a sensibilidade de ninguém. A sensibilidade de cada um é o
seu gênio (BAUDELAIRE, 1973, p. 340).
Falar em liberdade é, principalmente, falar sobre o sujeito. Mas, na realidade,
pode-se pensar em liberdade sobre diversos prismas: biológico, psicológico, social,
político, econômico, etc. O tema da liberdade4 foi explorado profundamente pela a
filosofia desde a Antiguidade até os dias de hoje. Não é o que se pretende neste
momento. Aqui, pensaremos a liberdade sobre a ótica cultural: a cultura como o espaço
da liberdade.
No artigo A cultura liberta, o filósofo e Ex-ministro da Educação (entre abril e
setembro de 2015), Renato Janine Ribeiro, correlaciona cultura e experiência. Na base
de seu pensamento, a cultura é transformadora quando vivenciada pelo sujeito. É a
experiência, no sentido de ser uma obra aberta, algo que desperta a criatividade5 e o
fazer dentro do sujeito: “ Gosto dessa ideia de cultura abrindo uma experiência cultural
que amplia os horizontes das pessoas. Isso lhes proporciona mais liberdade” (RIBEIRO,
2011, p. 465).
4 Segundo Kant (Dicionário Houaiss), liberdade é a potencialidade de escolha autônoma, independente de
quaisquer condições e limites, por meio da qual o ser humano realiza a plena autodeterminação,
constituindo a si mesmo e ao mundo que o cerca. 5 Segundo o Dicionário Houaiss, criatividade é inventividade, inteligência e talento, natos ou adquiridos,
para criar, inventar, inovar, quer no campo artístico, quer no científico, esportivo etc. // imaginar,
inventar, produzir (algo original, novo ou de cunho científico, utilitário).
20
Cultura como transformação e liberdade. Renato Janine enfatiza que não importa
tanto a qualidade da obra cultural em questão para vivenciar uma experiência
transformadora:
Isso não quer dizer que a obra cultural que abre mais horizontes seja
necessariamente a melhor, seja uma obra do cânone, a mais conhecida, mais
famosa. Para uma pessoa, o que pode abrir o espírito pode ser uma obra não tão
boa, mas que, naquele momento, a sensibiliza de tal maneira que provoca uma
mudança (RIBEIRO, 2011, p. 465).
Podemos intuir que o autor esteja também agregando o sentido da igualdade6 ao
da liberdade. Sempre houve, porém, a questão da cultura estar cindida entre classes; a
alta e a baixa, desde a Idade Média até a Modernidade. Há o espaço culto e erudito – as
salas de concerto, de teatro, as galerias –, onde a classe alta desfruta da experiência, e o
espaço popular – essencialmente a rua, os concertos ao ar livre, o circo, o teatro
mambembe, etc. - que a classe baixa pode frequentar, devido a sua condição menos
abastada.
Hoje é possível perceber que esta cisão já não é mais tão nítida. Os espaços
cultos estão mais democráticos. Só para citar um exemplo, a Orquestra Sinfônica do
Estado de São Paulo, OSESP, realiza concertos gratuitos em sua sede na Sala São
Paulo, no centro da capital paulista.
O ponto essencial que Renato Janine Ribeiro denota é que, mesmo com a
distinção entre classes, a cultura pode ser o espaço da criatividade, da igualdade e da
liberdade para qualquer indivíduo. É por isso que a experiência cultural independe do
seu valor formal estético: “A cultura é importante na medida em que abre horizontes
para as pessoas” (RIBEIRO, 2011, p. 466).
Ela fornece estilos de sentimento e pensamento que ampliam as possibilidades
de escolha e, logo, aumentam a possibilidade de liberdade.
Para exemplificar a ideia de cultura como o espaço da liberdade e da
transformação, basta pensar na atuação de ONGS que utilizam a cultura como
construção de cidadania. Exemplo conhecido, porém funcional, é do Instituto
6 Segundo o Dic. Houassis, igualdade é princípio segundo o qual todos os homens são submetidos à lei e
gozam dos mesmos direitos e obrigações.
21
Baccarelli7, uma associação civil sem fins lucrativos, que atende mais de 1300 crianças
e jovens em programas socioculturais que oferecem formação musical e artística de alto
nível. Os cursos acabam por “abrir horizontes para esses jovens”, ampliando as escolhas
que representam oportunidades de profissionalização na música. É em Heliópolis, uma
das maiores favelas da cidade de São Paulo8 que o Instituto tem sua sede e atua desde
1996.
Ali acontecem aulas individuais e em grupos, de teoria e técnica; além de prática
de conjunto em orquestras, corais e grupos de câmara. E os alunos podem ir da
musicalização à especialização. Muitas crianças e adolescentes tiveram a liberdade de
atuação ampliada através das experiências culturais que o Instituto Bacarrelli oferece. E
muitos deles escolheram o caminho da música como transformação social.
Fernando Venturelli é um deles. Com 14 anos iniciou seus estudos no Instituto.
E, depois de quatro anos em Heliópolis, foi convidado a participar de um concurso
realizado pela Associação dos Artistas Internacionais, no Carnegie Hall, de Nova York,
do qual saiu vencedor. Ele era o único músico brasileiro disputando o prêmio. De fato, a
experiência do Baccarelli ampliou de forma extraordinária o horizonte desse jovem.
Evidentemente, nem todos os adolescentes que passaram ou passarão pelo o Instituto
Baccarelli terão a mesma vocação de Fernando Venturelli.
Para estes, a cultura como educação abre portas e cria outros caminhos como a
criatividade. Tal como afirma Renato Janine Ribeiro:
A cultura pode ajudar muito, porque lida com a criação. Quando exercitamos
a nossa criatividade – seja desenhando, cantando, filmando, etc. -, temos
maior facilidade para encontrar saídas para situações que consideramos
adversas” (RIBEIRO, 2011, p. 468).
Na mesma direção, Marx aponta para a criatividade como dimensão essencial da
própria condição humana. Como lembra Gerd Bornheim, no artigo As medidas da
liberdade, que faz parte do livro Ética, organizado por Adauto Novaes:
7 Um dos fundadores e mantenedores do Instituto Baccareli foi o empresário Antônio Ermírio de Moraes
(1928 -2014) que chegou a escrever uma peça chamada “Acorda Brasil”, criticando a educação no país e
contando a história da orquestra e do Instituto, considerados por ele uma alternativa na formação de
crianças e jovens. A peça virou o filme “Acorda Brasil”, 2014, com o ator Lázaro Ramos, produzido pela
Gullane Filmes. 8 Heliópolis possui aproximadamente 1 milhão de metros quadrados, localizada ao sul do município de
São Paulo, região do Sacomã, a 25 Km do centro da cidade. Segundo pesquisa da UNAS (União de
Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis) de 2013, vivem na região cerca de 200 mil
habitantes.
22
Marx diz em algum lugar que todo operário deveria ser um artista.
Evidentemente, mas nem tanto, a afirmação não pretende que todo o
trabalhador deva dedicar-se à arte de tocar o violino. O que está em causa,
parece-me, é bem outra coisa, que nem é muito mais importante: a
essencialidade é a mesma, e tudo se concentra no desenvolvimento da
criatividade, não somente do trabalhador, mas de toda pessoa inserida em seu
contexto social (Borhheim, 2002:54).
Ainda que Instituto Bacarreli não transforme esses jovens, em situação de
vulnerabilidade social, em exímios músicos aptos para tocar nas Orquestras mais
renomadas do mundo; a experiência cultural provida neste espaço oferece bagagem,
conhecimento e armas para enfrentar as adversidades da vida em sociedade. E cria
condições para a liberdade de escolha.
A relação da cultura com a democracia é curiosa porque é uma relação de mão
dupla. Por um lado, para que a população tenha acesso à cultura, é preciso que
haja democracia. A cultura é um dos principais alimentos da democracia.
Pessoas incultas terão dificuldades para encontrar seus caminhos, tanto
políticos como pessoais. A cultura faz crescer as pessoas. (RIBEIRO, 2011, p.
473).
A cultura tem, em sua essência, a potência necessária para transformar as
pessoas. No final de seu artigo, o autor enfatiza mais uma vez, a importância da cultura
como construção de cidadania e justiça social:
Acredito que a cultura pode ajudar muito o Brasil a construir uma sociedade
melhor. (...) Cada um de nós vai compor isso (a vida) mais ou menos a seu
gosto e dentro de suas possibilidades. Nossa época exige muito mais
criatividade do que as anteriores. Tudo o que consiga ligar criatividade, que é
a praia da cultura, com justiça social e, portanto, redução da desigualdade,
redução do sofrimento humano, é algo que tem e precisa ter futuro
(RIBEIRO, 2011, p. 484).
1.2. Noção de cultura
Sigmund Freud escreveu O Mal-Estar na Civilização, em 1929, onde aponta e
relaciona, em linhas gerais, os conflitos entre o indivíduo e a sociedade e, a evolução da
cultura. Mesmo tratando-se de uma teoria psicanalítica, O Mal-Estar na Civilização
(2011) serviu de arcabouço para diversos trabalhos teóricos de intelectuais e filósofos
dos séculos XX e XXI. Encontramos ecos em obras como A Sociedade da Decepção de
Gilles Lipovetsky, A Cultura-Mundo (2013) de Lipovetsky e Jean Serroy, A Civilização
do Espetáculo (2012), de Mario Vargas Llosa e A Condição Pós-Moderna (2013). Com
23
as quais iremos trabalhar. Para explicar a evolução da cultura na civilização, Freud
escreve a seguinte frase, com a qual gostaria de começar:
“A fome e o amor” sustentam a máquina do mundo, forneceu-me o ponto de partida.
A fome poderia representar os instintos que querem manter o ser individual,
enquanto o amor procura pelos objetos; sua função principal, favorecida de toda
maneira pela natureza, é a conservação da espécie (FREUD, 2011, p.63).
Esse é o ponto de partida da dissertação e, talvez, tenha sido também o princípio
da humanidade. Há cerca de onze mil anos, na alvorada da agricultura, quando os povos
abandonavam gradualmente a caça e a coleta por uma vida fixa, baseada no cultivo da
terra, houve uma transformação profunda na sociedade. Com a vida mais estabilizada,
nossos ancestrais tiveram tempo, ocioso, para refletir e criar. Havia um povo chamado
Natufianos, que habitavam uma região onde agora estão Israel, os territórios palestinos,
o Líbano e a Síria (além de toda a violência desmedida). E foi dentro de uma caverna,
no deserto da Judeia, próximo a Belém, que dois arqueólogos encontraram uma pequena
escultura conhecida como a Estatueta dos amantes de Ain Sakhri.
A escultura encanta pela delicadeza do enlace entre os dois amantes. Mais do
que isso, diz respeito à predisposição, na origem do homem, de sua necessidade de
pensar e criar. O ócio primordial foi essencial para desenvolver novas relações sociais,
para contemplar as mudanças da vida e, para criar arte. A ternura das figuras abraçadas
não sugere, simbolicamente falando, apenas uma potência reprodutiva ou a ideia de
fertilidade da natureza, mas, também, o amor – ou algo que podemos denominar de
sentimento. Os homens na alvorada da agricultura se fixaram em um espaço,
começaram a cultivar a terra, a família e o amor. A Estatueta dos amantes de Ain Sakhri
fala como documento dessa sociedade em profunda transformação, mas também como
obra de arte. Eis o princípio de cultura.
24
Figura 1 - Estatueta dos amantes de Ain Sakhri, 9000 A.C, Acervo British Museum.
O conceito de cultura, etimologicamente falando, é um conceito derivado do de
natureza. Um de seus significados originais é a lavoura ou cultivo agrícola, ou ainda, o
cultivo de algo que cresce naturalmente.
Em Dialética da Colonização (1992), Alfredo Bosi, lembra que colônia, culto e
cultura derivam do mesmo verbo latino: colo, que significou eu moro, eu ocupo a terra,
eu cultivo o campo. Cultura, nesse sentido, significa uma atividade completamente
material. Demorou muito tempo até que a palavra viesse a denotar questões do espírito.
A raiz latina da palavra cultura é colere; e pode significar muitas coisas, desde cultivar,
habitar, adorar e proteger. Mas colere também desembocou em cultus, que como
explica Bosi: “É sinal de que a sociedade que produziu o seu alimento já tem memória.
(...) Não apenas o trato da terra como também o culto dos mortos, forma primeira de
religião como lembrança” (BOSI, 1992, p. 13).
Para o teórico inglês Terry Eagleton, em A ideia de cultura (2003), essa
mudança no sentido etimológico da palavra cultura denota efetivamente uma mudança
histórica da humanidade:
A palavra, assim, mapeia em seu desdobramento semântico a mudança
histórica da humanidade da existência rural para a urbana, da criação de porcos
a Picasso, do lavrar o solo à divisão do átomo. (...) Se a palavra “cultura”
guarda em si os resquícios de uma transição histórica de grande importância,
ela também codifica várias questões filosóficas fundamentais. Neste único
termo, entram indistintamente em foco questões de liberdade e determinismo, o
fazer e o sofrer, mudança e identidade, o dado e o criado. Se cultura significa
cultivo, um cuidar, que é ativo, daquilo que cresce naturalmente, o termo
sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao
25
mundo e o que o mundo nos faz. É uma noção “realista”, no sentido
epistemológico, já que implica a existência de uma natureza ou matéria prima
além de nós; mas também uma dimensão construtivista, já que essa matéria
prima precisa ser elaborada numa forma humanamente significativa. Assim
trata-se menos de uma questão de desconstruir a oposição entre cultura e
natureza do que de reconhecer que o termo cultura já é uma desconstrução
(EAGLETON, 2003, p. 10,11).
Eagleton fala de uma dialética entre natureza e cultura, entre “o cru e cozido” de
Lévi-Strauss9. O conceito cunhado pelo antropólogo francês diz respeito à existência de
uma “unidade profunda” da mitologia ameríndia. Em Minhas Palavras (1986), Lévi-
Strauss diz: “Os mitos selecionados referiam-se direta ou indiretamente à invenção do
fogo e, portanto, da cozinha, enquanto símbolo, da passagem da natureza à cultura”
(LEVI-STRAUSS, 1986, p.51). Ou ainda poder-se-ia dizer que essa dialética entre
natureza e cultura diz respeito ao “crescer e fazer” e ao “o orgânico e o mecânico”.
Partindo desse conflito, encontramos a dimensão simbólica da realidade – que advêm
dessa capacidade peculiar à espécie humana de criar símbolos – conceito central da
Antropologia. O termo “cultura” foi cunhado pela primeira vez, dentro da Antropologia,
por Edward B. Taylor, na clássica obra Primitive Culture10
(1871, p. 1):
Cultura é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral,
lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo ser
humano como um membro da sociedade”. Ou seja, a cultura pode ser resumida
como esse complexo simbólico de valores, conhecimentos, costumes, crenças e
práticas que constituem o modo de vida de um grupo específico.
Porém, o conceito de cultura gerou discussões acaloradas nos últimos 100 anos,
sem muito consenso. Não é o intuito desta pesquisa adentrar na discussão. Pelo
contrário, apenas destacaremos algumas outras concepções, sob o viés antropológico,
que contribuem para aquilo que aqui se compreende como cultura. Depois de Taylor, há
contribuição do antropólogo norte-americano Leslie White que especifica a relação
entre a cultura e a capacidade do homem de gerar símbolos:
Todo comportamento humano se origina no uso de símbolos. Foi o símbolo
que transformou nossos ancestrais antropoides em homens e fê-los humanos.
Todas as civilizações se espalharam e perpetuaram somente pelo uso de
símbolos. Toda cultura depende de símbolos. É o exercício da faculdade de
simbolização que cria a cultura e o uso de símbolos que torna possível a sua
perpetuação. Sem o símbolo não haveria cultura, e o homem seria apenas
animal, não um ser humano. O comportamento humano é o comportamento
9 “O Cru e o cozido” é um ensaio de Claude Lévi-Strauss, que faz parte do livro Mitológicas.
10 Disponível em <https://goo.gl/8IEZdF>. Acessado em 10/01/2015.
26
simbólico. Uma criança do gênero Homo torna-se humana somente quando é
introduzida e participa da ordem de fenômenos super orgânicos que é a cultura.
E a chave deste mundo, e o meio de participação nele, é o símbolo (White apud
LARAIA, 2013, p. 55).
O antropólogo argentino Nestor García Canclini, em As culturas populares no
capitalismo (1982), reforça ainda a importância dessa dimensão simbólica dentro do
sistema social:
Preferimos restringir o uso do termo cultura para a produção de fenômenos que
contribuem, mediante a representação ou reelaboração simbólica das estruturas
materiais, para a compreensão, reprodução ou transformação do sistema social,
ou seja, a cultura diz respeito a todas as práticas e instituições dedicadas à
administração, renovação e reestruturação do sentido. (...) A cultura não apenas
representa a sociedade; cumpre também, dentro das necessidades de produção
do sentido, a função de reelaborar as estruturas sociais e imaginar outras novas.
Além de representar as relações de produção, contribui para a sua
representação, transformação e para a criação de outras relações (CANCLINI,
1982, p. 29).
O teórico galês Raymond Williams (1921-1988) foi um dos principais nomes na
crítica cultural da “New Left” inglesa do pós-guerra. Na obra Cultura e Sociedade
1780-1950, publicado em 1958, o autor tenta demonstrar como se deu o
desenvolvimento do conceito cultura até a ocasião de sua publicação; sinalizando que
“cultura é um processo”. Talvez, uma de suas maiores contribuições tenha sido a de
elencar as mudanças de sentido que a palavra cultura sofreu ao longo da história da
humanidade. Raymond apresenta quatro significados distintos de cultura: “como uma
disposição mental individual; como o estado de desenvolvimento intelectual de toda
uma sociedade; como as artes; e como o modo de vida total de um grupo de pessoas”
(WILLIAMS, 1969, p. 16).
Para exemplificar melhor estes quatro significados distintos de cultura,
utilizaremos os conceitos de Terry Eagleton (2003, p. 15), que foi aluno de Raymond.
Sobre cultura como uma disposição mental individual, Eagleton diz:
Uma vez que a cultura seja entendida como autocultura, ela postula uma
dualidade entre faculdades superiores e inferiores, vontade e desejo, razão e
paixão, dualidade que ela, então, propõe-se imediatamente a superar. Como
cultura, a palavra natureza significa tanto o que está a nossa volta como o que
está dentro de nós (...). A cultura, assim, é uma questão de auto superação
tanto quanto de auto realização. Se ela celebra o eu, ao mesmo tempo
também o disciplina, estética e asceticamente. A natureza humana não é o
mesmo que uma plantação de beterrabas, mas, como uma plantação, precisa
ser cultivada – de modo que, assim como a palavra cultura nos transfere do
natural para o espiritual, também sugere uma afinidade entre eles.
27
Sobre o estado de desenvolvimento intelectual de toda uma sociedade, que
também pode ser compreendido como a relação entre a cultura e a sociedade, o filósofo
britânico compreende:
O que a cultura, faz, então, é destilar nossa humanidade comum a partir de
nossos eus políticos sectários, resgatando dos sentidos o espírito, arrebatando
do temporal o imutável, e arrancando da diversidade a unidade. Ela designa
uma espécie de autodivisão assim como uma autocura pela qual nossos eus
rebeldes e terrestres não são abolidos, mas refinados valendo-se de dentro por
uma espécie mais ideal de humanidade. (...) A cultura é uma forma de sujeito
universal agindo dentro de cada um de nós, exatamente como o Estado é a
presença do universal dentro do âmbito particularista da sociedade civil. (...)
É, assim, tanto pessoal como social: a cultura é uma questão do
desenvolvimento total e harmonioso da personalidade, mas ninguém pode
realizar isso isolado. Com efeito, é o despontar do reconhecimento de que
isso não é possível que ajuda a deslocar cultura de seu significado individual
para o social. A cultura exige certas condições sociais, e já que essas
condições sociais podem envolver o Estado, pode ser que ela também tenha
uma dimensão politica. A cultura vai de mãos dadas com o intercurso social
(EAGLETON, 2003, p. 18,21).
Para o autor, a cultura como arte representa uma gradual especialização estética:
“Cultura, nesse sentido, pode incluir atividade intelectual em geral (ciência, filosofia,
erudição etc.), ou ser ainda mais limitada a atividades supostamente mais imaginativas
como a música, a pintura e a literatura” (EAGLETON, 2003, p. 29).
Uma das questões mais caras à antropologia, cujo debate é moderno,
concentrado nos séculos XIX e XX, recai sobre a cultura como o modo de vida de um
grupo de pessoas. E esse modo de vida pode se referir sobre culturas de diferentes
nações e períodos, bem como sobre diferentes culturas sociais e econômicas dentro de
uma mesma nação. Eagleton afirma (2003, p. 43):
É com o desenvolvimento do colonialismo do século XIX que o significado
antropológico de cultura como um modo de vida singular começa a ganhar
terreno. E o modo de vida em questão é geralmente aquele dos incivilizados.
Como já vimos, cultura como civilidade é o oposto de barbarismo, mas
cultura como um modo de vida pode ser idêntica a ele. Herder11
, segundo
Geoffrey Hartman, foi o primeiro a usar a palavra cultura “no moderno
sentido de uma cultura de identidade: um modo de vida sociável, populista e
tradicional, caracterizado por uma qualidade que tudo permeia e faz uma
pessoa se sentir enraizada ou em casa”.
11
Johann Gottfried von Herder (1744 -1803) foi um filósofo e escritor alemão. Escreveu Idéias Para
Uma Filosofia da História da Humanidade (1784-91).
28
A cultura não significa apenas uma narrativa grandiosa e unilinear da
humanidade em seu todo; mas uma diversidade de formas de vidas específicas: cada
uma com suas leis evolutivas próprias e peculiares.
Como veremos ao longo desse trabalho, o conceito de cultura é demasiado
complexo, um mosaico, em constante evolução histórica, aberto, ilimitado e poroso. Por
isso, em sua essência, é possível observar um leque infinito de proposições e conceitos;
uma sobreposição de sentidos - ora semelhantes, ora conflitantes que, em muitos
momentos, tornam a palavra cultura, para dizer no mínimo, contraditória e antagônica.
A cultura é um eterno espaço de negociação simbólica, de conflito, mas também de
compartilhamento e afeto.
Para além dos já citados, falta ainda um sentido de cultura importante, que
denota o seu caráter inconsciente e não planejável, algo que escapa a razão, ou como
Raymond Williams (1969, p. 334) afirma:
Uma cultura, enquanto está sendo vivida, é sempre em parte desconhecida,
em parte irrealizada. A construção de uma comunidade é sempre uma
exploração, pois a consciência não pode preceder a criação, e não existe
nenhuma fórmula para uma experiência desconhecida. Uma boa comunidade,
uma cultura viva, irá, por causa disso, não apenas dar espaço para, mas
encorajar ativamente, todo e qualquer um que possa contribuir para o avanço
em consciência que é a necessidade comum... Precisamos considerar com
toda a atenção qualquer afeto, qualquer valor, pois não conhecemos o futuro,
pode ser que jamais estejamos certos do que pode enriquecê-lo.
A cultura, para Williams, nunca pode ser trazida completamente para a
consciência. Se a cultura é alguma coisa constitutivamente ilimitada e aberta, não pode
ser totalizada. Para o crítico, a cultura é uma rede de significados e atividades
compartilhados jamais autoconscientes como um todo; mas crescendo em direção ao
“avanço da consciência”. Sobre o caráter não planejável da cultura, Williams
(1969:335) diz:
Temos que planejar o que pode ser planejado, segundo a nossa decisão
comum. Mas a ênfase da ideia de cultura está certa quando nos lembra que
uma cultura, essencialmente não é planejável. Temos que garantir os meios
de vida e os meios da comunidade. Mas o que depois será vivido através
desses meios não podemos saber ou dizer. A ideia de cultura está baseada
numa metáfora: o cultivo que cresce naturalmente. E com efeito, é no
crescimento, como metáfora e como fato, que a ênfase final deve ser
colocada.
Pensando em seu caráter aberto, ilimitado e também subjetivo, é possível
recordar a sugestão generalista de cultura criado pelo poeta norte-americano T.S. Eliot:
29
“podemos até descrever a cultura simplesmente como aquilo que torna a vida digna de
ser vivida”. (ELIOT, 2013, p. 41). Terry Eagleton (2003) brinca com essa proposição de
Eliot e sugere que a cultura é, sobretudo, o lugar do afeto:
A cultura não é unicamente aquilo de que vivemos. Ela também é, em grande
medida, aquilo para o que vivemos. Afeto, relacionamento, memória,
parentesco, lugar, comunidade, satisfação emocional, prazer intelectual, um
sentido de significado último: tudo isso está mais próximo, para a maioria de
nós, do que cartas de direitos humanos ou tratados de comércio.
(EAGLETON, 2003, p. 184).
1.3. Evolução histórica da cultura
1.3.1. Cultura primitiva e religiosa: Antiguidade e Idade Média
Ao longo da história da humanidade, a ideia de cultura teve diversos significados
e formas. Mas é quase indiscutível que desde Antiguidade e as primeiras civilizações,
tais como os babilônios e os egípcios, até o processo da secularização que separou a
Igreja católica do Estado (séculos XIX-XVI), a cultura era uma conceito inseparável da
ideia de religião. É durante esse longo período que os filósofos franceses Gilles
Lipovetsky e Jean Serroy (2013) chamam da primeira etapa da cultura da humanidade.
Ela se identifica com o momento religioso tradicional da cultura, do qual as
sociedades ditas primitivas oferecem o modelo puro. (...) Neste, não se pode
distinguir nenhuma esfera cultural autônoma, o que chamamos de cultura
aparece junto com as relações clânicas, políticas, religiosas, mágicas ou
parentais. Em sua forma pura, selvagem ou mítica, a cultura é a ordenação
totalizante do mundo, aparece como um conjunto de classificações que
asseguram a correspondência ou a conversibilidade de todas as dimensões do
universo, astronômicas e geográficas, botânicas e zoológicas, técnicas e
religiosas, econômicas e sociais (LIPOVETSKY e SERROY, 2013:11-12).
Diversas tradições, valores intelectuais, morais, espirituais, artísticos surgiram,
evoluíram e ainda permanecem como importante patrimônio da cultura universal. Ainda
lembramo-nos de alguns elementos da cultura egípcia: os hieróglifos – primeiro sistema
de escrita –, o papiro, a diversidade de seus deuses – Osíris, Hathor, Horus, Anubis,
Shekmet, Bés –, o desenvolvimento da pintura com suas figuras de perfil, quase que
passadas a ferro.
Dos babilônios, também podemos recordar da incrível Cidade de Ur que, em
suas ruínas, os arqueólogos descobriram infinidades de tesouros culturais: harpas,
30
tabuleiros de xadrez e placas de argila com o sistema de escrita dos babilônios, a
cuneiforme. Ali também foi descoberto o livro de leis mais antigo do mundo O Código
de Hamurabi. Os babilônios também possuíam grande conhecimento sobre a
matemática e a astronomia, foram eles que criaram a divisão da semana em sete dias.
Apenas para citar algumas culturas, pois não seria possível dar conta de todas as
civilizações antigas do mundo: fenícios, persas, macedônios, chineses, árabes, mongóis,
incas, maias, etc.
Dos gregos, a cultura ocidental bebeu muito em sua rica tradição. A mitologia
grega é bem conhecida, assim como a importância de sua arquitetura e escultura. Mas é
sempre bom recordar que foram os gregos que criaram a ideia de democracia, filosofia,
teatro e poesia.
O Império Romano (31 a.C – 476 d.C), mudou a configuração do mapa da
mundo em seu período com suas enormes conquistas territoriais – alcançando uma área
de cinco milhões de quilômetros quadrados, ao longo da Europa, Norte da África e
Oriente Médio. Mas os simples camponeses italianos, que se tornaram bravos
guerreiros, trouxeram outras contribuições para a cultura ocidental. Júlio César, por
exemplo, foi quem organizou o tempo da forma que conhecemos hoje; criando o
calendário Juliano com doze meses e anos bissextos.
Porém, o evento de maior relevância para a constituição da nossa ideia de
tradição de cultura ocorreu com a instauração do Cristianismo em 380 d.C. O seu
surgimento representou, grosso modo, o fim das religiões pagãs, até então, vigentes. E
foi durante a Idade Média que a Europa realmente vivenciou o florescimento e o
desenvolvimento da religião cristã como norte da cultura. Da Antiguidade a Idade
Média, o globo experimentou civilizações dominadas pelas religiões, em que o homem
conhecia o seu lugar, sem duvidar da ordem mágica do mundo.
1.3.2. A alvorada da Modernidade
Há, porém, questões não colocadas dentro desse esquema proposto por Gilles
Lipovetsky e Jean Serroy que devem ser ressaltadas aqui. Se por um lado, a proposta
dos autores tenta simplificar em linhas gerais o que determinou a primeira era da cultura
(o vínculo estrito entre religião e cultura), por outro lado, eles deixam de fora marcos
históricos, personagens e aspectos deste longo período – Antiguidade e Idade Média –
31
que carregaram o embrião da Modernidade – a segunda era da cultura, proposto pelos
autores.
É sempre bom reforçar que o caminho da história e a evolução da cultura não
acontecem a passos largos; são pequenos saltos, entremeados com retornos e voltas, até
por fim, desembocar em algo novo. O processo, geralmente, é lento. Alguém descobre
algo aqui que somente duzentos anos depois será utilizado de tal forma que realmente
representará uma revolução; o estopim de uma nova era. O advento da Modernidade
também padeceu desse percurso incerto e sinuoso.
Por mais que a Idade Média, período que abrange cerca de um milênio, tenha
sido marcada pelo vínculo restrito da religião com a cultura; foi justo durante sua
trajetória que a alvorada da Modernidade surgiu. O historiador Hilário Franco Jr. em A
Idade Média: nascimento do ocidente enfatiza (1988) essa filiação entre as estruturas
medievais e modernas. Para ele, os quatro movimentos que se convencionou considerar
inauguradores da Modernidade – Renascimento, Protestantismo, Descobrimentos e
Absolutismo – são de fato medievais:
A baixa Idade Média (século XIV – meados do século XVI) com suas crises e seus
rearranjos representou exatamente o parto daqueles novos tempos, a Modernidade.
A crise do século XIV, orgânica, global, foi uma decorrência da vitalidade e da
contínua expansão (demográfica, econômica, territorial) dos séculos XI-XIII, o que
levara o sistema aos limites possíveis de seu funcionamento. Logo, a recuperação a
partir de meados do século XV dava-se em novos moldes, estabelecia novas
estruturas, porém assentadas sobre elementos medievais: Descobrimentos (baseados
nas viagens dos normandos e dos italianos), Renascimento (no Renascimento do
século XII), Protestantismo (nas heresias), Absolutismo (na centralização
monárquica) (FRANCO JR., 1988, p. 14).
Não é o intuito aqui explanar sobre os quatro movimentos considerados
inaugurais da Modernidade: Renascimento, Protestantismo, Descobrimento e
Absolutismo. Deter-nos-emos, um pouco, sobre o Renascimento (XIX-XIV), por ser um
movimento ligado diretamente à cultura. E também por servir de exemplo desta equação
entre as estruturas medievais e modernas.
O Renascimento dos séculos XIV-XVI recorreu a modelos culturais
clássicos, que a Idade Média também conhecera e amará. Aliás, foi em
grande parte através dela que os renascentistas tomaram contato com a
Antiguidade. As características básicas do movimento (individualismo,
racionalismo, empirismo, neoplatonismo, humanismo) estavam presentes na
cultura ocidental pelo menos desde princípios do século XII. Ou seja, como
já se disse muito bem “embora o Renascimento só invoque a Antiguidade, é,
realmente o filho ingrato da Idade Média” (FRANCO JR., 1988, p. 171).
32
Mas por que então o Renascimento (XIV-XVI) representa uma ruptura na
mentalidade medieval?
Chamou-se Renascimento em virtude da redescoberta e revalorização da cultura
da antiguidade clássica (greco-romana), que acabou por nortear mudanças em direção a
um ideal humanista e naturalista. O Renascimento manifestou-se primeiro em Florença,
depois expandiu para o resto da Itália e, por fim, para Europa. Gombrich (2012, p. 198-
199) detalha essa mudança de pensamento:
Por volta de 1420, os Florentinos aperceberam-se de que eram um povo
diferente daquele que tinham sido na Idade Média. Os interesses eram
diferentes. Para eles, as catedrais e os quadros antigos pareciam tristes e
rígidos, e as velhas tradições eram penosas. Ao procurarem alguma coisa que
lhes agradasse, algo que fosse livre, independente e sem restrições,
descobriram a Antiguidade. Pouco lhes interessa que as pessoas desse tempo
não fossem cristãs. O que mais os espantava era o que essas pessoas tinham
conseguido fazer. (...) Era como se todo o período que separava a
Antiguidade daquela época não tivesse passado de um sonho, como se a
cidade livre de Florença estivesse quase a transforma-se em Atenas ou Roma.
Essa sensação de “sonho” que Gombrich enfatiza serviu para dar nome a esse
período intermediário entre a Antiguidade e o Renascimento: a Idade Média, cunhado
durante o século XVI. Havia um certo desprezo por parte dos renascentistas em relação
ao medievo, afinal se o movimento se via como o reflorescimento da civilização greco-
latina, a Idade Média não passava de um hiato entre esses dois polos de criatividade.
Para o pintor Rafael (1483-1520), a arte medieval era grosseira ou “gótica”. Já o escritor
Rabelais (1483-1553) falava da Idade Média como “a espessa noite gótica”.
O Renascimento não representava apenas um resgate da cultura greco-romano.
Na realidade, o movimento procurava por outros elementos para a elaboração de uma
nova cultura. Este movimento acabará por abrir o caminho para a cultura laica e
humanista da Modernidade. O processo de transformação da mentalidade medieval para
a renascentista, como já fora enfatizado, foi lento e complexo. Aqui serão sinalizadas
algumas mudanças estruturantes.
Durante a Baixa Idade Média (séculos XI-XIV), o Ocidente europeu assistiu a
um processo de ressurgimento do comércio e das cidades (burgos). Surgiram, assim,
entrepostos comerciais; as primeiras casas bancárias, as universidades e uma nova
camada social, a burguesia - que procurava conquistar um poder político e um prestígio
social. O período é de grande inventividade técnica: criam-se novas técnicas de
exploração agrícola, de construção naval e navegação (bússola, astrolábio, mapas), de
33
armamentos (pólvora) e de guerra. É também o momento da invenção da imprensa de
Gutenberg (1450) e de novos tipos de papel e de tintas. Todas as invenções técnicas já
se converteriam em conquistas. Colombo descobriu a América (1492), o Brasil “fora
descoberto” pelos portugueses (1500) e Ferdinando de Magalhães fez a primeira viagem
ao mundo (1519-1521). E com os descobrimentos e suas navegações, o sistema
comercial, pode ampliar-se, até atingir a extensão do global.
O desenvolvimento científico do período foi extraordinário. Ao resgatar os
valores da cultura greco-romana, os Renascentistas colocaram em prática a observação
atenta e metódica da natureza. O historiador Nicolau Sevcenko, em O Renascimento,
enfatiza justamente a importância da ciência no Renascimento:
O desenvolvimento de uma atitude que hoje poderia chamar de cientifica deve ser
compreendido, portanto, como um aspecto indissociável de todo o conjunto da
cultura renascentista. Se com Copérnico a astronomia e a cosmologia eram ainda um
campo teórico, mais explorado pela matemática e pela reflexão dedutiva, com
Galileu e Kepler, pouco mais de 50 anos depois, elas já eram objeto de observações
sistemáticas e apoiadas por instrumentos e experimentos arrojados (SEVCENKO,
1988, p. 19).
Andreas Vesalius (1514-1564) é considerado o pai da anatomia moderna, com
suas dissecações de cadáveres; Leonardo da Vinci (1452-1519) elabora pesquisas
teóricas e projetos práticos nos campos da hidráulica e da hidrostática; o mesmo faz
Brunelleschi (1337-1446) com a arquitetura e as técnicas de construção, além de
inventar a perspectiva linear. No campo filosófico religioso, Nicolau de Cusa (1501-
1464) introduz o platonismo. Erasmo (1466-1536) publica em 1516 uma edição do
Novo Testamento, que veio depois culminar na reforma da religião, com a Reforma
Protestante de Lutero (1483-1546). No campo do pensamento político, Maquiavel
(1469-1527) escreve o Príncipe (1513). Os exemplos são intermináveis. Como muito
bem resume Nicolau Sevcenko (1988, p. 23) não é possível falar em um Renascimento,
mas em múltiplos renascimentos:
Como se pode perceber, são múltiplos os caminhos do pensamento
renascentista e certamente a variedade, a pluralidade de pontos de vista e
opiniões, foi um dos fatores mais notáveis da sua fertilidade. Grande parte
das trilhas que foram abertas aí nós percorremos até hoje. É inútil querer
procurar uma diretriz única no humanismo ou mesmo em todo o movimento
renascentista: a diversidade é o que conta. Fato que, de resto, era plenamente
coerente com sua insistência sobre a postura crítica, o respeito pela a
individualidade, seu desejo de mudança. A concepção de que tudo já está
realizado no mundo e que aos homens só cabem duas opções, o pecado ou a
virtude, não faz mais sentido. O mundo é um vórtice infinito de
34
possibilidades e o que impulsiona o homem não é representar um jogo de
cartas marcadas, mas confiar na energia da pura vontade, na paixão de seus
sentimentos e na lucidez de sua razão. Enfim, o homem é a medida de si
mesmo e não pode ser tolhido por regras, deste ou do outro mundo, que
limitem suas capacidades. As disputas, as polêmicas, as críticas entre esses
criadores são intensas e acaloradas, mas todos acatam ciosos a lição de Pico
Della Mirandola: a dignidade do homem repousa no mais fundo da sua
liberdade.
Fora no campo das artes plásticas que se condensaram as principais tendências
da cultura renascentista: a filosofia, a religião, a história, a arte, a técnica e a ciência.
A arte renascentista é uma arte de pesquisa, de invenções, inovações e
aperfeiçoamento técnico. Ela acompanha paralelamente as conquistas da física,
matemática, geometria, anatomia, engenharia e filosofia. Basta lembrar a invenção
da perspectiva matemática de Brunelleschi, ou seus instrumentos mecânicos de
construção civil ou militar inventados por Leonardo da Vinci, ou as pesquisas
anatômicas de Michelangelo, ou o aperfeiçoamento das tintas à óleo pelos irmãos
Van Eyck, ou os estudos geométricos de Albrecht Durer, entre tantos outros
(SEVCENKO, 1988, p. 24).
Nessas condições, há uma mudança qualitativa no papel social desempenhado
pelo o pintor. Ele já não era mais um artesão, mas um cientista completo, como
Leonardo, Michelangelo, Dürer e tantos ouros. A criação artística torna-se livre e cada
artista torna-se um criador individualizado, tal como enfatiza G.C. Argan em De Giotto
a Leonardo:
No princípio do Quatrocentos cumpre-se, em Florença, uma transformação da
concepção, dos modos, da função da arte tão radical quanto a que se completara, um
século antes, com Giotto. Os primeiros protagonistas do movimento são um
arquiteto, Filippo Brunelleschi, um escultor, Donatello, um pintor, Masaccio (...).
Ao lado deles está Leon Battista Alberti, literato e arquiteto: a ele se devem três
tratados sobre a pintura, a arquitetura e a escultura. Neles, especialmente nos dois
primeiros, o autor não se limita mais a dar preceitos de técnica para a boa execução,
mas enuncia os princípios e descreve os processos do projeto da obra de arte. Isso é
compreensível, uma vez que o artista medieval era responsável apenas pela
execução, porque os conteúdos e até os temas de imagem eram-lhe fornecidos; agora
o artista deve encontrá-los e defini-los, isto é, não opera mais segundo diretrizes
ideológicas impostas por uma autoridade superior ou por uma tradição consagrada,
mas determina de modo autônomo a orientação ideológica e cultural do próprio
trabalho. A arte não é mais uma atividade manual ou mecânica, seja até mesmo de
alto nível, mas intelectual ou liberalis (ARGAN, 2003, p. 129).
O Renascimento (XIV-XVI), dentro de sua complexidade de manifestações
variadas e divergentes, pode ser visto como a raiz, ou ainda, a base de nossa consciência
moderna.
1.3.3. Cultura na Modernidade
35
Dentro do esquema sugerido por Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2013), a
segunda era da cultura coincide com o advento da Modernidade e das democracias
modernas, onde os valores de igualdade e liberdade do indivíduo tornam-se os alicerces
da cultura. É importante ressaltar que o olhar desses autores – eurocêntrico
especificamente voltado para a escola francesa – representa uma das perspectivas
possíveis sobre a compreensão da Modernidade. Como veremos no segundo capítulo, a
Modernidade brasileira é algo completamente distinta; chega ao Brasil “de navio”,
porém, é na terra brasilis que ela germina, misturada, criando algo completamente
distinto e genuinamente brasileiro.
Mas, voltando ao esquema de Lipovetsky e Serroy, a Modernidade se concretiza
com o momento da secularização da cultura.
Seja ela política, jurídica, ética, cotidiana, literária ou artística,
desenvolvendo-se cada um desses domínios segundo necessidades e
dinâmicas próprias. (...) Fé na ciência, na dominação tecnológica da natureza,
no progresso ilimitado, a modernidade cultural identifica-se com a virada da
organização temporal das sociedades para a dimensão do futuro contra a
antiga orientação passadista (LIPOVETSKY e SERROY, 2013:12).
Como vimos até agora, o nascimento da Modernidade é extremamente
complexo. Não há um consenso entre os teóricos. A alvorada da Modernidade acontece
durante o Renascimento (XIV-XVI), mas sua consolidação como período histórico
ocorre por volta da segunda metade do século XVIII e perdura até a segunda metade do
século XX. Aqui, iremos ressaltar algumas de suas características estruturantes, dentro
do esquema sugerido por Lipovetsky e Serroy (2013).
A Modernidade carrega, em sua essência, a ideia de antítese do antigo. De tudo
que precedeu, em termos de história, até então. É a negação, por excelência, do passado
e, nesse sentido, a Modernidade é a era das invenções. Carl Schorske, em Viena fin-de-
siècle, esclarece o que significou culturalmente essa ruptura com o passado:
A arquitetura moderna, a música moderna, a filosofia moderna, a ciência
moderna – todas se definem não a partir do passado, e na verdade nem contra
o passado, mas em independência do passado. (...) Num nível mais
complexo, o modernismo emergente tendeu a assumir a forma específica de
“reembaralhamento do eu”. Aqui, a transformação histórica, além de obrigar
o indivíduo a buscar uma nova identidade, também impõe a grupos sociais
inteiros a tarefa de rever ou substituir sistemas de crenças já mortos.
Paradoxalmente, o esforço de lançar fora os grilhões da história acelerou os
processos históricos, pois a indiferença por qualquer relação com o passado
36
libera a imaginação, permitindo que proliferem novas formas e novas
construções (SCHORSKE,1990, p. 13,14).
Não é possível falar sobre Modernidade sem trazer à baila a definição concebida
por Charles Baudelaire (1821-1867), o primeiro artista efetivamente moderno. Em seu
artigo Le peintre de la vie moderne, escrito em 1863, o poeta sugere: “A Modernidade é
o transitório, o fugitivo, o contingente; é uma metade da arte, cuja a outra metade é o
eterno e o imutável”.
Essa definição talvez seja a que melhor define a experiência estética da
Modernidade: algo extremamente vago e de difícil determinação. Esse jogo dual e
contraditório entre o efêmero e o eterno talvez tenha impulsionado todas as invenções
modernas. Algo que David Harvey, no livro A condição pós-moderna, irá denominar
como “destruição criativa”:
A imagem da “destruição criativa” é muito importante para a compreensão da
modernidade, precisamente porque derivou dos dilemas práticos enfrentados
pela implementação do projeto modernista. Afinal, como poderia um novo
mundo ser criado, sem se destruir boa parte do que viera antes? (...) se o
modernista tem que destruir para criar, a única maneira de representar
verdades eternas é um processo de destruição passível de, no final, destruir
ele mesmo essas verdades. E, no entanto, somos forçados, se buscarmos o
eterno e o imutável, a tentar e a deixar a nossa marca no caótico, no efêmero
e no fragmentário (HARVEY, 2013, p. 26).
Com todas essas acepções sobre a Modernidade, já seria satisfatório para
avançar nas experiências modernas propriamente ditas, mas também não se pode deixar
de fora a definição de Marshall Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar: a
aventura da modernidade (1986):
Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder,
alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor
– mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que
sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula
todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião
e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie
humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela
nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança,
de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte
de um universo no qual, como disse Marx, “tudo o que é sólido desmancha
no ar” (BERMAN, 1986, p.15).
Portanto, a Modernidade também carrega em sua essência: o caos, a invenção, a
imaginação, a criatividade, o efêmero, a mudança, autotransformação, a incerteza, a
37
destruição, a fragmentação, o progresso, numa busca incansável pelo novo eterno
imutável, em antítese do antigo.
1.3.4. Um pouco da Modernidade na história
Com o advento do Iluminismo (XVII e XVIII), os princípios da liberdade
individual e da igualdade se tornam a base da sociedade, da lei e do saber. O iluminismo
enquanto promotor da racionalidade e o individualismo como referencial da
democracia. Segundo o sociólogo Renato Ortiz, em Cultura e Modernidade (1991), é a
filosofia iluminista que introduz a individualidade que se concretiza na Modernidade:
A Modernidade coloca em andamento o indivíduo. Por isso vamos encontra-lo como
ator político, consumidor e viajante. No imaginário dos homens modernos o
indivíduo ocupa um lugar de reverência; ele é o fulcro da ideologia liberal, o núcleo
das estratégias publicitárias, o centro do narcisismo das modas e do consumo. Seria
incorreto imaginar que o princípio da individualidade se origine no XIX; sabemos
que a história da “persona” é antiga, e remonta às sociedades longínquas no passado.
Mas creio que a filosofia iluminista que privilegia o homem universal como centro
de seu pensamento só poderá se materializar quando as sociedades tornam-se
industriais, transformando radicalmente sua organização anterior (ORTIZ, 1991, p.
264).
Mas é claro que as mudanças não ocorreram da noite para o dia. E.H. Gombrich,
em Uma pequena história do mundo (2012), recorda que o vento começou a soprar em
outra direção só depois de 1700: “O grande sofrimento por que passaram os europeus
durante aquelas horríveis guerras religiosas pôs as pessoas a pensar se tinham mesmo o
direito de julgar os outros por terem uma fé diferente” (GOMBRICH, 2012, p. 252).
Pela primeira vez, as pessoas começaram a falar sobre o princípio da tolerância, calcado
no conceito da razão e da lógica.
Assim, inicia-se a “era da razão” que ganha o nome de Iluminismo, ou seja, a luz
pura da razão, supostamente, em oposição às trevas da superstição que prevaleceram
durante toda a Idade Média. Gombrich enfatiza que “nos duzentos anos que se seguiram
ao Iluminismo, estudaram-se e explicaram-se mais mistérios da natureza do que nos
dois mil anos anteriores” (GOMBRICH, 2012, p. 254).
David Harvey (2013) recorda Habermas, ao enfatizar que o projeto da
Modernidade entrou em foco durante o século XVIII: “Esse projeto equivalia a um
extraordinário esforço intelectual dos pensadores iluministas para desenvolver a ciência
38
objetiva, a moralidade e a lei universais e a arte autônoma nos termos da própria lógica
interna destas” (HARVEY, 2013, p. 23).
O domínio científico, o desenvolvimento de formas lógicas de organização
social e de modos racionais de pensamento prometia a libertação das irracionalidades do
mito, da religião, da superstição e do uso abusivo do poder, inclusive. E o pensamento
iluminista abraçou a ideia de progresso, ao longo do século XVIII, com as doutrinas de
igualdade, liberdade e fé na inteligência humana e na razão universal. A Revolução
Francesa (1789-1799) com o seu mote “Libertè, iguatelitè e fraternitè” e suas
reverberações criaram um público moderno e o princípio dessa nova era.
No campo das artes plásticas, a Revolução Francesa e os ideais da Era da Razão
também deixaram marcas. No século XVIII, os artistas começaram a se tornar mais
exigentes a respeito de estilo e temas. Surgem as academias de arte, com a função de
ensinar e as exposições anuais, especialmente em Paris e Londres. Gombrich, em A
história da arte (1999), lembra que há também uma mudança no tema da pintura:
Antes de meados do século XVIII, era raro os artistas se desviarem dos
estreitos limites da ilustração, pintarem uma cena de romance ou um episódio
da história medieval ou de seu próprio tempo. Tudo isso mudou muito
rapidamente durante o evoluir da Revolução francesa. De repente, os artistas
sentiram-se livres para escolher qualquer coisa como tema, desde uma cena
de Shakespeare a um acontecimento do dia, o que quer que, de fato, apelasse
para a imaginação e despertasse interesse (GOMBRICH, 1999, p. 481).
Um exemplo conhecido desta mudança no tema da pintura – representando o
crescente interesse pela a história da época e pelo gosto do tema heroico – é a obra
Marat assassinado, de Jaques-Louis David, pintado em 1793. Nela, David pintou
Marat, que foi um dos líderes da Revolução Francesa, como um mártir.
O projeto moderno começa a consolidar-se com a Revolução Industrial, na
esteira do século XIX. Renato Ortiz (1991) afirma que a “Modernidade é um modo de
ser, uma sensibilidade”, no entanto, para que esta maneira de ser possa se constituir, foi
necessário todo um processo de reorganização da sociedade:
O prolongamento das formas de sociabilidade do Antigo Regime teve de ser
rompido. As transformações políticas, no caso a Revolução Francesa, mas eu
diria, principalmente a Revolução Industrial, desempenham papéis
fundamentais nessas mudanças. A ruptura das fronteiras sociais, dos
privilégios estatutários, o surgimento da cidadania, são elementos cruciais
para a consolidação desta sociedade historicamente determinada (ORTIZ,
1991, p. 263).
39
O entusiasmo era grande e as invenções das máquinas – barco à vapor, a
locomotiva, o telégrafo, a máquina fotográfica, a imprensa diária, o telefone – só vieram
corroborar esse sentimento de fé na ciência. Em 1769, surge a primeira máquina à vapor
e, em 1803, um barco à vapor foi lançado no rio Sena, em Paris. Sobre esta invenção,
Napoleão Bonaparte teria dito: “Este projeto pode vir a mudar a face do mundo”
(GOMBRICH, 2012, p. 28). Em 1814, a locomotiva foi construída. Onze anos depois,
era inaugurada a primeira ferrovia. De qualquer forma, a industrialização começa a ser
sentida, em grande escala, entre 1820 e 1840.
Concomitantemente, a experiência da Modernidade se solidifica com o
surgimento da nova paisagem urbana e com o crescimento explosivo das cidades e os
seus movimentos sociais de massa. Para muitos teóricos, como Harvey, o marco do
modernismo aconteceu, em 1848, com “a primavera dos povos”. O Modernismo,
enquanto estética cultural concretiza-se como a arte das cidades. É nesse momento que
surgem novas formas de representação. Gombrich defende que foi a “ruptura na
tradição” que possibilitou uma revolução estética nas artes plásticas:
A ruptura na tradição abrira-lhes um campo ilimitado de opções. Cabia ao
artista plástico decidir se queria pintar paisagens ou cenas dramáticas do
passado, se preferia temas inspirados em Milton ou nos clássicos, se adotava
a maneira comedida da ressureição clássica de David ou a maneira fantástica
dos mestres românticos. (...) Pela primeira vez, tornou-se verdade que a arte
era um veículo perfeito para expressar a individualidade (GOMBRICH,
1999, p. 501,502).
Outra aliada fundamental, a fotografia, contribuiu também para essa
ruptura. O daguerreótipo, inventado por Niépce e Daguerre, foi exibido publicamente,
pela primeira vez, em 1839 e, assim, nasceu a idade da fotografia. Os primórdios da
fotografia refletem a visão e o temperamento românticos. Mas, pouco a pouco, foi
agregando o espírito moderno, a máquina, a cidade.
A partir da metade do século XIX, a fotografia introduz, nas imagens, valores
que transformam a vida e a sensibilidade dos habitantes das grandes cidades industriais.
Enquanto modificou profundamente o modelo documental, contribuiu para representar a
cidade de maneira moderna. Sobre seu surgimento, André Rouillé, em A fotografia:
entre o documento e a arte contemporânea (2009), também enfatiza que o advento da
fotografia só poderia acontecer dentro dos recém-criados centros urbanos da
Modernidade:
40
Os lugares, as datas, os usos, os dispositivos, os fatos: tudo comprova que a
invenção da fotografia se insere na dinâmica da sociedade industrial
nascente. Foi ela que assegurou as condições de seu desdobramento, que a
modelou, que se serviu dela. Criada, forjada, utilizada por essa sociedade, e
incessantemente transformada acompanhando evoluções, a fotografia, no
decorrer do primeiro século, como destino maior conheceu apenas o de
servir, de responder às novas necessidades de imagens da nova sociedade
(ROUILLE, 2009, p.31).
A fotografia teve um extraordinário impacto na imaginação do século XIX,
tornando o resto do mundo acessível, ou simplesmente revelando-o sob uma forma
diferente. Em 1839, o jornalista Jules Janin diz sobre o advento do daguerreótipo:
“Nenhuma mão humana poderia desenhar como o sol desenha. Não é mais o olhar
impreciso do homem, não é mais a mão trêmula. A câmara escura não produz nada por
ela própria, não é um quadro, é um espelho, capaz somente de reproduzir” (JANIN apud
ROUILLÉ, 2009, p. 33). E o crítico francês André Rouillé (2009, p. 42) complementa:
Seja como for, foi a fotografia documento que prevaleceu durante mais de
um século, e sob formas variáveis, segundo às alianças de que participou,
particularmente a estabelecida com a imprensa dos anos 1920. A máquina
fotográfica forneceu da realidade; um inventário incomparavelmente mais
preciso que o fornecido pelo olho.
A fotografia acabou, dessa forma, por libertar a arte de sua obrigação de buscar a
representação do real. Como diz Gombrich (1999, p. 525):
Antes da máquina fotográfica, quase toda pessoa que se prezava devia posar
para o seu retrato, pelo menos uma vez na vida. Agora, as pessoas raramente
se sujeitavam a esse incômodo (...) por causa disso, os artistas viram-se cada
vez mais compelidos a explorar regiões onde a máquina não podia substituí-
los. De fato, a arte moderna dificilmente se converteria no que é sem o
impacto da invenção da fotografia.
Paris, a Cidade das Luzes, tornou-se a capital artística da Europa no século XIX,
especialmente na primeira etapa do Modernismo. Por lá, escritores como Baudelaire e
Flaubert flanavam e exploravam novas possibilidades no campo estético. E artistas
plásticos como Édouard Manet (1832-1883), Claude Monet (1840-1926), Pierre
Auguste Renoir (1841-1919), Edgar Degas (1834-1917) revolucionaram a estética
artística com a invenção do movimento impressionista. Em 1874, Manet e Monet
resolveram organizar uma exposição. Havia uma tela de Monet intitulada “Impressão:
nascer do sol” que representava um porto visto através das névoas matinais. Um dos
críticos achou o título particularmente ridículo e passou a se referir a todo o grupo de
41
artistas como “os impressionistas”. O rótulo pegou. E a intenção de zombar do
movimento, logo foi dissipada.
Para Harvey (2013), essas novas experiências estéticas que tomaram conta de
Paris, na segunda metade do século XIX, começaram a se expandir rapidamente para
outras cidades importantes como Berlim, Viena, Munique, Londres, Nova York,
Chicago, Moscou, chegando ao seu apogeu pouco antes da Primeira Guerra Mundial:
“A maioria dos comentadores concorda que esse furor de experimentação resultou numa
transformação qualitativa na natureza do modernismo em algum ponto entre 1910 e
1915” (HARVEY, 2013, p. 36).
De fato, quando olhamos as obras literárias produzidas durante esses anos é
possível notar a transformação radical que o Modernismo experimentou: O caminho de
swann, de Marcel Proust (1871-1922), é publicado em 1913; Dublinenses, de James
Joyce (1882-1941), e Morte em Veneza, de Thomas Mann (1875-1955), saem em 1914,
só para citar algumas. Na música, O despertar da primavera, de Igor Stravinsky (1882-
1971), provocou uma revolução em 1913. E no campo das artes plásticas, surgem as
vanguardas europeias: surrealismo, dadaísmo, expressionismo etc.
Gombrich faz uma ressalva sobre o fato de os impressionistas serem
considerados os precursores da arte moderna. Para o autor, Paul Cézanne (1839-1906),
Vincent van Gogh (1853-1890) e Paul Gauguin (1848-1903) são os artistas que
realmente possibilitaram o surgimento da arte moderna:
Aquilo a que chamamos arte moderna nasceu desses sentimentos de
insatisfação; e as várias soluções que esses três pintores tinham buscado
converteram-se nos ideais de três movimentos na arte moderna. A solução de
Cézanne levou, em última análise, ao cubismo, que se originou na França; a
de Van Gogh converteu-se no expressionismo, que na Alemanha encontrou a
sua principal resposta; e a de Gauguin culminou nas diversas formas de
primitivismo (GOMBRICH, 1999, p. 555).
A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) colocou em cheque o Modernismo
enquanto estética cultural e gerou a necessidade da criação de um novo mito moderno.
A questão é complexa, pois, desse impasse, podemos ressaltar que a Modernidade
acabou por desenvolver caminhos distintos, criando diversos mitos. Harvey chama este
período entre guerras de o período “heroico” do Modernismo:
O trauma da guerra mundial e de suas respostas políticas e intelectuais abriu
caminho para uma consideração daquilo que poderia constituir as qualidades
essenciais e eternas da modernidade relacionadas na parte inferior da formulação de
42
Baudelaire. Na ausência de certezas iluministas quanto à perfectabilidade do
homem, a busca de um mito apropriado torna-se crucial (HARVEY, 2013, p. 38).
Ora, o “eterno e imutável” moderno proferido lá trás por Baudelaire acaba,
então, no começo do século XX, por encontrar o mito da racionalidade. Mito este que
encontra sua perfeita forma na arquitetura moderna de Mies van der Rohe (1886-1969)
e Le Corbusier (1887-1965). Harvey diz: “Foi esse o período em que as casas e as
cidades puderam ser livremente concebidas como máquinas nas quais viver”
(HARVEY, 2013, p. 39).
A arte política também tomou conta de uma ala do movimento modernista. Nas
artes plásticas, o surrealismo, o construtivismo e o realismo socialista procuravam
mitologizar o proletariado de suas respectivas maneiras. E, mais para frente, surge
também uma versão reacionária do modernismo, ligada aos regimes políticos fascistas
como o de Mussolini – basta recordar as experiências estéticas dos futuristas italianos.
O mesmo ocorreu na Alemanha Nazista que acabou por se utilizar dos projetos da
Bauhaus para a construção dos campos de concentração.
Em resumo, a primeira metade do século XX experimentou as mais diversas,
ambíguas e contraditórias mitologias da modernidade. Com o advento das vanguardas
europeias, o Modernismo deu curso a uma cultura revolucionária, transgressiva,
subversiva, contrária às formas tradicionais e clássicas de expressão, em todos os
domínios: pintura, escultura, arquitetura, dança, música e literatura. Com a propagação
das utopias e ideologias políticas – socialismo, comunismo, anarquismo, fascismo, etc.,
a cultura experimentou sua face engajada e panfletária.
Para os pensadores da Escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer, assim
como para Walter Benjamin, o Modernismo das vanguardas representou o último
instante de produção daquilo que entendemos como alta cultura. No artigo “O
Surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”, Benjamin enfatiza que o
movimento surrealista, que brotou na França, na década de 1920, caminhou de uma
experiência estética poética e artística para um movimento político. Foi nesse sentido
que residiu a sua força:
Os surrealistas dispõem desse conceito radical da liberdade. Foram os
primeiros a liquidar o fossilizado ideal de liberdade dos moralistas e dos
humanistas, porque sabem que a liberdade, que só pode ser adquirida neste
mundo com mil sacrifícios, quer ser desfrutada, enquanto dure, em toda a sua
plenitude e sem qualquer cálculo pragmático (BENJAMIN, 1985, p. 32).
43
Fredric Jamenson, em Pós-modernidade e sociedade de consumo (1985), lembra
que a modernidade das vanguardas era uma arte do contra: “Ela despontou dentro da
sociedade comercial da época dourada ao mesmo tempo como escândalo e insulto para
o público burguês – feia, dissonante, boêmia, sexualmente chocante” (JAMENSON,
1985, p. 25). A arte, nessa altura, para resistir ao mercado, tinha em sua essência a
violência. Walter Benjamin lembra que o dadaísmo, quando surge em 1916, era
essencialmente agressivo e escandaloso: “O comportamento social provocado pelo
dadaísmo foi o escândalo. Essa obra de arte tinha que satisfazer uma exigência básica:
suscitar a indignação pública. (...) Atingia, pela agressão, o espectador” (BENJAMIN,
1985, p. 191).
Porém, se o início do século XX apresentou ainda movimentos, ideias e obras de
arte de vanguarda, isso não foi suficiente para resistir ao advento do positivismo
moderno e da Indústria Cultural. Como lembra Renato Ortiz (1991, p. 266,267):
Neste sentido, a modernidade é tensão. O debate entre a arte e a cultura de
mercado marca bem essa contradição. Por um lado a educação e o gosto
começam a ser democraticamente difundidos em escala sem precedentes, por
outro, a liberdade de expressão só consegue florescer quando distante deste
mundo uniforme pautado pela padronização industrial. Liberdade e opressão,
diferença e uniformidade, colidem num antagonismo estrutural. (...) o
contraste entre indivíduo e uniformização (burocrática, mercantil, etc.) se
intensifica, e a ordem industrial aparece como um tipo de dominação, não
porque serve exclusivamente aos interesses de uma classe social em
detrimento de outras (como em Saint-Simon ou em Marx), mas na sua
essência, na sua idiossincrasia. A Modernidade não conhece fronteiras ou
nacionalidades. Ela traz consigo os germes de uma ordem planetária. Não
exclusivamente econômica, mas de um tipo de cultura que se expressa no
lazer, na Indústria Cultural, no consumo, no turismo, nas cidades.
1.3.5. A consagração da Indústria Cultural
No mundo moderno, aos poucos, os mitos e as lendas perdem seu lugar; as
narrativas se transformaram. O conhecimento vira homogêneo, globalizado e único,
onde a produtividade e a disciplina se tornam fundamentais para o progresso que se
desenhou no horizonte. Nesse mundo desencantado, Michel Foucault em Microfísica do
Poder (1979) lembra que o homem “não é mais o cantor da eternidade, mas o
estrategista da vida e da morte” (FOUCAULT,1979, p. 10). É como se o sonho tivesse
morrido com a consolidação do pensamento moderno, dentro daquilo que é o fascínio
positivista. Michel Maffesoli em O conhecimento comum (1985), diz:
44
Na real marcha do progresso, que assinala o final do século XIX, o racional,
o quantitativo é o que, em nível profundo, faz funcionar, “deve” fazer
funcionar a vida em sociedade. O que está em jogo é uma sociedade perfeita,
que não mais repousa um fantasma religioso ou imaginário, mas que encontra
na razão os seus fundamentos (MAFFESOLI,1985, p. 54).
É nessa sociedade, onde a razão instrumentalizada é soberana, que se consolida a
Indústria Cultural. O termo “Indústria Cultural” foi cunhado pela primeira vez em um
ensaio de Horkheimer intitulado “Arte e cultura de massa” de 1940. Como explica Luís
Mauro Sá Martino, em Teoria da Comunicação: ideias, conceitos e métodos (2009, p.
48):
A racionalidade levou a uma selvagem exploração do trabalho – relatos do
século XIX mostram operários trabalhando até 16 horas por dia. Finalmente,
a Primeira Guerra Mundial e a ascensão do totalitarismo na Europa dos anos
1920 e 1930 foi a pá de cal na ideia de um mundo guiado pela razão. De
acordo, com os dois autores, a cultura era o lugar de resistência contra a
técnica. Artes e humanidades eram o polo de crítica ao projeto moderno. A
modernidade encontraria seu equilibro no contraponto entre arte e técnica. E
teria sido assim se, no final do século XIX, a própria cultura não tivesse sido
apropriada pela técnica. Os meios de comunicação provocaram uma alteração
sem precedentes no cenário cultural. A cultura, transformada pela tecnologia,
poderia chegar a todos os lugares. Mas Adorno e Horkheimer não
compartilhavam desse otimismo. Ao contrário: a cultura transformada pela
técnica, tornava-se produto. Onde a Modernidade imaginava conhecimento
como liberdade, os dois pensadores enxergavam um elemento de dominação.
Dominada pela técnica, as produções da mente se organizam na forma de
uma Indústria Cultural.
Para os mentores desse conceito, Adorno e Horkheimer, isso significou a
introdução da estrutura mercantil na própria forma e no conteúdo da obra de arte. É o
início da cultura de massas, da produção em série de obras reproduzíveis (medíocres,
inautênticas, padronizadas) destinadas ao mercado de grande consumo. Em suma, seria
o princípio do fim da alta cultura:
O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade é
que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia
destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. (...) O fato de que
milhões de pessoas participam dessa indústria imporia métodos de
reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens
padronizados para a satisfação de necessidades iguais. (...) Os padrões teriam
resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis por que
são aceitos sem resistência. (...) A racionalidade técnica hoje é a
racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade
alienada de si mesma. Por enquanto, a técnica da indústria cultural levou
apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a
diferença entre a lógica da obra e a do sistema social. Isso, porém, não deve
ser atribuído a uma lei evolutiva da técnica enquanto tal, mas à sua função na
economia atual (ADORNO e HORKHEIMER, 2006, p. 100).
45
Com o advento da Indústria Cultural, a modernidade cultural torna-se bicéfala.
De um lado, uma cultura revolucionária, que luta contra a lógica do mercado; de outro,
em plena oposição e, cada vez mais forte, uma Indústria Cultural que vende produtos
culturais padronizados, destituídos de seu valor intrínseco de arte – verdadeiras
mercadorias descartáveis. Adorno e Horkheimer (2006, p. 111) afirmam:
A Indústria Cultural pode se ufanar de ter levado a cabo com energia e de ter
erigido em princípio a transferência muitas vezes desajeitada da arte para a
esfera do consumo, de ter despido a diversão de suas ingenuidades
inoportunas e de ter aperfeiçoado o feitio das mercadorias. Quanto mais total
ela se tornou, quanto mais impiedosamente forçou os outsiders, seja a
declarar falência seja a entrar para o sindicado, mais fina e mais elevada ela
se tornou, para enfim desembocar na síntese de Beethoven e do Casino de
Paris. Sua vitória é dupla: a verdade, que ela extingue lá fora, dentro ela pode
reproduzir a seu bel-prazer como mentira.
Adorno e Horkheimer enfatizam que a obra de arte como resistência ou alta
cultura não tem quase saída: será inevitavelmente engolida pela Indústria Cultural. “A
Indústria Cultural desenvolveu-se com o predomínio que o efeito, a performance
tangível e o detalhe técnico alcançaram sobre a obra, que era outrora o veiculo da Ideia
e com essa foi liquidada” (ADORNO e HORKHEIMER, 2006, p. 104).
Contemporâneo e amigo de Adorno, Walter Benjamin interpreta esse efeito
como a reprodução da obra de arte, característica determinante da Indústria Cultural. Ele
lembra que foi justamente o que aconteceu com o dadaísmo, que acabou sendo
incorporado na lógica da indústria cinematográfica, especialmente nos filmes de
Chaplin: “Sua impulsão profunda só agora pode ser identificada: o dadaísmo tentou
produzir através da pintura (ou da literatura) os efeitos que o público procura hoje no
cinema” (Benjamin, 1985, p. 191).
Vale lembrar o que define o conceito de obra de arte para Benjamin é sua
autenticidade ou “aura”:
A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido
pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração até o seu testemunho
histórico. (...) o conceito de aura permite resumir essas características: o que
se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. ...
Podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o
objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica a reprodução, substitui
a existência única da obra por uma existência serial. (...) Esses dois processos
resultam num violento abalo da tradição, que constitui o reverso da crise
atual e a renovação da humanidade. Eles se relacionam intimamente com os
movimentos de massa, em nossos dias (BENJAMIN, 1985, p. 168).
46
“O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da Indústria Cultural”, enfatizam
Adorno e Horkheimer. As obras de arte destituídas de sua aura, feitas em série,
adentraram na esfera da cultura, de forma irreversível. E o seu fortalecimento se deu,
justo, em um momento em que o homem moderno conseguiu se libertar das amarras
religiosas que tolhiam a sua liberdade individual.
A partir da segunda metade do século XX, com o desmoronamento das utopias e
ideologias políticas, onde o crescente domínio do capital e do mercado, – o
neoliberalismo –, se torna motor regularizador da sociedade, o homem torna-se, cada
vez mais, desorientado, completamente à deriva, com seus instintos. É coerente retomar
algumas considerações de Freud. Para o psicanalista alemão, o princípio de prazer do
indivíduo e a busca pela felicidade é o sentido da vida para o homem, porém impossível
de ser alcançado: “Esse programa está em desacordo com o mundo inteiro” (FREUD,
2011, p. 20). A felicidade, dentro do viés da psicanálise freudiana, pressupõe uma
liberdade dos instintos do indivíduo, algo que não condiz com a vida em sociedade. Por
isso Freud diz (2011, p. 40): “A liberdade individual não é um bem cultural”. As
normas regulam os vínculos humanos, inibindo os instintos individuais, sendo a única
forma de coexistência na sociedade. O psicanalista reforça que a sublimação do instinto
é um traço fundamental da evolução cultural:
O elemento cultural se apresentaria com a primeira tentativa de regulamentar essas
relações. Não havendo essa tentativa, tais relações estariam sujeitar à arbitrariedade
do indivíduo, isto é, aquele fisicamente mais forte determinaria conforme seus
interesses e instintos. Nada mudaria, caso esse mais forte encontrasse alguém ainda
mais forte. A vida humana em comum se torna possível quando há uma maioria que
é mais forte que qualquer indivíduo e se conserva diante de qualquer indivíduo.
Então o poder dessa comunidade se estabelece como “Direito”, em oposição ao
poder do indivíduo, condenado como “força bruta”. Tal substituição do poder do
indivíduo pelo da comunidade é o passo cultural decisivo. (...) O resultado final deve
ser um direito para o qual todos – ao menos todos os capazes de viver em
comunidade – contribuem com sacrifício de seus instintos, e que não permite – de
novo com a mesma exceção – que ninguém se torne vítima da força bruta (FREUD,
2011, p. 40).
As religiões, por exemplo, sempre funcionaram como ótimos controles
coletivos. A sociedade criou também outros dispositivos coletivos que refreavam a
fruição doa instintos individuais: a família, a lei, a moral, as ideologias políticas, entre
outras, que regulamentaram e organizaram o indivíduo, dentro da sociedade até meados
dos anos 1970.
47
Com o estabelecimento do capitalismo tardio ou neoliberalismo, já não é mais
assim, não há mais coerções nítidas externas impostas pela sociedade contra a
individualização, pelo contrário, tudo que um dia funcionou como controle,
desapareceu. Há uma exaltação do individualismo na contemporaneidade. E o homem
se vê literalmente perdido no meio da multidão à espreita de qual melhor modelo de
existência lhe cabe. “Quanto mais o indivíduo é livre e senhor de si, mais aparece
vulnerável, frágil, desarmado internamente” (FREUD, 2011, p. 55). Sem balizas que
assegurem a sua existência na sociedade, o indivíduo perde sua consciência moral,
torna-se inconsciente e, em última estância, alienado e vulnerável para sucumbir às
tentações do mercado de consumo. É nesse contexto que “O Mal Estar da Civilização”
encontra a Indústria Cultural ou cultura de massas de Adorno e Horkheimer:
Todos são livres para dançar e para se divertir, do mesmo modo que, desde a
neutralização histórica da religião, são livres para entrar em qualquer uma das
inúmeras seitas. Mas a liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre
a coerção econômica, revela-se em todos os setores como a liberdade de
escolher o que é sempre a mesma coisa. (...) Eis aí o triunfo da publicidade na
Indústria Cultural, a mimese compulsiva dos consumidores, pela qual se
identificam às mercadorias culturais que eles, ao mesmo tempo, decifram
muito bem (ADORNO e HORKHEIMER, 2006, p. 138).
1.4 A cultura na Contemporaneidade
É esse estado de solidão e miséria subjetiva que fundamenta, em parte, a
escalada consumista, que permite à pessoa oferecer a si mesma, pequenas
felicidades como compensação pela falta de amor, de laços ou reconhecimento.
Quanto mais frágil tudo isso, mais triunfa o consumismo como refúgio, evasão,
pequena aventura remediando a solidão e as dúvidas sobre si próprio
(LIPOVETSKY e SERROY, 2013:56).
O final do século XX e o princípio do século XXI trouxe a baila novos olhares
sobre o percurso tomado pela modernidade. O desfecho, entre os intelectuais, não é
consensual. A começar por qual seria o nome de batismo deste novo momento histórico:
pós-modernidade, modernidade líquida, sobremodernidade, etc. Na pós-modernidade,
os caminhos tornaram-se múltiplos, mas todos concordam que este momento seria uma
segunda etapa da Modernidade levada ao extremo. Para Lipovetsky e Serroy (2013) é
neste momento que se inicia a terceira etapa da cultura: “a cultura-mundo”. E pós-
48
modernismo é o termo escolhido por David Harvey (2013) para falar sobre a cultura na
pós-modernidade.
O pós-modernismo, para Harvey, em sua essência, carrega muitas características
da modernidade: a aceitação total do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do
caótico. Mas a forma como responde a essas características é bem particular: “ele não
tenta transcendê-lo, opor-se a ele e sequer definir os elementos eternos e imutáveis que
poderiam estar contidos nele. O pós-modernismo nada nas fragmentárias e caóticas
correntes da mudança, como se isso fosse tudo o que existisse” (HARVEY, 2013, p.
49). Nessa conjectura, o pós-modernismo não propõe elementos para o eterno e
imutável, pelo contrário, ele é auto referente, calcado apenas na força da mudança. Vale
lembrar a definição proposta por Terry Eagleton:
Talvez haja consenso quanto a dizer que o artefato pós-moderno típico é
travesso, auto ironizador e até esquizoide; e que ele reage à austera
autonomia do alto modernismo ao abraçar imprudentemente a linguagem do
comércio e da mercadoria. Sua relação com a tradição cultural é de pastiche
irreverente, e sua falta de profundidade intencional solapa todas as
solenidades metafísicas. (...) O pós-modernismo assinala a morte dessas
“metanarrativas”, cuja função terrorista era fundamentar e legitimar a ilusão
de uma história humana universal (EAGLETON apud HARVEY, 2013, p.
19).
Mas há também aspectos positivos na pós-modernidade. A heterogeneidade e a
diferença surgem como possíveis forças libertadoras na redefinição do discurso cultural.
Essa desconfiança sobre as metanarrativas ou discursos universais totalizantes pode ser
visto como algum saudável.
Voltando a Lipovetsky e Serroy. Para eles, essa “cultura-mundo” em que
estamos inseridos é, basicamente, regulamentada por um hiper capitalismo, um mercado
de consumo sem fronteiras, operado pela revolução científica e, acima de tudo, pela
revolução tecnológica, sobretudo midiática, que cria, pela primeira vez na história,
denominadores culturais mundiais. Uma cultura de massas que quase extingue por
completo a alta cultura e a cultura erudita. Como diz Lipovetsky e Serroy (2013, p. 9):
Cultura-mundo significa o fim da heterogeneidade tradicional da esfera da
cultura e a universalização da cultura mercantil, apoderando-se das esferas da
vida social, dos modos de existência, da quase totalidade das atividades
humanas. Com a cultura-mundo, dissemina-se em todo o globo a cultura da
tecnociência, do mercado, do indivíduo, das mídias, do consumo.
49
Quando a cultura passa a integrar a lógica econômica do mercado, perde sua
potência autônoma, criadora de modos de vida e de sentido de existência. Há uma
mercantilização da cultura e, ao mesmo tempo, uma culturalização das mercadorias.
O mundo hipermoderno organiza-se em torno de quatro pilares: o
hipercapitalismo, a hipertecnização, o hiperindividualismo e o hiperconsumo.
É nessas condições que a época vê triunfar uma cultura globalizada ou
globalista, uma cultura sem fronteiras cujo objetivo não é outro senão uma
sociedade universal de consumidores. Cultura mundo hoje é geradora de um
novo mal estar na civilização, de uma nova relação cultural com o mundo. A
hipertécnica e a hipereconomia não cria apenas um mundo racional-material,
cria também uma cultura, um mundo de símbolos, de significações e de
imaginário social que tem como particularidade ter se tornado planetário
(LIPOVETSKY e SERROY, 2013, p. 32).
Há uma quase falência total da cultura. Hoje cultura virou sinônimo de consumo.
Ser culto é ser consumidor. As trocas entre os indivíduos tornaram-se basicamente
relações mercantis. Nada escapa à lei do capital. Os sonhos e os desejos são guiados e
até roubados dentro dessa lógica.
Vilipendiada como produção padronizada e kitsch, como alienante e
manipuladora das massas, a cultura de massa surge como uma ameaça a
pesar sobre o espírito da verdadeira cultura, transformando e caricaturando
obras nobres, reduzindo-as à condição de produtos mercantis entregues aos
lazeres do entretenimento (LIPOVETSKY E SERROY, 2013, p. 72).
O impacto da revolução tecnológica, em especial, com o advento do mundo
virtual (internet, redes sociais, blogs, etc.), agrava ainda mais a alienação, os valores
hedonistas e uma vida guiada pelo lazer e entretenimento. A rede, cheia de
possibilidades, deixa todos anestesiados “nas nuvens virtuais”. O caos da rede
(conexões e interconexões) ainda não tem normas e regras “ela apresenta tudo aquilo
que se vê no playground – a única diferença é que nesse playground não há professores,
policiais ou moderadores que ficam de olho no que se passa.” (GAMBLE apud
BAUMAN, 2006, p. 10).
Na pós-modernidade virtual, o homem transferiu seu afeto para a rede e tornou-
se basicamente um consumidor, cada vez mais distante de sua humanidade. “Há mais
coisas na vida além da mídia”, observa Germaine Greer, “mas não muito. Na era da
informação, a invisibilidade é equivalente à morte” (BAUMAN, 2006, p. 21). Um
mundo virtual caótico, desencantado e ao mesmo tempo tão pouco revolucionário no
sentido de produção de conteúdos.
50
É um modelo cultural inédito que se estabelece, marcando o triunfo da
velocidade, do instantâneo, do furo, da publicidade, do divertimento
permanente e estável, cultura mosaico, cultura do zapping, do fragmentário,
da insignificância, do descontinuo, partilhada por todos os homens,
modelando sua apreensão do mundo, reunindo-os em uma mesma atitude
cativa. (LIPOVETSKY e SERROY, 2013, p. 75).
Diante da avalanche de informações que recebemos da mídia, seja via jornais,
revistas, tvs, internet (computares, celulares e tablets), fica a questão proposta lá atrás
por T.S. Eliot: onde está o conhecimento que perdemos na informação? Atualizando a
pergunta de Eliot na contemporaneidade, onde está a cultura que perdemos na
informação?
No ocidente, a liberdade não é ameaçada pela falta, pela censura, pela
limitação, ela o é pela superinformação, pela overdose, pelo caos que
acompanha a própria abundância. Não é a informação que falta: ela
transborda em nós; o que falta é um método de orientação. Como educar os
indivíduos e formar espíritos livres em um universo com informações em
excesso. A política, a religião, a ciência, o business, a moda, a imprensa, a
literatura, a filosofia, o esporte, até a cozinha: hoje, nada mais escapa ao
sistema do estrelado. (...) Todo o domínio da cultura se tornou uma economia
do estrelato (LIPOVETSKY e SERROY, 2013, p. 81).
Mario Vargas Llosa, em “A Civilização do Espetáculo” (2012) também sugere o
que seria a cultura contemporânea. Um tanto mais pessimista, acaba, mesmo assim, por
encontrar a Cultura-Mundo sugerida por Lipovestky e Serroy.
Na pós-modernidade, cultura passa a ser entendida, apenas como uma
maneira agradável de passar o tempo. É óbvio que a cultura pode ser isso
também mas, se acabar sendo só isso, se desnaturará e depreciará: tudo o que
faz parte dela se equipara e uniformiza ao extremo, de tal modo que uma
ópera de Verdi, a filosofia de Kant, um show de Rolling Stones e uma
apresentação do Cirque du Soleil se equivalem (LLOSA, 2012, p. 31).
É o fim da hierarquização da cultura, da diferença entre alta e baixa cultura. As
reflexões de Vargas Llosa, Lipovetsky e Serroy se complementam. Vargas Llosa
esmiúça o que resta da cultura na contemporaneidade com uma infinidade de exemplos
e, enfatiza que a cultura hoje é o entretenimento e a diversão; Lipovetsky e Serroy se
debruçam com afinco na complexidade de todas as esferas da civilização pós-moderna
ou hipermoderna. Há, de qualquer forma, uma indignação e uma estupefação
compartilhada: o que será da cultura em breve? O que restará de cultura nesse mundo
hipermoderno ou pós-moderno?
51
Outra característica dela (civilização) é o empobrecimento das ideias como
força motriz da vida cultural. Hoje vivemos a primazia das imagens sobre as
ideias. Por isso, os meios audiovisuais, cinema, televisão e agora a internet,
foram deixando os livros para trás. Nossa cultura privilegia o engenho em
vez da inteligência, as imagens em vez das ideias, o humor em vez da
sisudez, o banal em vez do profundo e o frívolo em vez do sério (LLOSA,
2012, p. 41).
Ao abrir o jornal impresso, no caderno de cultura, ou mesmo ao ver os poucos
minutos do telejornal dedicado à cultura, o que vemos é a proliferação de agendas e
produtos culturais, quase sempre vinculadas, a essa cultura de entretenimento e
divertimento. Blockbusters, hits musicais, grandes exposições dão a tônica da cultura. A
crítica cada vez mais pulverizada, para não dizer inexistente, endossa a perpetuação
dessa lógica rasa da diversão, consumo e alienação. Não há diversidade cultural
presente nos cadernos culturais, apesar da enorme riqueza de manifestações culturais
existentes em cada canto do planeta. Mas a banalização da cultura, ou simplesmente, a
homogeneização da cultura e a proliferação dos produtos culturais é algo que está na
ordem do dia da imprensa.
O que antes era revolucionário virou moda, passatempo, brincadeira, ácido
sutil que desnatura o fazer artístico e o transforma em apresentação de teatro
Grand Guignol. Nas artes plásticas a frivolidade chegou a extremos
alarmantes. O desaparecimento de consensos mínimos sobre os valores
estéticos faz que nesse âmbito a confusão reine, pois já não é possível
discernir com certa objetividade o que é ter e o que é não ter talento, o que é
belo e o que é feio, qual obra representa algo novo e duradouro e qual não
passa de fogo de palha. Uma cultura que sofre de hedonismo barato e
sacrifica ao divertimento qualquer outra motivação e desígnio (LLOSA,
2012, p. 43).
A democratização da cultura possibilitou um acesso numa esfera global, ao
mesmo tempo, em que banalizou, padronizou e homogeneizou toda a vida cultural, onde
impera a superficialidade de conteúdo e a frivolidade. É a massificação da ideia da
cultura. Mário Vargas Llosa quase sugere que o fim da alta cultura (democratização)
representa o princípio do fim da cultura.
É bem verdade que ninguém mais lê livros como antigamente. Todavia, milhares
de livros estão disponíveis no mercado e nunca os clássicos estiveram tão ao alcance da
mão de todos. Não há mais contemplação da obra de arte como algo que tange o
universo sagrado. Porém, as obras basilares (balizares) da história da arte podem ser
52
acessadas por todos e, atualmente, os museus são frequentados por multidões; algo
jamais visto antes na história.
A pós-modernidade levou a cultura para esse lugar esquizoide, de pastiche;
sentenciada a girar na Roda da Fortuna da Indústria Cultural. Se a Modernidade
inaugurou a nova era da mercadoria cultural, é na pós-modernidade que ela se encontra
em sua forma plena, reinando cada vez mais absoluta. É natural que diante dessa
profusão de imagens, produtos, propagandas, etc., o sentimento seja de desespero,
estupefação e desorientação. Para os amantes da Cultura, parece não haver mais saída.
Como anuncia Vargas Llosa, a cultura está soterrada em baixo de um grande parque de
diversões:
Banalização lúdica da cultura imperante, em que o valor supremo é agora
divertir-se e divertir, acima de qualquer outra forma de conhecimento ou
ideal. As pessoas abrem um jornal, vão ao cinema, ligam a teve ou compram
um livro para se entreter, no sentido mais ligeiro da palavra, não para
martirizar o cérebro com preocupações, problemas, dúvidas (LLOSA, 2012,
p. 123).
Não há mais o tempo e o interesse necessário para a cultura que exige reflexão.
Todos estão absortos em seus computadores, celulares e televisores, basicamente, se
divertindo.
Mas, resta, ainda, uma esperança: a essência da cultura. Se a cultura é um
mosaico aberto, ilimitado e poroso; um processo em constante evolução histórica pode
ser ela mesma é a solução para o problema da contemporaneidade.
Assim, retornarmos ao conceito de “cultura comum” cunhado pelo teórico
Raymond Williams, em Cultura e Sociedade (1958). Para Williams, “a cultura é de
todos, em toda a sociedade e em todos os modos de pensar”, este o sentido do termo
“cultura comum”. Porém se a cultura é de todos, não é igual para todos. Ela pressupõe a
igualdade do ser, sem a qual ela não poderá ser de todos. E é o desafio da construção de
uma cultura comum numa sociedade capitalista contemporânea.
Raymond chama atenção para que ocorra uma “cultura comum” é necessário que
todos tenham acesso a qualquer tipo de atividade. Para ele, a chave da discussão não
está entre a oposição tradicional entre “alta cultura” e “cultura popular”, o foco está em
estabelecer a distinção crucial entre as formas alternativas de se conceber a natureza da
relação social. Para Williams (1969, p. 340), a saída está na ideia de solidariedade como
“potencialmente, a verdadeira e real base de uma nova sociedade”. Solidariedade e
53
“cultura comum”. Algo que, como o próprio autor sinaliza, não é possível determinar
um caminho pronto, de curso delineado:
Qualquer civilização hoje imaginável depende de ampla variedade de
capacidades altamente especializadas, que acarretarão, em partes definidas da
cultura, inevitável fragmentação da experiência. A atribuição de privilégios a
certos tipos de capacitação profissional vem constituindo procedimento
tradicional e será difícil mudar esse hábito até o ponto que se faz necessário,
para se assegurar uma substancial igualdade de condições, indispensável ao
sentimento de comunidade. Em nossos dias, uma cultura comum não se
confundirá com a da sociedade simples e homogênea dos velhos sonhos. Será a
de uma organização complexa, a exigir contínuo ajustamento e revisão. Em tão
difícil organização, o único elemento capaz de lhe assegurar estabilidade, que
se pode conceber, é o sentimento de solidariedade. Mas para fazê-lo operar será
necessário que estejamos constantemente a redefini-lo. Além da dificuldade
intrínseca de descobrir a motivação para esse sentimento de solidariedade,
serão muitas as tentativas de retorno aos velhos sentimentos, a serviço de
qualquer novo desenvolvimento seccional. O que desejo aqui acentuar é que
essa primeira dificuldade – a compatibilidade de uma especialização crescente
com uma cultura genuinamente comum – só se resolverá num contexto de
comunidade das condições materiais da sociedade e através do processo
democrático em sua plenitude. (WILLIAMS, 1969, p. 341).
54
CAPÍTULO 2
CULTURA NO BRASIL
Nesta hora de sol puro, palmas paradas, pedras polidas, claridades, faíscas,
cintilações, eu ouço o canto enorme do Brasil (Ronald de Carvalho, Toda la
América, 1930).
2.1. Modernidade e Modernismo no Brasil
Nosso breve estudo sobre a cultura brasileira tem como demarcação temporal o
advento da modernidade no país até os dias de hoje. Para tanto, não iremos nos prender
a uma análise histórica (aqui o contexto histórico aparece com o pano de fundo), o
recorte é basicamente sociológico e atento às questões culturais: os movimentos, os
personagens e obras que contribuíram, de maneira mais relevante, para a formação da
cultura brasileira.
No campo da sociologia, teremos o auxílio essencial de Renato Ortiz, em
Cultura brasileira e identidade nacional (1985). Através de um estudo minucioso sobre
a construção da nossa identidade nacional, Ortiz recorda o pensamento dos principais
intelectuais brasileiros que se detiveram sobre a questão da identidade e da cultura
brasileira. Como bem sinaliza na introdução do livro: “Toda identidade é uma
construção simbólica (...). Não existe uma identidade autêntica, mas uma pluralidade de
identidades, construídas por diferentes grupos sociais em diferentes momentos
históricos” (ORTIZ, 1985, p. 8).
Com a percepção de que a identidade é plural, conseguiremos compreender de
que forma se deu a evolução dessa construção de identidade e, consequentemente, do
desenvolvimento da cultura brasileira.
55
No campo da cultura enquanto movimentos, personagens e obras, inicialmente,
contamos com o auxílio da obra Da Antropofagia a Brasília: Brasil 1920-1950 (2002),
organizado por Jorge Schwartz e, depois, de outras obras, como 1992: a semana que
nunca acabou (2012), do jornalista Marcos Augusto Gonçalves, e Vanguarda europeia
e modernismo brasileiro (2012), de Gilberto Mendonça Telles. A proposta, nesse
sentido, é juntar o pensamento desses autores em suas respectivas obras e observar de
que forma a sociologia reverbera no campo da arte e vice-versa, tendo assim uma visão
mais global da cultura brasileira.
2.2. Pindorama, Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Brasil
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a
felicidade (Oswald de Andrade, Manifesto Antropofágico, 1928).
É curioso notar que os precursores das ciências sociais no Brasil, tais como
Sílvio Romero (1851-1914) e Euclides da Cunha (1866-1909), escrevem suas teses na
virada do século XIX para o século XX, justo em momento de transição. Em 1888,
acontece a abolição da escravatura; em 1889, ocorre a proclamação da República e a
instauração da Primeira República (1889-1930). E é também um período marcado por
inúmeras crises econômicas (encilhamento 1889-1891) e conflitos sociais: Revolta da
Vacina em 1904, Revolta da Chibata em 1910, Guerra do Contestado entre 1912-16,
movimentos operários de 1917-19, Revolta dos tenentes em 1922, e Revolta de 1924, só
para citar alguns exemplos.
Mesmo diante dessa transição, desse impasse em que o Brasil se encontrava, os
intelectuais do período (1888-1914), a exemplo de Sílvio Romero e Euclides da Cunha,
insistiam em construir uma identidade de um Estado brasileiro que ainda não existia:
As modificações realizadas na esfera socioeconômica (fim de uma economia
escravagista, emergência de uma classe média) ainda não tinham se
consolidado no interior de uma nova ordem social. Vivia-se um momento de
transição e, neste sentido, as teorizações sobre a realidade brasileira refletiam
necessariamente o impasse vivenciado. As ciências sociais da época
reproduzem, no nível do discurso, as contradições reais da sociedade como
um todo. A inferioridade racial explica o porquê do atraso brasileiro, mas a
noção de mestiçagem aponta para a formação de uma possível unidade
nacional (ORTIZ, 1985, p. 34).
56
Além da questão do declínio do Romantismo (1836-1881) no Brasil, havia uma
necessidade por parte desses intelectuais de dar conta desse novo Estado brasileiro em
formação. As teorias raciológicas europeias, tais como o positivismo de Comte, o
darwinismo social e o evolucionismo de Spencer, que entram em voga no Brasil
(mesmo com uma defasagem temporal entre o momento de produção e o momento de
consumo), são aclimatadas para dar conta da questão da identidade nacional. Porém,
logo de cara, essas teorias colocam uma problemática ainda maior aos nossos autores:
como pensar a nossa identidade nacional dentro de um quadro onde a “superioridade”
da civilização europeia torna-se decorrente das leis naturais que orientam a história dos
povos? Como lembra Ortiz (1985, p. 15):
Aceitar as teorias evolucionistas implicava analisar-se a evolução brasileira
sob as luzes das interpretações de uma história natural da humanidade; o
estágio civilizatório do país se encontrava assim de imediato definido como
inferior em relação à etapa alcançada pelos países europeus. Torna-se
necessário, por isso, explicar o “atraso” brasileiro e apontar para um futuro
próximo, ou remoto, a possibilidade de o Brasil se constituir como povo, isto
é, como nação.
Para dar conta deste descompasso, desta suposta inferioridade brasileira, o
pensamento brasileiro da época acaba por encontrar sua justificativa em duas noções: o
meio e a raça. Assim, a interpretação, nessa altura, tem um viés completamente racista e
determinista; clima e raça explicando a natureza “indolente” do brasileiro. Por exemplo,
Sílvio Romero, em Cantos populares no Brasil (1883), divide a população brasileira em
habitantes das matas, das praias e margens do rio, dos sertões e das cidades.
É importante notar que até o final da escravatura, os negros, ideologicamente,
não faziam parte do discurso: eles simplesmente não existiam enquanto etnia. Mas essa
posição é revista com o advento da Abolição.
Como fato político e econômico, marca o início de uma nova ordem, o negro
deixa de ser mão-de-obra escrava para se transformar em trabalhador livre. Mesmo
sendo considerados pela sociedade como cidadãos de segunda categoria, os negros
adquirem uma importância maior do que a dos índios.
Assim, surge a teoria da mestiçagem; a afirmação de que o Brasil se constitui
através da fusão entre três raças: o branco, o negro e o índio. Porém, o “mito” das três
raças não desemboca em uma teoria positiva. Ao contrário, era justo, essa mistura –
presença do negro e do índio – que tornava o brasileiro inferior. E representava um
57
entrave civilizatório – a impossibilidade do desenvolvimento capitalista no país. Logo,
para esses intelectuais, o Brasil teria uma identidade plena num futuro, ou seja, quando
a sociedade passasse por um processo de “branqueamento”. Essas ideias racistas
influenciaram a elite intelectual brasileira entre 1888 e 1914.
Porém, diante do início da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), é instaurada
no Brasil a emergência de um espírito nacionalista, que procurava desvencilhar-se das
teorias raciais e ambientais características do início da República Velha.
O mito das três raças se estabelece na virada do século, mas ainda não de forma
plena. A mudança, no interior do mito, começa a ocorrer a partir das primeiras décadas
do século XX, quando há uma evolução decisiva na economia e da sociedade brasileira,
que correspondem a esse momento de despertar nacionalista. Mas é o Modernismo que
irá dar conta dessa equação.
A partir das primeiras décadas do século XX, o Brasil sofre mudanças
profundas. O processo de urbanização e de industrialização se acelera, uma
classe média se desenvolve, surge um proletariado urbano. Se o Modernismo
é considerado por muitos como um ponto de referência, é porque o
movimento cultural trouxe consigo uma consciência histórica que até então
se encontrava de maneira esparsa na sociedade (ORTIZ, 1985, p. 39).
Se Ortiz aponta para o movimento cultural modernista como responsável por
engendrar tal concepção, não é à toa. De forma plural e multidisciplinar, o Modernismo
abarcou todas as manifestações artísticas – literatura, artes plásticas, escultura,
arquitetura, música etc. E conseguiu explorar e afirmar, positivamente, as forças étnicas
brasileiras, principalmente, colocar a mestiçagem como o grande atributo da identidade
nacional.
Mas é importante ressaltar que o caminho não foi fácil, foram muitas tentativas,
incursões e manifestos para dar conta da questão. O problema enfrentado pelos
modernistas, basicamente, consistia em que as mudanças que o Brasil sofrera no
princípio do século XX representaram uma modernização na esfera da política e da
economia, mas o mesmo não poderia ser dito sobre a esfera cultural. Nesse campo, o
país continuava a ser uma “colônia das letras”.
Um pouco antes da Semana de Arte Moderna de 1922 (considerada o marco do
modernismo no Brasil), o diplomata e escritor Graça Aranha (1868-1931), um de seus
promotores, inclusive, publica a obra de gênero filosófica Estética da vida (1921). Nela,
o autor aponta para uma falta de comunhão entre a alma brasileira e a natureza, pois,
58
para ele, as “três raças” formadoras do Brasil atuavam por um artificialismo cultural; e a
constituição de uma cultura verdadeiramente brasileira deveria criar uma nova relação
com a natureza do país. Graça Aranha diz:
O espírito moderno é dinâmico e construtor. Por ele temos de criar a nossa
expressão própria. Em vez de imitação, criação. Nem imitação europeia, nem
a imitação americana – a criação brasileira (ARANHA apud TELLES, 1987,
p.318).
Apesar da inegável influência francesa nas suas concepções estéticas, Graça
Aranha compreendia que a elite brasileira voltava as costas para suas raízes tropicais e
que essa fratura seria a causa do artificialismo cultural dominante.
2.3. São Paulo, berço do Modernismo
Mas por que São Paulo é considerado o berço do Modernismo no Brasil?
Na virada do século XIX para o XX, a cidade de São Paulo começa a deixar para
trás o seu casulo colonial. É preciso lembrar que nenhum lugar do país experimentou a
aceleração do tempo e espaço, promovida pela mudança industrial e tecnológica, de
forma tão veloz e concentrada como a cidade de São Paulo. Se a modernidade, na virada
do século, chega ao Rio de Janeiro – esta já era capital influente e porto internacional –,
seu impacto quase não fora percebido. Porém, a capital paulista, nessa altura, não
passava de uma vila provinciana. E o efeito modernizador do “progresso” pelo qual
passou foi sentido como um furacão; em apenas quatro décadas, transformou a cidade
em centro urbano, industrial, comercial e, em tese, cosmopolita.
A elite paulista também foi fundamental para “modernizar culturalmente a
capital do café”. Em ação conjunta com o poder público, a elite cafeeira criou
instituições educacionais, científicas e artísticas no estado, tais como o Liceu de Artes e
Ofícios (1873), o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (1894), o Museu
Paulista (1895), a Pinacoteca do Estado (1900), o Conservatório Dramático e Musical
de São Paulo (1906), o Teatro Municipal de São Paulo (1911) e a Sociedade de Cultura
Artística (1912).
59
Em 1922: a semana que não terminou (2012:68), o jornalista Marcos Augusto
Gonçalves enfatiza a importância da transformação socioeconômica que São Paulo
vivia:
Na década de 1910, a tradicional sociedade das fazendas ganhava uma
interface urbana mais definida e convincente. Famílias do interior
transferiam-se para a capital, onde a “picareta civilizadora” – como observou
o cronista Couto de Magalhães – abria novos espaços e substituía os pesados
casarões por prédios elegantes e construções à moda de tudo, de chalés suíços
a moradias bretãs ou italianas. (...)
Na década de 1920, São Paulo acelera ainda mais seu crescimento urbano
(automóveis) e industrial (fábricas, máquinas, locomotivas) e, sobretudo, sofre uma
mudança de temporalidade e sociabilidade. Diante desse novo impulso, há ainda uma
maior migração de estrangeiros, criando condições melhores para se tornar efetivamente
uma cidade moderna e, sobretudo, modernista.
É importante ressaltar como Mário de Andrade (1893-1945) e Oswald de
Andrade (1890-1954), os principais ideólogos do movimento, defenderam São Paulo
como o berço do Modernismo. Nas palavras de Mário, proferidas em sua célebre
conferência realizada na Casa do Estudante, no Rio de Janeiro, em 1942 (MÁRIO apud
SCHWARTZ, 2002, p. 476): “Ora, São Paulo estava muito mais ‘ao par’ que o Rio de
Janeiro. E, socialmente falando, o modernismo só podia mesmo ser importado por São
Paulo e arrebentar na província (...)”. Já Oswald, em seu também famoso discurso
proferido em 1954, afirma:
Se procurarmos a explicação do porque o fenômeno modernista se processou
em São Paulo e não em qualquer outra parte do Brasil, veremos que ele foi
consequência de nossa mentalidade industrial. São Paulo era de há muito
batido por todos os vento da cultura. Não só a economia cafeeira promovia os
recursos, mas a indústria na sua ansiedade do novo, a sua estimulação do
progresso, fazia com que a competição invadisse todos os campos de
atividade (OSWALD apud SCHWARTZ, 2002, p. 477).
A visão de uma Viena fin-de-siècle tropical ou de uma Paris das luzes
tupiniquim não parece ser unânime entre os teóricos que estudam o movimento
modernista brasileiro. Para a crítica de arte Annateresa Fabris, essa ideia de uma São
Paulo moderna, por excelência, é mais mito romântico do que realidade. No artigo
Figuras do Moderno possível, que faz parte do livro Da Antropofagia a Brasília: Brasil
1920-1950, ela diz:
60
Se for aceita a premissa de que a idade industrial provocou uma mudança
profunda na função da arte e na natureza da imagem, e se for confrontado
esse pressuposto com as concepções vigentes no Brasil no momento
constitutivo do Modernismo, encontrar-se-á um quadro de referências
bastante diferente daquele europeu, próximo de uma visão realista (quando
não acadêmica), e avesso àquelas categorias anti-sublimes e desumanizadoras
que representavam um dos traços fundamentais das vanguardas históricas.
Tal diferença de enfoque não é casual, devendo ser reportada à questão da
revolução tecnológica, muito mais mito do que presença efetiva no Brasil do
começo do século XX, que se projeta no universo do artifício por um desejo
de atualização sem, contudo, ter vivido de perto as profundas transformações
antropológicas engendradas pelo novo modelo de produção (FABRIS, 2002,
p. 42,43).
Para Annateresa, não há uma Paulicéia moderna, assim, rapidamente constituída.
O que havia, entre os moços modernistas, era um desejo, uma idealização futurista de
uma São Paulo moderna e palpitante:
A Modernidade defendida pelos artistas de São Paulo responde a essa
vontade de atualização, informada pelo princípio de estilização e pela
determinação de um núcleo temático alicerçado na imagem da cidade
industrial; congenial com a situação de São Paulo, a proposta modernista é
portadora de implicações estéticas e sociológicas. (...) Conscientes de que o
horizonte tecnológico transformara as concepções e os modos de vida da
sociedade ocidental, os modernistas desejam participar do clima de
renovação mundial e encontrar uma expressão artística adequada aos desafios
do século XX (FABRIS, 2002, p. 43).
Seja como for – mito ou realidade –, essa Modernidade pulsante da capital do
café dos anos 1910 e 1920 ficou para a história e ainda faz parte do imaginário paulista.
2.4. Pré-Modernismo à brasileira
Jorge Schwartz, em seu artigo Tupi or not Tupi que também está no livro Da
Antropofagia a Brasília: Brasil 1920-1950, enfatiza que o Modernismo brasileiro oscila
entre os elementos nacionais e internacionais; porém, busca criar e manter, acima de
tudo, a sua brasilidade: “Ao mesmo tempo que procura atualizar os elementos nacionais,
sente-se atraída pela a medusa dos ventos vanguardistas europeus e tenta não cair na
mera imitação de modelos alheios sem perder, com a adoção de novas linguagens, seu
caráter nacional” (SCHWARTZ, 2002, p. 143).
Nesse sentido, é curioso notar que algumas manifestações artísticas que ocorrem
durante os anos 1910, numa etapa preparatória do movimento, num pré-modernismo,
61
por assim dizer, pendem mais fortemente para uma reprodução, pura e simplesmente,
das linguagens estéticas europeias. Como, por exemplo, quando, em 1916, Oswald de
Andrade (1890-1954) e Guilherme de Almeida (1890-1969) escrevem as peças Mon
Coeur Balance e Leur Âme. Além de reproduzirem repertórios do Simbolismo, os
autores escolhem a língua francesa para dar forma a esse “teatro dos amores perdidos” –
em consonância com o momento em que elites políticas e intelectuais brasileiras ainda
se encontravam, ou seja, afrancesadas.
Em contrapartida, nesse pré-modernismo (1910-1920), é possível encontrar
exemplos que fogem da mera imitação e constituem algo novo. Exemplo disso é a
coleção de poemas La Divina Increnca (1915), escrita por Juó Bananére – pseudônimo
adotado pelo escritor Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892-1933).
O autor estava atento às transformações sociais que a capital paulista vivia,
especialmente sob o impacto da imigração estrangeira que destilava uma polifonia de
dialetos e idiomas pelas ruas da cidade, como hebraico, alemão, espanhol, árabe. Tal
como Bananére captou, com muito humor, a língua que se destacava era o italiano,
alcançando as calçadas, naquela mistura macarrônica ítalo-paulistana (e que ainda
podemos encontrar, com força, nos bairros da Mooca, Brás, Bexiga etc.).
Sua Divina Increnca, em forma de paródia, faz uma crítica social e brinca com a
presença italiana na cidade: “Che sbornia, che pagodêra,/ Che pandiga, che arrelia,/ A
genti sempre afazia/ Nu largo d'Abaxo o Piques,/ Passava os dia e as notte,/Brincando di
scondi-scondi,/I atrepáno nus bondi,/Bulino cos conduttore” (BANANÉRE, 2001, p.
72).
Outro que merece destaque nesse cenário de construção de algo novo, de caráter
brasileiro, é o artista plástico Vicente do Rego Monteiro (1899-1970). Em 1921, o
artista pinta a obra Antropófago. Um índio escultural, forte, que segundo Jorge
Schwartz (2002, p.147) “recostado na placidez do ócio paradisíaco”, saboreia um fêmur.
Pode-se afirmar que Rego Monteiro é o primeiro artista plástico que se volta de
forma sistemática para a questão da identidade nacional, através de representações da
vida e de lendas indígenas. Inclusive, podemos dizer que Vicente antecipa a temática da
Antropofagia. Essa obra foi realizada sete anos antes de Abapuru (1928), de Tarsila do
Amaral, e do Manifesto Antropófago (1928), de Oswald de Andrade. Tanto é que,
quando Oswald de Andrade convida Rego Monteiro para participar do grupo
62
antropofágico, em 1930, Vicente Rego recusa, pois se considera anterior ao grupo e,
portanto, seu precursor.
Figura 2 - O Antropófago, Vicente de Rego Monteiro, 1921.
Para todos os efeitos, o grande precedente do movimento cultural modernista,
comumente citado pelos teóricos, diz respeito à exposição de Anita Malfatti (1889-
1964), em 1917. Nesta, sua pintura marcada pelo Expressionismo alemão e americano
provocou polêmica e escândalo. Mesmo assim, a crítica da época reconheceu em sua
obra, o primeiro olhar moderno brasileiro e um ponto de partida para as vanguardas
históricas brasileiras.
Para Mário de Andrade, autor-chave do movimento modernista, a exposição de
Malfatti representou um despertar de sua consciência modernista. “Reza a lenda” que,
quando Mário entrou na exposição e se deparou com o quadro O Homem amarelo
(1915-16), se pôs a rir sem parar. Pelas mãos do poeta, o impacto da obra tornar-se-ia
um soneto parnasiano. Depois, Mário viria a adquirir o quadro.
O final da década de 1910 foi marcado por uma efervescência cultural e, pouco a
pouco, os “modernistas da caverna”, como graciosamente Marcos Augusto Gonçalves
(2012, p. 156) chama os moços modernistas, começaram a colocar “as asinhas para
fora”. Em 1918, Oswald de Andrade, outro pivô fundamental do movimento
modernista, dá um novo sentido a sua garçonnière – que até então era utilizada para
encontros amorosos e reuniões entre amigos – e começa a compor com seus amigos
uma espécie de diário coletivo: O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. Era um
caderno de duzentas páginas, no qual adicionavam tiradas líricas, pastiches, poemas,
trocadilhos, xingamentos, gozações, caricaturas etc.
63
Em dezembro de 1920, Mário de Andrade já anunciava, em um artigo da revista
Ilustração Brasileira, o que estava por vir na Semana de Arte Moderna de 1922, mesmo
que de forma embrionária: “Os palácios de mármore dos parnasianos” começavam a
ruir “sob o alaúde vertiginoso da mocidade alegre e triunfal” (ANDRADE apud
GONÇALVES, 2012, p. 215).
Mas foi no começo de 1921 que, de fato, tem-se um vislumbre do que viria a ser
a Semana e o movimento modernista. Para alguns, o “Manifesto do Trianon”, como
ficou conhecido, teria sido o lançamento oficial do movimento modernista na capital
paulista. Um grupo de prestígio político e intelectual (entre eles, Oswald de Andrade,
Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Victor Brecheret e Affonso de Taunay) se
reuniu no restaurante Trianon para homenagear o escritor Menotti del Picchia (1892-
1988), que lançava uma edição do poema Máscaras. Mas foi Oswald de Andrade quem
deu o tom modernista ao evento, segundo o jornalista Marcos Augusto Gonçalves
(2012, p. 219):
Não poderia faltar ao discurso a exaltação do dinamismo paulista, pano de
fundo da inquietação dos novos artistas e escritores, que pretendiam seguir
pelos “espantosos caminhos da arte atual”. Num mundo – dizia o orador
futurista – em que o pensamento e a ação se deslocavam, “num milagre lento
e seguro”, da Europa para “os países descobertos pela súplica das velas
europeias”, São Paulo surgia como uma espécie de Canaã, terra prometida da
modernidade. Com suas chaminés e “gargantas confusas”, seus conjuntos de
“palácios americanos” e seus bairros em veloz expansão, a cidade agitava,
num “tumulto egoísta e inteligente”, as “profundas revoluções criadoras de
imortalidades”.
O discurso de Oswald figurou como um anúncio de uma proposta que sugeria o
rompimento com as formas estéticas do passado e a adoção de um repertório novo.
Entretanto, é importante destacar a crítica que Marcos Augusto Gonçalves (2012, p.
195) faz sobre a forma pela qual nosso modernismo se instaura:
A oligarquia do café, em sua expressão mais esclarecida, imaginava-se,
segundo Berriel, como uma burguesia clássica, considerava-se portadora de um
projeto nacional que abarcava, além do poder econômico e político, o poder
cultural. Paulo Prado seria a expressão mais cosmopolita e moderna – e
também aristocrática – dessa ilusão, que desmoronaria, afinal, no fim da
década de 1920, com o crack das bolsas e a revolução de 1930. Berriel aponta
uma diferença crucial entre o processo de instauração da arte moderna na
Europa, sobretudo na França, e no Brasil. Enquanto por lá a nova estética
precisou conquistar terreno à margem dos salões oficiais, no Brasil essa mesma
arte ingressou “pela via oficial e conduzida pela mão do poder”. A inversão
revelaria o esforço de modernização de um poder já assentado – no caso, o do
64
café –, que desejava ir além. Por seu caráter renovador e sua vocação
insurrecional, a arte moderna teria uma contribuição a dar nessa tentativa de
ascendência intelectual da elite paulista.
Como veremos a seguir, o surgimento do modernismo brasileiro se dá entre os
seios da elite paulista, e não de forma consoante com todo o escopo da sociedade.
2.5. Modernismo brasileiro
O Modernismo no Brasil tem como marco simbólico a Semana de Arte
Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, durante três dias: 13, 15 e 17 de
fevereiro de 1922. O evento, que é recordado até hoje como convulsivo, carnavalesco,
irreverente e polêmico, foi marcado pelo seu caráter multiartístico e heterogêneo, com
conferências, saraus, concertos e uma exposição de arquitetura e artes plásticas.
Organizada para celebrar o Centenário da Independência, a Semana de Arte Moderna
declarou o rompimento com a cultura oficial “passadista”, associada às correntes
literárias e artísticas anteriores: o parnasianismo, o simbolismo e a arte acadêmica. E
acabou sendo considerado o ingresso do Brasil na modernidade.
Há uma série de divergências sobre a origem da ideia (quem, como, onde e
quando) da Semana de Arte Moderna, muito bem relatadas no livro do jornalista
Marcos Augusto Gonçalves (2012). Aqui ficamos com a versão que encontra maior
aceitação entre os pares modernistas e, como tal, parece ser a mais próxima do que de
fato ocorreu:
Di Cavalcanti, em conversas com Guilherme de Almeida e Jacinto Silva, teve
a ideia de promover uma espécie de salão modernista, a ser realizado na
própria livraria onde o pintor fazia sua exposição. A sugestão, já apresentada
ao grupo modernista, coincidiu com as intenções de Graça Aranha, que, ao
retornar da Europa, precipitou os acontecimentos. O escritor procurou os
paulistas, inteirou-se das propostas e expôs suas ideias. Sugeriu que se fizesse
uma aliança com os artistas do Rio e levou os rapazes a Paulo Prado, que
estaria disposto a patrocinar a aventura. As primeiras reuniões aconteceram
no Grande Hotel da Rôtisserie Sportsman, onde Graça se hospedava, e no
palacete do autor de Paulística. Num desses encontros – ou talvez no
primeiro, apenas com a presença de Di, na residência de Prado – discutiu-se a
hipótese de um evento mais amplo e estruturado. (...) Quanto ao Teatro
Municipal, a sugestão teria sido de Paulo Prado, único em condições de
conseguir o principal palco da cidade para um festival de arte moderna
(GONÇALVES, 2012, p. 261).
65
Concebida, inicialmente, então, por assim dizer, pelo pintor Emiliano Di
Cavalcanti (1897-1976) e pelo intelectual Graça Aranha, a Semana realizou-se como
iniciativa conjunta entre intelectuais, pintores, poetas, músicos etc. Estiveram presentes,
escritores como Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho (1893-
1935), Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e Manuel Bandeira (1886-1968), que
não compareceu ao evento mas cuja literatura se fez presente mediante a leitura do
provocativo poema O Sapo. Músicos como Villa-Lobos (1887-1960) que, aliás, foi o
artista que recebeu maior destaque na semana, tendo apresentado ao todo vinte peças de
sua autoria. E também compareceram o próprio Graça Aranha e o mecenas do
movimento, Paulo Prado (1869-1943).
Na área da arquitetura, a exposição foi representada por Antônio Garcia de
Moya (1891-1949) e por Georg Przyrembel (1885-1956); na escultura, por Victor
Brecheret (1894-1955) e Wilhelm Haarberg (1891-1986). E, na pintura, por Anita
Malfatti, Di Cavalcanti, Jonh Graz (1891-1980), Zina Aita (1900-1967), João Fernando
de Almeida Prado (1898-1987), Oswaldo Goeldi (1895-1961), Ignácio da Costa Ferreira
(1892-1958) – conhecido como Ferrignac – e Vicente do Rego Monteiro.
Diante da abrangência cultural e de seu espírito plural, pode-se dizer que a
Semana de Arte Moderna de 1922 foi o começo daquilo que Mário de Andrade afirma
em sua famosa conferência de 1942 (ANDRADE apud SCHWARTZ, 2002, p. 477):
“Vivemos uns oito anos, até perto de 1930, na maior orgia intelectual que a história do
país registra”.
Orgia intelectual que começa com a defesa de uma nova estética brasileira,
concebida através do vínculo estreito com as linguagens das vanguardas europeias do
século XX (Cubismo, Futurismo, Surrealismo, Dadaísmo etc). Tal esforço de
redefinição da linguagem artística se articula a um forte interesse pelas questões
nacionais e pelo compromisso com a independência cultural do país para, uma vez por
todas, enterrar a “colônia das letras”. Como recorda Schwartz (2002, p. 144):
A semana de 22 vem no encalço das comemorações do primeiro centenário
da Independência do Brasil e é contemporânea à fundação do partido
comunista brasileiro. Por sua parte, o acontecimento marca a superação dos
modelos considerados ultrapassados do século XIX, o esgotamento de uma
literatura com exagerada influência dos cânones europeus finisseculares, o
ingresso do Brasil na Modernidade e o nascimento de uma literatura nacional,
amalgamada a uma forte afirmação de brasilidade.
66
Sem um programa estético definido, a Semana desempenha na história da
cultura brasileira muito mais uma etapa de rejeição ao conservadorismo vigente na
produção literária, musical e visual do que efetivamente um acontecimento construtivo
de propostas e criação de novas linguagens. Como aponta Marcos Augusto Gonçalves
(2012, p. 270), tratava-se de um “modernismo plantation”:
A entrada dos modernistas pela porta da frente, no ano do centenário da
independência, com direito à presença do governador e do Grand Monde
paulista, não seria possível sem compromissos. E estes não consistiam
simplesmente em abrir mão de escolhas estéticas radicais para facilitar o êxito
do espetáculo. Na realidade, com uma ou outra exceção, mal havia escolhas
estéticas radicais das quais abrir mão. Naquele momento, estava tudo a meio
caminho, em nosso modernismo plantation. O velho tardava em se retirar e o
novo ainda não reunia energias para se impor. A semana, é certo, irradiou um
sentimento de rejeição à arte oficial e ao “passadismo”, mas o fez por
intermédio de obras que, em muitos aspectos, se conectavam à tradição que
pretendiam confrontar.
Foi uma Semana de Arte mais constituída por discursos do que por obras
substanciais de vanguarda, ditas brasileiras. Nesse “modernismo plantation”, havia um
pouco de tudo: estéticas do passado misturadas com as novas teorias europeias de
vanguarda; tudo apurado em nome de uma cultura brasileira.
O elo de união entre os distintos artistas era, segundo seus dois principais
ideólogos, Mário e Oswald de Andrade, a negação de todo e qualquer "passadismo": a
recusa à literatura e à arte importadas. Vale aqui ressaltar que o discurso modernista
habitualmente utilizava o termo “futurismo”, mas num sentido distinto proposto pela
corrente europeia, cunhado pelo poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944).
Para os nossos modernistas, como Oswald e Menotti Del Picchia, o “futurismo”
designava as propostas novas que se opunham às receitas “passadistas” e “acadêmicas”.
Como Marcos Augusto Gonçalves explica (2012, p. 20):
A polarização “futurismo” x “passadismo” servia como tática retórica eficaz
– mas também simplificadora. Este aspecto do discurso modernista, que se
apresentava como ruptura com o “velho”, acabava por atirar na lata do lixo
do “passadismo” manifestações variadas, às quais, digam-se, não raro os
próprios “novos” estavam atados. (...) Os rapazes modernistas desejavam
apenas “ser atuais, livres de cânones gastos, incapazes de objetivar com
exatidão o ímpeto feliz da modernidade”. A expressão “ímpeto feliz” vinha
como um grito de frescor e juventude em oposição à sisudez “passadista” e
ao ambiente soturno dos anos anteriores, imposto pela guerra. Era um traço
do movimento.
67
Em De olho em Mário de Andrade (2012), o sociólogo André Botelho enfatiza
que o “novo grito do Ipiranga” dos jovens modernistas representava uma renovação da
sensibilidade. E também ressalta que o contexto do momento foi essencial para a
concepção de um projeto modernista brasileiro:
Vivenciava-se naquele momento um contexto particular, marcado por uma feliz
convergência que se mostraria crucial para o projeto dos modernistas brasileiros de
renovar a sensibilidade, a imaginação social e as artes no Brasil. Refiro-me, ao lado
de questões mais gerais como os processos de modernização e urbanização então em
curso, especificamente ao interesse das vanguardas artísticas europeias do período
pela arte africana dita primitiva. Essa arte seria tomada por pintores europeus, como
o cubista espanhol Pablo Picasso, como o meio de revitalização da arte europeia,
então vista como decadente por causa do engessamento causado pela longa tradição
estética do continente. Se esse interesse pelo primitivo não explica inteiramente o
programa de abrasileiramento do Brasil de nossos modernistas, facilitou muito a
valorização do nosso passado e das nossas manifestações artísticas populares e
eruditas, até então vistas com preconceito, como se fossem expressão do nosso
atraso ou inferioridade em relação à arte europeia (BOTELHO, 2012, p. 42).
Mário de Andrade ao retomar a Semana de 1922, vinte anos mais tarde, em sua
conferência afirma:
De primeiro, foi um movimento estritamente sentimental, uma intuição
divinatória, um estado de poesia. (...) O Modernismo, no Brasil, foi uma
ruptura, foi um abandono de princípios e técnicas consequentes, foi uma
revolta contra o que era a Inteligência nacional. É muito mais exato imaginar
que o estado de guerra da Europa tivesse preparado em nós um espírito de
guerra, eminentemente destruidor. E as modas que revestiram este espírito
foram, de início, diretamente importadas da Europa (MÁRIO apud
SCHWARTZ, 2002, p. 477).
Seja como for, a Semana deveria representar uma renascença paulista e, de certa
forma, foi; ecoou nos autos da história brasileira como um divertido e provocativo
estalo da Modernidade. É o marco inicial do Modernismo como escola oficial no país,
justo, no simbólico ano do Centenário da Independência.
Mas ainda havia, pela frente, muito trabalho por fazer e corrigir. E eles sabiam.
O passo seguinte dos modernistas de São Paulo, pós-semana, aconteceu em maio de
1922, com a publicação da revista Klaxon12
. Irreverente, bem humorada e transgressora,
em sua primeira edição, a revista trazia, em seu editorial, uma auto avaliação crítica da
Semana:
12
Klaxon: mensário de arte moderna, n. 01, maio 1922. Disponível no site Biblioteca Brasiliana Guita e
José Mindlin http://goo.gl/YRA3YW. Acesso em: 03/03/2015.
68
A luta começou de verdade em princípios de 1921 pelas colunas do Jornal do
Comércio e do Correio Paulistano. Primeiro resultado: “Semana de Arte
Moderna” – espécie de Conselho Internacional de Versalhes. Como este, a
semana teve sua razão de ser. Como ele: nem desastre, nem triunfo. Como
ele: deu frutos verdes. Houve erros proclamados em voz alta. Pregaram-se
ideias inadmissíveis. É preciso refletir. É preciso esclarecer. É preciso
construir. Daí Klaxon. E Klaxon não se queixará jamais de ser
incompreendido pelo Brasil. O Brasil é que deverá se esforçar para
compreender Klaxon.
Vale lembrar que a crítica não só fazia parte, como era extremamente importante
dentro do projeto modernista, e daí os muitos balanços que foram feitos sobre poesia,
literatura e artes plásticas. Nesta mesma primeira edição da Klaxon, há uma divertida e
irreverente crítica sobre uma exposição de artes plásticas, que diz:
Se o belo é de todos os lugares e de todas as espécies, é preciso acreditar que
o feio é de todos os tempos, de todos os lugares e de todas as espécies, e isso
porque aqui, em pleno século vinte, na ocasião em que toda a nova geração
de artistas se dirige ardentemente para a Beleza, nos foi dado visitar a
exposição do Sr. Hermann. Que pecado cometemos para sofrer tão dura
penitência?
As críticas eram militantes, sobretudo espirituosas, algo que se perdeu um pouco
no tempo e no espaço do jornalismo brasileiro. Talvez porque, naquela altura, havia
uma necessidade de romper com as tradições do passado. Mas fato é que a atividade
jornalística representava tanto um meio de subsistência para os escritores e intelectuais,
como também uma estratégia de ascensão intelectual, uma vez que os periódicos
constituíam a base de circulação de ideias.
E não foram poucas as revistas que circularam durante a década de 1920:
Estética (1924), Terra do Sol (1924) , Revista do Brasil (1925), A Revista (1925), Terra
Roxa e Outras Terras (1926), Revista Novíssima (1926), Festa (1927), Revista de
Antropofagia (1928), Movimento (1928), Verde (1928), Arco e Flexa (1928), Maracajá
(1929), Madrugada (1929), entre outras.
2.5.1. Primeira fase do Modernismo no Brasil (1922-1930)
Sou um tupi tangendo um alaúde (Mário de Andrade, Paulicéia
Desvairada,1922, p. 115).
69
É impossível pensar o Modernismo brasileiro sem recordar o extraordinário
casal Tarsila do Amaral (1886-1973) e Oswald de Andrade, ou “Tarsiwald”, como
chegou a chamá-los outra figura fundamental do movimento: Mario de Andrade.
Arriscaria dizer que a primeira fase do Modernismo (como ficou mais comumente
conhecida) deve-se basicamente à atuação dos três. Aqui, iremos deter nossa atenção
sobre três obras: Paulicéia Desvairada (1922), Manifesto Pau-Brasil (1924) e
Manifesto Antropófago (1928).
Mário de Andrade publica Paulicéia Desvairada em 1922, logo após a Semana
de Arte Moderna. Antes de adentrarmos na obra em si, é importante falar um pouco
sobre o escritor que, aliás, é o homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty, a
Flip, deste ano de 2015, quando se celebram setenta anos de sua morte.
Mário foi um intelectual de muitas facetas, dimensões e significados. Entre as
várias áreas do conhecimento sobre as quais ele escreveu podem-se destacar a poesia,
literatura, belas-artes, música, folclore, etnografia e história. Era um prodígio
intelectual, criativo e autodidata. Ou, como ele mesmo se definiu, num dos poemas do
livro Remate de males (1930): “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta”. Um
multifacetado Mário, um polivalente Mário.
É difícil definir Mário de Andrade, sua trajetória intelectual se encontra
misturada à da cultura brasileira. Pode-se dizer que Mário dedicou sua vida e obra numa
busca moderna de “abrasileiramento” do Brasil. Para ele, o Brasil não era somente o
lugar do sentimento, mas da imaginação, do pensamento e da criação artística. O
abrasileirar-se, para o intelectual, significa não ter aversão a valores, práticas e povos
estrangeiros. É, antes, adquirir uma maneira própria (brasileira), sem intolerância e
preconceito, de se relacionar com a história, as culturas e as pessoas do mundo.
“O nosso contingente tem de ser brasileiro” (MÁRIO apud FROTA/BOTELHO,
2002) diz ele, em carta, para Carlos Drummond de Andrade. Por isso, Mário reforça a
importância de se voltar para a cultura popular brasileira: o folclore e as manifestações
populares. O sociólogo André Botelho (2012) sinaliza que um meio estratégico de
“abrasileiramento”, utilizado por Mário de Andrade, foi explorar a aproximação da
língua portuguesa escrita (norma culta) com a língua falada (popular). Reconhecer a
língua falada do povo como uma língua literária foi uma atitude revolucionária para a
época. E acabou por significar não apenas uma conquista estética, mas também uma
70
conquista social e política, dando uma voz própria ao homem brasileiro. Botelho afirma
(2012, p.75):
Essa aproximação, enfim, do “como falamos” ao “como somos” remete a um
aspecto central do pensamento e da atuação de Mário de Andrade que já
assinalamos em relação à valorização do folclore e das práticas culturais
populares como meio estratégico de abrasileiramento da cultura erudita
produzida no Brasil, especialmente a música. Assim, é crucial observar que o
sentido da diluição da oposição língua escrita (culta) e língua falada (popular),
e sua ressignificação mútua, embora tenha especificidades linguísticas próprias,
implica a diluição mais ampla entre cultura erudita e cultura popular. E é essa a
particularidade do Brasil e sua contribuição cultural mais importante, explorada
em todas as frentes de atuação de Mário de Andrade que estamos
acompanhando. Assim, sua trajetória e sua obra parecem encontrar um
denominador comum no empenho de abrasileirar a cultura e a produção
cultural do Brasil, tornando o Brasil familiar aos brasileiros.
E é justo em Paulicéia Desvairada, com seu Prefácio Interessantíssimo, que
Mário começa a pensar sobre as bases estéticas do Modernismo brasileiro.
Editado em 1922, Paulicéia Desvairada, o primeiro livro modernista da poesia
brasileira, foi escrito em apenas um mês: dezembro de 1920. Nitidamente, vemos na
obra um duplo Mário (velho e moço), dividido entre o passado e a consciência do
presente. Tal como ele alerta no prefácio: “Sou passadista, confesso. Ninguém pode se
libertar duma só vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita se
pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem”
(ANDRADE, 1922, p. 9).
Mas também o moderno figura como elemento natural do presente: “Escrever
arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de
exterior: automóveis, cinema, asfalto. Se essas palavras frequentam-me o livro é porquê
com elas escrever moderno, mas porquê sendo meu livro moderno, elas têm nele razão
de ser” (ANDRADE, 192, p. 34). Escrito em forma de poema, o Prefácio
Interessantíssimo vale como um primeiro manifesto do Modernismo brasileiro, ao
afirmar princípios que lidam com a relação conflituosa entre o peso da tradição e a
novidade da modernidade. Esse ideário será retomado e aprofundado pelo próprio Mário
de Andrade em textos posteriores, tais como A escrava que Não é Isaura (1924), onde
ele expõe princípios de uma poética moderna.
Ainda no mesmo ano de 1922, a artista plástica Tarsila do Amaral, retorna de
Paris, onde permaneceu por dois anos estudando arte com o pintor Émile Renard (1850-
1930). Sua volta, porém, se deu após a Semana de Arte Moderna. Mas, logo, ela
71
conhece o grupo modernista através de sua amiga Anita Malfatti e começa a namorar
Oswald de Andrade. Rapidamente, formou-se o “Grupo dos Cinco” (as duas pintoras,
Mario, Oswald e Menotti), que perdurou por seis meses. Num depoimento em 1950,
Tarsila afirma: “Parecíamos uns doidos em disparada por toda parte no Cadillac de
Oswald, numa alegria delirante, à conquista do mundo para renová-lo” (TARSILA apud
GONÇALVES, 2012, p. 330).
Em dezembro de 22, a pintora retorna a Paris junto com Oswald. Em 1923, o
casal “Tarsiwald” conhece o poeta franco-suíço Blaise Cendrars (1887-1961), que
apresenta a cena intelectual parisiense. É interessante notar que essa vivência na França
representou uma iniciação efetivamente moderna para Tarsila. Nesse período, a artista
estudou com os mestres cubistas André Lhote (1885-1962), Albert Gleizes (1881-1953)
e Fernand Léger (1881-1955). Sobre essa passagem parisiense, a critica de arte,
Annateresa Fabris, no artigo Figuras do Moderno possível (2002, p. 45), diz:
Tarsila do Amaral pode ser considerada a figura mais emblemática da relação
dos artistas brasileiros com a problemática da modernidade. Uma
problemática aprendida no estrangeiro para depois ser implantada no Brasil
(...). Não se pode esquecer que, em Paris, a artista não realiza apenas um
processo de iniciação moderna. A atmosfera nacionalista que impregnava a
Escola de Paris é também determinante nesse processo de formação, gerando
na pintora a vontade de conciliar o aprendizado moderno (sobretudo as lições
de seu terceiro mestre francês, Léger) com um conjunto de signos formais
provenientes da cultura popular brasileira. Disso deriva um aspecto peculiar
de sua pintura que Icleia Cattani denomina de “lugares incertos”, isto é, de
espaços de representação situados entre dois sistemas formais e duas culturas,
nos quais o que se evidencia é a permanência de diferenças e de
multiplicidades espaciais e temporais. A síntese elaborada por Tarsila,
sobretudo no momento Pau-Brasil, não exclui os aspectos antagônicos dos
diversos sistemas simbólicos mobilizados: ao contrário, acolhe-os
harmoniosamente, realizando uma utopia visual (...).
Em Paris de 1923, “Tarsiwald” conhecem artistas modernos como Pablo
Picasso, Brancusi, Stravinsky, Eric Satie e Jean Cocteau. Para além da convivência com
seus conterrâneos como Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Paulo Prado e Olívia Guedes
Penteado. De volta ao Brasil, em 1924, Tarsila, Oswald, Mário de Andrade, Blaise
Cendrars e outros modernistas realizam a célebre viagem rumo a Minas Gerais, que
passou para a crônica do movimento como uma viagem de descoberta do Brasil. Tanto é
que Tarsila teria dito que a viagem havia despertado nela o “sentimento de brasilidade”,
conceito cunhado por Mário de Andrade.
72
Plasticamente, Tarsila é quem dá a cara ao movimento modernista. Sua utopia
visual brasileira, repleta de “lugares incertos”, soube associar o aprendizado com os
mestres franceses (Lhote, Gleizes e Léger) aos temas nacionais. Como disse Oswald,
Tarsila é essa “caipirinha vestida por Poiret” (famoso estilista francês da época). Assim,
vemos surgir a primeira fase “pau-brasil”, caracterizada pelas paisagens nativas e
figurações líricas, onde talvez a obra E.F.C.B (1924) seja um ícone: com a explosão do
Brasil moderno, sua vontade antropofágica latente e sua capacidade para apropriar-se do
melhor da escola francesa. Nesta, como em outras obras, da primeira fase do pau-brasil
– A caipirinha (1923), Carnaval em Madureira (1924), Morro da favela (1924) La gare
(1925) –, Tarsila recria essa estética nos trópicos, com liberdade e energia, em um
processo de enraizamento, ou, melhor dizendo, em um processo de abrasileiramento.
2.5.2. Manifesto da poesia Pau-Brasil (1924)
Em 18 de março de 1924, Oswald de Andrade publica no jornal Correio da
Manhã o seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil. A poesia Pau-Brasil, escreve Oswald, “é
uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das
gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta” (Mário apud Telles,
2012:465 a 471). E, ainda, ele diz: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e
neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos”.
Com essa concisão lapidar, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil antecipa vários princípios
que alcançam sua forma antropofágica plena no Manifesto de 1928. Como diz Jorge
Schwartz:
Aquilo que Rego Monteiro e Mario de Andrade (Macunaíma) intuem e
antecipam, Oswald de Andrade dá sustentação teórica, Tarsila do Amaral,
extraordinária forma plástica e, desta feliz combinação, resulta uma aguerrida
retórica de política cultural celebrada até os dias de hoje. A poesia e a pintura
Pau Brasil de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral de 1924 prefiguram,
quatro anos antes, a Antropofagia, que tem lugar em 1928. (...) O uso
metafórico do pau-brasil, a madeira que foi o primeiro produto de exportação
brasileiro, já contém o germe do movimento, ao subverter a tradicional
relação entre metrópole e colônia: “Dividamos: poesia de importação. E a
poesia pau-brasil, de exportação”, afirma Oswald no referido manifesto.
2.6. Manifesto antropófago (1928)
73
O Manifesto Antropófago (SCHWARTZ, 2002, p. 473,474) talvez tenha sido o
ápice da subversão e, sobretudo, da concepção de uma identidade e de uma cultura
genuína brasileira dentro do Modernismo. É como se o movimento modernista, até este
exato momento, estivesse germinando, aqui e ali, sementes. E que, por fim, floresceria
e encontraria sua forma plena neste manifesto.
Para compreender melhor a importância do Manifesto Antropófago para a
cultura brasileira é importante recordar a definição de identidade cunhada pelo
sociólogo Renato Ortiz: “Toda identidade se define em relação a algo que lhe é exterior;
ela é uma diferença” (1986:20). E é isso que o manifesto conquistou: criou uma
identidade nacional única, que é uma diferença em relação à da cultura europeia.
Em 1928, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, junto a um grupo de
escritores, artistas e filósofos, fundaram uma corrente artística e intelectual à qual
chamaram Movimento Antropofágico. Surge, então, a agressiva Revista de
Antropofagia (1928), na qual Oswald publica seu manifesto e ataca com força o estatuto
artístico cultural nacional da época, enquanto Tarsila produz a etapa mais radical de sua
pintura.
O Movimento Antropofágico criou um novo significado, principalmente,
revolucionário do conceito de antropofagia e, consequentemente, desenvolveu também
um novo olhar sobre as civilizações pré-coloniais da América do Sul. Para os
modernistas brasileiros, o canibalismo era algo bem diverso daquele inventado e
difundido pela cultura europeia. Os primeiros conquistadores e missionários do “Novo
Mundo” deslocavam os relatos de suas próprias atrocidades contra os povos da América
com histórias sobre o horror canibal de seus selvagens. Como, por exemplo, os relatos
de Hans Staden (1525-1579). Em seu livro Hans Staden: suas viagens e captiveiro entre
os selvagens do Brasil (1525), o viajante alemão contribuiu para a constituição desse
imaginário europeu quinhentista de que a terra brasílica era o país tenebroso e
sanguinolento dos canibais.
Em contrapartida, os relatos de Jean de Léry (1536-1613) e de Michel de
Montaigne (1533-1592) apontam para uma compreensão distinta sobre a antropofagia
brasileira. O relativismo cultural presente no ensaio Sobre os Canibais, de Montaigne,
publicado no livro Os ensaios: uma seleção (1580/2010), chega a ser emocionante:
“Acho que não há nada de bárbaro e de selvagem nessa nação, a não ser que cada um
74
chama de barbárie o que não é seu de costume”. E, ainda, sobre o ritual de antropofagia
dos tupinambás, Montaigne afirma (2010, p. 140-157):
Não fico triste por observarmos o horror barbaresco que há em tal ato, mas
sim por, ao julgarmos corretamente os erros deles, sermos tão cegos para os
nossos. Penso que há mais barbárie em comer um homem vivo do que comê-
lo morto, em dilacerar por tormentos e suplícios um corpo ainda cheio de
sensações, fazê-lo assar pouco a pouco, fazê-lo ser mordido e esmagado
pelos cães e pelos porcos (como não apenas lemos mas vimos de fresca
memória), não entre inimigos antigos, mas entre vizinhos e compatriotas, e, o
que é pior, a pretexto de piedade e religião) do que assá-lo e comê-lo depois
que está morto. (...) Portanto, podemos muito bem chamá-los de bárbaros em
relação às regras da razão, mas não a nós, que os ultrapassamos em toda a
espécie de barbárie. A guerra deles é toda nobre e generosa e tem tanta
desculpa e beleza quanto se pode permitir essa doença humana; não tem
outro fundamento entre eles além da busca da virtude.
É evidente que Oswald de Andrade leu o relato de Montaigne. Em seu Manifesto
Antropófago, ele diz: “Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Oú Villegaignon print
terre. Montaigne”.
Pode se dizer, inclusive, que a subversão do olhar modernista brasileiro sobre a
antropofagia já está, de certa forma, implícito no ensaio de 1580. Afinal, Montaigne
enfatiza que o canibalismo dos tupinambás constituía um ato de virtude:
Depois de tratar bem por muito tempo seus prisioneiros, e com todas as
comodidades que pode imaginar, quem for o dono deles faz uma grande
assembleia com seus conhecidos. (...) os dois, em presença de toda a
assembleia o matam a golpes de espada. Feito isso, assam-no e o devoram
juntos, e mandam pedaços aos amigos ausentes. Não é como se pensa, para se
alimentarem, assim como faziam antigamente os citas, mas para simbolizar
uma vingança extrema (MONTAIGNE, 2010, p. 140,157).
E esse é um dos sentidos pelos quais Oswald se inspira na tribo tupi. Ele resgata
a prática desse canibalismo – comer a carne dos inimigos para adquirir suas virtudes e
forças – como um ato simbólico. E, assim, cria o seu próprio canibal; um canibal
genitor da cultura brasileira. Um ser antropófago, que devora o outro, no sentido
dialético, incorporando as qualidades do inimigo para vencer a barreira da alteridade.
“Só me interessa o que não é meu”, diz Oswald em seu manifesto.
A razão antropofágica é também um gesto ideológico que Oswald encontra para
resolver o dilema da dependência cultural das vanguardas europeias, sem cair na mera
imitação. E para, assim, conseguir transformar o que vem de fora em algo novo –
genuinamente brasileiro. O gesto simbólico de comer o colonizador fala sobre a fusão
75
da razão moderna e do mágico espírito da selva. Mas também é um gesto ideológico ao
abrir um diálogo entre cultura erudita e cultura popular, entre modernidade e
regionalismo, entre projetos do futuro e a memória oral do passado, entre tecnologia e
natureza.
A metáfora da antropofagia pode ser entendida como um processo de
hibridização cultural; mas, sobretudo, como um caminho para a construção de uma
cultura nacional, livre e sem limites.
A importância do movimento antropofágico para a cultura brasileira, a meu ver,
transcende o momento histórico no qual foi concebido. Seu alcance não apenas nutriu as
vanguardas históricas, como também o Concretismo, o Tropicalismo, o Cinema Novo
etc. Mas não parou por aí. Assim como enfatiza Adriano Pedro, no artigo “Mestiçagem
de histórias” que está no livro Histórias mestiças (2014, p. 24,25):
Para o intelectual moderno, a antropofagia tornou-se uma ferramenta
epistemológica libertadora, fiel a nossas origens mestiças. (...) Aprender com
o ameríndio e o africano implica desaprender histórias europeias. Pode-se
pensar na antropofagia como uma epistemologia do Sul, no termos de
Boaventura de Sousa Santos, ou num processo de desocidentalização, nos
termos de Walter Mignolo.
Pedrosa ainda fala na possibilidade da criação de uma caixa de ferramentas
mestiça e antropofágica capaz de canibalizar a história e a cronologia. Uma caixa
aberta, representando a cultura brasileira – plural, diversa, heterogênea, polifônica etc.
Nesse sentido é preciso prosseguir buscando outros modelos e teorias além das
eurocêntricas, não descartando-os completamente, mas mesclando-os com
outros – rumo a uma caixa de ferramentas mestiça, antropofágica. (...) O
desafio é complexificar a caixa de ferramentas mestiça, antropofágica, não
apenas em relação a temas e imagens, mas também em termos de conceitos e
linguagens (PEDROSA, 2014, p. 25).
Esse desafio de complexificar essa “caixa de ferramentas”, proposto por Adriano
Pedrosa, atualiza a antropofagia e a traz para dentro da contemporaneidade. Na
realidade, a antropofagia pode ser compreendida como um movimento em aberto, como
um conceito que ainda serve como modelo nos dias de hoje. Pois, na perspectiva de uma
construção da identidade cultural, a antropofagia não representa apenas uma ruptura,
mas, principalmente, uma emancipação cultural.
76
Se olharmos de lá para cá (dos anos 1930 até a primeira década do século XXI),
é absolutamente evidente que muitas águas rolaram, porém nenhum movimento cultural
obteve esse nível de descolamento dos modelos e teorias eurocêntricos como o
movimento antropofágico. Para esse capítulo, esse era o ponto que almejava alcançar;
ou seja, mostrar que a construção de uma identidade e de uma cultura genuinamente
brasileira acontece efetivamente dentro do modernismo com o movimento
antropofágico. E, talvez, por ser um conceito aberto, a antropofagia perdure, como uma
possível ideia de cultura, sem limites e livre, na contemporaneidade. Mesmo que hoje
esteja esquecida e um tanto soterrada debaixo dos bens de consumo de nossa Indústria
Cultural / Sociedade de Espetáculo.
No artigo “A cor do modernismo brasileiro: a navegação com muitas bússolas”,
inserido no livro XXIV Bienal de São Paulo: Núcleo Histórico: Antropofagia e histórias
de canibalismos (1998), Paulo Herkenhoff afirma (337):
Analisando a crise da ideia de história, afirma Gianni Vattimo que “filósofos
do Iluminismo, Hegel, Marx, positivistas, historicistas de todo tipo
pensavam, mais ou menos todos eles do mesmo modo, que o sentido da
história era a realização da civilização, quer dizer, da forma do homem
europeu moderno”. Insistimos em que, se para Hegel a selva era espaço fora
da história, para os artistas brasileiros seria a única possibilidade para afirmar
uma historia autóctone, anterior à colonização, no projeto político moderno
de emancipação cultural.
Afinal, como bem diz Oswald em seu manifesto antropófago: “Antes dos
portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”.
2.7. Segunda fase do Modernismo no Brasil (1930-1945)
A Segunda Geração Modernista, também chamada de Geração de 1930, se
consolidou em um período de tensões ideológicas e políticas. Acontecia a Segunda
Guerra Mundial, e o Estado novo no Brasil – ditadura de Getúlio Vargas (1937-45). As
transformações na política impactaram completamente o movimento modernista, como
recorda Schwarz (2002, p.14):
Passagem da etapa eufórica (dos anos vinte) com Tarsila e Oswald, Pau-
Brasil, para a década disfórica dos anos 30, em que esta mesma Tarsila
produz a esplendida tela Operários, ou quando o próprio Oswald faz a “mea
77
culpa” em que se considera um palhação de classe, filia-se ao PC durante
quinze anos e passa a produzir textos de tese. Uma espécie de dobradiça da
história representada por uma visão utópica e otimista dos anos vinte,
corroída pela revelação da complexa realidade representada nos anos trinta e
que cristalizou a transição do estético para o ideológico.
Tal como afirma David Harvey no capítulo 1, a Modernidade experimentou, ao
longe do século XX, as mais diversas, ambíguas e contraditórias mitologias. O mesmo
processo se deu no Brasil, mas é claro, com suas características específicas. A primeira
etapa do Modernismo no Brasil deu curso a uma cultura revolucionária, transgressiva,
subversiva, contrária às formas tradicionais e clássicas de expressão, em todos os
domínios: pintura, escultura, arquitetura, dança, música e literatura. Porém, na virada
para os anos 1930, com a propagação das utopias e ideologias políticas – socialismo,
comunismo, anarquismo, fascismo, etc. – a cultura experimentou sua face engajada e
panfletária. A arte com viés político também tomou conta de uma ala do movimento
modernista. Nas artes plásticas, surge, com força, no Brasil, o realismo socialista que
procurava mitologizar o proletariado. A consolidação dessa arte engajada pode ser bem
ilustrada com a obra Operários (1933), de Tarsila do Amaral. Nessa altura, Oswald de
Andrade também radicaliza; renegando seu passado vanguardista e se autodenomina
como “o palhaço da burguesia”. Ao lado de sua nova companheira, Patrícia Galvão
(1910-1962), mais conhecida como Pagu, Oswald funda o jornal O Homem do Povo,
em março de 1931.
De fato, a década de 1930 encerra o experimentalismo estético das vanguardas;
abrindo passagem para uma pesquisa do social, privilegiando o engajamento político e
estabelecendo uma nova sintonia com o que estava acontecendo na Europa do entre
guerras:
Na passagem dos anos 20 aos 30, em detrimento do experimentalismo,
comprova-se a politização da arte e da literatura. As capas das obras literárias
são reveladoras desse movimento: passa-se de um verdadeiro festim de
formas e cores – do design criativo e desafiador – para o enfoque sério e
engajado às das causas sociais, captadas com grande sensibilidade, por
exemplo, pela pintura de Cândido Portinari ou pela gravura de Lívio Abramo
(Schwarz, 2002, p.14).
Com a revolução de 1930, as mudanças que ocorrem são orientadas
politicamente e o Estado procura consolidar o próprio desenvolvimento social. Dentro
desse quadro, as teorias sobre a raça tornaram-se obsoletas, sendo necessário a criação
78
de uma outra interpretação do Brasil. Surge os estudos de Gilberto Freyre que irão tratar
da questão, revolucionando os estudos afro-brasileiros, passando do conceito de raça ao
conceito de cultura. Os anos 1930 foram decisivos na reorientação da historiografia
brasileira. Três obras mestras aparecem nesse período: Evolução Política do Brasil, de
Caio Prado Jr. (1933), Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre (1933) e Raízes do
Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda (1936). A tríade “Prado, Freyre e Buarque”
promove, a partir de variadas perspectivas, uma mudança radical na reflexão sobre a
especificidade do brasileiro. Vale também recordar que a Universidade de São Paulo é
fundada também neste período, em 1934.
Renato Ortiz (1985) afirma que a obra Casa-Grande e Senzala, de Gilberto
Freyre possibilitou a criação de uma “carteira de identidade” do brasileiro, ao
retrabalhar a problemática da cultura brasileira:
A passagem do conceito de raça para o conceito de cultura elimina uma série
de dificuldades colocadas anteriormente a respeito da herança atávica do
mestiço. Gilberto Freyre, em Casa-Grande e Senzala, transforma a
negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar
definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo
desenhada. As condições sociais desse momento eram diferentes, a sociedade
brasileira já não mais se encontrava em transição, os rumos do
desenvolvimento eram claros e até um novo estado procurava orientar essas
mudanças. O mito das três raças torna-se então plausível e pode-se atualizar
como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas
ambiguidades das teorias racistas, ao serem reelaboradas pode difundir-se
socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do
cotidiano, ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era
mestiço torna-se nacional (Ortiz, 1985, p.41).
2.8. Os anos dourados (1950)
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o início do período democrático no
Brasil (queda de Getúlio Vargas), o país entra em um novo momento da Modernidade:
na era da racionalização. A década é marcada pelo desenvolvimento: a planificação, a
eficácia, a formação tecnológica, a maximização do ritmo de crescimento. Mais uma
vez é interessante recordar David Harvey (2013), naquilo que ele se refere ao mito da
racionalidade. Guardada a devida proporção, pode-se sinalizar mais um paralelo com a
Modernidade europeia e a Modernidade brasileira, no que diz respeito, por exemplo, a
arquitetura. Se o mito da racionalidade europeia encontra sua perfeita forma na
arquitetura moderna de Mies van der Rohe (1886-1969) e Le Corbusier (1887-1965), no
Brasil, esse mito encontra sua forma na arquitetura de Oscar Niemeyer (1907-2012).
79
Como diz Harvey (2913,p.39), “Foi esse o período em que as casas e as cidades
puderam ser livremente concebidas como máquinas nas quais viver”. Poder-se-ia dizer,
então, que o Modernismo ganha, nesse período, seus contornos arquitetônicos pelas
mãos de Niemeyer e Lúcio Costa (1902-1998), tendo sua consagração com a construção
de Brasília (1957).
Mas, voltando ao início dos “anos dourados”, a abertura democrática
representou um período marcado por uma grande efervescência política e cultural. O
processo de industrialização do país trouxe uma diversificação de produtos industriais e,
também, representou uma alteração no consumo e no comportamento de boa parte da
população urbana. Como já vimos, a paisagem urbana também se modernizava, com a
construção de edifícios e casas mais funcionais e menos adornadas.
Vale ressaltar que em 1947 é criado o Museu de Arte de São Paulo, o MASP. E,
em 1948, mais dois museus de Arte Moderna são inaugurados: o MAM/SP e o
MAM/RJ. A Companhia Vera Cruz de cinema surge no final de 1949. E a primeira
emissora brasileira de televisão, a TV Tupi, nasce em 1950.
Aos poucos, foi-se consolidando uma sociedade urbano-industrial, sustentada
por essa política desenvolvimentista. Com esse modelo de sociedade, um novo estilo de
vida surge, difundido pelas revistas, pelo cinema e pela televisão. Pode-se dizer que é o
começo da Indústria Cultural e da cultura de massas no Brasil.
Se, por um lado, havia um otimismo latente representado pelo desenvolvimento
do país, consagrando o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), por outro lado,
existia uma vontade, em várias áreas da cultura, de transformar a realidade social e
cultural do país.
É por isso que Renato Ortiz (1985) enfatiza a importância da criação do Instituto
Superior de Estudos Brasileiros, o ISEB, que surge na década de 1950. Para o
sociólogo, os intelectuais “isebianos” remodelam novamente a temática da cultura
brasileira, acrescentando novos rumos na discussão:
Os intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, ISEB, analisam a
questão cultural dentro de um quadro filosófico e sociológico. Eles dirão que
a cultura significa as objetivações do espírito humano. Mas eles insistirão no
fato de que a cultura significa um vir a ser. (...) Cultura alienada,
colonialismo e autenticidade cultural são termos forjados pelo ISEB. Penso
que não seria exagero considerar o ISEB como matriz de um tipo de
pensamento que baliza a discussão da questão cultural no Brasil dos anos
1960 até hoje (Ortiz, 1985, p.45 e 46).
80
Para Ortiz, a atualidade do pensamento do ISEB recai no fato de não ser uma fábrica de
ideologia do governo de Juscelino Kubitscheck:
O período Kubitscheck se caracteriza por uma internacionalização da
economia brasileira justamente no momento em que se procura fabricar um
ideário nacionalista para se diagnosticar e agira sobre os problemas
nacionais. Por outro lado, o golpe de 1964 encerrou, definitiva e
autoritariamente, as atividades deste grupo de intelectuais. O que se
propunha, portanto, como ideologia reformista da classe dirigente que
procurava modernizar o país é estancado e, paradoxalmente, no momento em
que o capitalismo brasileiro irá tomar uma força até então nunca vista em
nossa história (Ortiz, 1985, p.47).
2.9. A ditadura e a Indústria Cultural (1964-1985)
Acredito que 1964 pode ser considerado um marco na história brasileira. Na
verdade, o golpe possui um duplo significado: por um lado ele se define por
sua dimensão essencialmente política, por outro, aponta para transformações
mais profundas que se realizam no nível da economia. Os economistas
mostram que a partir do governo de Juscelino se instaura uma segunda
revolução industrial no Brasil, na medida em que o capitalismo atinge formas
mais avançadas de produção. O ano de 1964 é visto, tanto pelos economistas
quanto pelos cientistas políticos, como um momento de reorganização da
própria economia brasileira que cada vez mais se insere no processo de
internacionalização do capital. O golpe militar tem evidentemente um sentido
político, mas ele encobre também mudanças econômicas substanciais que
orientam a sociedade brasileira na direção de um modelo de desenvolvimento
capitalista bastante específico (Ortiz, 1985, p.80)..
Quando pensamos sobre a cultura produzida no período da Ditadura Militar no
Brasil (1964-1985), é comum recordar da cultura de resistência, de esquerda, que lutou
bravamente na clandestinidade contra o regime. Porém, pouco correlaciona-se o
desenvolvimento da Indústria Cultural com o governo militar. Em Cultura brasileira e
identidade nacional, Renato Ortiz demonstra de que forma isso ocorreu.
Para o regime militar, incentivar o desenvolvimento da Indústria Cultural e da
cultura de massas era uma estratégia política importante e foi utilizada como
propaganda de governo, principalmente, com o crescente desgaste político, à medida
que a censura tornava-se mais rígida e truculenta. Ao adotar tal estratégia política
cultural, o regime pretendia se aproximar da classe média, consolidando uma nova base
de apoio. Sob o efeito das transformações econômicas do país, especialmente do
chamado “milagre econômico” (1969-1973), a Ditadura Militar além de estimular e
organizar o mercado de bens culturais, criou instituições que se ocuparam das diversas
esferas da cultura como: Embrafilme (cinema), o Instituto Nacional de Teatro, o
81
Instituto Nacional do livro e a Funarte (artes e folclore). Assim como recorda Renato
Ortiz (1986, p. 83):
O crescimento da classe média, a concentração da população em grandes
centros urbanos vão permitir ainda a criação de um espaço cultural onde os
bens simbólicos passam a ser consumidos por um público cada vez maior. O
ano de 1964 inaugura um período de enorme repressão politica e ideológica,
mas significa também a emergência de um mercado que incorpora em seu
seio tanto as empresas privadas como as instituições governamentais.
Durante o período 1964-1980 ocorre uma formidável expansão, no nível da
produção, da distribuição e do consumo de bens culturais. É nesta fase que se
da a consolidação dos grandes conglomerados que controlam os meios de
comunicação de massa (TV Globo, Ed. Abril, etc). Um rápido apanhado das
diferentes áreas culturais mostra a evidência do processo de expansão – boom
da literatura em 1975, o advento do crescimento da indústria do disco e do
movimento editorial. Os dados relativos à imprensa exprimem claramente a
expansão do volume do mercado consumidor.
Mais uma vez é interessante retomar a teoria de David Harvey (2013) sobre os
mitos da Modernidade. Se na década de 1930, o Modernismo encontrou sua forma
política na figura do proletariado. Agora, o Modernismo encontra a sua versão
reacionária, assim como se deu na Itália com o regime político fascista de Mussolini que
se apropria das experiências estéticas dos futuristas italianos. E da mesma forma em que
ocorreu na Alemanha Nazista na qual o regime acabou por se utilizar dos projetos da
Bauhaus para a construção dos campos de concentração. A Ditadura Militar Brasileira
se utiliza do desenvolvimento da Indústria Cultural no Brasil como propaganda de
governo.
Ao afirmar, por exemplo, que o homem brasileiro precisa se habituar a
consumir cultura em sua vida diária, o Estado se propõe, por um lado,
realizar uma potencialidade cultural do mercado consumidor, por outro
assegurar uma ideologia de democratização que concebe a distribuição
cultural como núcleo de uma política governamental (Ortiz, 1985, p.117).
Para Ortiz, a experiência do desenvolvimento da Indústria Cultural em plena
Ditatura representou uma crise institucional da cultura, consolidando um processo de
hegemonização da cultura brasileira, algo que mesmo com a abertura econômica em
1985, continuou a ocorrer:
No entanto o conceito de democracia, ligado a uma perspectiva de difusão
mercadológica, é mais amplo. Nós o encontramos, por exemplo, como
ideologia trabalhada pelas Indústrias Culturais. Como observam Adorno e
Horkheimer, quando forjam o conceito de Indústria Cultural, a noção de
cultura de massa pressupõe a ideia de democracia, pois as agências, na
82
medida em que desempenhariam meramente uma função de distribuição,
seriam neutras. O Estado e as Indústrias Culturais despolitizam a questão da
cultura, uma vez que as relações sociais são apreendidas como expressão
popular. O discurso de instituições como TV Globo, Abril, empresas de
discos se assemelham à sua ideologia. A direção para a qual aponta o
desenvolvimento do capitalismo brasileiro nos leva a pensar que a ação
estatal e privada caminhariam no sentido da instauração de uma hegemonia
cultural (Ortiz, 1985, p.126).
83
CAPÍTULO 3
JORNALISMO CULTURAL HOJE
3.1. Um breve olhar sobre o Caderno 2
O terceiro capítulo pretende destacar a produção específica do Caderno 2 do
jornal O Estado de S. Paulo durante o mês de agosto de 2014. A escolha pelo período
específico foi randômica. Neste capítulo, investigaremos de que forma o Caderno 2
concebe e realiza suas escolhas editorais. Foram examinadas todas as reportagens,
matérias, notícias, notas, entrevistas publicadas aos domingos neste mês. Para uma
investigação mais complexa, foram selecionados quatro textos que estão indexados no
anexo desta dissertação.
A escolha de analisar o Caderno 2, do jornal O Estado de S. Paulo, não foi
aleatória. O Estado é um dos jornais com maior circulação em São Paulo. Segundo o
Instituto Verificador de Circulação (IVC), em 2014, o jornal saiu com uma média de
169 mil exemplares diários em abril, se consolidando como o líder em circulação no
Estado de São Paulo. A Folha de S. Paulo, principal concorrente, teve no mesmo
período, a circulação média diária de 133 mil exemplares13
. Na comparação nacional, O
Estado de S. Paulo, circulou com uma média diária de 237.901 exemplares e ficou atrás
da Folha que saiu com 351.745 exemplares na média diária14
. Diante da projeção do
jornal O Estado de S. Paulo, tanto em São Paulo, como no Brasil, fica evidente a
importância do diário como exemplo de jornalismo praticado.
3.2. Caderno 2: a história que conta a evolução do Jornalismo Cultural no Brasil
13
Disponível em <http://goo.gl/OCWkVY>. Acessado em 20/06/2015. 14
Disponível em <http://goo.gl/OWwepr>. Acessado em 20/06/2015.
84
Antes de adentrarmos no Caderno 2 propriamente dito, é importante resgatar um
pouco a história do jornal O Estado de S.Paulo e também do espaço dedicado à cultura
dentro dele.
Fundado em janeiro de 1875, com o nome de A Província de São Paulo15, o
jornal era formado por um grupo de republicanos com cerca de 20 associados. Em 1890,
já com a maior tiragem da capital paulista – 7 mil exemplares – o jornal é rebatizado de
O Estado de S. Paulo. Após dois anos, Júlio de Mesquita (1862-1927) adquire o jornal –
atualmente é o impresso mais antigo de São Paulo em atividade –, tornando-se o único
proprietário.
Em seu número inaugural, O Estado já tinha um espaço dedicado à literatura. No
rodapé da primeira página, o jornal publicou o primeiro capítulo do folhetim Magdalena
de Julio Sandeau16
. A presença dos romances folhetins nos jornais – prática comum na
aurora da imprensa brasileira, de influência francesa –, estendeu-se até cerca dos anos
1960. No Estado de S. Paulo, os folhetins tiveram seu apogeu nos anos 20, com
publicações diárias de autores nacionais como Afonso Schmidt (1890-1964) e
estrangeiros como Walter Scott (1771-1832). Utilizado como recurso para aumentar as
vendas, os folhetins abriram espaço para a criação dos rodapés de crítica.
Mas essa não era a única forma pela qual a literatura se fazia presente nas
páginas dos jornais. Desde o princípio, a imprensa no Brasil é marcada pela presença do
dos chamados “homens das letras”. Ainda no século XIX, encontramos escritores como
Aluísio de Azevedo (1857-1913), Raimundo Correia (1859-1991), Alberto de Oliveira
(1851-1937), Raul Pompéia (1863 -1895) e Euclides da Cunha (1866-1909), nas
páginas do Estado.
No começo do século XX, acrescentam-se nomes como Olavo Bilac (1865-
1918), Guilherme de Almeida (1890-1969), Ruy Barbosa (1849-1923) e Monteiro
Lobato (1882-1948). Tal como foi apontado no capítulo 2: a atividade jornalística
representava tanto um meio de subsistência para os escritores e intelectuais, como
também uma estratégia de ascensão intelectual, uma vez que os periódicos constituíam a
base de circulação de ideias. Mário de Andrade, assim como Oswald de Andrade e
Menotti del Picchia também escreviam para os jornais de São Paulo.
15 Disponível em <http://goo.gl/FZ9erb>. Acessado em 28/07/2015.
16 Disponível em <http://goo.gl/FZ9erb>. Acessado em 28/07/2015.
85
E a modernidade que despontava na capital paulista – com o seu crescimento
urbano (automóveis) e industrial (fábricas, máquinas, locomotivas) na década de 1920 –
também acabou por impactar a imprensa local. Foi um período de efervescência, no
qual muitos jornais surgiram, tais como: Folha da Noite (1921), Folha da Manhã
(1925), Diário da Noite (1925) e Diário de S. Paulo (1929). Juntando-se ao grupo de
jornais fundados no século XIX: Correio Paulistano (1854), O Estado (1875), Diário
Popular (1884), Comércio de São Paulo (1893) e A Gazeta (1906).
Mesmo assim, a imprensa ainda engatinhava. As manchetes não existiam, ainda
não havia editorias (algo que aconteceria de forma mais evidente na década de 1940) e a
diagramação era praticamente inexistente. Nessa altura, os jornais circulavam com um
número de páginas quase irrisório; cerca de oito por edição. O aumento foi gradativo.
No final dos anos 1920, O Estado publicava em torno de 20 páginas.
A crítica ainda era incipiente. Apesar dos modernistas clamarem pela criação de
uma nova estética brasileira, o movimento não contribuiu muito para a inovação dos
textos críticos. Eles seguiam o estilo da crítica impressionista francesa; como podemos
notar na revista Klaxon17
. Marcada pela não-especialização de seus críticos e pelo uso
de critérios pessoais de análise do fenômeno literário e artístico, era basicamente uma
crítica opinativa e de rodapé. No artigo “Rodapés, tratados e ensaios: a formação da
crítica brasileira moderna no livro Papéis Colados, Flora Süssekind faz uma análise
sobre a história da crítica literária brasileira e afirma que a crítica predominantemente
impressionista acontece no Brasil até as décadas de 1940 e 1950:
Os anos 40 e 50 estão marcados no Brasil pelo triunfo da “crítica de rodapé”. O que
significa dizer: por uma crítica ligada fundamentalmente à não-especialização da
maior parte dos que se dedicam a ela, na sua quase totalidade bacharéis; ao meio em
que é exercida, isto é, o jornal – o que lhe traz, quando nada, três características
formais bem nítidas: a oscilação entre a crônica e o noticiário puro e simples, o
cultivo da eloquência, já que se tratava de convencer rápido leitores e antagonistas, e
a adaptação às exigências (entretenimento, redundância e leitura fácil)
(SÜSSEKIND, 1993, p. 14).
A crítica de rodapé foi ganhando espaço gradativamente na imprensa paulista.
Na década de 1930, muitos jornais como Correio Paulistano, O Estado, A Gazeta,
Folha da Noite, Folha da Manhã, Diário de S.Paulo passam a incluir em suas edições
os rodapés. Em 1938, encontramos, por exemplo, textos críticos sobre arte e literatura
de Sérgio Milliet (1898-1966).
17
Ver capítulo 2, página 83.
86
Ainda em 1930, o Estadão lançou o suplemento Rotogravura com destaque às
ilustrações e fotos. Era uma espécie de revista semanal com imagens dos principais
eventos, nas mais diversas áreas (política, economia, ciências, etc.) e que também
contemplava a cultura, especialmente artes e espetáculos.
Em 1934, a Universidade de São Paulo é fundada; mas a importância da
formação universitária dos críticos irá reverberar com força na imprensa paulista só na
década seguinte.
No período do Estado Novo, entre 1940 e 1945, O Estado de S. Paulo sofreu um
revés duro com a política de Vargas: foi interditado e passou a ser dirigido pelo
jornalista Abner Mourão. Como lembra o jornalista Oscar Pilagallo no livro História da
imprensa paulista (2011, p. 114):
Em São Paulo o único veículo da grande imprensa que não vergou sob a
pressão do Estado Novo foi o Estado (...). Foi essa atitude que levou Getúlio
Vargas a intervir diretamente no jornal.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e o início do período democrático no
Brasil (queda de Getúlio Vargas), o jornal volta para as mãos da família Mesquita.
Pilagallo relata também um detalhe interessante (2011, p. 123):
A família Mesquita decidiu não incluir na contagem do tempo da vida do
jornal os cinco anos em que esteve sob intervenção. Em 25 de março de
1940, o jornal levava o número 21.649; em 7 de dezembro de 1945, circulou
com o número 21.650.
Socorrido pelo capital privado de industriais e banqueiros como Gastão Vidigal
(1919-200l), dono do Banco Mercantil de São Paulo, o Estado entrava em 1946, num
ambiente de democracia, como uma empresa mais sólida e profissional.
Nesse sentido, fica evidente que as mudanças que ocorreram na imprensa –
como, por exemplo, a criação das editorias nos jornais, na primeira metade de 1940 – só
foram colocadas em prática no Estado de S. Paulo pós 1945.
Então, em 1940, os críticos acadêmicos, oriundos da USP, começam a se fazer
presentes na mídia, principalmente, aqueles que escreviam na revista Clima (1941-
1944). Aliás, se o período (1940-1950) representou o auge dos rodapés nos impressos,
também foi um momento de grande tensão e de disputa sobre o exercício da crítica.
Como ressalta Flora Süssekind (1993, p.17) “de um lado os antigos homens de letras,
87
que creem a consciência de todos, defensores do impressionismo, do autodidatismo, da
review como exibição de estilo. De outro, uma geração de críticos formados pelas
faculdades de filosofia (...) e interessados na especialização, na crítica ao personalismo,
na pesquisa acadêmica”.
Criada por ex-alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, a
revista Clima reuniu intelectuais como Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977), Décio
de Almeida Prado (1917-2000), Antonio Cândido (1918), Lourival Gomes Machado
(1917-1967) que estavam interessados em produzir uma crítica acadêmica. Não
demorou muito para que eles fossem trabalhar na grande imprensa, especificamente no
Estado de S. Paulo. Em 1946, por exemplo, Décio de Almeida Prado já escrevia críticas
de teatro na seção Palcos e Circos. Porém, talvez tenha sido a seção intitulada Letras e
Artes18
, publicada nas edições dominicais, entre 1956-1958, a mais renomada do
Estadão.
A nova crítica praticada pelos acadêmicos também teve Afrânio Coutinho
(1911-2000) como um grande defensor, no Rio de Janeiro. O crítico literário trouxe
para o Brasil as ideias do New Criticism, corrente de pensamento anglo-americana, que
defendia a crítica estética da literatura. A campanha de Coutinho virou livro Da crítica e
da nova crítica (1957) e ganhou diversas vezes as páginas dos jornais19.
3.2.1. Os anos 1950: mudanças na imprensa brasileira
Não é à toa que a década de 1950 é conhecida como “os anos dourados” do
jornalismo impresso no Brasil. Muitos são os fatores que contribuíram para o
florescimento dessa prática jornalística moderna. Com maior liberdade e com
desenvolvimento econômico, os jornais passaram por uma reformulação gráfica e
editorial, aperfeiçoando seus produtos e, consequentemente, aumentando as tiragens. O
processo de industrialização pelo qual o país passava foi decisivo neste processo. Com a
diversificação dos produtos industriais, os investimentos em propaganda tornaram-se
necessários e as grandes agências de publicidade surgiram. Para os jornais, isso
18
ZANIN, Luiz. Marco de época: Suplemento Literário do Estado. Matéria publicada no Blog Luiz Zanin
em 18 de novembro de 2007. Disponível em <http://goo.gl/7Jsdg8>. Acessado em 26/07/2015.
19 Por exemplo, encontramos no Suplemento Literário do Estado, no dia 08/03/1958, pág.51, uma nota
comentando as polêmicas causadas pelas ideias de Afrânio Coutinho. Disponível em
<http://goo.gl/G5GDGC>. Acessado em 28/07/2015.
88
representava nova fonte de renda e, em pouco tempo, boa parte de sua receita provinha
dos anúncios.
Como recorda a socióloga Alzira Alves de Abreu, no livro À modernização da
imprensa (1970-2000), jornais como Última Hora e Diário Carioca foram precursores
dessa modernização do jornalismo brasileiro:
A Última Hora, criada em 1951, com financiamento do governo, foi um dos
jornais mais inovadores do período, ao adotar técnicas de comunicação de
massa até então desconhecidas no Brasil, uma diagramação revolucionária e
grande racionalidade na gestão empresarial. O Diário Carioca, jornal mais
antigo, foi igualmente inovador ao introduzir, também em 1951, o uso do
lead (...). Foi ainda o Diário Carioca o primeiro a empregar uma equipe de
copidesque em sua redação, desempenhando um papel de formador de novos
quadros para a imprensa (2002:10).
A introdução do lead representou uma mudança de paradigma – é a
racionalização do jornalismo brasileiro. Com a prioridade da informação e da notícia em
primeiro lugar, instaurou-se definitivamente um modelo jornalístico, pressupostamente,
objetivo. E a crítica e os conteúdos analíticos, tidos como subjetivos e opinativos,
tornaram-se praticamente incompatíveis com a lógica diária dos jornais. É, por assim
dizer, o indício do fim da crítica nos impressos, que ainda irá se refugiar e resistir nos
suplementos literários, antes de se fechar na academia.
Se a crítica não era mais compatível com o novo jornalismo moderno e ligeiro
que se instaurava, por outro lado, este mesmo jornalismo precisava dar conta de noticiar
a cultura de massas e a incipiente Indústria Cultural que começava a surgir no Brasil. É,
supostamente por isso, que alguns jornais criam seus cadernos de cultura na década de
1950. O Última Hora passa a publicar o 3° Caderno em 1956; sendo o primeiro jornal a
inserir em suas edições, de terça a sexta-feira, um caderno de cultura. O Jornal do
Brasil cria o Caderno B, em 1958, voltado para a cobertura de teatro, artes, cinema e
variedades. Assim como a empresa Folha da Manhã S/A lança em dezembro de 1958 o
caderno diário de cultura Folha Ilustrada.
Se há, nessa altura, uma cisão entre jornalismo e reflexão; ainda fora reservado
um espaço para a crítica, o ensaio e o debate, dentro dos suplementos. O próprio nome
“suplemento” já sinaliza o intuito desse tipo de caderno: algo que complementa o todo,
porém que não faz falta ao conteúdo diário do jornal.
Os suplementos não apenas divulgavam as principais linhas da produção
artística e forneciam chaves para a compreensão das obras; mas eram também espaços
89
privilegiados de leitura, exigindo do leitor um exercício de interpretação. Os grandes
críticos e escritores passavam, necessariamente, por suas páginas.
É importante ressaltar que até 1950, já existiam suplementos literários, tais
como: Suplemento Literatura e Arte (1949-1953) do Correio da Manhã e o Suplemento
Dominical do Diário de S. Paulo. Mas o marco dentro do Jornalismo Cultural ocorre
em 1956, quando o Jornal do Brasil inicia a reforma editorial e gráfica e cria o
Suplemento Dominical (1956-1960), o SDJB, que tinha à frente o jornalista e poeta
Reynaldo Jardim (1926-2011). O SDJB inova não apenas por sua diagramação
revolucionária, como também pela qualidade de seu conteúdo – para além da crítica,
ensaios e crônicas, o suplemento publicava textos e poemas emblemáticos dos
movimentos concretistas e neoconcretistas. Nesse sentido, o Suplemento não cobria
apenas a cultura, mas era a própria manifestação da cultura.
Mas inicialmente, O SDJB não surgiu com um objetivo determinado; era uma
espécie de segundo caderno de cultura dedicado ao universo feminino, ao invés de um
suplemento literário. Tinha seções fixas dedicadas à literatura, filosofia, história, etc.
Com o tempo, cria sua identidade e passa a promover debates artísticos. O marco
ocorreu em 1959, com a publicação do Manifesto Neoconcreto20
. Assinado pelos
principais artistas plásticos do movimento como Lygia Pape (1927-2004), Franz
Weissmann (1911) e Lygia Clark (1920-1988), o manifesto contou também com os
artistas que lideravam o SDJB, Amílcar de Castro (1920-2002), Reynaldo Jardim e
Ferreira Gullar (1930). A partir daí, os artistas neoconcretos e suas manifestações
artísticas passaram a ter cada vez mais espaço nas páginas do suplemento, denotando o
definitivo rompimento do movimento com os concretistas de São Paulo.
Acompanhando essa tendência, O Estado de S. Paulo cria, em outubro de 1956,
o Suplemento Literário, que perdura até 1974. Idealizado pelo crítico literário Antonio
Candido, realizado pelo jornalista Júlio de Mesquita Filho (1892-1969) e dirigido pelo
crítico teatral Décio de Almeida Prado até 1966, o Suplemento contava com os
intelectuais paulistas da USP e da revista Clima como colaboradores: Paulo Emilio
Salles Gomes (cinema), Lourival Gomes Machado (artes plásticas), etc. Em seu
primeiro número, Décio de Almeida Prado definia o norte do caderno21
:
20 Disponível em <https://goo.gl/kuvfyC>. Acessado em 20/06/2015.
21 Suplemento literário disponível no site do Estadão. Disponível em <http://goo.gl/0wv0ge>. Acessado
em 20/06/2015.
90
O Suplemento não será jornalístico, nem no alto nem no baixo sentido do
termo. O jornal, por definição, por decorrência, poder-se-ia dizer, da própria
etimologia da palavra, vive dos assuntos do dia (...). A perspectiva do
Suplemento tinha, pois, de ser outra, mais desapegada da atualidade, mais
próxima da revista que, visando sobretudo a permanência, pode dar-se ao
luxo de considerar mais vital a crônica dos amores de um rapaz de 18 e uma
menina de 15 anos na Verona pré-renascentista, do que qualquer fato de
última hora, pelo motivo de que as crises, as guerras, até os impérios, passam
com bem maior rapidez que os mitos literários, muitos dos quais vêm
acompanhando e nutrindo a civilização ocidental há pelo menos 30 séculos.
O suplemento, dentro dessa perspectiva, era um espaço crítico (alheio às
urgências diárias do jornalismo) dedicado às pessoas ligadas à cultura; – livre para
debater ideias, apresentar novos autores e revisar os grandes clássicos.
Predominantemente crítico, o suplemento era recheado por resenhas, ensaios, seções
dedicadas à literatura, ao teatro, ao cinema e às artes plásticas. Contava também com
notas e colunas sobre lançamentos e eventos literários22
. Havia, sobretudo, uma
disposição pela aposta no novo e o desejo de fomentar no leitor o espírito crítico.
Pelo suplemento circularam textos inéditos de grandes nomes da literatura
nacional. Entre os poetas, figuraram Manuel Bandeira (1886-1968), Carlos Drummond
de Andrade (1902-1987), João Cabral de Mello Neto (1920-1999). Brilharam em suas
páginas escritores como Guimarães Rosa (1908-1967), Cecília Meireles (1901-1964)
Lygia Fagundes Telles (1923) e Dalton Trevisan (1925). E teve até a estreia do conto
“Ulisses” do então candidato a escritor: Francisco Buarque de Hollanda (1944). A lista é
extensa. Os sociólogos Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982) e Florestan Fernandes
(1920-1995) também marcaram presença. Mas a publicação não ficou apenas restrita às
letras, soube abrir espaço para a produção visual da época, lançando novos artistas
como Mira Schendel (1919-1988), Marcelo Grassmann (1925-2013), Renina Katz
(1925), Maria Bonomi (1935), que apresentavam seus trabalhos ao lado de nomes já
consagrados como Di Cavalcanti (1897-1976), Flávio de Carvalho (1899-1973),
Candido Portinari (1903-1962), Lívio Abramo (1903-1992).
É interessante notar que o Suplemento Literário do Estado de S. Paulo perdura
até a década de 1970, em plena Ditadura Militar (1964-1985). Como recorda Oscar
Pilagallo (2011:176), O Estado de S. Paulo assim como a Folha de S. Paulo apoiaram o
Golpe de 1964:
22 Suplemento literário disponível no site do Estadão. Disponível em <http://goo.gl/M4HQJc>. Acessado
em 20/06/2015
91
Os dois jornais, Estado e Folha, tinham a mesma opinião favorável sobre o
governo militar. Ambos aprovaram, por exemplo, o Ato Institucional n°2, de
outubro de 1965, que extinguiu os partidos políticos, cassou mandatos e
instituiu a eleição indireta para a Presidência da República. Pouco mais tarde,
os dois matutinos começaram a demonstrar ambiguidade em relação ao
regime.
A revisão da postura política do Estado ocorreu em 1968, com o endurecimento
do regime. Com o decreto do AI-5, o jornal passa a ser submetido à censura prévia, em
1972. E é então que o jornal passa a publicar em seu primeiro caderno, versos de Os
Lusíadas de Camões, no lugar das notícias políticas vetadas, em sinal de protesto.
Pilagallo enfatiza (2012:183) que o jornal fica sob censura até 3 de janeiro de 1975.
Curiosamente o Suplemento Literário do jornal não sofre censura, nem pressões,
durante a ditadura militar. O jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, na matéria Para
gostar de ler23
, enfatiza que: “o plano original foi cumprido à risca, independentemente
das tensões ideológicas e econômicas que o país viveu, como relatam seus
sobreviventes”. A não censura editorial do suplemento pode ser explicada por conta da
mudança da direção da publicação em 1966, quando Décio de Almeida Prado é
substituído por Nilo Scalzo (1929-2007). Nessa nova gestão, o suplemento volta-se para
a cultura de massa e a Indústria Cultural, produzindo conteúdos mais jornalísticos e
deixando de lado seu caráter de crítica e reflexão.
A teoria faz sentido, uma vez que, para o regime militar incentivar o
desenvolvimento da Indústria Cultural e da cultura de massas era uma estratégia política
importante e foi utilizada como propaganda de governo, principalmente com o crescente
desgaste político. Ao adotar tal estratégia política cultural, o regime pretendia se
aproximar da classe média, consolidando uma nova base de apoio. Sob o efeito das
transformações econômicas do país, especialmente do chamado “milagre econômico”
(1969-1973), o regime militar além de estimular e organizar o mercado de bens
culturais, criou instituições que se ocuparam das diversas esferas da cultura como
Embrafilme (cinema), o Instituto Nacional de Teatro, o Instituto Nacional do livro e a
Funarte (artes e folclore). Tal como afirma Renato Ortiz (1986, p. 83):
O crescimento da classe média, a concentração da população em grandes centros
urbanos vão permitir ainda a criação de um espaço cultural onde os bens simbólicos
passam a ser consumidos por um público cada vez maior. O ano de 1964 inaugura
23 Publicado no caderno “Mais!”, da Folha de S.Paulo, em 20/01/2008. Disponível em
<http://goo.gl/iJbMW2>. Acessado em 25/06/2015.
92
um período de enorme repressão politica e ideológica, mas significa também a
emergência de um mercado que incorpora em seu seio tanto as empresas privadas
como as instituições governamentais. Durante o período 1964-1980 ocorre uma
formidável expansão, no nível da produção, da distribuição e do consumo de bens
culturais. É nesta fase que se da a consolidação dos grandes conglomerados que
controlam os meios de comunicação de massa (TV Globo, Ed. Abril, etc). Um
rápido apanhado das diferentes áreas culturais mostra a evidência do processo de
expansão – boom da literatura em 1975, o advento do crescimento da indústria do
disco e do movimento editorial. Os dados relativos à imprensa exprimem claramente
a expansão do volume do mercado consumidor. Em 1960 a tiragem dos periódicos
diários era de 3.951.584, em 1976 ela passa para 12721.272.901.104 diários.
Se os anos 1940 e 1950 foram fundamentais para o desenvolvimento da crítica
no Brasil – tendo primeiro os rodapés dos jornais como espaço insurgente e depois os
suplementos literários como destino final –; os anos 1960 e 1970 foram decisivos para a
solidificação da academia como o lugar seguro da crítica e, sobretudo, para a criação da
Indústria Cultural. O jornal, no que diz respeito à cultura, deixa de ser o território da
reflexão; e com o estabelecimento dos cadernos culturais, torna-se guia de
entretenimento, consumo e lazer. Não mais a crítica, mas o produto cultural será o norte
do Jornalismo Cultural.
Para dar conta da demanda de bens culturais oferecidas ao público, o jornalismo
configurou-se como um meio de comunicação de massa, objetivo e informativo. A
novidade, a atualidade, a agenda, a relevância, a amplitude, a difusão irão compor o
norte do Jornalismo Cultural.
Com o fim do Suplemento Literário em 1974, o Estado começa a se pautar,
progressivamente, pelos ditames da Indústria Cultural. Em 1975, num período de
reajuste do jornal, logo após o fim da censura prévia da Ditadura Militar, o Estado
publica o Suplemento do Centenário24
, reunindo matérias para celebrar os 100 anos do
jornal. O caderno circulou até abril de 1976.
Em outubro de 1976, O Estado passa a editar o Suplemento Cultural25
,
retomando as características básicas do extinto Suplemento Literário: formato tabloide e
as 16 páginas da edição dominical. O objetivo do caderno figurava no primeiro
editorial: “O Suplemento Cultural não só reata a tradição do Suplemento Literário, mas
amplia o campo de atuação deste, atendendo ao fato de exigirem as características do
mundo atual uma publicação mais abrangente, que não se contenha nos limites da crítica
literária, mas forneça ao leitor informações e comentários sobre artes, ciências humanas,
24
Disponível em <http://goo.gl/vG0YQs>. Acessado em 13/07/2015. 25
Disponível em <http://goo.gl/Bp6Wma>. Acessado em 15/07/2015.
93
ciências naturais, ciências exatas e tecnologia”. Com vida curta, deixa de circular em 1º
de junho de 1980.
No mesmo ano, o Estadão lança o caderno Cultura, um tabloide editado por
Fernão Lara Mesquita (1952), filho do jornalista Ruy Mesquita (1925-2013). Assim
como Suplemento Cultural, o Cultura também informava seus objetivos no editorial
inaugural: “(...) não pretende mais do que isso: despertar curiosidades, ser uma ponte
entre o nosso leitor e as últimas perguntas que o homem tem feito sobre si mesmo e
sobre o mundo que construiu e tem de enfrentar; estabelecer um elo de ligação entre o
que se pensa no Brasil e lá fora e o leitor de jornal, ‘esta praça pública do pensamento’.”
Tal como o Suplemento Cultural não trazia apenas cultura, mas também informava
sobre política, filosofia e ciências. A publicação encerrou suas atividades em 31 de
agosto de 1991.
3.3. Caderno 2 surge em 1986
Logo na capa do jornal O Estado de S. Paulo, do dia 6 de abril de 1986, era
possível ler a seguinte manchete: “Começa hoje a boa novidade: o Caderno 2”. E o texto
seguia: “Hoje, uma das surpresas de O Estado para 1986: o Caderno 2, que substitui,
com vantagem na informação, comentário e humor, a tradicional seção de artes.
Grandes entrevistas, reportagens com personagens do momento; os sussurros e as
últimas de uma coluna social sem chatice; artigos polêmicos; o panorama de Nova
York, Londres, Paris, Boston, Los Angeles, Barcelona, Washington e Buenos Aires. E
ainda os melhores programas de lazer, artes e espetáculos, com as dicas de nossos
críticos, os melhores cartunistas de Luis Gê a Henfil, quadrinhos clássicos e nacionais”.
Ao chegar no Caderno 2, na capa, estampados, estavam Chico Buarque e
Caetano Veloso, com a notícia de que os músicos iriam estrear um programa na TV
Globo. Dinâmico, leve, recheado de notas e matérias curtas, o Caderno 2 já deixava
claro a que veio: seria um guia de lançamentos, variedades, lazer, cultura e
comportamento, dedicado a produtos da Indústria Cultural. Além de cinema, shows,
espetáculos e exposições, o Caderno 2 trazia também quadrinhos, horóscopo e um seção
de bares e restaurantes. A primeira edição teve 16 páginas e circulou com cerca de 576
mil exemplares, um recorde para o período. O Caderno 2, apelidado de C2, quase
chegou a ser chamado de ETC, mas felizmente o nome não pegou; virando apenas o
nome de uma coluna interna.
94
Com cara de revista e um projeto gráfico ousado e diferente, contava com um
time bom de jornalistas em sua estreia, entre eles Caio Fernando de Abreu (1948-1996),
Nirlando Beirão, Antonio Bivar. O primeiro editor-chefe foi Luiz Fernando Emediato
que tinha como desafio conquistar o público jovem mostrando o lado leve da notícia26:
"Era um projeto arrojado tanto de marketing como cultural, pois pretendíamos derrubar
a Ilustrada (da Folha de S.Paulo), que reinava sozinha". Pelo Caderno 2 ainda passaram
os editores-chefes: Dib Carneiro Neto e Evaldo Mocarzel, Antonio Gonçalves Filho,
Marta Góes e José Onofre (1943-2009). Luiz Emediato recorda que outra conquista do
foi a promoção da crônica no caderno: "Além de reportagens, promovemos a volta da
crônica às paginas de um jornal brasileiro." Importantes nomes da crônica nacional
passaram pelo Caderno 2, como: Raquel de Queiroz (1910-2003), Paulo Francis (1930-
1997), Mário Prata, Ruy Guerra, João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), Matthew Shirts,
Nelson Motta, Daniel Piza (1970-2011) e Arnaldo Jabor.
Para Ignácio Loyola de Brandão, que há 16 anos escreve no caderno, a prática da
crônica é chamada de “literatura sob pressão”. Na crônica27
“Diversidade, afeto e língua
afiada: somos cronistas do Caderno 2 o jornalista diz: “(...) meus textos têm mais o jeito
e a cara do Caderno 2, onde convivo com alguns dos melhores cronistas deste País.
“Não há dois iguais entre nós, a diversidade nos marca, a variação de assuntos, os
campos vividos e explorados. Neste grupo, encontra-se divertimento e também
informação, esclarecimento, questionamento, opinião, briga, poesia, o que se precisar.
Daí sermos um conjunto compacto”. Atualmente, o caderno conta com os seguintes
cronistas que ocupam diariamente as páginas: Lúcia Guimarães, Vanessa Barbara,
Milton Hatoum, Roberto DaMatta, Luís Fernando Verissimo, Ignácio de Loyola
Brandão, Fábio Porchat, Marcelo Rubens Paiva, Sergio Augusto e Humberto Werneck.
Nesses quase 30 anos de história, o Caderno 2 passou por muitas reformulações
gráficas e editorais e hoje circula com 12 páginas diárias e tem uma tiragem de média de
169 mil exemplares, de acordo com os dados divulgados28 pelo Instituto Verificador de
Circulação (IVC) em 2014. O caderno também tem sua versão online, disponível no
site: www.cultura.estadao.com.br.
26
Disponível em <http://goo.gl/3YTMXy>. Acessado em 13/07/2015. 27
Disponível em <http://goo.gl/UZwm0G>. Acessado em 15/07/2015. 28
Disponível em <http://goo.gl/gq7IqD>. Acessado em 15/07/2015.
95
Para o atual editor-chefe Ubiratan Brasil, que está no Caderno 2 há 15 anos,
primeiro como repórter, depois como sub-editor e há 4 anos como editor, o Caderno 229
é “referência em termos de cobertura cultural. (...) Creio que o Caderno 2, de fato,
estabeleceu uma forma de cobertura que traz consistência e informação. Creio que essa
deve ser ainda a missão do Caderno 2. Informar e formar. Saber distinguir o que
realmente deve ser divulgado, sem preconceitos ou distinções”.
3.3.1. Caderno 2: uma visão panorâmica das publicações dominicais (agosto/2014)
O quadro 1 - Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo – edição de domingo –
agosto de 2014, (PRADO, 2015) disponível nos anexos30
, reúne todas as publicações
no período, divididas nas seguintes categorias: teatro, cinema, moda, crônica, música,
televisão, fotografia, dança, literatura e artes plásticas. Para a presente análise optou-se
por excluir da amostragem três seções do Caderno 2. São elas: astrologia, quadrinhos e
coluna social. Tal metodologia se justifica pelo fato de que tais conteúdos constituem
seções fixas, sendo publicados diariamente em formatos pré-determinados; dessa
maneira, não disputam o espaço do conteúdo destinado a matérias, reportagens,
entrevistas, análises, resenhas, notas e perfis que, por sua vez, alternam-se como
formatos do conteúdo publicados pelo Caderno.
Consolidando um total de 85 conteúdos publicados, a seguir uma breve análise
comparativa numérica e percentual. É válido ressaltar que a amostragem considerou o
Guia Cinema, publicado semanalmente, como conteúdo único. O mesmo critério foi
utilizado para o Guia TV.
Quadro 2 – análise comparativa numérica e percentual do Caderno 2 – edição de
domingo - Agosto de 2014 (PRADO, 2015)
TEATRO CINEMA MODA CRÔNIC
A MÚSICA TV FOTO DANÇA
LITERAT
URA
ARTES
PLÁSTICAS
6 21 1 16 15 17 3 1 3 2
7% 25% 1% 19% 18% 20% 3.5% Menos
de 1%
3.5% 2%
29
Disponível em <http://goo.gl/yy90hd>. Acessado em 15/07/2015. 30
Disponível em anexo, página 156.
96
Quadro 3 – gráfico comparativo dos temas abordados no Caderno 2 – edição de
domingo – Agosto de 2014 (PRADO, 2015)
Ainda numa análise descritiva, podemos observar que, dentre os temas
abordados no Caderno 2 ligados à cultura, o cinema é o que obtêm maior espaço, com
25% dos textos publicados (entre matérias, reportagens, notas, resenhas, guia, etc).
Logo em seguida, a televisão é o assunto que tem maior espaço no caderno, com 20%.
Depois as crônicas aparecem com 19% (apesar de ser um gênero literário, na pesquisa,
acabou sendo computado como tema). A música ainda tem um espaço expressivo,
ocupando 18% das páginas do Caderno 2. O teatro aparece com 7%. E a literatura
(3,5%), a fotografia (3,5%), as artes plásticas (2%) e a dança (menos de 1%) possuem
um espaço reduzido nas publicações. É importante enfatizar que o Caderno 2 segue uma
lógica diária de temas abordados. Por exemplo, a terça-feira é o dia dedicado às artes
plásticas, sábado à literatura e domingo à televisão.
Sem levar em conta as crônicas e os guias de TV e Cinema, é possível observar,
também, que há a predominância de matérias no caderno, chegando a 22 textos – por
matéria entende-se uma notícia ou reportagem que diz respeito ao jornalismo
informativo. As reportagens que na tabela correspondem a 12 aparições, na realidade,
são seis grandes reportagens (formadas por 2 textos distintos). A prática da entrevista
aparece 7 vezes no escopo da pesquisa. As resenhas e notas vêm em seguida, com 5
TEATRO
CINEMA
MODA
CRÔNICA
MÚSICA
TV
FOTOGRAFIA
DANÇA
LITERATURA
ARTES PLÁSTICAS
97
presenças. A crítica apareceu 4 vezes nos cadernos de domingo. E o perfil figurou 2
vezes.
3.3.2. Caderno 2: estudo descritivo sobre textos específicos
Para um estudo descritivo sobre textos específicos foram selecionadas as
seguintes matérias publicadas no Caderno 2 do Estado de S. Paulo, no mês de agosto de
2014:
1 - “Uma criadora em constante movimento” (3/08).
2 - “À mesa com James Franco e seus muitos projetos” (10/08).
3 - “O público do cinema não quer desafio”(17/08).
4 - “Vida de violinista” (17/08).
A escolha não foi aleatória. Os textos escolhidos foram selecionados seguindo a
lógica dos formatos mais representativos que figuraram no Caderno 2, nas edições
dominicais do mês de agosto de 2014, com exceção do último texto que é o que tem
menor incidência. A entrevista é o formato utilizado para o primeiro e terceiro texto
selecionado. Já o segundo é uma matéria e o quarto texto é um perfil.
O texto Uma criadora em constante movimento traz uma entrevista com a
estilista belga Diane Von Furstenberg. Na introdução, a jornalista especial do Caderno
2, Michaela Schmaedel, apresenta a estilista como a mulher mais poderosa da moda
(segundo a revista Forbes) e a criadora do vestido wrap (envelope). Não há
contextualização da importância de seu trabalho no mundo da moda. A entrevista fala
apenas dos planos de Furstenberg: uma série de documentários sobre sua marca, o
lançamento da coleção outono/inverno, além do lançamento de dois livros, e tudo
previsto para acontecer fora do Brasil. A estilista diz que adora o Brasil e que, no futuro,
gostaria de expandir a presença da marca, com uma loja, no país. Mas fica a pergunta:
qual o sentido da entrevista se tampouco há uma contextualização da importância da
estilista no mundo da moda e se a marca dela não possui representação no Brasil?
Na matéria À mesa com James Franco e seus muitos projetos, do jornalista
americano Jacob Bernstein para o The New York Times que o Estadão reproduz no
Caderno 2, o que encontramos é uma mistura de propaganda dos projetos em
andamento do ator e diretor James Franco com revista de fofoca. O jornalista conta que
98
o artista – conhecido no Brasil como Harry Osborn da trilogia do blockbuster Homem-
Aranha – entrou num restaurante “por volta das 22h30” e pediu para comer “um bife”,
acompanhado por Scott Haze, que comeu “ovos mexidos com salmão defumado”. O
texto, pontuado pelo que o artista comeu, bebeu e usou como roupa de grife, fala de
projetos como filmes em cartaz Child of God e de outros que estariam por vir: Of Mice
and Men e um filme de Wim Wenders. Sem aprofundar em nada sobre sua carreira
como ator e diretor, o texto ainda insinua, em suas linhas finais, que James Franco é
gay, como se isso fosse algo relevante para a carreira de ator e cineasta. “Um assistente
o acompanha junto com Haze para duas limusines, e Franco se mostra surpreso. ‘Só
precisamos de uma. Vivemos no mesmo lugar’, acrescentou.”
O texto O público do cinema não quer desafio traz uma entrevista com o
cineasta Steven Soderbergh. O subtítulo diz: “Steven Soderbergh, diretor da série The
Knick, exibida no canal Max, analisa as mudanças no cinema e na TV”. Depois de ler o
subtítulo, o leitor espera uma análise sobre as mudanças no cinema e na TV. Não é bem
isso que ele encontra. Na introdução, a jornalista especial para o Caderno 2, Mariane
Morisawa, apresenta o cineasta de Sexo, Mentiras e Videotape (1989) e Traffic (2000),
mas não cita outros filmes importantes do diretor, que tem mais de 25 longas em sua
trajetória, como Solaris (2002), Che (2009), Onze homens e um segredo (2001), Magic
Mike (2012). Na abertura da entrevista, a jornalista fala do novo projeto do cineasta, The
Knick (2014). A série se passa num hospital de Nova York, em 1900, e conta a história
de um cirurgião drogado (interpretado por Clive Owen) que busca realizar avanços na
medicina. O texto enfatiza que o diretor não está mais interessado em cinema, só em
séries de TV. Mas o teor das perguntas já deixa evidente que a discussão sobre a
mudança do paradigma do cinema por conta das séries de TV será pequena31
; o foco
reside basicamente na nova série de TV – The Knick. Apenas duas perguntas estão
relacionadas às mudanças no cinema e na TV. Na última delas, Steven Soderbergh dá
uma resposta curta, sinalizando que “o público do cinema não quer desafio”, mas não
aprofunda o tema. A entrevista deixa no ar o que poderia ser essa mudança de
paradigma.
Por fim, o texto Vida de violinista traz um perfil sobre o músico Lucas Silva. O
jornalista, crítico de música erudita e subeditor do Caderno 2, João Luiz Sampaio, faz
31
Ver anexos, página 166.
99
um belo perfil deste violinista, spalla da Orquestra Jovem do Estado de São Paulo
(considerada uma das mais importantes do país), regida por Claudio Cruz.
Se, por um lado, o jornalista se utiliza de um gancho no factual – no dia em que
a matéria saiu, a Orquestra iria se apresentar na Sala São Paulo – por outro lado, em
nada se atém a esse fato. Apenas coloca essa informação como serviço no rodapé da
página.
Sampaio compôs um perfil de um jovem músico, morador de Cangaíba, Zona
Leste de São Paulo, que, através da música, teve sua trajetória transformada. Na altura
em que o texto foi escrito, Lucas Silva, com 19 anos de idade, era spalla da Orquestra e
se preparava para uma apresentação em um festival na Holanda e estudar durante quatro
anos no Conservatório de Amsterdã.
O enfoque do perfil é calcado na trajetória de transformação do músico.
Delicado, o texto se utiliza da timidez de Luiz, uma nuança de sua personalidade, como
fio condutor e, sobretudo, como uma característica positiva do artista. O jornalista
começa o texto dizendo32
:
No intervalo do ensaio, Lucas desaparece. Alguém diz que foi comer alguma coisa.
Mas ele não está na padaria. Quando reaparece, diz que precisa só passar no
banheiro. Cadê? A próxima vez que ele é visto, já está sobre o palco, com o violino
na mão. Dar entrevista? Só quando o maestro Claudio Cruz, antes do reinício do
ensaio, o libera – ou convoca. Lucas vai ter que dar um jeito nessa timidez.
João Luiz Sampaio segue o texto costurando as conquistas na carreira do artista
com sua personalidade. E no final do perfil, o jornalista diz: “É, Lucas vai ter que dar
um jeito nessa timidez. Ou não, afinal, mesmo com ela, já percorreu um longo e
promissor caminho”.
Ainda, João Luiz Sampaio traz uma matéria complementar com Cláudio Cruz,
regente da Orquestra Jovem do Estado, na qual o diretor musical enfatiza a importância
da educação e do trabalho desempenhado pela orquestra: “formar músicos”. Toda a
ênfase do texto se encontra na chave: educação + cultura = transformação.
3.3.3. Caderno 2: um olhar interpretativo
O jornalista Marques de Melo, no livro O Jornalismo opinativo: gêneros
opinativos no jornalismo brasileiro distingue os gêneros informativo, interpretativo e
32
Disponível nos anexos, pág. 164.
100
opinativo (2003, p.28): “Ao lado do jornalismo informativo que assegura a informação
ao povo e do jornalismo opinativo que tem procurado influenciar o homem, temos, (...)
o jornalismo interpretativo que faz a explanação das notícias”.
Os textos analisados nessa dissertação, segundo o enfoque de Marques de Melo
(2003), correspondem ao jornalismo informativo (formato: nota, notícia, reportagem e
entrevista), com exceção do último texto que diz respeito ao gênero do jornalismo
interpretativo (formato: dossiê, perfil, enquete e cronologia). A escolha por textos que
seguem o gênero informativo não foi aleatória, a pesquisa buscou analisar o formato que
mais aparece no Caderno 2 nas edições de domingo. E como pode-se observar no
Quadro 1 (disponível nos anexos), as matérias predominam no caderno com 22 textos e
a entrevista aparece 7 vezes, seguida da reportagem com 6 grandes textos. Todos dentro
do enfoque do jornalismo informativo. O único que foge a essa lógica é o perfil, que
aparece com a menor incidência, figurando apenas 2 vezes nas edições de domingo
analisadas. É interessante notar que o perfil descrito acima é o único texto que foge a
lógica da Indústria Cultural e do entretenimento, que se aproxima daquilo que veremos
a seguir como jornalismo compreensivo e complexo.
O perfil se aproxima do ensaio e da crônica, naquilo que diz respeito à
possibilidade de apresentar histórias de vida. Porém, se a crônica e o ensaio carregam
em sua essência um teor autoral ou seja, opinativo, o perfil segue o tom jornalístico
interpretativo, deixando de lado o autor e colocando o foco sobre a história de vida.
Mas a interpretação crítica recai sobre o fato de como a cultura hoje ficou
aprisionada dentro da “Roda da Fortuna” da Indústria Cultural, logo dependente da
dinâmica do mercado.
Como vimos até aqui, historicamente e epistemologicamente, a cultura na
contemporaneidade é pautada pela Indústria Cultural. Adorno e Horkheimer (2006, p.
111) disseram, lá atrás: “O mundo inteiro é forçado a passar pelo filtro da Indústria
Cultural”. E isso ocorre numa velocidade progressiva que não deixa nada para fora,
principalmente, o Jornalismo Cultural; inclusive o praticado no Caderno 2 do jornal O
Estado de S. Paulo. Como vimos no capítulo 1, Mario Vargas Llosa, em A Civilização
do Espetáculo (2012), também sugere o que seria a cultura contemporânea:
Na pós-modernidade, cultura passa a ser entendida, apenas, como uma maneira
agradável de passar o tempo. É óbvio que a cultura pode ser isso também mas, se
acabar sendo só isso, se desnaturará e depreciará: tudo o que faz parte dela se
equipara e uniformiza ao extremo, de tal modo que uma ópera de Verdi, a filosofia
101
de Kant, um show de Rolling Stones e uma apresentação do Cirque du Soleil se
equivalem (LLOSA, 2012, p. 31).
É um pouco disso que encontramos, ao abrir o jornal impresso, no caderno de
cultura. Geralmente, são matérias, notas e entrevistas, marcadas pela superficialidade
das abordagens, calcadas em agendas ou ligadas à simples divulgação de um produto
cultural.
Vemos no Jornalismo Cultural praticado hoje a proliferação de agendas e
mercadorias culturais, quase sempre vinculadas, a essa cultura de entretenimento e
divertimento. No Caderno 2 não é diferente. Até mesmo porque desde sua origem, na
década de 1980, o caderno já sinalizava que se guiaria pelos ditames da Indústria
Cultural e do entretenimento. Mesmo assim, é interessante notar que após 30 anos, nada
mudou.
Os textos analisados abordam, diretamente ou indiretamente, lançamentos,
estreias, aberturas, shows, etc. Nas páginas do Caderno 2 circulam milhares de livros,
filmes e músicas que surgem mensalmente num mercado globalizado, muitos dos quais
são obras padronizadas, alienantes, efêmeras, feitas para serem consumidas e
descartadas, movidas pelo “eterno retorno” da novidade. Como o blockbuster
Guardiões da Galáxia que aparece em nota do dia 3/8: “Guardiões arrecada U$ 11 mi
na estreia”.
Outro blockbuster como Os mercenários virou matéria do jornalista Pedro
Caiado no dia 24/08: “Vovôs da ação voltam a atacar no episódio 3”. O mais
surpreendente é que o filme dirigido por Sylvester Stallone, também ganhou uma
crítica, no mesmo dia, assinada por Luiz Carlos Merten, intitulada: “Velhos e jovens
batendo juntos não serão vencidos”. O fato do “enlatado” ter até uma crítica se torna
ainda mais estarrecedor quando recordamos que a crítica pulverizada, como é possível
notar no Quadro 1 (disponível nos Anexos), apareceu nas edições dominicais de agosto
apenas 4 vezes (2 sobre cinema, 1 sobre dança e 1 sobre música), endossando a
perpetuação dessa lógica rasa da diversão, consumo e alienação.
Nas páginas figuram bens culturais programados para ser consumidos: a cultura
como mercadoria ou agenda. E os subtítulos revelam esse tipo de tratamento no
Caderno 2: “Na nova temporada do reality, o zootecnista Alexandre Rossi encara
animais mais agressivos e com crise existencial”, “Compositor lança CD Itinerário e
fala sobre o alcance da nova MPB”, ou ainda “Cassandra Clare fala hoje na mostra
sobre ficção de fantasia, gênero que a fez vender mais de 25 milhões de exemplares”. A
102
lista é extensa: “Caixa de obras primas do terror reúne 6 clássicos do gênero; A noite do
demônio é uma delas”, “O renomado fotógrafo Mario Testino ganha mostra em São
Paulo”. Poderíamos ficar horas elencando os produtos culturais que circulam no
Caderno 2, mas talvez seja melhor recordar o que Zygmunt Bauman diz sobre a cultura
na chamada modernidade líquida:
A cultura hoje se assemelha a uma das seções de um mundo moldado como
uma gigantesca loja de departamentos em que vivem, acima de tudo, pessoas
transformadas em consumidores. Tal como nas outras seções dessa
megastore, as prateleiras estão lotadas de atrações trocadas todos os dias, e os
balcões são enfeitados com as últimas promoções, as quais irão desaparecer
tão instantaneamente quanto as novidades em processo de envelhecimento
que eles anunciam (BAUMAN, 2013, p. 21).
Nas prateleiras que viraram os cadernos de cultura, é possível notar a presença,
cada vez maior, dos produtos importados. Principalmente no que diz respeito ao cinema
e à televisão. No Caderno 2, por exemplo, nas edições dominicais analisadas, dos 16
conteúdos sobre cinema que figuraram nas páginas – sem contar o Guia de Cinema – 14
delas (entre matérias, notas, reportagens, resenhas, etc.) eram sobre filmes estrangeiros.
Mas é importante ressaltar, que os 14 conteúdos que contemplam a produção
estrangeira, 6 eram dedicados ao cinema europeu. E os 8 restantes diziam respeito aos
filmes da indústria norte-americana, dos quais “À mesa com James Franco e seus
muitos projetos” foi descrito acima. Não foram encontrados textos que contemplem a
produção cinematográfica do oriente, mais conhecida como “bollywood”, ou de filmes
cults da Ásia e dos países árabes.
Dois textos falavam sobre a produção nacional. A matéria “Irmãos atores
seguem a mesma trilha”, de Luiz Carlos Merten, publicada no dia 17/08, traz o perfil de
dois irmão que são atores da Globo. O subtítulo já diz tudo: “Júlio e Ravel Andrade,
estrelas do filme Não pare na Pista, se dividem entre o prestígio do cinema e a
popularidade da TV”. O perfil “O brasileiro entre as Tartarugas Ninjas”, da jornalista
Flávia Guerra, do dia 24/08, também já deixa evidente a que veio. O brasileiro Lula
Carvalho fez sucesso em Hollywood com a fotografia do novo filme da franquia As
tartarugas ninjas.
Diante da abordagem que prioriza a lógica do mercado cultural no Caderno 2 é
interessante recordar, mais uma vez, Adorno e Horkheimer, que já sinalizavam, ainda
nos anos 1940, a introdução da estrutura mercantil na própria forma e conteúdo da obra
de arte, citando especialmente o cinema:
103
O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade é
que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia
destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. (...) O fato de que
milhões de pessoas participam dessa indústria imporia métodos de
reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens
padronizados para a satisfação de necessidades iguais. (...) Os padrões teriam
resultado da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade
alienada de si mesma. Por enquanto, a técnica da indústria cultural levou
apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a
diferença entre a lógica da obra e a do sistema social (ADORNO e
HORKHEIMER, 2006, p. 100).
Como é de conhecimento comum, o rádio era a televisão da época. E já naquela
altura, Adorno e Horkheimer reconheciam a falência do cinema como arte. Mas
voltando à atualidade, no Caderno 2, também, para além do cinema, observa-se uma
quantidade relevante de publicações dedicadas ao mundo da televisão. Nas publicações
analisadas, o número chegou a 20% de seu conteúdo. Dos 12 conteúdos publicados, 10
eram sobre séries. O que era um espaço dedicado às novelas, agora é destinado às séries
de TV. Tanto no Brasil como no resto do mundo, as séries, cada vez mais elaboradas,
com bons atores e diretores, sinalizam que já estão formando uma nova cultura: a
cultura da série.
A série é o modelo do audiovisual, no mundo de hoje, em ampla expansão. Por
um lado, está de acordo com a revolução tecnológica que se consolidou no princípio do
século XXI. A rede, cheia de possibilidades, deixou todos navegando “nas nuvens
virtuais”. O site Netflix é exemplo dessa transformação, com 65 milhões de clientes no
mundo, sendo mais de 2,5 milhões no Brasil33
. Nesse contexto, a televisão pode
começar a perder espaço com seus longos comerciais e com sua seleção pré-
determinada da programação. Mas por enquanto a televisão continua sendo
predominante. Segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia, 95% dos brasileiros assistem
TV regularmente e 74% assistem todos os dias34
.
Outro motivo para o sucesso das séries talvez seja a consonância com as
características balizares da pós-modernidade: a fragmentação, a descontinuidade, a
instantaneidade, o divertimento permanente e estável. Como sugere Vargas Llosa:
Hoje vivemos a primazia das imagens sobre as ideias. Por isso, os meios
audiovisuais, cinema, televisão e agora a internet, foram deixando os livros
para trás. Nossa cultura privilegia o engenho em vez da inteligência, as
33
Disponível em <http://goo.gl/86SvGF>. Acessado em 09/08/2015. 34
Disponível em <http://goo.gl/JFpMNv>. Acessado em 26/09/2015.
104
imagens em vez das ideias, o humor em vez da sisudez, o banal em vez do
profundo e o frívolo em vez do sério (LLOSA, 2012, p. 41).
Num mundo tomado pelas imagens, é natural que o espaço dedicado a elas seja
relevante num caderno de cultura. Porém, essa mudança de paradigma não é
acompanhada por uma reflexão maior no Jornalismo Cultural. As matérias acabam por
replicar as notícias do vazio estrelado, sem ponderar um olhar crítico; tal como vimos
na entrevista com o cineasta Steven Soderbergh: “O público do cinema não quer
desafio” (C2, 17/08).
O mercado da indústria cultural dita as normas do jogo. Tanto no jornalismo
praticado, como no formato escolhido para as séries de televisão. As séries nacionais –
setor em franco desenvolvimento no Brasil com a presença do Fundo Setorial do
Audiovisual – seguem claramente o padrão americano, até porque gostariam de adentrar
esse mercado.
Daí, mais uma vez, a importância de termos claro que a pós-modernidade levou
a cultura para uma padronização em escala global, denotando aquilo que Lipovetsky e
Serroy compreendem como uma “cultura-mundo”. Regulamentada por um
hipercapitalismo, um mercado de consumo sem fronteiras, operado por uma revolução
tecnológica e midiática, que cria, pela primeira vez na história, denominadores culturais
mundiais. Uma cultura de massas que quase extingue por completo a cultura erudita e a
cultura popular. Como diz Lipovetsky e Serroy: “Cultura-mundo significa o fim da
heterogeneidade tradicional da esfera da cultura e a universalização da cultura
mercantil, apoderando-se das esferas da vida social, dos modos de existência, da quase
totalidade das atividades humanas” (2013, p. 32).
Estamos na cultura do meio. Nem alta, nem baixa. Mas que agora diz respeito ao
globo como um todo, e não mais a uma sociedade específica ou uma região única.
Quando a cultura passa a ser retratada nos meios de comunicação do nosso país como
mundial, é sinal que a cultura brasileira está perdendo no jogo. E que começamos a
esquecer a nossa identidade. O fato torna-se mais relevante quando se percebe que o
Jornalismo Cultural praticado por aqui quase não dá espaço para os diversos sotaques
do Brasil.
No Caderno 2 é flagrante. Se cerca de 45% dos textos são dedicados ao exterior,
os 55% que dizem respeito ao Brasil, focam praticamente o eixo Rio de Janeiro – São
Paulo. Apenas 3 textos falavam de outras regiões. O Brasil, em sua enormidade
territorial, é rico em cores, tradições, costumes, culinária, arte, dança, mitos; mas
105
infelizmente essa diversidade não faz parte da pauta do dia, nos cadernos culturais. Essa
constatação, na visão desta pesquisadora, é flagrante e triste. Porém, diz respeito à
lógica do mercado que, no caso da realidade brasileira, está centrada no eixo RJ-SP.
Em linhas gerais, como vimos no capítulo 2, o Brasil lutou muito para conceber
uma cultura e identidade própria, mesmo que os esforços mais conhecidos estejam
concentrados no século XX. Muito do que entendemos como cultura hoje foi concebido
até os anos 1960. A virada com a ditadura, por um lado, criou uma cultura de
resistência, mas, por outro, desenvolveu a Indústria Cultural. Grosso modo, da abertura
em 1985 até os dias de hoje, vimos essa Indústria avançar a passos largos, deixando a
nossa identidade cada vez mais de lado.
3.3.4. O que faz falta no Caderno 2...
Por detrás do desafio do global e do complexo, esconde-se um outro desafio: o da
expansão descontrolada do saber. O crescimento ininterrupto dos conhecimentos
constrói uma gigantesca torre de babel, que murmura linguagens discordantes. A
torre nos ensina porque não podemos dominar nossos conhecimentos. T.S. Eliot
dizia: “onde está o conhecimento que perdemos na informação?” O conhecimento só
é conhecimento enquanto organização, relacionado com as informações e inserido
no contexto destas. As informações constituem parcelas dispersas de saber. Em toda
parte, nas ciências e nas mídias, estamos afogados em informações. (...) a gigantesca
proliferação de conhecimentos escapa o controle humano. Não conseguimos integrar
nossos conhecimentos para a condução de nossas vidas. Dai o sentido da segunda
parte da frase de Eliot: “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?
(MORIN,19).
O leitor encontra-se perdido no meio de tantas informações e publicidades que
clamam por sua porção de cultura. Possivelmente, ele nem se dê conta de que fica a
pergunta no ar: como compreender a cultura hoje? É o filme norte-americano em cartaz
em 200 salas do Cinemark? Ou ainda o best-seller 50 tons de cinza? Fato é que o
enfoque no mercado cultural empobrece a percepção do público sobre a cultura.
Talvez essa seja a questão do Jornalismo Cultural hoje. Há uma infinidade de
informações nos cadernos de cultura. Mas poucos são os conteúdos que geram reflexão,
conhecimento e sabedoria. Como vimos no estudo descritivo dos textos publicados nas
edições dominicais do Caderno 2, pouco são os formatos que exploram um jornalismo
complexo e compreensivo. A maioria dos textos segue o jornalismo informativo, justo
em um caderno de cultura, que permite e abre espaço para outras formas de narrativas.
106
É importante ressaltar que não há ingenuidade aqui. Sabe-se que o jornalismo
diário não permite o tempo necessário para crítica e reflexão aprofundadas. Ainda mais
na atual conjuntura do mercado midiático no Brasil – com as demissões em massa, os
esvaziamentos das redações – o ofício anda cada vez mais difícil. Porém, quando
pensamos nas edições dominicais, estas deveriam ter um espaço maior dedicado à
reflexão e à crítica. O Caderno 2 é herdeiro do Suplemento Literário, que mesmo não
tendo o formato e o intuito semelhante, ainda preserva na memória um jeito possível de
fazer crítica, análises e de contar histórias. Sabe-se que o jornal O Estado de S. Paulo
conta com o caderno Aliás, aos domingos. A pesquisa não levou em conta o caderno,
uma vez que, apesar de apresentar análises aprofundadas e ser o espaço de reflexão do
jornal, o Aliás não é um caderno sobre cultura. É um caderno sobre os principais
assuntos da semana. Com textos mais extensos, o Aliás conta com jornalistas, cientistas
políticos, sociólogos e economistas que apresentam visões dos fatos com argumentos
capazes de esquentar os debates e de ampliar o repertório do leitor35
.
Há pouca ousadia na produção de conteúdos. Como vimos no capítulo 1, o
conceito de cultura é demasiado complexo, um mosaico, em constante evolução
histórica, aberto, ilimitado e poroso. É, por exemplo, um eterno espaço de negociação
simbólica, de conflito, mas também de compartilhamento e afeto. Como diz Terry
Eagleton (2003:184), ao brincar com a proposição de Eliot: “A cultura não é unicamente
aquilo de que vivemos. Ela também é, em grande medida, aquilo para o que vivemos.
Afeto, relacionamento, memória, parentesco, lugar, comunidade, satisfação emocional,
prazer intelectual, um sentido de significado último”. O fato da cultura possuir em sua
essência, um leque infinito de proposições e conceitos, permite uma abertura para outros
tipos de histórias que não estejam calcadas na lógica da agenda e da Indústria Cultural.
É possível fazer uma reportagem sobre uma trajetória de vida transformada pela
experiência cultural, sobre o processo criativo de um determinado artista ou mesmo
sobre uma determinada obra. Nas edições dominicais analisadas do Caderno 2, o único
conteúdo que se aproximou disso foi o perfil “vida de violinista”. A narrativa de João
Luiz Sampaio conta a história do spalla Lucas Silva que passou por uma transformação
social e cultural estimulada pela música. O texto provoca uma reflexão no leitor. Ou
como diz Walter Benjamim, no ensaio “O narrador: considerações sobre a obra de
Nikolai Leskov”:
35
Disponível em <http://goo.gl/XQi83k>. Acessado em 26/09/2015.
107
A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento,
precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele.
Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois
de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver (BENJAMIN, 1994, p. 204).
O que faz falta no Caderno 2, assim como os demais cadernos de cultura, é a
presença de outros conceitos que a cultura carrega em sua essência, como: a
transformação, a cidadania, a liberdade, a criatividade, e mesmo sentimentos como
esperança e solidariedade. Há ainda resistência. Talvez seja pela escolha editorial, ou
seja, pela escolha comercial, para outras histórias, com narrativas sensíveis, que falem
sobre o humano.
O desafio da globalidade é também o desafio de complexidade. Existe
complexidade, de fato, quando os componentes que constituem um todo
(como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o
mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e
inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes (MORIN,1999).
3.4. Um outro caminho possível: jornalismo compreensivo
A pós-modernidade é composta por elementos heterogêneos; nesse sentido, é
necessário encontrar um modo de expressão capaz de dar boa conta da polissemia de
sons, situações e gestos que constituem a trama social. O que se propõe em
contrapartida ao Hard News é um jornalismo compreensivo.
Espelhado naquilo que o sociólogo Michel Maffesoli chama no livro O
conhecimento comum (1985) de “sociologia compreensiva”, que permite apreender
melhor a riqueza da experiência social através de uma investigação; longe das certezas
científicas e positivistas arraigadas pelo platonismo e o pensamento moderno. E
também um jornalismo compreensivo que apresente aquilo que o intelectual Edgar
Morin chama de conhecimento pertinente no livro A cabeça bem-feita: repensar a
reforma, reformar o pensamento (1999): “O conhecimento pertinente é o que é capaz de
situar qualquer informação em seu contexto e, se possível, no conjunto em que está
inscrita. O conhecimento progride principalmente pela capacidade de contextualizar e
englobar”.
Um espaço para criar novas formas de conhecimento e informação, um
“centauro informacional”. Jorge Luiz Borges, em O livro dos seres imaginários, define
108
esse ser como: “a criatura mais harmoniosa da zoologia fantástica”. Biforme, chamam-
no as Metamorfoses de Ovídio (BORGES, 1981, p.31). Um centauro que respeite seu
arquétipo de meio homem e meio animal e que fale, simultaneamente, de razão e
emoção. É a mistura proposta por Maffesoli: “Talvez fosse preciso considerar que nosso
conhecimento do mundo é uma mistura de rigor e poesia, de razão e paixão, de lógica e
mitologia” (MAFFESOLI, 1985, p. 90).
O Jornalismo Cultural não precisa ficar preso à estrutura de uma visão única, da
fria razão que explica o mundo. O discurso múltiplo, diverso, heterogêneo, fragmentado
e plural se faz necessário, à medida que “o fato de todas as situações se enraízam no
concreto, isto é, na diferença” (MAFFESOLI, 1985, p.77). A razão e a emoção não
precisam viver em guerra, afinal, fazem parte da mesma moeda. Faz falta na mídia a
articulação de verdades locais e coragem para quebrar o hábito da produção de verdades
únicas e irrefutáveis, típicas da indústria cultural midiática.
Na modernidade, os mitos e as lendas foram escamoteados num quarto escuro da
memória; as grandes narrativas, o senso comum e a opinião perderam sentido e
relevância. E outros elementos tornaram-se fundamentais: o conhecimento virou
homogêneo, globalizado e único; a produtividade e a razão disciplinar, essenciais. Um
mundo desencantado se desenhou no horizonte. “Ao mesmo tempo, o retalhamento das
disciplinas torna impossível apreender “o que é tecido junto”, isto é, o complexo,
segundo o sentido original do termo” (MORIN, 1999, p.13). Nesse mundo
desencantado, Michel Foucault, em Microfísica do Poder, lembra que o homem “não é
mais o cantor da eternidade, mas o estrategista da vida e da morte” (FOUCAULT, 1979,
p. 10). É como se o sonho tivesse morrido com a consolidação do pensamento moderno,
dentro daquilo que é o fascínio positivista:
Na real marcha do progresso, que assinala o final do século XIX, o racional, o
quantitativo é o que, em nível profundo, faz funcionar, “deve” fazer funcionar
a vida em sociedade. O que está em jogo é uma sociedade perfeita, que não
mais repousa um fantasma religioso ou imaginário, mas que encontra na razão
os seus fundamentos (MAFFESOLI,1985, p. 54).
A pós-modernidade pede a abertura de espaço para todas as histórias,
justificações, legitimações que de forma complexa e plural constituem o discurso social
e o mundo. A vida social é “uma mistura inextricável de inteligível e de sensível, de
sapiens e de demens”, lembra Maffesoli (1985, p. 54). Nesse contexto, é possível pensar
num Jornalismo Cultural que reintroduza dimensões míticas e imaginárias na
109
composição do cotidiano e da realidade social; desfazendo aquilo que o racionalismo
ocidental acredita ter apagado há muito tempo.
Por isso, Edgar Morin e Michel Maffesoli questionam a viabilidade sustentável
desse discurso quase universal, homogêneo e totalitário da razão científica, num mundo
em plena transformação e aceleração. A pós-modernidade começa, consciente ou
inconscientemente, a apresentar brechas para novas formas de conhecimento,
pensamento e informação. Aqui e ali, pipocam notas destoantes que buscam espaço, no
meio desse mundo globalizado e homogêneo, que falam sobre a diversidade, a
pluralidade, a heterogeneidade e a complexidade humana.
O desenvolvimento da aptidão para contextualizar tende a produzir a emergência de
um pensamento ecologizante, no sentido em que situa todo acontecimento,
informação ou conhecimento em relação de inseparabilidade com seu meio ambiente
– cultural, social, econômico, politico e natural. (...) um tal pensamento torna-se,
inevitavelmente, um pensamento complexo (MORIN, 1999).
3.4.1. O afeto como elemento da prática jornalística
O discurso racional e objetivo condiz com o jornalismo diário; especialmente,
aquele praticado nas editorias de política, economia, cotidiano, ciências etc. Mas não
cabe totalmente quando o assunto é cultura. A cultura pede um novo modelo de
linguagem. Um discurso que contemple o afeto, a razão sensível e a solidariedade. Não
excludente e, sim, agregador. Não autoritário e, sim, democrático. Não homogêneo e,
sim, heterogêneo. Não único e, sim, duplo.
A racionalidade positivista colocou de lado a ternura, o afeto, a solidariedade e a
esperança. Quando o mundo tornou-se uno, globalizado, o discurso também adquiriu as
mesmas feições totalitárias. Sem espaço para sentimentos que pudessem desvirtuar o
foco da conquista e da guerra. Luis Carlos Restrepo, em O direito à ternura (1998,
p.14), diz: “Por vários séculos, a ternura e a afetividade foram desterradas do palácio do
conhecimento”.
Mas como alerta o filósofo Gianni Vatimo, o pensamento duro tem tido suas
baixas: “Modelo de conhecimento total e axiomático, outrora poderoso no Ocidente,
hoje, porém assaltado e confrontado por propostas que insistem em gerar um saber
integrado ao afetivo, aberto à singularidade e aparentado com o cotidiano” (VATTIMO
apud RESTREPO, 1998, p. 35).
110
Há verdades de guerra e há verdades de ternura. Pois o conhecimento – como já
disse Jurgen Habermas – é um corpo de práticas e enunciados por uma diversidade de
interesses que vão desde o afã do domínio instrumental até o fomento da emancipação e
da liberdade. O discurso pode agradar e comover pelo afeto. A ternura e o afeto, se
presentes na produção jornalística, podem levar à construção de outros tipos de
narrativas, aquelas que tangem a complexidade humana.
3.4.2. A importância do “senso comum” – vozes necessárias no jornalismo
Se, para Restrepo, o afeto é fundamental para ser incluído na construção de
novas formas jornalísticas, Maffesoli aponta para a importância do “senso comum” e da
“douta ignorância”. Maffesoli diz (1985:41): “Num tempo em que, pela mudança de
valores que se opera, é preciso saber ouvir o mato crescer, isto é, estar atento a coisas
simples e pequenas”. Para falar da complexidade humana, equilibrando os aspectos
racionais e afetivos, é necessário passar pelo cotidiano e não pelo release da assessoria
de imprensa. É nas pequenas coisas que a vida acontece e encanta.
Para Michel Maffesoli, a douta ignorância contribui para um verdadeiro
procedimento iniciático, que ajuda a compreender o cotidiano e as tramas da sociedade.
Por isso, a importância de voltar nossa atenção a essas minúsculas histórias.
Fazendo referência à douta ignorância de Nicolau de Cusa, pode-se dar
ênfase à necessidade ou à realidade de uma verdade localizada. O universal é
contraditado pela existência de uma multiplicidade de singularidades; da
mesma forma, no plano dos fatos, uma pluralidade de representações provoca
um curto circuito num saber avassalador e generalizante. Mas a literatura dita
menor, o corpus dos provérbios e ditados característicos de um povo, as
discussões anódinas da vida de todos os dias, tudo isso lembra a inanidade de
uma Realidade Universal. O sociólogo que negligencie o jogo da diferença e
da alteridade operantes na existência será talvez diretamente utilizável na
prática da gestão social – mas perderá, por isto, toda capacidade de
compreender a organização complexa das pessoas e das coisas
(MAFFESOLI, 1985, p. 84).
Nicolau de Cusa e Diógenes são dois exemplos da “douta ignorância”.
Diógenes, o cínico, foi conterrâneo de Alexandre da Macedônia, o grande. Famosa a
passagem em que os dois se encontraram numa ágora em Corinto, como recorda
Gombrich (2010, p. 93):
111
Quando Alexandre chegou a Corinto, todos os líderes gregos lhe fizeram
saudações calorosas e o cobriram de generosos elogios; todos os lideres,
exceto um. Um tipo curioso, um filósofo chamado Diógenes. As ideias dele
não eram muito diferentes das de Buda. Na opinião dele, os bens materiais e
todas as coisas de que pensamos precisar só servem para nos distrair e
impedir de apreciar a vida de forma simples. Por isso, Diógenes tinha dado
tudo o que possuía e passava o dia, seminu, dentro de um barril na praça de
Corinto, onde vivia livre e independente como um cão vadio. Alexandre tinha
curiosidade em conhecer aquele estranho homem e foi ter com ele. De
armadura reluzente e a pluma do elmo a ondular na brisa, dirigiu-se para o
barril e disse a Diógenes: “Gosto de ti. Faz o pedido que quiseres que eu
satisfaço-o”. Diógenes, que até então tinha estado satisfeito a apanhar sol,
respondeu: “De fato, meu senhor, tenho um pedido a fazer. Está a fazer-me
sombra: não se coloque tanto entre mim e o Sol”.
Diz-se que Alexandre ficou tão impressionado com a resposta que comentou:
“Se eu não fosse Alexandre, gostava de ser Diógenes”. Essa passagem lendária fala de
um tipo de discurso livre, que provêm da palavra grega: parhesia, liberdade da palavra.
Na retórica, parhesia é descrita como franqueza, confiança ou ousadia para falar em
público.
A imagem de Diógenes vivendo num barril, maltrapilho, cercado por cachorros,
nos remete aos mendigos que circulam nas ruas das grandes capitais brasileiras. A
associação é quase imediata, se não fosse pela diferença da condição humana. Diógenes
era um filósofo que escolheu viver como mendigo. “Os Diógenes atuais” não
escolheram necessariamente a rua.
Em 2012, fiz uma reportagem36
para o Programa Paratodos, da Tv Brasil, sobre
moradores de rua, logo após as ações policiais na “Cracolândia”, amplamente
divulgadas pela mídia. E pude desmistificar a imagem do mendigo propagada pelos
meios de comunicação: o crack, a sujeira, a loucura e a violência. Mas antes de
adentrarmos na reportagem em si, é importante contar o que é o programa Paratodos, da
TV Brasil.
3.5. Relatos sobre minha experiência jornalística na TV Brasil
Em 2009, a TV Brasil criou o programa Paratodos, voltado para as
manifestações culturais não consagradas, direcionado para o público jovem, em
especial, a classe C e os jovens das periferias. O Paratodos é uma revista semanal que
não se pauta totalmente pela agenda cultural. Algo que contribui muito para o espaço
36
Disponível nos anexos.
112
das narrativas, dentro do programa, como era visível, pelo menos enquanto trabalhei no
programa, de 2009 a 2012. O esforço contínuo da equipe em buscar histórias de vida
quase marginais para contar era o grande mérito do programa. O Paratodos se
debruçava sobre essas narrativas e procurava contar quem eram essas pessoas, o que
elas faziam, de uma forma profunda.
Para falar da minha experiência jornalística no programa Paratodos, da TV
Brasil – exemplificada aqui em duas reportagens “Extra Muros” e “Projeto Azu” – me
utilizarei do ensaio como relato pessoal e forma de compreensão daquilo que acredito
ser importante constar em uma narrativa, para tentar realizar essa outra forma possível
de jornalismo: o jornalismo compreensivo. As impressões aqui focam nessas narrativas
da vida comum e anônimas (trechos dos depoimentos transcritos aqui estão disponíveis
nas duas reportagens presentes nos anexos) que tive a oportunidade de ouvir,
compreender e recontar. Um ensaio híbrido entre experiências pessoais e reflexões.
Conheci o projeto Extra Muros, criado pela Pinacoteca do Estado de São Paulo,
que propõe um diálogo com os moradores de rua que ficam no entorno do museu,
andando pelo jardim da Luz. Na fachada da Pinacoteca estavam expostas xilogravuras
singelas; algo que chamou atenção, por fazer um contraste com as obras de arte
consagradas que ficam dentro do museu. Intrigada, entrei no site da Pinacoteca e
encontrei o projeto Extra Muros37
.
O projeto nada mais é que uma conversa entre a instituição e seus vizinhos, que
acontece através da arte. Desde 2008, essas oficinas ocorrem na Casa de Oração do
Povo da Rua, no centro de São Paulo. A casa, por si só, tem uma história interessante.
Fundada pelo ex-arcebispo de São Paulo, o cardeal Paulo Evaristo Arns, com dinheiro
de um prêmio budista, é um espaço político, social e cultural dos moradores de rua. No
último sábado do mês, acontece o encontro “fala rua”, que é o espaço político deles.
Mas isso é outra história.
As oficinas de arte do projeto Extra Muros, que acontecem semanalmente,
mobilizam um grupo flutuante de 20 moradores de rua. E o resultado é incrível. Tive a
oportunidade de gravar com eles na oficina, e a experiência foi mágica. Confesso que
fui ao encontro com certo receio, cheia de expectativas, questões e preconceitos.
Cheguei até a pensar: será que vou encontrar pessoas enroladas em cobertores?
37 Disponível em <http://goo.gl/XFZM4q>. Acessado em 25/06/2015.
113
Preocupada se haveria um diálogo entre nós, pensei também numa estratégia.
Como a oficina era de xilogravura – escolhida pelos educadores da Pinacoteca porque
muitos moradores são originários do Nordeste e, mesmo que não tivessem feito alguma
xilogravura, ao menos, teriam visto, uma vez que a arte é tradicional na região –, levei
alguns cordéis para presentear o grupo.
Quando cheguei à oficina, me deparei com um grupo de quase 15 alunos –
predominantemente homens. A princípio, estavam todos tímidos, mas, pouco a pouco,
foram se soltando. Encontrei pessoas com dificuldade de relacionamento, trabalho,
inclusão, mas ansiosos para serem reconhecidos, fazerem algo de valor, se relacionarem
e, principalmente, participarem do grupo e da sociedade.
E os depoimentos foram surpreendentes: uns mais simples, sonhadores e outros
contundentes como aquele proferido por Diógenes, o cínico, na Grécia Antiga.
Diógenes parecia estar ali na presença de Di Moraes, morador de rua há mais de 40
anos, entre idas e vindas, como ele próprio define.
O discurso e o trabalho artístico do Di Moraes é algo impressionante. Em cerca
de meia hora, ele esculpiu uma xilogravura de um rosto, um homem maltratado com um
ar de expressionismo alemão. “Era isso que eu esperava. A xilogravura está retratando a
violência sofrida na rua. Não podemos mais ficar nas praças, não podemos ficar mais
nas ruas, porque roubam nossas roupas, nossos documentos. Somos violentados
diariamente. Às vezes, a tortura é psicológica, mas é tortura”, enfatiza Di Moraes.
Di Moraes, de uma eloquência surpreendente, é um retrato de que a “douta
ignorância”, “o senso comum” presente na vida cotidiana precisam ser escutados, com
mais espaço, na mídia.
3.5.1. “Projeto Azu”, outra experiência de jornalismo na TV Brasil
Como vimos no Capítulo 1, a cultura tem, em sua essência, a potência necessária
para transformar as pessoas. O filósofo Renato Janine Ribeiro lembra a importância da
cultura como construção de cidadania e justiça social:
Acredito que a cultura pode ajudar muito o Brasil a construir uma sociedade
melhor. (...) Cada um de nós vai compor isso (a vida) mais ou menos a seu
gosto e dentro de suas possibilidades. Nossa época exige muito mais
criatividade do que as anteriores. Tudo o que consiga ligar criatividade, que é
a praia da cultura, com justiça social e, portanto, redução da desigualdade,
114
redução do sofrimento humano, é algo que tem e precisa ter futuro
(RIBEIRO, 2011, p. 484).
Há muitas ações importantes, nesse sentido, que são realizadas na periferia da
capital paulista, desconhecidas do grande público e que, naturalmente, passam
despercebidas na grande imprensa.
Em 2011, fiz uma reportagem para o programa Paratodos, da TV Brasil, sobre o
projeto Azu38
. O projeto ensina mosaicos de azulejos, com o intuito de serem colocados
no espaço público. Levando cor, arte, cultura e cidadania para a comunidade Vila Nossa
Aparecida, no bairro de Ermelino Matarazzo, na Zona Leste de São Paulo.
Desde 2008, o coletivo tem contribuído para o desenvolvimento socio-cultural
do local. A arte é usada como meio de reflexão sobre o espaço público; sobretudo, como
uma forma de criar novas formas de inclusão social para os jovens, através do
aprendizado de um novo ofício. Fazer, pintar, queimar e colocar azulejos nas ruas é um
processo de construção de cidadania.
O projeto Azu é uma história que fala de transformação de vidas e de espaços.
Num exercício de transposição de trechos da reportagem feita em TV para o relato desse
ensaio, recordo, mais uma vez, Walter Benjamin (1994:201):
O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a
relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência ou a
relatada pelos outros. Os narradores gostam de começar sua história com uma
descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão
contar a seguir.
Na rua, aquilo que tem a ver com profundidade, imersão, dificilmente, acontece
em três horas. Tempo, geralmente, usado para concretizar uma matéria diária de TV. A
reportagem sobre o projeto Azu foi realizada em dois dias. Entre uma visita e outra,
quase um mês se passou. Cremilda Medina, uma das precursoras da discussão das
narrativas no jornalismo brasileiro, com várias incursões práticas e acadêmicas sobre a
produção de novas narrativas, define, em A arte de tecer o presente: narrativa e
cotidiano:
A narrativa é uma das respostas humanas diante do caos. Dotado da capacidade de
produzir sentidos, ao narrar o mundo, a inteligência humana organiza o caos em um
cosmos. O que se diz da realidade constitui outra realidade: a simbólica. Essa é a
marca da autoria que se aspira: contar sua história ou a história coletiva de forma
38
Disponível nos anexos.
115
sutil e complexa, afetuosamente comunicativa e iluminando no caos alguma
esperança do ato emancipatório (MEDINA, 2003, p. 49).
Algo que busquei contemplar na reportagem sobre o projeto Azu. A quase uma
hora de carro do centro de São Paulo, seguindo a linha do trem, aos poucos, o bairro de
Ermelino Matarazzo mostra seu traçado. A Rua Cinturão Verde, onde fica a sede do
projeto Azu, não existe no mapa e tampouco no GPS. No posto policial, pegamos
informações. Entre vielas, ruas estreitas, um sobe e desce e números que aparecem e
desaparecem, o norte se perde num caos espacial. E ali, onde o caminhão de lixo não
entra, do lado esquerdo, entre os números 16, 76, 35, 206, está o número 204, sede do
projeto Azu.
Uma casa branca, pé direito alto, toda de vidro, cria um contraste arquitetônico
no meio das "quase casas" sem cor, entre o ocre e cinza. Na frente dela, Élcio Torres, 42
anos, vestindo jeans, tênis e uma camiseta que traz escrito “porca miséria”, atento ao
movimento da rua, espera. Ele é o idealizador do projeto e prontamente diz: “Para
entender o Azu é preciso ganhar a rua”.
Na Vila Nossa Senhora Aparecida moram mais de 23 mil pessoas; não há
espaços de lazer ou cultura, só tem uma biblioteca. "O projeto Azu é essencialmente um
projeto de urbanização de favela, essa cor marrom, cinza incomoda demais, e o projeto
existe para mudar a cara desse lugar", acredita Élcio.
Sol quente do meio-dia. No entorno do ateliê, pequenas intervenções gastas pelo
tempo emergem aqui e ali; resultado de um trabalho ao longo de cinco anos. As
aplicações são miúdas: cinco azulejos numa esquina, dois na porta de uma casa, um
mini mural em outra. Uma parede inteira repleta de azulejos é um dos símbolos do
projeto. Élcio lembra que essa foi a primeira intervenção feita com as crianças da
comunidade. O começo de tudo: quando a técnica ainda estava sendo construída e o
esmalte vermelho não era tão fácil de fazer.
Subindo a rua Cinturão verde, Élcio, entre gestos expansivos e conversas com as
pessoas da comunidade, fala da dificuldade de tocar o projeto sem ajuda de custo
nenhum do Estado e da Prefeitura. As parcerias são parcas e tudo que eles fazem vem
da garra, ou, como ele diz, "na unha mesmo". O coletivo é formado basicamente por
Élcio, André (arte-educador) e Leandro (morador da comunidade e aprendiz).
A escadaria que fica na rua Mocidade Alegre é outro marco do projeto. No lugar
de uma escadaria suja, cinza e triste, eles criaram, com a aplicação dos azulejos, um
116
espaço com cor, arte e alegria. Ali é possível entender por que o projeto Azu transforma:
"A rua ficou alegre, puseram até número na minha casa que não tinha", timidamente
comemora o operador de máquinas, Oswaldo Henrique da Silva, que mora há mais de
33 anos naquele pedaço.
E a compreensão do alcance do projeto vai vindo aos poucos. Para a técnica de
nutrição Silvia Motta, que mora do lado direito, no meio da escada, a intervenção não
trouxe apenas beleza: "Já surgiram pessoa aqui dentro da vila procurando casa para
comprar, valorizou".
Nessa altura, a narrativa para a matéria sobre o projeto “Azu” ganha corpo. O
próximo passo? Mostrar o coletivo em ação. Foi então que descobri que o grupo
planejava criar uma praça que não existia. Dentro de um mês, eles iriam colocar um
painel enorme de azulejos num espaço sujo e abandonado, usado como ponto de tráfico.
Logo pensei em uma passagem: "Era uma praça muito triste, não tinha nome, não tinha
cara. E agora?".
3.5.2. Da “porca miséria” à transformação de vida através da arte
"Senhor mire e veja. O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas
vão sempre mudando" (ROSA, 2006, p. 19).
Élcio Torres é assim: da “porca miséria” à transformação de vida. Élcio, jovem
da classe média, se envolveu com o tráfico, foi preso com 20 quilos de cocaína em 1994
e ficou na extinta Casa da Detenção, no Carandiru, por 4 anos. Nesse tempo, no
Pavilhão sete, ele estudou artes plásticas e se transformou. A ironia faz parte da fala
dele:
Descobri que eu podia usar do tempo que o estado tinha me dado graciosamente em
meu benefício. E nos quatro anos, eu estudei. E no meio disso tudo, entre eu sair da
cadeia e chegar aqui, teve transformação de corpo, eu tinha 164Kg e fiquei com 80Kg e
venho transformando as coisas na minha vida. Se eu consigo transformar a minha vida,
sei que é possível transformar a vida dos outros também. E o grande desafio que eu
tenho hoje é viver disso que eu aprendi lá, que é viver de arte (TORRES apud PRADO,
2011).
117
Tudo é uma questão de olhar. Élcio poderia ser visto sob o rótulo do ex-
presidiário, para mim, a história dele é um exemplo de transformação física e mental.
Nessa altura, eu cursava, como aluna especial, a disciplina Mídia, Narrativas
Contemporâneas e Conhecimento, do Prof. Dr. Dimas A. Künsch, no Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero. Estudamos em aula, o “mito
do herói”, apresentado por autores como Joseph Campbell (1990), Mônica Martinez
(2008) e Christopher Vogler (2006). E foi uma sincronicidade. O “mito do herói”
acabou por dar o norte para a construção do roteiro da reportagem sobre o projeto Azu.
Utilizei a estrutura narrativa proposta por Vogler em A jornada do escritor: estruturas
míticas para escritores (2006). A narrativa transformadora de Élcio, além de ser a base
para a transformação do projeto Azu, é por excelência o mito do herói, na realidade, o
mito do anti-herói. Os “offs” foram montados seguindo a trajetória do “mito do herói”,
dando uma estrutura específica para a ação:
Off 01 - mundo comum: favela
Off 02 - chamado a aventura: mudar a cara da favela + o que é o
projeto Azu
Off 03 - recusa ao chamado: exemplos do começo do projeto + falta de
grana para viver de arte
Off 04 - encontro com o mentor: no caso é ele mesmo, a arte (na
cadeia)
Off 05 - travessia do primeiro limiar: compromisso - 1 grande
intervenção escada Mocidade Alegre
Off 06 - testes: o que é a arte do azulejo
Off 07 - sonho e aproximação da caverna oculta: arte ilha grega
Off 08 - aliados, inimigos: Leandro aprendiz
Off 09 - provação: intervenção na praça / criar a praça
Off 10 - recompensa: praça pronta
Off 11 - caminho de volta, ressureição, retorno com o exilir: praça
pronta, auto estima, cidadania (PRADO, 2011).
E o “mito do herói” ressaltou dentro da reportagem do Azu a força da história de
Élcio e de suas intervenções. A cadência do mito que é algo tão natural para o humano,
passível de compreensão, fortaleceu essa narrativa. E ainda facilitou a inclusão da arte e
do afeto no texto.
118
Podemos acreditar num jornalismo mais humano, que possa aproveitar uma outra
forma de compreender o mundo, tão antiga como os primeiros homens da terra já
faziam. Os mitos, as lendas, os contos de fadas, as fábulas, as histórias orais, do
conhecimento comum – essas narrativas que fazem parte da cultura – tentam criar uma
ordem diante do caos. E, as “narrativas contemporâneas”, forma possível de um
jornalismo compreensivo, também têm esse poder de transformação e organização.
Uma boa história pode trazer esperança, força, encantamento, criatividade, em
suma, criar novos sentidos. A explicação não basta para entendermos o mundo. O
sentimento é fundamental. Precisamos de histórias que nos impactem positivamente e
mexam com os nossos sentidos. Tal como define Medina “A vertente mais desafiadora,
porém, se pauta pela atitude pragmática de ir ao encontro de vivências cotidianas e
colhê-las não com a metodologia explicativa, mas sim com afetos e as simpatias da
compreensão" (MEDINA, 2003, p. 57).
119
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em linhas gerais, a presente pesquisa conseguiu abordar de maneira profunda o
tema proposto: Cultura e Jornalismo. Com o auxílio de intelectuais como David Harvey,
Gilles Lipovetsky, Raymond Williams, Sigmund Freud, Alfredo Bosi, Renato Ortiz,
Jorge Schwarz, E. H. Gombrich, além de outros, foi possível criar uma noção ampla de
cultura, proposta no Capítulo 1.
A dissertação também apresentou, de maneira complexa, uma acepção, evolução
histórica e de características gerais da cultura dentro do que se convencionou chamar de
Modernidade e de Pós-modernidade, no mundo e no Brasil. O sociólogo Renato Ortiz
foi peça fundamental para a concepção do capitulo 2 e, sobretudo, para a percepção de
que a cultura é algo em constante movimento e evolução. No caso brasileiro, isso é bem
fácil de observar. Nossa história é recente, se pensarmos em termos de liberdade e de
cultura. Como bem lembra Oswald de Andrade, “Antes dos portugueses descobrirem o
Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”. Essa história original, pouco consta nos
autos, nosso conhecimento parte de uma história marcada pelo colonialismo e pela
escravidão. A busca por uma construção de uma identidade nacional acaba por
demonstrar como a cultura brasileira evoluiu ao longo dos séculos XIX, XX e XXI.
No que diz respeito ao Jornalismo Cultural, numa busca para a compreensão de
como a mídia concebe e realiza suas escolhas editoriais no campo da cultura, levando
em conta seu contexto histórico (da contemporaneidade) e cultural, a presente pesquisa
também conseguiu levantar questões interessantes.
No breve panorama histórico do Jornalismo Cultural no Brasil, tendo como foco o
jornal O Estado de S. Paulo, foi possível observar de que forma a cultura ocupava os
espaços nos jornais, numa perspectiva evolutiva: primeiro os folhetins, depois os
rodapés críticos, em terceiro as seções ou colunas, logo depois os suplementos e, por
fim, os cadernos de cultura. Ao recontar a história do jornal, desde 1875 até os dias de
hoje, também foi possível fazer uma comparação com outros impressos, apresentando
120
nesse sentido uma amostragem relevante no que diz respeito à história do Jornalismo
Cultural no Brasil.
Talvez a principal questão que moveu esta pesquisa foi a indignação ao observar o
quão ligeira se tornou a abordagem da cultura no jornalismo. A pesquisa partiu do
pressuposto de que, na contemporaneidade, o jornalismo continua preso ao modelo
positivista, seja na forma como transmite a informação, seja na produção do seu
conteúdo. E que, no caso específico do Jornalismo Cultural, nota-se que também
continua a seguir a mesma lógica da ordem científica de matriz positivista, mas com um
ingrediente específico: mantém-se preso aos ditames da Indústria Cultural e do
entretenimento.
O que se pôde observar ao analisar as publicações dominicais do Caderno 2, no
mês de agosto de 2014, é que muitas das reportagens, entrevistas, análises e notas estão
calcadas em agendas ou ligadas à divulgação de um produto cultural, sem levar muito
em conta a amplitude, diversidade e complexidade de sentidos que a cultura oferece.
Nos textos analisados, apenas um, o perfil “Vida de Violinista”, fugiu da lógica da
Indústria e apresentou outros sentidos diversos que a cultura comporta. O que não foi
feito nesta pesquisa, foi um levantamento mais aprofundado dos conteúdos publicados
diariamente no Caderno 2. Talvez esse seja um tema interessante para ser explorado em
uma próxima pesquisa. Outro ponto que seria relevante para outros pesquisadores é a
realização de uma pesquisa comparativa, entre, por exemplo, o Caderno 2 do Estado de
S. Paulo e a Ilustrada, da Folha de S. Paulo, concorrentes diretos e considerados os
jornais de maior expressão no Estado de São Paulo. Poder-se-ia ainda dizer que também
seria interessante para uma próxima pesquisa buscar realizar entrevistas, não só com os
profissionais dos cadernos culturais analisados, como também com intelectuais, artistas,
filósofos, alcançando-se assim, uma visão mais fresca da qualidade dos cadernos de
cultura.
Esta pesquisa também quis investigar a possibilidade de um Jornalismo Cultural
compreensivo e complexo, atento às mudanças contemporâneas de seu objeto: a cultura.
Nesse sentido, o trabalho conseguiu apontar outros caminhos possíveis para o
Jornalismo Cultural, que fogem à lógica da agenda, da Indústria Cultural e do
entretenimento; utilizando como exemplo o programa semanal Paratodos, da TV Brasil.
A escolha por analisar duas reportagens do programa Paratodos, foi tomada por um
motivo: o conhecimento de perto por parte dessa pesquisadora que essas reportagens
121
foram concebidas longe da lógica do mercado da Indústria Cultural. Logo, formas
pensadas dentro de outra chave: a do jornalismo compreensivo e complexo. Nesse
sentido, para essa pesquisadora, o fato de comparar reportagens feitas para uma
televisão pública com reportagens para uma mídia impressa comercial, não era tão
significativo e equivocado. Pois o que se pretendia demostrar, através dessa
comparação, era apenas a existência de outras formas de conceber o Jornalismo
Cultural. Autores como Cremilda Medina, Edgar Morin, Michel Maffesoli, entre outros,
dialogaram sobre o tema. Foi possível pontuar, através dos ensaios sobre as reportagens
do Paratodos, que é no rico contexto da cultura que conseguimos falar de complexidade
humana, afeto, solidariedade, cidadania e propor novas formas de construção de
narrativas para o jornalismo. Ou seja, que essa possível e necessária mudança
epistemológica dentro do jornalismo deve acontecer, justamente, no âmbito da cultura e
do Jornalismo Cultural.
122
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126
ANEXOS
ANEXO A – QUADRO 1 – CADERNO 2 DO JORNAL O ESTADO DE S. PAULO
– EDIÇÃO DE DOMINGO – AGOSTO DE 2014
Dat
a
p. Título Lead Autor Tipo Assunto *
3/8 C1 Importância de ser fiel Marco Nanini estreia no Rio
“beije minha lápide” em que
evoca Oscar Wilde.
Ubiratan
Brasil reportagem estreia
espetáculo
Teatro 1
3/8 C4 Espectador de tragédias Marco Nanini interpreta um
prisioneiro que se confunde com
Oscar Wilde.
Ubiratan
Brasil reportagem estreia
espetáculo
Teatro 1
17/8 C3 Grupo de teatro pode
perder sede Imóvel ocupado pelo Núcleo
Bartolomeu de depoimentos, na
Pompéia luta contra especulação
imobiliária.
Murilo
Bonfim Matéria Teatro
17/8 C3 Broadway apaga luzes
em tributo à Robin
Williams
O ator, que morreu na segunda,
foi reverenciado pela classe
teatral; Lauren Bacall também
foi homenageada.
Sem
crédito Nota
NYT Teatro
24/8 C1 Quixote musical Miguel Falabella se inspira na
obra de Bispo do Rosário para
dirigir “O homem de La
Mancha”.
Ubiratan
Brasil reportagem
estreia
espetáculo
Teatro 1
24/8 C4 Sonho impossível “O homem de La Mancha” une a
sofisticação musical com trama
popular.
Ubiratan
Brasil Reportag
em estreia
espetáculo
Teatro
3/8 C3 Giusi, a suor Maria de
“A Grande Beleza” Um encontro com a atriz que faz
a santa no filme de Paolo
Sorentino, vencedor do Oscar de
produção estrangeira.
Luiz
Carlos
Merten
matéria lançamento
DVD
Cinema 1
3/8 C3 O filme de Michael
Powell que é o farol para
Martin Scorsese
Luiz
Carlos
Merten
nota lançamento
DVD
Cinema
3/8 C6 A essência da arte Com acréscimo de 9 artigos em
português, clássico do crítico
francês André Bazin ganha
reedição.
Luiz Zanin
Oricchio resenha lançamento
livro
Cinema 1
3/8 C7 Guardiões arrecada U$
11 mi na estreia reuters nota Cinema
3/8 C7 Jamie Foxx vai viver
Mike Tyson na tela Sem
crédito nota Cinema
3/8 C13 Guia Cinemas Cinema
10/8 C3 Mistério, tensão e cenas
assustadores Caixa “obras primas do terror”
reúne 6 clássicos do gênero; “A
noite do demônio” é uma delas.
Luis
Carlos
Merten
Resenha lançamento
DVD
Cinema
10/8 C13 Guia Cinema Cinema
127
10/8 C14 Liberdade de escolha Melannie Griffith fala sobre
jovens diretores e a opção de
fazer um curta.
Flávia
Guerra
repórter
especial
Matéria Cinema
10/8] C14 À mesa com James
Franco e seus muitos
projetos
Fascinado por temas sombrios, o
ator e diretor expande suas
muitas facetas pelas telas, palcos
e polêmicas.
Jacob
Bernstein Matéria
NYT –
New York
Times
Cinema
17/8 C10 Cinema, a verdadeira
praia de Agnès Varda Diretora que ajudou a nouvelle
vague recebe prêmio em
Locarno.
Flavia
Guerra Matéria
festival Cinema
17/8 C10 Ela se ocupa de pessoas
comuns e as torna
grandes
Luiz Zanin
Oricchio Análise /
crítica Cinema
17/8 C11 Irmãos atores seguem a
mesma trilha Júlio e Ravel Andrade, estrelas
do filme “Não pare na Pista”, se
dividem entre o prestígio do
cinema e a popularidade da TV.
Luiz
Carlos
Merten
Matéria Cinema personalidade
1
17/8 C13 Guia Cinema Cinema
24/8 C8 O brasileiro entre as
Tartarugas Ninjas Lula Carvalho conta como foi
assinar a fotografia do novo
filme da franquia
Flavia
Guerra Perfil Cinema
24/8 C9 Vovôs da ação voltam a
atacar no episódio 3 “Os mercenários” pegam mais
humor, menos violência e
incluem gays.
Pedro
Caiado
Repórter
especial
Matéria Cinema 1
24/8 C9 Velhos e jovens batendo
juntos não serão
vencidos
Luiz
Carlos
Merten
Crítica Cinema
24/8 C11 Guia Cinema Cinema
31/8 C3 Titanus, ou uma breve
história do cinema
italiano
A trajetória da lendária
produtora fundada por Gustavo
Lombardo, responsável por
obras-primas da sétima arte.
Flavia
Guerra reportagem Cinema 1
31/8 C3 O segredo do sucesso era
investir em bons roteiros Companhia também fez filmes
em parceria com estúdios
internacionais e alternava
projetos autorais e populares.
Flavia
Guerra reportagem Cinema
31/8 C11 Guia Cinema Cinema
3/8 C5 Uma criadora em
constante movimento Diane Von Furstenberg fala
sobre os 40 anos de sua marca e
dos planos de investimento no
mercado brasileiro.
Michaela
Schmaedel –
repórter especial
entrevista Moda 1
3/8 C7 Meus dois dígitos Humberto
Werneck Crônica 1
3/8 C8 O passado imperfeito Mario
Vargas
Lhosa
Crônica 1
3/8 C12 Esteira Fábio
Porchat Crônica
3/8 C14 Blanquette de veau Luis
Fernando
Verissimo
Crônica
128
10/8 C10 Figuraças Humberto
Werneck Crônica 1
10/8 C12 Melhor Comédia Fábio
Porchat Crônica
10/8 C14 Lloyd George Luis
Fernando
Verissimo
Crônica
17/8 C10 O pesado mundo dos
gordos Humberto
Werneck Crônica
17/8 C12 Atraso Fábio
Porchat Crônica
17/8 C14 Coincidências Luis
Fernando
Verissimo
Crônica
24/8 C8 Realidades cabeludas Humberto
Werneck Crônica 1
24/8 C10 Exames Fábio
Porchat Crônica
24/8 C12 Esteira Luis
Fernando
Verissimo
Crônica
31/8 C8 Quando felicidade não
traz felicidade Humberto
Werneck Crônica
31/8 C10 Uma da manhã Fábio
Porchat Crônica
31/8 C12 Álgebra e fogo Luis
Fernando
Verissimo
Crônica
3/8 C7 Rancho de Jackson pode
ser vendido reuters nota Música
3/8 C9 Solos e um punhado de
canções pode pagar uma
dívida
Clapton faz maior homenagem a
JJ Cale, autor de “cocaine” e
criador de um estilo que o
guitarrista usaria para sempre.
Julio Maria Resenha lançamento
disco
Música 1
10/8 C5 Sanfona Universal de
Mestrinho estreia com
brilho
Seguidor de Dominguinhos,
admirado pelo próprio, músico
sergipano, soa uma promessa ao
lançar seu primeiro disco.
Julio Maria Matéria lançamento CD
Música 1
17/8 C1 Barato total Show inédito de Gil e Gal em
Londres é lançado em álbum Renato
Vieira reportagem
lançamento álbum
Música 1
17/8 C4 Como dois são muitos Informalidade e improvisos de
Gilberto Gil e Gal Costa se
sobressaem no álbum “Live in
London 71”.
Renato
Vieira Reportag
em lançamento
Álbum
Música
17/8 C4 Fita foi encontrada em
1998 durante pesquisa Produtor foi a Londres para
localizar disco inacabado de Gil
e adquiriu trilha e show com
Gal.
Renato
Vieira Reportag
em lançamento
Álbum
Música
17/8 C4 Gil em Londres:
esotérico e contracultural Carlos
Rennó Análise /
crítica Música
129
17/8 C5 O belo quintal de
Rodrigo Maranhão Compositor lança CD
“Itinerário” e fala sobre o
alcance da nova MPB.
Roberta
Pennafort Matéria lançamento
CD
Música 1
17/8 C14 Vida de violinista Membro da Orquestra Jovem do
Estado, que toca hoje na Sala
São Paulo, Lucas Silva se
prepara para estudar na Holanda.
João Luiz
Sampaio
Repórter
especial
Perfil Música
17/8 C14 Sinfônica tem como foco
a formação de músicos João Luiz
Sampaio
Repórter
especial
Perfil Música
24/8 C3 Uma cápsula dos
Mutantes Box inclui álbuns no período em
que Arnaldo Baptista, Rita Lee e
Sérgio Duarte Dias formavam o
grupo.
Renato
Vieira Resenha
lançamento
Box CD
Música 1
24/8 C3 Coletânea traz faixas
registradas fora da
discografia
Clássicos interpretados em
festivais são resgatados, além de
gravações com Gilberto Gil e
Caetano Veloso.
Renato
Vieira Resenha
lançamento Box CD
Música
31/8 C5 Salif Keita, uma lenda
do Mali, será atração do
Mimo
Festival que começou neste final
de semana em Ouro Preto vai
contar com o albino na
passagem do evento por Paraty.
Julio Maria Máteria abertura
festival
Música 1
31/8 C8 Stones não pensam em
parar, diz seu biógrafo Grupo, que volta ao País em
março, é movido por ambição,
genes e despesas.
Jotabê
Medeiros Entrevista Música /
literatura
31/8 C12 Mistérios da montanha Ao voltar da Bósnia, onde diz ter
visto sinais enviados de Nossa
Senhora, Elba Ramalho reafirma
a fé e grava dois discos.
Julio Maria Entrevista Música
3/8 C10 Theo fica na berlinda em
“Sessão de terapia” Na nova temporada, protagonista
passará por problemas na
família.
João
Fernando Matéria lançamento
série
TV
3/8 C10 Guia TV program
ação
TV
3/8 C14 O mundo vai acabar Produzida por Michael Bay,
“The last ship” mostra planeta
devastado por vírus misterioso.
João
Fernando Matéria lançamento
série
TV
10/8 C6 Missão Pet volta com
risco e emoção Na nova temporada do reality, o
zootecnista Alexandre Rossi
encara animais mais agressivos e
com crise existencial.
Julio
Fernando Matéria lançamento série
TV 1
10/8 C6 Guia TV TV
10/8 C7 Marcos Palmeira se
multiplica em 2 canais Ator estrela nova série do
multishow, “a segunda vez”. Cristina
Padiglione Matéria lançamento
série
TV 1
17/8 C6 Pirataria e dramas
pessoais marcam volta
de “O Negócio”
Em nova fase, garotas de
programa que usam técnicas de
marketing vão atrás de
impostora e lidam com
namorados.
João
Fernando Matéria lançamento série
TV
17/8 C6 Guia TV TV
130
17/8 C7 O público do cinema não
quer desafio Steven Soderbergh, diretor da
série “The Knick”, exibida no
canal Max, analisa as mudanças
no cinema e na TV.
Mariane
Morisawa
repórter
especial
Entrevista TV
17/8 C8 Bicha má, com louvor Ator conta como nasceu Téo
Pereira, blogueiro do mal na
novela das 9 e primeiro gay de
sua galeria.
Cristina
Padiglione Entrevista TV 1
17/8 C9 O sertão com um perfil
mais moderno Nordeste contemporâneo é
cenário da trama de “amores
roubados”.
Ubiratan
Brasil reportagem
lançamento DVD
TV 1
24/8 C5 Mentes criminosas Fã de suspense psicológico,
Glória Perez cria serial killer
para série da Globo.
Cristina
Padiglione Matéria TV 1
24/8 C6 Vilã na ficção, Famke
Janssen banca a boa
moça
Estrela da série “Hemlock
Grove”, atriz reclama da falta de
mulheres por trás das câmeras
no mercado dos EUA.
João
Fernando Matéria TV
24/8 C6 Guia TV TV
31/8 C6 “Vai que cola” volta,
com edição ao vivo Programa mais visto da TV paga
no ano passado, sitcom chega à
2° temporada, com novos
personagens
Cristina
Padiglione Matéria lançamento série
TV
31/8 C6 Guia TV TV
31/8 C7 Truques de filmes de
Hollywood em versão
econômica
Em “Cinelab”, cineastas
brasileiros mostram como fazer
efeitos especiais em produções
de baixo orçamento.
João
Fernando Matéria TV 1
10/8 C1 De caso com a moda O renomado fotógrafo Mario
Testino ganha mostra em São
Paulo.
chamada Fotogra
fia
1
10/8 C4 Um olhar curioso Amante do Brasil, Mario Testino
fala de manipulação digital,
redes sociais e moda.
Rita
Alonso e
Helena
Tarozzo
repórter
especial
Entrevista
estreia
exposição
Fotogra
fia
24/8 C12 Notas sobre o olhar raro Livro do fotógrafo Stephen
Shore será lançado hoje na SP-
Arte Foto
Antonio
Gonçalves
Filho
Matéria
lançamento
livro
fotografia
17/8 C3 “Biomashup” não dá
sossego para a percepção Com rara combinação de
densidade e delicadeza, 6
intérpretes constroem emoções.
Helena
Katz
repórter
especial
Crítica Dança 1
24/8 C7 A vez dos caçadores de
sombras em SP Cassandra Clare fala hoje na
mostra sobre ficção de fantasia,
gênero que a fez vender mais de
25 milhões de exemplares.
Guilherme
Sobota Matéria Literatura 1
31/8 C8 Stones não pensam em
parar, diz seu biógrafo Grupo, que volta ao País em
março, é movido por ambição,
genes e despesas.
Jotabê
Medeiros Entrevista Música /
literatura
31/8 C9 Bienal do Livro tem
história para contar Último dia no Anhembi traz
Laurentino Gomes e João
Carrascoza.
Guilherme
Sobota Matéria agenda Bienal
Literatura 1
131
31/8 C1 Bienal do invisível Mostra tem como foco a arte
social e elege conflito como
tema.
Antonio
Gonçalves
Filho
Reportag
em
abertura
exposiçã
o
Artes
plásticas 1
31/8 C4 Arena dos politizados A ação social é dominante nas
obras da 31° edição da Bienal de
São Paulo.
Antonio
Gonçalves
Filho
Reportag
em
abertura
exposiçã
o
Artes
plásticas
132
ANEXO B – “Uma criadora em constante movimento”, Caderno 2, do Estado de S.
Paulo, do dia 3 de Agosto de 2014.
133
ANEXO C – “À mesa com James Franco e seus muitos projetos”, do
Caderno 2, do Estado de S. Paulo, do dia 10 de Agosto de 2014.
134
ANEXO D – “O público do cinema não quer desafio”, Caderno 2, do Estado de S.
Paulo, do dia 17 de Agosto de 2014.
135
ANEXO E - “Vida de violinista”, Caderno 2, do Estado de S. Paulo, do dia 17 de
Agosto de 2014.