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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
Fabiana Eramo
Infinita Beleza: O Sétimo Sentido
A Linguagem do Corpo e a Inteligência dos Sentidos na Performance daDança Afro
Niterói, 2010
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
Fabiana Eramo
Infinita Beleza: O Sétimo Sentido
A Linguagem do Corpo e a Inteligência dos Sentidos na Performance daDança Afro
Dissertação apresentada ao Programa dePós-Graduação em Antropologia daUniversidade Federal Fluminense, comorequisito parcial para obtenção do Grau deMestre.
Orientador: Dr. Julio Cesar de Tavares
Niterói, 2010
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Banca Examinadora
Prof. Orientador- Dr. Júlio Cesar de TavaresUniversidade Federal Fluminense
Prof. Dr. Sidnei Clemente PeresUniversidade Federal Fluminense
Prof. Dr. José Luiz Ligiéro Coelho (Zeca Ligiéro)UniRio
Prof. Dr. Ricardo Freitas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Daniel Bitter Universidade Federal Fluminense
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RESUMO
Este trabalho explora a performance da dança Afro, especialmente da dança de Orixásneste contexto profano, evidenciando ao mesmo tempo o caráter sagrado da performancee as origens dessa dança no mundo sagrado da religião afro-brasileira do Candomblé.Dentro da performance analisa-se o corpo como produtor de significados, meio decomunicação, locus de memória e de identidade. Esta dissertação apresenta como os jogos interacionais na performance, os gestos, movimentos e outros símbolos corporaisda dança são, graças a uma inteligência sensorial e um conhecimento corporal, produtorese transmissores de histórias e significados que fazem parte do rico legado cultural afro- brasileiro. Metodologicamente, a pesquisa baseou-se na auto-etnografia conduzida comodançarina de dança Afro e apoiada por teorias antropológicas, sociológicas, teorias da
performance e da comunicação, utilizando uma abordagem interacionista efenomenológica para analisar o objeto da pesquisa. O objetivo deste trabalho é mostrar a
importância do corpo e da inteligência sensorial na produção e comunicação designificados dentro da performance da dança Afro, valorizando essa como uma artecomplexa, rica de história e de beleza, capaz de ensinar, resgatar e transmitir um saber que faz parte da cultura afro-brasileira e que precisa ser reconhecido e apreciado.
ABSTRACT
This work explores the performance of Afro-brazilian dance, especially of Orixá dancewithin this profane context, underlining at the same time the sacred trait of the
performance as well as its origins in the sacred world of the Afro-brazilian religion of Candomblé. Within the performance, I analyze the body as producer of meaning,communication tool, and memory and identity guardian. This thesis presents how theinteractional games, gestures, movements and other dance body symbols within a performance, thanks to a sensorial intelligence and to a body knowledge, produce andtransmit histories and meaning that are part of a rich afro-brazilian cultural patrimony.Methodologically speaking, the research was based on an auto-ethnography as a dancer of Afro-brazilian dance, supported by sociological, anthropological communication and performance theories, and I especially focused on interactionist and phenomenologicalviews to analyze the research object. The goal of this work is to show the importance of the body and of the sensorial intelligence in the meaning production and communication
within the Afro-brazilian dance performance, valorizing this as a complex art, rich inhistory and beauty, capable of teaching, remembering and transmitting a specialknowledge which is part of the Afro-brazilian culture, and which needs to be recognizedand appreciated.
PALAVRAS CHAVE: 1. Dança Afro; 2. Orixás; 3. Corporeidade; 4. Performance;
KEY-WORDS: 1. Afro-brazilian dance; 2. Orixás; 3. Embodiment; 4. Performance;
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SUMÁRIO
• Agradecimentos………………………………………………………………..…7
• Introdução…………………………………………………………………..…….9
• Capítulo 1: Olhar para a (e na) Performance………………………….….…..12
1.1 Métodos e descrição do campo de pesquisa……………………….………...12
1.2 Performance………………………………………………………………….17
1.3 Paralelo Ritual-Performance…………………………………………………20
1.4 Funções da Performance……………………………………………………..24
• Capítulo 2: O Gosto da Dança Afro……………………………………………28
2.1 O mundo da dança……………………………………………………….…..28
2.2 Danças Afro-brasileiras………………………………………………….…..36
2.3 A Arte de dançar Afro………………………………………………………..45
2.3.1 História……………………………………………………..…….46
2.3.2 Elementos………………………………………………...………49
2.3.3 Modalidades…………………………………………………...…57
• Capítulo 3: Os Cheiros da Natureza (Incorporando Orixás)…………………61
3.1 O Candomblé……………………………………………………………...…61
3.2 O Ritual da Festa Pública…………………………………………………….63
3.3 Os Orixás e suas Danças……………………………………………………..68
3.4 O Mito no Corpo……………………………………………...………..…...103
3.5 Dança de Orixás no contexto sagrado e no profano…………………......…104
• Capítulo 4: Ouvir o Outro (Comunicar Dançando)………………………....109
4.1 Sinergia e Cooperação………………………………………………...…....109
4.2 Diálogo e incorporação da linguagem……………………………………...112
4.3 Comunicação entre corpo e natureza…………………………………….…114
4.4 Conversas na dança: a presença do Tambor…………………………….….116
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• Capítulo 5: A Intuição do Corpo (O Corpo na Dança e a Dança no Corpo) 119
5.1 Corpo como Instrumento, “pessoa” e mediador cultural…………….….….119
5.2 O Corpo que (se) pensa dançando………………………………………….123
5.3 O gesto na Performance da dança Afro…………………………………….128
5.4 Memória corporal e embodiment………………………………………….…..134
• Capítulo 6: Sentir na Pele (Corpo, Identidade e Alteridade)……………..…142
6.1 Resgate e Identidade………………………………………………………..142
6.2 Categorias Sociais e Estereótipos…………………………………………..1456.3 Estigma e Preconceito Racial……………………………………………….149
• Conclusão……………………………………………………………………….155
• Bibliografia……………………………………………………………………..157
• Lista de Imagens……………………………………………………………….166
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AGRADECIMENTOS
A Deus e todos os Orixás por providenciarem luz e força para terminar este trabalho.
A Eliete, educadora, mulher guerreira, amiga e conselheira, por me ensinar a infinita
beleza da dança Afro e por me inspirar a pesquisar essa arte.
Aos meus pais, por me apoiarem nas minhas escolhas, projetos e aventuras.
Ao Prof. Dr. Júlio Cesar de Tavares, por me orientar e ajudar nesta pesquisa desafiadora,
e por acreditar neste trabalho.
Aos Professores da banca examinadora, pela sua disponibilidade, ajuda e pelas valiosas
sugestões.
Aos meus amigos e colegas de dança, pelos seus gestos, palavras, movimentos e pela
alegria gerada nas aulas.
Aos integrantes da Cia. CorpAfro, presentes e passados, por acreditar no grupo e no seu
objetivo, e pelos momentos de grande aprendizado juntos.
Ao meu amigo Alex, fantástico dançarino, por contribuir à minha pesquisa com valiosas
informações e por me convidar a conhecer e participar de maravilhosas festas públicas de
Candomblé.
A mãe Renata, Pai William e Mãe Rosa, por abrirem as portas dos seus Ilês e por me
acolherem como parte da família.
A Pai Jobi, por oferecer a oportunidade de conhecer o mundo dos Orixás.
A Alex, Claudia, Dejaneth, Eliete, Akauan e Walmir, por dançarem e tocarem
maravilhosamente no dia da defesa.
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À FEBARJ (Federação dos Blocos Afro do Rio de Janeiro), pois foi lá que tudo
começou.
À UERJ, ao Circo Voador e ao Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, por oferecer
ótimos espaços e estruturas de ensaio, tornando minha etnografia possível.
Às minhas famílias, tanto a de origem como as que me adotaram no Rio de Janeiro, pela
ajuda, amor e suporte muito preciso longe de casa.
Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense(PPGA-UFF).
À Capes, pela concessão de bolsa de estudo para tornar essa pesquisa viável.
A todos os professores de dança Afro que me deram aula e aos cujos espetáculos foram
uma inspiração: a Tatiana, Pakito, Vânia, Charles Nelson, Zebrinha, Neudinha, George
Momboye, Rubens Barbot, Rui Moreira por seus ensinamentos, seu tempo, e suas
contribuições.
Ao meu companheiro Pimpolho, por aguentar minhas crises de mestranda, pelas idéias
fornecidas, pelas brigas que me incitaram a terminar este projeto e pelo amor dado.
A todos meus amigos e amigas, pelas conversas, ajuda e solidariedade, tanto nos
momentos difíceis como nos de celebração, e por não me deixar desistir.
À minha gatinha Sete, por alegrar a casa enquanto escrevia.
A todos e todas que contribuiram com este trabalho.
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INTRODUÇÃO
O corpo só tem sentido se aguçarmos nossos sentidos.
A arte de dançar é algo que sempre foi presente na vida do ser humano e que faz
parte de uma variedade de atividades que vão da esfera do lúdico ao religioso, da arte à
diversão, da brincadeira ao profissionalismo. Como aponta o título “To dance is Human”
de Judith Lynn Hanna, antropóloga e pesquisadora em dança na Universidade de
Maryland, dançar é humano e a humanidade se expressa quase universalmente através da
dança (Hanna, 1987). Explicando mais em detalhe a presença da dança nos vários
campos da vida humana, Hanna descreve a dança como uma arte que representa pelo
menos sete tipos de comportamento humano: físico, cultural, social, psicológico,
económico, político e comunicativo (Hanna, 1987). Esta dissertação abordará cada uma
destas dimensões da dança, todas elas entrelaçadas e ligadas à corporeidade humana.
Junto com os tipos de comportamento humano, portanto, explicarei cada capítulo deste
trabalho através dos sentidos corporais: a visão, o tato, o olfato, o paladar, a audição e o
que pode se definir de sexto sentido: a intuição. Todos estes sentidos estão presentes na
performance da dança Afro e em todos os tipos de comportamento humano representados
pela dança. Entretanto, associei cada sentido a um capítulo e a um tema específico daminha pesquisa, mostrando como, de maneira variada mas sempre corporalmente o “eu
dançante” na dança Afro aprende, pensa na prática, interage, compreende, comunica,
carrega memórias e resgata identidades.
O primeiro capítulo é o da visão; é um sentido forte, que permite olhar para e
assistir o que está sendo mostrado. É o capítulo onde apresentarei meus métodos
etnográficos, e farei uma descrição do campo de pesquisa além de apresentar as teorias de
performance que serão a base do meu trabalho. Com o suporte teórico de RichardSchechner e Victor Turner falarei de performance e ritual, eventos nos quais a presença
de espectadores é fundamental. Explorarei também as teorias de interação social de
Erving Goffman, onde o olhar é um elemento chave do sucesso da interação. Seguindo o
sentido da visão, associei o paladar ao segundo capítulo, sendo esse o capítulo que vai dar
um gosto sobre a arte da dança em geral e sobre as danças afro-brasileiras e a dança Afro
em particular. Tentarei aqui explicar a história, os elementos e as modalidades do que
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pode ser chamado de dança Afro, saboreando a variedade e complexidade dessa arte.
Nestes primeiros dois capítulos é possível ver especialmente como a dança é um
comportamento social e econômico. A dança faz parte da nossa vida social e, ao dançar, o
performer assume um certo status e executa vários papéis, assim como acontece na vida
social, como será evidenciado no próximo capítulo com as teorias de Goffman.
Economicamente falando, a dança é o meio de trabalho e de sustento de muitos
profissionais, além do fato de muitas pessoas pagarem por aprender esta arte, por motivos
que vão do buscar uma identidade ao fazer exercício, do conhecer novas pessoas ao se
destrair, como veremos dos depoimentos no segundo capítulo.
O terceiro capítulo foca-se mais sobre a modalidade sagrada da dança Afro, adança de Orixás. Trarei aqui uma breve introdução sobre o mundo da religião do
Candomblé, explicando quem são os Orixás e listando os principais deuses com seus
arquétipos, suas características, seus gestos e jeitos de dançar. Ao analisar o corpo que
dança Orixá, farei uma comparação entre o contexto sagrado do Candomblé e o campo
profano da dança Afro, levantando algumas questões corporais que serão retomadas em
seguida. Este capítulo é associado ao olfato, sentido que é fundamental no Candomblé e
no lidar com as forças da natureza, muito presentes quando se fala de Orixás. Faz-se aqui
evidente como dançar é algo cultural dado que todos os valores, atitudes e crenças
influenciam os movimentos e a performance do dançarino. Além disso, através da dança
transmitem-se elementos que fazem parte de uma rica cultura; neste caso passam-se
histórias e mitos originários da religião do Candomblé, parte da cultura afro-brasileira.
O quarto capítulo é da audição, pois é o capítulo que fala de comunicação. No dia
a dia a comunicação acontece tanto de maneira verbal quanto não verbal. De qualquer
maneira, o que é fundamental no processo comunicativo é que tenha alguém que escute e
receba a mensagem. Na dança Afro o corpo comunica através dos gestos, da voz, damúsica, do toque do tambor, do movimento. Explorarei portanto as teorias de
comunicação que abordam os elementos de interação e cooperação entre os protagonistas
do ato comunicativo. Olhando para os tipos de comportamento de Hanna, esse capítulo
lida com o “comportamento comunicativo” da dança, considerando esta arte como uma
linguagem, um meio de comunicação não-verbal através da qual instauram-se relações e
transmitem-se significados.
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CAPITULO 1 – Olhar para a (e na) Performance Olhar para a (e na) Performance Olhar para a (e na) Performance Olhar para a (e na) Performance
Tudo pode ser dançado e compreendido, pois o corpo, por uma razão ancestral, sempre teve necessidade de comunicar-se
através do movimento.Maria Fux
Métodos e descrição do campo de pesquisa
Desde que cheguei no Rio de Janeiro, a dança Afro entrou na minha vida de
maneira intensa, como uma verdadeira força da natureza com a qual esta arte tanto está
conectada. Foi dançando que aprendi muitas coisas sobre a cultura afro-brasileira que
comecei a sentir tão perto de mim que comecei a querer saber e pesquisar mais sobre ela.
Por isso, depois de alguns mêses de aula, reparando quanto a dança Afro tinha virado
algo extremamente importante na minha vida, quis realmente entender e procurar saber
mais sobre este universo. Foi assim que decidi pensar em um projeto de mestrado onde
pudesse estudar e pesquisar a dança Afro. Esta possibilidade me foi dada dentro do
campo da antropologia, onde pude descobrir detalhes fascinantes que fazem parte do
universo da dança Afro.Minha pesquisa baseou-se principalmente na observação participante do meu
objeto de estudo como dançarina de dança Afro. Ao longo da minha pesquisa participei
de muitas aulas e oficinas de dança Afro, tanto no Rio como em Salvador. Fiz algumas
aulas com o professor Charles Nelson na Fundição Progresso na Lapa e participei como
percussionista da banda Afro Orunmilá, na Febarj, na Lapa, onde tive contato com a
prática de dança de blocos Afro que acontecia no lugar enquanto a banda tocava. Durante
meu tempo em Salvador, frequentei as aulas de dança Afro na Escola de Dança do
Terreiro de Jesus com Vânia, Tatiana e Pakito. Consegui participar de oficinas com
Zebrinha e Neudinha, coreógrafos do Ballet Folclórico da Bahia. Além de participar
como dançarina de aulas e oficinas de dança Afro, também assisti espetáculos, festivais e
eventos de dança afro-brasileira, como o espetáculo “Orixás” da Cia Rubens Barbot de
dança, o show do Ballet Folclórico da Bahia em Salvador, a Noite da Deusa do Ebano do
Orunmila no Rio de Janeiro, e o Festival de jongo no quilombo S. José, entre outros.
Ainda, conversei e conduzi entrevistas com profissionais da área e com alunos de dança
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Afro e pesquisei e estudei fontes teóricas relacionadas ao meu objeto. Além disso,
participei, como espectadora, de algumas festas de Candomblé em terreiros na Baixada
Fluminense para poder observar e estudar a dança de Orixás dentro do ritual religioso e
poder fazer uma comparação com o contexto profano da dança. Entre todas estas fontes
de pesquisa, houve um campo principal no qual conduzi minha etnografia, que foi o
campo onde comecei a dançar e que quero descrever mais detalhadamente.
A maioria das aulas que frequentei foram da professora de dança Afro Eliete
Miranda, baiana, formada pela escola de dança da UFBA (Universidade Federal da
Bahia), e ex dançarina e coreógrafa do Bando de Teatro Olodum de Salvador. Comecei a
dançar com Eliete em Agosto 2007 na Febarj (Federação dos blocos Afro do Rio deJaneiro), na Lapa, bem antes de até cogitar escrever uma dissertação de mestrado. Desde
2007 nunca parei de fazer aula com Eliete e continuei seguindo ela para onde estivesse
ensinando. Durante este último ano, desde março 2009, data do início oficial da minha
etnografia, as aulas da Eliete das quais participei como dançarina e pesquisadora foram
na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e no Circo Voador na Lapa. Além
das aulas, dancei e fiz pesquisa também como membro da Cia CorpAfro de Eliete, da
qual faço parte desde setembro 2007 a pesar de algum tempo no qual me afastei do grupo
devido a atritos entre alguns membros da companhia e a falta de organização. Desde
Abril 2009, entretanto, ensaiei toda sexta e sábado junto com a Eliete e os outros
participantes do grupo no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, localizado na Tijuca.
Durante este ano, houve algumas apresentações do grupo que considerei também como
material etnográfico.
Quero portanto descrever com mais detalhes como são estes três espaços nos
quais conduzi minha pesquisa e quem foram as pessoas que fizeram parte do campo
durante o ano passado. Disse que, desde Abril 2009 as aulas e os ensaios aconteceram emtrês lugares principais. O primeiro lugar onde começaram as aulas do ano passado foi o
Circo Voador, espaço cultural da prefeitura localizado na Lapa. Durante a semana ele
abriga várias atividades culturais, como aulas e oficinas de dança, circo, teatro; no fim de
semana, o circo Voador vira uma casa de show, onde é possível assistir a maioria dos
músicos e artistas brasileiros. O espaço para dançar aqui é diferente do que seria uma
qualquer sala de aula: o ambiente é aberto, ao ar livre, o chão é de madeira e a “pista” é
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redonda. A circularidade do espaço, por exemplo, foi muitas vezes usada para trabalhar o
elemento da roda, tão importante na dança Afro, e foi aproveitado para explorar
arrumações e posições coreográficas diferentes das convencionais. A maioria das aulas
no Circo Voador foi com a percussão ao vivo presente, o que levantou a energia em
várias ocasiões. Sendo um espaço aberto, muitas vezes durante o inverno tivemos aula
com tempo frio (relativamente, óbvio, agradecendo ao Rio de Janeiro!) e chuvoso. Ao
chegar nossos corpos estavam com preguiça, endurecidos e cansados. O som do tambor
era como um despertador, que fazia nos soltar e energizar, dançar e aquecer.
As aulas no Circo sempre incluiam um momento para nos sentarmos na roda e
discutir temas sobre a dança Afro, assuntos raciais e socio-políticos, e ler textos e poesiassobre história e identidade afro-brasileira. Mesmo sendo um espaço aberto, é um
ambiente privado e tranquilo, que permite estes tipos de atividade de reflexão e
discussão. Estes momentos em específico foram a melhor oportunidade para nós, alunos
da aula, nos conhecermos, para trocar idéias e opiniões. O que ajudou na interação entre
nós alunos foi o número pequeno de pessoas e o fato da maioria de nós já sermos amigos
de anos, desde as primeiras aulas da Eliete. Muitas pessoas “novas” fizeram uma ou outra
aula sem dar continuação, mas tiveram umas três pessoas que começaram a dançar no
Circo Voador com a Eliete que continuaram e ficaram o ano inteiro; foram estas poucas
pessoas que aos poucos se integraram mais com o “nosso grupo” de amigos da dança já
existente. Foi muito interessante observar este tipo de interação, onde ficou sempre
evidente a distinção entre os “novos alunos” e os “antigos”, que não somente são alunos
de longa data, mas também fazem parte do grupo CorpAfro, fazendo com que a
intimidade fosse bem maior do que com os outros. Esta situação, comum nas aulas mais
recentes da Eliete, é um exemplo do conceito de team que o sociólogo Erving Goffman
define no seu livro Presentation of Self in Everyday Life. Ele escreve que um time podeser criado por indivíduos para ajudar o grupo do qual são membros; porém, eles acabam
formando um tipo de “sociedade secreta” cujos membros são reconhecidos pelos não-
membros por formar uma sociedade exclusiva, mesmo que esta sociedade não esteja
sendo constituída pelo fato deles atuar como um time (Goffman, 1959, p. 105).
O segundo espaço é o da UERJ, onde a diferença entre os alunos antigos e os
novos está presente também mas em nível menor, pois além de mim e mais um aluno dos
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antigos, o resto da turma é formada por pessoas novas. As aulas de dança Afro da UERJ
fazem parte do projeto do COART que promove todo semestre várias atividades artísticas
e culturais. A Eliete tem dado aula lá há muitos anos, e eu já fiz aula na UERJ com ela
nos anos passados. No ano da minha pesquisa, 2009, formou-se uma turma que continuou
dançando nos dois semestres, e que surpreendeu pela sua vivacidade, intimidade, vontade
de aprender e de interagir. O espaço para dançar na UERJ é uma sala pequena mas limpa
e confortável, com espelhos, ar condicionado, equipamento audio-visual e uma variedade
de instrumentos percussivos a disposição. Como a aula tem três horas de duração, Eliete
sempre reserva uma boa parte do tempo para uma parte teórica, assim como ela faz no
Circo Voador, para poder discutir assuntos atuais sobre a questão Afro. Esta estrutura deaula é o que torna o método de Eliete tão diferente da maioria das aulas de dança Afro
das quais já participei. O fato de discutir e estudar assuntos como identidade negra,
sistema de cotas, mitologia dos Orixás, histórias dos blocos Afro de Salvador etc. é algo
que, além de promover a interação entre os alunos, também estimula o interesse pela
questão Afro, e ajuda a entender mais a importância da dança como uma maneira de
aprender, compreender e resgatar certas memórias e raízes.
O terceiro ambiente que irei descrever é o Centro Coreogràfico do Rio de Janeiro
(CCRJ) onde, desde Abril 2009, o grupo CorpAfro da Eliete está ensaiando. Este é um
lugar dedicado especificamente ao universo da dança e é portanto equipado para isso. As
salas são grandes e entornadas de espelhos, o chão, a luz e o som são apropriados para
dançar, e tanto as salas quanto o prédio são extremamente limpos e funcionais. Durante
uma roda entre os membros do grupo, no nosso primeiro ensaio do ano, Eliete falou
muito sobre este espaço, que foi conseguido por meio de um processo de seleção muito
duro. A coordenação do Centro agora é de Carmen Luz, coreógrafa da Cia Etnica, que
deu a Eliete e ao grupo Corpafro a possibilidade de ser residentes no CCRJ por um ano.Eliete comentou que “É muito importante estar neste espaço especialmente para um
grupo de dança Afro, pois sempre foi um espaço reservado a grupos de ballet ou de dança
contemporânea” (10 Abril 2009). Este comentário evidencia a importância de ter
conquistado um espaço que foi historicamente reservado somente para alguns estilos de
dança, e que sempre teve preconceito com grupos de dança Afro. Por estar em um espaço
profissional, Eliete exigia uma postura profissional, começando pelo uso de uma
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uniforme para dançar. Desde o primeiro ensaio, foi evidente como o clima e a atmosfera
desse espaço era completamente diferente dos outros lugares de aula, pois realmente
pôde-se sentir a seriedade, a responsabilidade e o profissionalismo exigidos. Uma coisa
que Eliete evidenciou em um ensaio foi a importância de “saber chegar no lugar, não
deixando de ser você mesmo mas precisando ter limites e regras” (18 Abril 2009). Mais
uma vez, a teoria de Goffman pode ser relacionada a esta situação, pois evidencia como a
vida social de todo dia é um palco no qual, para poder ter sucesso, é preciso saber chegar,
se preparar, conhecer as regras e os limites do jogo para poder respeitá-los e conseguir
jogar e interagir com os outros (Goffman, 1959).
A partir daquele momento, os ensaios aconteceram toda sexta e sábado, por cincohoras seguidas, sendo estes momentos de criação, de trabalho e de concentração. O
trabalho prosseguiu e evoluiu mas faltou ter uma consistência de participantes do grupo,
o que acabou demotivando um pouco o clima dos ensaios. De qualquer maneira, as
experiências vividas, as informações aprendidas e a prática adquirida durante os ensaios
foram extremamente valiosos para cada um dos membros do grupo, assim como para a
Eliete. Durante estes mêses de ensaio, tiveram várias apresentações do nosso espetáculo
“Corpos e Tambores”, o qual, mesmo estando ainda em construção, transmite os
objetivos do grupo CorpAfro elencados por Eliete:
Grupo Corpafro: corpo e origem Afro-Brasil.1. trabalhar a nossa identidade cultural.2. trabalhar corporeidade.3. conhecer o que tem ao nosso redor.4. desmistificar o fato do que “dança afro é macumba”.5. leitura, pesquisa, conhecer as origens. (24 Julho 2009)
Estes objetivos são os objetivos da arte de dançar Afro segundo os ensinamentos da
Eliete, os quais mostram como a performance da dança Afro é um meio para ensinar econstruir uma realidade que seja consciênte de certas questões pertencentes à cultura
afro-brasileira. É preciso agora clarificar o conceito de performance, muitas vezes
utilizado de maneira superficial sem conhecer o seu complexo significado. Após entender
mais este termo, mostrarei como os elementos performáticos fazem parte tanto da vida
cotidiana, quanto da dança e do ritual.
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Performance
As teorias de performance de Erving Goffman, Richard Schechner e Victor Turner aparecem como ferramentas adequadas para analisar as aulas, ensaios e
apresentações de dança Afro que fizeram parte da minha pesquisa. Primeiro, é
fundamental definir melhor o termo performance. Segundo um dos maiores estudiosos
de performance junto com Victor Turner, o norte-americano Richard Schechner, a
performance pode ser entendida no ambiente do cotidiano, do ritual e da arte. Todos estes
tipos de performance são feitas de “comportamentos duplamente exercidos,
comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para
desempenhar, que têm que repetir e ensaiar” (Schechner, 2003, p. 27). Ele continua
afirmando que as performances “afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e
adornam corpos, contam histórias” (Ibidem) Segundo Schechner portanto a atuação
repetida e ensaiada é um elemento fundamental da performance. Além disso, o
componente do “jogo” é também importante. Em sua obra “ Performance Theory”,
Schechner define performance como “Ritualized behavior permeated by play”
(Schechner, 1988, p. 99). A característica ritual da performance será analisada em
seguida; com resguardo ao fator do jogo, isso é algo que faz parte da interação entre osatores, e entre atores e audience, tanto no espetáculo de teatro ou dança, quanto na vida
de todo dia. O jogo é algo que rende a performance uma situação sempre ativa e, como
Schechner escreve, um “processo turbulento de transformação” (Schechner, 1988: 157).
Esta concepção de performance como atividade sempre em movimento e como
mudança pode ser comparada com a definição tanto de interação quanto de performance
de Erving Goffman. Ele afirma que a interação é a influência reciproca dos indivíduos
sobre as suas ações na sua presença imediata. A performance é toda a atividade de um
participante em uma situação, que serve para influenciar os outros participantes
(Goffman, 1959, p.15). Mais uma vez é possível ver como a “atividade” está presente
entre um grupo de indivíduos. No artigo Performance e História, Antonio Herculano
Lopes, após consultar várias definições de performance em dicionários, conclui que a
idéia de movimento, ação ou processo, combinada com a noção de resultado, assim como
a associação com um público são os elementos chave da performance. Lopes continua
explicando que no campo artístico o termo equivale ao termo apresentação, indicando a
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atuação de um artista numa apresentação (Lopes, 2003, p. 7). Além do campo artístico,
entretanto, “todo um enorme universo que nos circunda no dia a dia é de caráter
performático” (Ibidem, p. 6)
A performance portanto relaciona-se a algo que fazemos todo dia segundo
Goffman também ao assumir os vários papéis nas diferentes situações da vida. As
aparências e o jeito de se comportar são muitas vezes os maiores elementos de uma
performance e são os indicadores de um dado papel para os outros indivíduos. A maneira
de andar, a indumentária e alguns objetos pessoais se tornam símbolos que comunicam
determinado status ou personalidade:
“Quando começamos a ensaiar no Centro Coreográfico, comprei uma bolsa dedança, do tamanho suficiente para poder carregar minha roupa, água e tudo doque precisasse. É uma bolsa de pano beige com um desenho de pés descalços nafrente dela, caracterizando-a como uma bolsa de dança. Ao andar pela rua commeu cabelo preso, meu sutiã esportivo e minha bolsa, estava consciênte do fatoque quem me observava passar pela rua provavelmente achava que fosse umadançarina.”
Este excerto do diário de campo mostra como alguém possui um dado papel pelo fato de
simplesmente aparentar aquele papel e não necessariamente estar executando ele
(Goffman, 1959). A ação de andar pela rua usando uma bolsa com um desenho quesimboliza a arte da dança é uma performance, pois é guiada e condicionada por princípios
estéticos e técnicas teatrais; ao mesmo tempo a estética teatral de uma cultura é guiada e
condicionada por processos de interação social (Schechner, 1988, p. 215).
Para mostrar como as regras de interação social e as regras de performance
artística se relacionam, é interessante olhar para algumas situações nos ensaios e
apresentações de dança Afro. Primeiro, voltanto ao conceito de “time” de Goffman, ele
explica que a interação entre membros de um mesmo time precisa ser muito forte para
que a performance do grupo seja realizada com sucesso. Na dança, ao executar uma
coreografia em grupo, a cooperação entre os dançarinos é fundamental para formar um
conjunto harmônico e esteticamente coerente na frente de uma audience. É necessário
confiar no companheiro de dança e existe uma ligação de dependência reciproca entre os
indivíduos atuando juntos (Goffman, 1959). Esta cooperação é necessária tanto durante o
ensaio quanto, a maior razão, durante uma apresentação pública. Neste caso, a co-
operação precisa ser ainda maior. No caso de um dos componentes do grupo errarem na
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frente de espectadores, os outros membros precisam não revelar o erro até o fim da
apresentação (Goffman, 1959, p. 89). Esta situação aconteceu algumas vezes durante as
apresentações do grupo CorpAfro, durante as quais, se algum de nós errasse na
coreografia, isso seria comentado somente no camarim após a apresentação.
O fato de comentar abertamente os erros só longe da presença do público, evidencia a
presença nas performances de regiões distintas que Goffman chama de “front region” e
“backstage”. A região de frente é onde a performance está acontecendo e os bastidores
são a região na qual acontecem ações relacionadas com a performance mas que não são
coerentes com a aparência da performance (Ibidem, p. 134). Antes de uma apresentação,
portanto, toda a fase de arrumação, de maquiagem, de últimas repetições das coreografiafaz parte dos bastidores. Ao entrar no palco, entra-se a região de frente, onde os
performers mostram somente o que a audience está preparada para ver. A área dos
bastidores serve também para outras funções. Longe dos olhos e dos ouvidos da audience
é muito comum os componentes do time, os dançarinos no meu caso, falar mal dos
espectadores, coisa que eles não fariam na região de frente. Este comportamento é o que
Goffman chama de “Treatment of the absent” (Ibidem, p. 170) e é uma maneira de
manter a moral do time. Este “tratamento dos ausentes” aconteceu algumas vezes durante
minha etnografia como por exemplo em uma apresentação na Cinelandia em ocasião da
marcha mundial da paz. Ao nos apresentar, a mulher responsável pelo evento nos
introduziu como um “grupo de dança típica africana”. O que quer dizer algo “típico
africano”? Isso foi o que cada um de nós pensou imediatamente, internamente julgando a
mulher por pensar que “dança Afro”, no Brasil, é igual a uma “dança africana”. Como
veremos no próximo capítulo, essa é uma definição completamente inexata. Primeiro, não
existe uma dança africana, mas várias danças africanas, pois estamos falando de um
continenete composto por múltiplos países, povos e culturas. Segundo, a dança Afro- brasileira que o nosso grupo apresenta é complexa e formada por várias modalidades que
serão descritas no próximo capítulo e que, apesar de ter uma origem africana, é uma
dança brasileira, típica portanto deste país onde se desenvolveu. Na hora do comentário
da mulher não falamos nada, entramos na praça e fizemos nossa performance. Ao sair de
cena e nos reunir depois, todo mundo do grupo comentou sobre a denominação dada pela
organizadora e mostrou sua indignação (diário, 2 Outubro 2009).
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É interessate ver como esta divisão de regiões é típica de qualquer performance, tanto
artística, quanto da vida cotidiana ou ritual. Introduzindo o aspecto performático do
ritual, aqui temos um exercício das regiões em um terreiro do Candomblé em Nova
Iguaçu, onde as pessoas envolvidas no ritual estavam se arrumando para participar de
uma festa de Iemanjá:
Na casa de R., mãe de santo de A. houve a preparação para a festa: em um quartotodas as mulheres se arrumaram, escolhendo a roupa certa para o evento, semaquiaram, pentearam o cabelo por horas, preocupando-se muito com aaparência. Achei esta cena muito parecida com a arrumação nos bastidores deuma apresentação de dança. (9 Maio 2009)
Assim como o contexto artístico, o ritual religioso também possui sua região de frente eseus bastidores. Ao entrar em cena, os elementos performáticos continuam co-existindo
com os elementos religiosos do ritual. A relação inversa é também algo que observei
durante meu campo, ou seja a a presença de elementos rituais na performance artística.
Em um festival de Jongo (tipo de dança Afro-brasileira) no quilombo de S. José da Serra
no Rio de Janeiro, esta correlação foi evidente especialmente na hora da abenção da
fogueira, feita pelo patriarca e pela matriarca do quilombo com ervas e água, após a qual
a fogueira virou o centro das rodas de jongo que aconteceram a noite toda ao ritmo dos
tambores. Para explorar mais esta ligação performance-ritual trarei novamente as teorias
de Victor Turner e de Schechner o qual afirma que “separar arte e ritual é particularmente
difícil” (Schechner, 2003, p. 31).
Paralelo Ritual-Performance
Victor Turner desenvolve a noção de performance em sua paradigmática obra The
Anthropology of Performance. Turner define antes de tudo o conceito de “performances
culturais” citando Milton Singer, e afirmando que as performances são os elementos queconstituem uma cultura e são compostas por “mídia culturais”, ou seja modos de
comunicação verbal e não-verbal, que expressam o conteúdo de uma dada cultura, assim
como podem ter influências sobre ela. (Turner, 1987, p. 23). Muitas vezes as
performances culturais correspondem a momentos de crise ou desarmonia. Turner chama
estas situações de conflito de “dramas sociais”, nos quais as ações assumem carácter
performático pois os participantes tentam mostrar suas ações para os outros (Ibidem, p.
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74). A performance de uma sequência complexa de atos simbólicos é definida por Turner
como ritual . O que é de importância para a nossa discussão é o paralelo que Turner faz
entre o ritual, ou cerimônia coletiva, e outros gêneros de performance como o teatro ou,
neste caso, a dança. Ambos possuem características parecidas tais como uma atuação
consciênte, uma certa ordem, um estilo evocativo de se apresentar, e uma mensagem ou
significado a ser disseminado (Ibidem, p. 93). Como Turner afirma também no seu livro
Floresta de Símbolos, a performance é então uma atividade ritual; é um conjunto de
expressões que tem corpo e ideologia. O elemento do corpo é mais uma vez presente,
sendo o suporte fundamental do ritual; pois não existe linguagem sem corpo e o ritual é
linguagem (Turner, 2005).Richard Schechner, estudioso de teatro, retoma a teoria de Turner e aplica ela
mais ainda à área de dança e teatro. Como ele escreve no texto Ritual, Violence and
Creativity, “a ação ritual é muito parecida com o teatro” (Schechner, 1963, p. 297). No
ritual, assim como no teatro e na performance da dança, o comportamento é
reorganizado, exagerado, e ritmizado, fazendo uso de figurinos, máscaras e maquiagem.
Também, seja no ritual quanto nas artes performáticas a ação é simbólica (Ibidem).
Neste texto Schechner pontua vários aspectos fundamentais que aproximam o ritual ao
teatro ou à dança, evidenciando a natureza liminar destas experiencias.
Primeiro, os rituais envolvem muitas vezes elementos artísticos como dança,
música ou teatro. Eles utilizam elementos cenográficos tais quais máscaras ou figurinos,
e criam uma atmosfera de envolvimento para a audience presente. Os valores
encorporados nos participantes dos rituais são “rítmicos e cognitivos, espaciais e
conceptuais, sensuais e ideológicos”, ou seja, segundo Schechner, o ritual é “totalmente
teatro” (Ibidem, p. 302). Tomando outro texto de Schechner, Magnitudes of Performance,
ele explora mais ainda esta dimensão do ritual e da performance, analisando os ensaios eas oficinas da peça The Prometeus Project . Ele afirma que várias vezes os participantes
das ofinicas entravam em estado de trance, pois entrar o mundo de Io, a protagonista, era
uma experiência muito intensa e profunda. Assim como a experiencia em si, o momento
sucessivo do alongamento permitia que os participantes voltassem ao estado presente, um
estado mental caracterizado por “mais pensar do que sentir” (Schechner, 1986, p. 365).
Nos meus ensaios de dança Afro, várias vezes experimentei este estado de trance e de
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“jogo” é o prazer, a mera êxtase que os rituais dão a seus participantes; é a “atuação de
perigos dentro da esquema do “como se” (Schechner, 1986, p. 365). Do outro lado,
Schechner também considera o verdadeiro estado de transe como um tipo de atuação:
“ser possuído por outro, ou seja, virar outro” (Schechner, 1988, p. 199).
Voltando ao texto Ritual, Violence and Creativity de Schechner, o autor apresenta
um segundo paralelo entre o ritual e a dança ou teatro. Utilizando o conceito de “processo
ritual” de Turner, Schechner escreve que “o processo ritual é estritamente análogo ao
processo de treino-oficina-ensaio, onde o que ‘é dado’ e o que ‘é já feito’, é
desconstruido e quebrado em pequenos pedaços de comportamento, sentimento,
pensamento, e texto, e é depois reconstruido nas performances públicas” (Schechner,1963, p. 311). Schechner prossegue dizendo que este treinamento comporta o
aprendizado de novas maneiras de falar e de se mover, novos gestuais e talvez novas
maneiras de pensar e de sentir. Ao fim do periodo de treinamento, o ator ou dançarino é
incorporado na tradição do que aprendeu, justamente como um membro iniciado em um
ritual (Ibidem).
Em sua outra obra Between Theater and Anthropology, Schechner reforça mais estasimilaridade entre o rito e a arte da performance trazendo a teoria de Arnold Van
Gennep. Na obra Ritos de Passagem, o autor alemão estuda o rito como um fenômenoem si, dotado de certos mecanismos recorrentes e de um certo conjunto designificados. Ele concentra seu estudo nas margens, na transição, que constitui oaspeto principal dos ritos de passagem. Além da margem, estes ritos são constituídostambém por um momento anterior (fase de separação) e um posterior (fase deagregação), os quais são importantes de se considerar para o entendimento do ritual(Van Gennep, 1977). Fazendo um paralelo com Van Gennep, Schechner afirma comoa arte da performance é um ritual que inclui uma fase de separação (preparo técnicoe ensaio), uma de transição (performance) e uma de retorno (relaxamento). A performance é então a fase de margem e, assim como a iniciação, ela faz de uma pessoa, outra, com a única diferença do que as transformações na performance são
geralmente temporárias (Schechner, 1985). Viu-se portanto como o ritual e a performance artística são dois mundos relacionados e parecidos. A linha de separaçãoentre os dois é fluida, e as fronteiras não são rígidas. Como podem então ser reconhecidos devidamente? O que marca a diferença entre o rito e o espetáculo teatralou de dança? Schechner diz que cada ritual pode ser tirado do seu contexto original e pode ser performado como teatro. Isso é possível porque o contexto e a função, assimcomo a estrutura ou processo fundamentais, distinguem o ritual do entretenimento davida cotidiana; além disso, esta diferença surge do acordo entre os performers e aaudience ( Schechner, 1988, p. 152). No caso da dança de Orixás, é preciso saber distinguir entre esta dança no contexto sagrado do Candomblé e no contexto profanoda dança Afro. O terceiro capítulo apresenterá a dança de Orixás nesses dois mundos,
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transformação encontra-se presente na performance musical do grupo de adolescentes do
projeto Guri. Ela escreve:
“Experiência ampla, a performance é central em projetos que, como o Guri, tem
como um dos objetivos principais a intervenção social por meio da música. Ela
torna visíveis atores e instituição. É palco de um amplo jogo de espelhos, lugar de
exibição de identidade e construção de auto-imagens. É espaço de transformação.
É concebida como auge do processo pedagógico, locus de exibição do que foi
aprendido, ensaiado, incorporado. É oportunidade de conhecer novos lugares, pessoas, é "saída para o mundo".” (Hikiji, 2005)
A autora apresenta como a performance musical, nesse caso, é fonte de construção deidentidades e auto-imagens, é espaço de transformação e ferramenta de ensino, alémde ser uma possibilidade para conhecer novos lugares, novas pessoas e novasrealidades. O conhecimento do outro é considerado por Hikiji como elementofundamental para a transformação dos alunos. Tanto o encontro com os outros no palco quanto com a platéia é uma ferrameta de aprendizagem, apesar de poder ser tanto alegre quanto conflituoso. Graças a estes encontros, os alunos trocam impressõesum do outro, cada um vê a realidade do outro, e eles se percebem (Hikiji, 2005). A performance diante de uma platéia permite a fixação de identidade do grupo e aexperiência de transformação, de se tornar o outro sem abandonar a si próprio.
Hijiki, assim como Lopes, também ressalta a experiência sensível da performance:
“A performance é também uma experiência sensível única, que mobilizasensações independentemente de estarem sobre o palco amadores, profissionais,estudantes ou participantes de um projeto de intervenção social…Essa manipulação de expectativas, medos, vaidades e do prazer de fazer música – somente possível dada a relação palco-platéia – corresponde a um intensoaprendizado sentimental.” (Hikiji, 2005)
Mais uma vez pode-se observar como a performance estimula, mobiliza e manipula
sentimentos e sensações tanto para quem está no palco quanto para a platéia, permitindo
o que Hikiji chama de “intenso aprendizado sentimental”. Este aprendizado, assim como
o pleno envolvimento dos sentidos na performance e a criação de auto-imagens e
identidades fazem parte do palco e sua “magia”. Segundo a autora, essa “magia” do palco
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é incorporada e carregada para a vida cotidiana, onde as imagens construídas no palco
graças à interação com os outros farão parte das noções de pessoa destes jovens
performers nas suas vidas pessoais (Hikiji, 2005)
Uma vez mais percebe-se que essa magia da performance está presente em todo
lugar: no espaço, nas coisas, nas pessoas; tudo vira um símbolo, que possui um
significado muito maior. Na análise da performance do Moçambique de Belém, Claudio
Alberto Dos Santos ressalta como o bastão usado nessa performance “deixa de ser uma
mera coisa” e assume um significao e um poder especial, “mágico” para os
moçambiqueiros. Essa coisa chega a ter alma e coração, permitindo uma vivência intensa
da performance (Dos Santos, 2003, p. 151). O Moçambique de Belém, assim como asoutras performances afro-brasileiras, caracaterizam-se por essa intensidade, pelas
vibrações de energia que se criam no ar, pela impetuosidade e pelo despertar e
envolvimento de todos os sentidos e das emoções movimentados pela percussão, pela
dança e pelos gestos rituais:
“ A percussão, a dança e os gestos rituais ajudam nesse movimento que leva aosestados alterados da percepção. O corpo dos participantes muda, transforma-se, porque entram em jogo elementos irracionais. É um corpo emocionalmenteintenso, extático.” (Ibidem, p. 153)
O corpo na performance afro-brasileira atua através de elementos impulsivos e é um
corpo que se movimenta e experiencia a performance não só fisicamente, mas também
emocional e espiritualmente. Na dança Afro, os “estados alterados da percepção” se
manifestam movidos pelo toque do tambor e pelos gestuais dos Orixás. O performer
transmite e vivencia intensamente essa emoção, entregando-se totalmente em cena e
executando gestos fortes e exagerados que surgem de dentro, das emoções mais
profundas, das vibrações energéticas internas e das experiências sensoriais do corpo. A
performance da dança Afro é um lugar onde o corpo do dançarino percebe o outro, troca
olhares com o outro, sente os cheiros em volta dele, toca o outro e sente os gestos e
movimentos na pele, ouve os sons, as músicas e os ritmos que o entornam, e sente o gosto
do que está fazendo, da dança, da música, do ambiente, e do outro.
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CAPITULO 2 – O Gosto da Dança Afro
Dancing is like breast-feeding.That is, it is a potentially nurturing,
sustaining activity, an act of transmission.Barbara Browning
O universo da Dança
Como foi analisado detalhadamente na introdução, dançar é humano. E a dança permeia várias áreas da nossa vida cotidiana. Dançar pode ser considerado algo comovários tipos de comportamento humano, do físico ao psicológico, do social e culturalao econômico e político, até ser um meio de comunicação. O que é portanto dançar?Quais são os elementos que constituem a arte da dança? E por que as pessoas dançam?Estas são as perguntas que tentarei responder nesta primeira parte deste capítulo.
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Olhando para os dados que colecionei, achei a melhor definição de dança ser a deJudith Lynn Hanna, a autora mencionada na introdução deste trabalho, no seu livro“To Dance is Human”. Ela define “dança” como um “comportamento humano”composto por sequências de movimentos corporais e outras atividades motoras comvalor estético, desenhadas culturalmente, intencionalmente rítmicas e possuindo umobjetivo (Hanna, 1987, p. 19). É importante evidenciar cada elemento desta definição para poder entender a complexidade muitas vezes não reconhecida da dança.Especialmente na nossa sociedade ocidental a dança, como a arte de maneira geral, écolocada em um plano inferior e não é devidamente valorizada. Dentro da academiaencontra-se o mesmo tipo de resistência ao considerar a dança como uma disciplinacomplexa e rica de significados a ser estudados. Por isso acho fundamentaldesconstruir estas noções mostrando como dançar é algo sério e importante, algo quenão é fácil e que exige muito treino e estudo para poder ser compreendido e executadocorretamente.
Voltando à definição da Hanna e aos dados observados na minha etnografia, começo aapontar os elementos principais da arte de dançar. Primeiro, a dança tem um objetivo.Isso quer dizer que, ao se movimentar dançando, o indivíduo quer alcançar algo, sejaeste condicionamento físico, distração mental ou desejo de comunicar alguma coisa.Veremos isso melhor ao falar do porque as pessoas dançam. Segundo, um elementochave da dança é o ritmo. Ritmo vem do grego rhytmos e designa aquilo que flui, quese move, movimento regulado. O ritmo não está presente somente na música ou nadança. Achamos ele na poesia (métrica), nos “ritmos” biológicos (respiração ou batidado coração), na nossa maneira de andar. Na música, o ritmo é um “acontecimentosonoro, que acontece numa certa regularidade temporal”. É portanto uma maneira de
marcar o tempo. Na dança, em ausência de música, o ritmo é marcado pelo própriocorpo, através da batida da mão, da marcação dos pés no chão, da contagem ou atravésde outros sons da voz. É possível portanto dançar sem música, mas não é possíveldançar ser ritmo.
Tão importante quanto o elemento temporal é a dimensão espacial da dança. Duranteminha experiência como dançarina reparei que é fundamemental para o dançarino ter noção de espaço. O que exatamente quer dizer isso? Vários aspectos estão envolvidosnessa noção, entre os quais três principais ficaram em evidência nas minhas notas decampo. Primeiro, é preciso saber ocupar o espaço disponível para dançar de maneirauniforme, harmoniosa e tendo consciência da distância entre seu próprio corpo e oslimites do palco ou da sala de aula, assim como a distância entre seu próprio corpo e
os outros dançarinos. Geralmente, durante uma aula de dança, os alunos ocupam umlugar na sala de aula para poder executar os movimentos mostrados pelo professor.Após a repetição do movimento no lugar, os alunos repetem o mesmo movimento sedeslocando pelo espaço. É importante neste momento manter a arrumação e o desenhoinicial e ter noção de onde a outra pessoa está, para não invadir o espaço do outro. Isso pode parecer algo simples, mas requer muita concentração, visão, controle e sobretudorespeito. Durante minhas aulas e ensaios de dança, Eliete nunca falta de repetir quantoé importante respeitar o espaço do outro, ficar no seu lugar e saber controlar osmovimentos para que ocupem de maneira proporcional e estética o lugar de ensaio.
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O segundo elemento espacial que também não falta de ser lembrado aos dançarinosdurante as aulas e ensaios é o sentido de direção. Assim como é importante respeitar oespaço de cada um e do lugar onde se está dançando, é também fundamental saber para onde seu corpo está indo. Durante uma aula no Circo Voador por exemplo,trabalhamos exclusivamente este elemento de noção de espaço e direção. Fizemosmovimentos simples e repetitivos, treinando estas qualidades, com a Eliete repetindoconstantemente que “é preciso ser consciênte do espaço do outro e saber respeitá-lo”, eque “é preciso saber para onde vai, não só na dança mas no dia a dia. Tem que ter direção e pisar firme!” (diário, 25 Maio 2009).
O último desafio ligado à dimensão espacial da dança é saber se adaptar aos lugaresdiferentes nos quais se dança, o que é algo complicado, como pude experienciar váriasvezes nas apresentações do nosso grupo CorpAfro. Durante os ensaios do espetáculo,o grupo encontra-se geralmente em um ou dois lugares específicos, onde ensaiam-se
as coreografias, os desenhos formados pelos corpos e pelos movimentos, as marcaçõesde lugares, das entradas e saídas do palco etc. No momento do dia da apresentação,muitas vezes o espaço é totalmente diferente do que se imaginava o do no qual ascoreografias foram ensaiadas. Após ter ensaiados nas grandes salas do CentroCoreográfico, por exemplo, fomos chamados para fazer uma apresentação em umaloja de construção onde tivemos que dançar em um pequeno espaço no meio de banheiras. Em outra ocasião, em vez de nos apresentar no palco do teatro do CCRJ,como nos foi comunicado, tivemos que dançar na área externa, um espaço bem maior,onde o som e a luz eram precárias e em vez do que em cima de um piso, dançamos nagrama. Isso requer uma rápida avaliação e estudo do novo espaço disponível, assimcomo uma reorganização e adaptação das arrumações espacias previamente ensaiadas
e uma capacidade do corpo se adaptar às novas condições oferecidas.Eliete reforça constantemente esses elementos técnicos espaço-temporais presentes nadefinição de dança. Durante um ensaio no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, emuma folha ela escreveu a importância da “prática de movimentos e ritmo”, atingidaatravés de três elementos:
- VISÃO: capacidade de perceber as formas, linhas, e proporção harmoniosas.
- PRECISÃO: velocidade e rapidez na execução do movimento, aumentando o
fortalecimento e o equilibrio.
- TENACIDADE: qualidade do profissional coma estética e musicalidade.
Comentando sobre estes ensinamentos, Eliete falou que “precisa harmonizar os
movimentos com linhas específicas e com sentido, com direção. A musicalidade (ritmo)
está junto com a corporeidade.” (Diário, 11 Abril 2009).
Apareceram aqui mais dois elementos da definição de dança da Hanna:
movimentos executados com precisão e estética. Na dimensão de visão da Eliete, recalca-
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se a presença na dança de formas e harmonia, e no elemento de precisão sublinha-se a
importância da rapidez, da força e do equilíbrio a ser obtidos na execução de um
movimento. Para que se obtenha este resultado é preciso muito treino, em um processo
que durante nossos ensaios do grupo chamamos de “limpar o movimento”. Esta
“limpeza” é atingida através da repetição do mesmo movimento durante a qual é preciso
prestar atenção aos mínimos detalhes para poder aperfeiçoar o movimento, até conseguir
executá-lo de modo mais perfeito possível, formando linhas e desenhos claros e nítidos,
com equilibrio, força, jeito harmonioso e rapidez.
Este processo de treino se utiliza da repetição exaustiva como método de
aperfeiçoamento e que é chamado de “drilling” por Susan Leigh Foster no seu artigo“Dancing Bodies”. Ela escreve como o corpo do dançarino pode ser visto como um
ensemble de linhas e pontos, puxados, empurrados, esticados, elevados pelos dançarinos
durante as aulas de técnica. Assim, o dançarino aprende as curvas que o corpo é capaz de
formar e aprende também a criar certas formas seguindo certos ritmos (Foster, 1997, p.
239). Este “drilling” é portanto necessário para “criar o corpo”, pois, através da repetição,
as imagens e ações usadas para descrever o movimento do corpo se tornam o próprio
corpo, e é assim que o processo de treino repetidamente reconfigura o corpo (Ibidem).
Ao explicar o conceito de movimento na dança, Hanna também aponta para a
importância dos já mencionados ritmos, espaço e direção, assim como para a importância
da criação de formas e de execução do movimento com força. Ela define “forma” como
“o contorno físico do desenho do movimento, criado pelo corpo e pelas suas partes,
formando ângulos e curvas”, e descreve “força” como “a quantidade relativa de energia
física e emocional gasta” (Hanna, 1987, p. 36-37). Olhando para esta descrição de
“força”, podemos observar como o elemento emocional acompanha e está estritamente
ligado ao físico. A própria Eliete durante uma minha entrevista com ela falou que “adança é uma mixtura de técnicas com o que vem de dentro” (Eliete, 29 Dezembro 2009).
Como Susan Leigh Foster também escreve, os dançarinos podem ser instruídos e
aconselhados sobre como girar, pular, pisar etc., mas eles são também movidos a
“escutar” o próprio corpo e a permitir que novas possibilidades de movimentos se
manifestem spontaneamente (Foster, 1997, p. 250). “Escutar” o próprio corpo quer dizer
prestar atenção ao que vem de dentro do corpo e não só de fora dele; quer dizer permitir
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que o corpo se expresse sem querer controlá-lo rigidamente e deixando fluir as energias
por ele até essas se manifestarem em forma de novos movimentos.
Este gasto de energia, tanto físico como emocional é algo que pode ser observado
na resultante dor e cansaço depois de uma aula de dança. Após uma aula no Circo Voador
Eliete falou da necessidade de considerar a consciência do corpo, da dor e do cansaço,
mesmo que seja muito difícil de fazer. A dança faz com que se haja essa consideração; “a
dança é como análise-mexe-se em coisas que não se quer mexer” (Eliete, 20 Abril 2009).
É interessante ver como isso se reflete na reação de uma aluna que após uma aula
comentou: “to frustrada, enferrujada…depois de ficar tantos mêses parada, não consigo
acompanhar.” (Circo Voador, 6 Abril 2009). Neste caso o fato de estar “enferrujada”fisicamente se relaciona diretamente a uma sensação de “frustração” no plano emocional,
mostrando como a dança, através do esforço da movimentação do corpo, atinge um lado
mais “interno” do campo das sensações e emoções. O depoimento de uma aluna depois
de uma aula de dança Afro na UERJ descreve este fator plenamente: “Foi mais do que
desempenho ou trabalho aeróbico; foi sensação, foi transcendência” (16 Setembro 2009).
As palavras desta aluna expressam como o trabalho físico anda junto com a sensação,
junto com algo além do tangível na hora de dançar. Veremos mais nos capítulos adiante
como esta ligação corpo\mente na dança pode ser analisada antropologicamente.
Além dos elementos já analisados do movimento na dança, a estética é algo que
precisa ser evidenciado e explorado mais. Segundo a definição de Hanna, os movimentos
na dança possuem valor estético. A autora escreve que “experiência estética” envolve o
estímulo de atenção imediata e a contemplação dos significados imanentes ou
trascendentes de um fenômeno nos níveis emocional, cognitivo e comportamental
(Hanna, 1987, p. 38). Logicamente, as experiências estéticas não são iguais para todo
mundo e variam dependendo de vários fatores, como idade, humor, background artísticoou de dança, educação social etc. A dança possui qualidades que estimulam a experiência
estética. Essas qualidades podem ser tanto o estilo e a forma da dança quanto o próprio
conteudo e significados transmitidos. Falando de significados, precisa apontar que estes
variam socialmente e culturalmente e a dança possui portanto significados e sequências
determinados culturalmente. A dança é um fenômeno social e é um veículo através do
qual a cultura é transmitida (Hanna, 1987), e, como argumentarei nesta dissertação,
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através do qual a cultura é também criada e recriada permanentemente no gestual do
corpo. Do outro lado, a cultura também afeta e escolpe os estilos e a estrutura dos
movimentos de dança. Como Hanna remarca, enquanto os estilos de dança podem
requerer um treino especializado, a capacidade de dominar um estilo pode se desenvolver
através de experiências de vida cotidianas (Ibidem, p. 34).
Foram apresentados até então alguns dos elementos chave que são parte
constituinte da arte da dança, tentando explicar o que quer dizer dançar e o que a dança
envolve, mostrando a complexidade desta disciplina, muitas vezes subestimada. Falta
ainda responder o porquê da dança. O que as pessoas que dançam procuram obter? Quais
são as razões que levam alguém a querer dançar? Depois de ter posto esta pergunta paraos dançarinos do meu campo de pesquisa, reparei que existem múltiplos fatores que
inspiram entrar e ficar no mundo da dança. Uma razão primária para os alunos que
escolhem ter aula de dança é a diversão e a procura de uma atividade para si mesmo que
distraia e relaxe o corpo e a mente. Depois de uma aula de dança Afro da Eliete na UERJ,
os alunos expressaram suas sensações:
“Precisava resgatar algo. Tava me adoecendo em não fazer nada para mim e
precisava sair da rotina e foi a melhor coisa que fiz”
“O bom da dança é que você não pensa em nenhum problema”
“È uma terapia”
“È muito legal trocar energias com gente que não se conhece” (20 Maio 2009)
Como é possível ver destes comentários, as pessoas buscam a dança como uma “terapia”,
algo que faça bem para o “self”, algo que forneça uma saida e distração dos problemas e
algo social, que permita conhecer outras pessoas e trocar energias com elas. Sobre este
último ponto, uma outra aluna e membro do nosso grupo de dança Afro, disse durante um
ensaio no Centro Coreográfico:
“A arte, nesse caso a dança, é mágica, proporciona possibilidades de se encontrar, de se aproximar quando você geralmente nãoconvive no dia a dia”(M., 1 Maio 2009).
A dimensão social da dança é algo extremamente valorizado por todos que se envolvem
com esta arte. O fato de encontrar pessoas, trocar idéias, mover seu corpo junto com o de
outros e interagir dançando provoca um bem estar tanto físico quanto mental.
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Se para os alunos das aulas de dança esta é mais uma atividade saudável e
diversiva, já por alguns dos componentes da companhia de dança CorpAfro e por Eliete a
dança representa uma verdadeira profissão e sustento. Eliete é professora de dança Afro
full time, e sempre repete para seus alunos que ela “vive disso”. A dança portanto
significa trabalho para muitos, e deveria ser respeitada como tal pelos não profissionais
da área, coisa que infelizmente nem sempre acontece. Além da função mais prática e
econômica do ensino da dança, minha professora, e outros instrutores e profissionais com
quem falei, tanto no Rio como na Bahia, escolhem esta profissão com o objetivo de
educar os alunos. Através da dança ensina-se história, mitologia, estudos sociais e
políticos bem como a cultura de um povo. No caso da dança Afro, leva-se muito a serioesta missão educacional sobre a história, os mitos, a identidade e a cultura afro-brasileira
e o ensino é considerado como um dos motivos e objetivos principais para dançar.
Falando mais em específico do meu campo de pesquisa, muitos dos alunos que
escolhem fazer aula de dança Afro estão à busca de algo mais, algo que está relacionado
a resgate e identidade, nesse caso resgate da cultura afro-brasileira, como refletem os
depoimentos dos alunos depois de uma aula na UERJ:
“È uma coisa muito enraizada na cultura brasileira. Tem uma identidade forte
porque a cultura africana aqui é muito forte”
“Trabalhar nosso corpo e nossa identidade ao mesmo tempo-a aula refletiuisso”
“Cada vez que eu danço é que nem encontrar a mim mesmo”
“A energia se renova neste espaço e me faz lembrar quanto a nossa cultura érica”.
“Entrei para a dança para me encontrar como mulher negra; a dança não é só uma questão de corpo mas de identidade afro-brasileira, de resgate, de resistência”.
Esses comentários indicam a razão que conduz as pessoas a dançarem e escolherem um
gênero de dança, nesse caso dança Afro. Para muitos brasileiros (e não brasileiros
também), estudar a dança afro-brasileira é um modo de aprender e descobrir as raizes
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ancestrais tão fundamentais como bastante presentes na construção da cultura e arte
brasileiras. Para outros alunos, especialmente para os negros, a questão identitária é
muito sentida e considerada. Como diz o último depoimento desta aluna, ela entrou para a
dança Afro para se “encontrar como mulher negra”, para resgatar a identidade afro-
brasileira presente no dia a dia do seu corpo.
Drid Williams, antropóloga e dançarina, apresenta o porquê das pessoas dançarem
no capítulo “Why do people dance?” do livro Anthropology and the Dance. Williams
teve seu treinamento como dançarina profissional e foi convidada a estudar antropologia
na Universidade de Oxford por Evans-Pritchard, que reconheceu o imenso potencial do
conhecimento em dança de Williams e a sua contribuição para o pensamentoantropológico. Em sua obra, Drid Williams pergunta: “o que as pessoas estão fazendo
quando dançam?”. E responde, primeiro, elas estão criando e\o reforçando relações
sociais significativas. Segundo, elas estão reproduzindo papéis significativos para elas,
para suas histórias, seus mitos, suas crenças religiosas, vidas políticas etc. Terceiro, elas
estão estabelecendo e reforçando conecções sociais que lhe permitem seguir com suas
vidas (Williams, 1991, p. 21). Pode-se ver então como a importância do elemento de
interação social é reafirmado por Williams também, assim como foi apontado por muitos
dos alunos do campo de pesquisa. Através da dança criam-se relações socias e
interpretam-se vários papéis, muitos dos quais têm a função de promover um resgate da
própria história, cultura, dos próprios mitos, idéias e visões, que são por sua vez
ensinados e transmitidos para quem assiste as pessoas dançarem.
Na tentativa de definir o universo da dança com seus elementos técnicos, seus
participantes e as razões que conduzem as pessoas a querer fazer parte do mundo da
dança, vimos como a dança é uma arte complexa, que exige muito treino, disciplina e
talento para poder ser aperfeiçoada. Apontou-se para as várias funções da dança, e paracomo é utilizada na condição de meio de comunicação e educação, de resgate de cultura e
identidade e de bem estar físico e mental. Todos estes fatores foram analisados de
maneira geral dentro do campo geral da arte de dançar, entrando somente às vezes no
campo específico da dança Afro. O passo seguinte será introduzir as danças que fazem
parte de um complexo cinético esculpido pela herança de influências motoras e
simbólicas do povo da diáspora Africana, onde concentrarei minha análise mais
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especificamente nas danças Afro-brasileiras, destacando elementos relevantes e em
comum entre elas, até chegar a definir o objeto da pesquisa desta dissertação que é a
dança Afro.
Danças Afro-brasileiras
Como foi afirmado anteriormente, a dança é um meio de comunicação que recria,ensina e transmite mitos, histórias e culturas. O instrumento chave através do qual odançarino opera é seu próprio corpo, o qual realiza movimentos e gestossignificativos. Ao falar de corpo, é importante entender que este é um simbolo dasociedade, e que os seres humanos experienciam o mundo através dos seus corpos. Osnossos corpos portanto, carregam histórias e memórias, não somente individuais, mastambém histórias mais gerais, de raça, gênero e cultura. O corpo conta uma história efala de certas experiências culturais através de gestos, que representam símbolos.
No caso deste trabalho, serão analisadas as histórias, os gestos, os símbolos e os
corpos dançantes elaborados por intermédio da dispersão da diaspora africana e que se
difundiram para os diversos países e contextos do mundo. Robert Farris Thompson, na
introdução do seu livro “Flash of the Spirit” sobre arte africana e afro-americana, declara
que muita da música popular mundial é influenciada do que ele chama de “flash of the
spirit” de um certo povo dotado com um incrível talento improvisatório (Farris
Thompson, 1984). Devido ao comércio internacional de escravos, princípios
organizadores de música e dança atravessaram o oceano da Africa para o Novo Mundo.
O autor identifica seis desses princípios: estilo de performance percussivo; propensão
para uma métrica múltipla; elementos de chamada e resposta nas músicas; controle de
pulsação interna; sequências de acentuação suspesas (contra-tempos); músicas e danças
de alusão social (Ibidem). Veremos aqui como estes elementos se integram nas danças
afro-descendentes e, em particular, afro-brasileiras. No artigo “La musica y danza
tropical e Africana desterritorializadas”, o antropólogo Miguel Chamorro Vergaratambém fala de uma “música negra” que se expandiu pelo mundo, contribuindo para a
construção de uma identidade nacional desterritorializada (Vergara, 2002). Mais em
específico a dança, segundo Vergara, é um “componente expressivo de poder da diáspora
africana” (Ibidem, p. 90), pois, continua ele, a “dança africana ou de negros” é um tipo de
“manifestação corporal ritualística” que se comunica através da linguagem dos
movimentos dos indivíduos, transmitindo imagens culturais (Ibidem, p. 91). O objetivo
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deste trabalho é melhor compreender que movimentos corporais são esses da dança Afro
e como eles transmitem certas imagens culturais.
Falando de “música negra” e “dança Afro”, podem-se encontrar múltiplas
expressões corporais em vários lugares do mundo atuando como textos desta
“Africanidade”. Um exemplo de expressão corporal da cultura diaspórica no novo mundo
é contemporaneamente o hip-hop, símbolo da identidade Afro-americana. Segundo um
artigo escrito por Thomas F. DeFrantz, toda dança da diáspora africana pode ser ligada a
uma oralidade africana, onde o elemento da “chamada e resposta” é presente. No caso da
dança, o corpo e os movimentos respondem ao ritmo do tambor; os movimentos da
dança, portanto atuam como se fossem um discurso, contendo significado além da formaestética e da sequencia de movimentos executada pelo corpo em ação (DeFrantz, 2004).
DeFrantz continua analisando alguns dos elementos comuns às danças diaspóricas,
tentando entender o “Africanismo” presente no hip-hop, e resume afirmando que as
“danças negras” materializam no corpo uma continuidade de fala performática para os
africanos da diáspora. As danças oferecem uma maneira de identificação cultural que une
os Afro-americanos no que ele chama de corporeal orature, ou seja uma ligação entre
fala e movimento que convida à ação (Ibidem).
O próprio Vergara fala sobre os ritmos caraíbicos e tropicais como manifestação
simbólica de uma cultura através das imagens produzidas no corpo e na corporeidade ao
se mover em múltiplos sentidos (Vergara, 2002). Como exemplos de estudos sobre a
herança africana nas danças dos Caribes podemos mencionar o de Katherine Dunham em
Haiti e o de Yvonne Daniel em Cuba. Dunham conduz seu estudo na ilha de Haiti, onde
as danças possuem uma forte influência africana. Como ela escreve no seu livro “Dances
of Haiti”, muitos historiadores sempre reconheceram o fato da dança ser uma parte
fundamental da cultura dos africanos trazidos para as Américas e ser ao mesmo tempovital para a sobrevivência e o bem estar dos escravos, pelo menos como elemento
recreacional (Dunham, 1983). A antropóloga também explica que cada dança tradicional
de Haiti está ligada a algum tipo de ritual, profano ou sagrado que seja. Este aspecto
ritualístico da dança pode ser visto em outras danças de matriz africana no novo mundo e
será em seguida analisado com respeito ao objeto da dança de Orixás no Brasil.
Analisando a religião do vodun, Dunham explica os aspectos materiais, as organizações
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dos grupos de dança e as funções das danças. A pesquisa feita em Haiti ressalta a
presença e a importância sagrada dos tambores, os quais são os instrumentos chave das
danças haitianas e são considerados religiosamente sagrados (Ibidem). A presença de
instrumentos percussivos e sua importância ritualistica são características das danças
afro-brasileiras também, em particular das danças de Orixás.
Mais um estudo conduzido nos Caribes sobre a influência africana na dança é o de
Yvonne Daniel sobre as danças de Cuba. Daniel define três aspectos comuns às danças
afro-caribenhas, sendo estes a movimentação da pelvis, a música polirrítmica e a
presença da percussão como guia do tom e da sensação (Daniel, 2002). Entre as ilhas
caribenhas, o estudo de Daniel concentra-se na ilha de Cuba, onde ela analisa asinfluências européa, indígena e africana nas danças da região. Uma parte do seu texto
analisa as múltiplas danças africanas presentes em Cuba, devido à importação de
escravos da Africa do Oeste e Central, trazidos para trabalhar na produção de açucar.
Entre as influências africanas em Cuba, Daniel aponta as de quatro grupos distintos:
Kongo, Arará, Carabalí e Yoruba, descrevendo os movimentos corporais típicos de cada
tradição e sublinhando que, assim como aconteceu também aqui no Brasil, estas danças
africanas foram influênciadas desde a sua chegada pelas tradições locais, formando
portanto algo que não pode ser chamado mais de dança africana mas de dança afro-
cubana, ou afro-brasileira no nosso caso.
Os elementos corporais descritos mudam dependendo do grupo étnico-cultural
mas mais uma vez, como foi visto no caso de Haiti, a presença dos instrumentos de
percussão é uma constante. Na descrição dos movimentos da cultura Congo-Angolana,
pertencente a povos do Congo e de Angola e que fazem parte do grupo linguístico Bantu,
podem se ver semelhanças com os movimentos de muitas danças afro-brasileiras. Daniel
descreve as danças Congo-angolanas como altamente percussivas e sensuais. O torso dosdançarinos é dobrado para a frente, de maneira muito baixa; o movimento de cada parte
do corpo é constante, e os movimentos são extremamente fortes, dinâmicos e possuem
uma grande quantidade de saltos e pulos (Daniel, 2002). Os movimentos provenientes do
grupo Arará (dos povos do antigo Reino de Daomé) envolvem a presença de tambores e o
movimento predominante dos ombros, algo que é também muito presente nas danças
afro-brasileiras. Finalmente, ao descrever as danças de origem Yoruba, que incluem
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povos das atuais regiões da Nigéria e República do Benin, Yvonne Daniel explica como
estas são danças específicas representando as divindades por ela chamadas “orichas” e
seus movimentos, os quais retratam as vidas e os arquétipos de cada divindade (Ibidem).
Ao descrever a dança de cada “oricha”, é impossível não reparar a extrema semelhança
com a dança de Orixás brasileira, derivante da mesma cultura Yoruba. Daniel portanto
descreve elementos visuais e corporais comuns aos quatro grupos de influência africana
em Cuba, que, como veremos adiante, são reconhecíveis na dança Afro do Brasil, como a
posição baixa com joelhos flexionados, os pés firmes no chão e as costas levemente para
a frente, posição essa típica do que é chamado de molejo na dança Afro, considerado o
elemento chave na realização desta dança. Viu-se até agora como as influências dadiáspora africana estão presentes em várias partes do globo, com resguardo à música e à
dança. Concentrarei agora a atenção na influência africana nas danças no Brasil,
introduzindo mais o objeto da pesquisa, que analisa uma destas danças afro-brasileiras
em particular, ou seja a dança Afro.
Existem múltiplos estilos de danças afro-brasileiras, muitas vezes classificadas
como danças populares, ou danças folclóricas. Cada região do Brasil tem suas danças
típicas, e a influência africana está presente em muitas delas. Durante o período colonial,
povos africanos como os Bantu, os Yoruba, os Fon e os Jeje estavam no Brasil, sendo
trazidos como escravos pelos Européus. Em cada região eles carregaram suas histórias e
tradições, que acabaram se expressando no novo continente. As danças brasileiras de
origem africana são inúmeras e contam as história e as realidades das populações
africanas no Brasil. É nas artes que apresentam o corpo como protagonista que a estética
africana mais se manifesta. No livro Diásporas Africanas na América do Sul, Julio Cesar
de Tavares e Januario Garcia escrevem como nas artes a herança africana revelou-se na
vida brasiileira, afirmando o corpo como arma de resistência à colonização e comosuporte dos signos culturais:
“Paladino de toda a experiência simbólica e material na diáspora, o corpo torna-semaestro de uma orquestra de experiências não-verbais que efetivam a estética davida dessa civilização recriada pela força da imaginação.” (Tavares e Garcia,2008, p. 42).
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É no corpo que as experiências dos povos da diáspora africana se reproduzem e se
mantém. No caso do Brasil, essas experiências são reproduzidas e mantidas em um corpo
que expressa-se principalmente nas artes e, mais ainda, nas danças afro-brasileiras.
Acham-se hoje essas manifestações nas diferentes regiões do Brasil e incluem
artes corporais como a capoeira, o jongo, o coco, o maracatu, o tambor de crioula, o
samba, o batuque, o cacuriá, a dança Afro entre outras. Durante minha pesquisa fui
assistir um espetáculo realizado por um projeto do grupo cultural Nós do Morro na
comunidade carioca do Vidigal. O nome do show era “Afro em nós” e quis apresentar
uma série de danças afro-brasileiras. Começaram com a figura do malandro e o samba
carioca, e passou-se através do jongo, do coco, maculelê, cacuriá, capoeira, dança afro esamba de roda. Cada apresentação de dança foi introduzida por uma breve explicação que
denotava a influência de elementos de matriz africana que aqui no Brasil juntaram-se aos
de origem indígena ou européia. Todas estas danças são de origem africana e
apresentaram vários elementos em comum que pude identificar durante a apresentação,
como grandes movimentos de braços e ombros. batidas de pés e mãos junto com a batida
do tambor, a presença da roda, a parte do quadril sempre em movimento, giros, pés
descalços e pisando forte no chão, e elementos de jogo e brincadeira. O espetáculo
terminou, não por acaso, com o samba de Ary Barroso cuja letra diz “esse aqui ai é um
pouquinho de Brasil, esse Brasil que canta e é feliz… é também um pouco de uma raça,
que não tem medo de fumaça não…”(Diário de campo, 28 Março 2009). Para mostrar
mais em detalhe e com um suporte teórico estas qualidades das danças afro-brasileiras,
trago aqui quatro estudos sobre o Jongo no Sudeste, o Tambor de Crioula do Maranhão,
a Capoeira, e o Samba.
O Jongo é considerado uma das mais importantes manifestações africanas no
Brasil, originária dos escravos da região Congo-Angola, e que, desde novembro de 2005,foi denominado um dos Patrimônios Culturais do Brasil. Através dos cânticos, do sons
dos surdos, danças em círculo, e das batidas das mãos, o Jongo conta a história dos
escravos das velhas plantações de café. Todos os elementos desta dança e da música e
batida de tambores que a acompanha comunicam uma história de origem africana (Mattos
e Abreu, 2007). O elemento de “chamada e resposta” analisado previamente no texto de
DeFrantz sobre hip-hop, é uma característica fundamental do Jongo, onde cada estrofa
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dos cânticos é enunciada por uma pessoa e repetida pelo grupo todo. Em um artigo sobre
os cânticos no Jongo e na Umbanda, Carina Maria Guimarães Moreira escreve que os
versos cantados nestas duas tradições são chamados de “pontos” e provém de uma cultura
baseada na oralidade. Estes pontos cantados “juntamente com o ritmo dos tambores e das
danças encerram uma tradição: a do poder mágico da palavra trazida pelos povos bantos
para o Brasil” (Moreira, 2008). Ao analisar as letras de pontos cantados de umbanda e de
jongo, Moreira exemplifica como a história oral de origem africana, junto com a música e
a dança é comunicada tanto nos eventos religiosos quanto nas rodas de jongo.
Durante o período da minha etnografia, em Maio 2009, tive a oportunidade de
viajar para o quilombo S. José da Serra na região de Valença no estado do Rio de Janeiroonde, anualmente, realiza-se um festival de jongo, com apresentações de danças afro-
brasileiras que duram um fim de semana inteiro. O que pude observar no festival foi a
formação constante de rodas para cada apresentação. Teve rodas de jongo, de cachambu,
de capoeira, todas mostrando uma dinâmica parecida: a maioria dos participantes formam
uma roda e ficam cantando, tocando tambor e outros instrumentos percussivos, e batendo
palmas ao mesmo tempo. Enquanto isso, uma dupla de pessoas entra no meio da roda e
fica “jogando”, tanto no jongo quanto na capoeira ou no coco. Cada jogo e cada dança era
executada ao som dos tambores e de pés no chão, e tudo aconteceu em um ambiente rico
de significados e símbolos da cultura afro-brasileira, tentando-se recriar uma atmosfera
quase ritualística do festival. Este paralelo entre performance artística e ritual sublinhado
no primeiro capítulo será melhor desenvolvido no próximo capítulo.
Elementos parecidos com o jongo, como a roda, a umbigada e os tambores, se
encontram na dança típica do Maranhão Tambor de Crioula. Esta é uma dança negra
executada ao som de tambores, tocados por homens, enquanto as mulheres dançam
dentro de uma roda e com movimentos circulares, usando saias largas, grandes ecoloridas, e alternando sua entrada dentro da roda com a umbigada, comum também ao
jongo e ao samba de roda. A umbigada ou punga é um elemento importante na dança do
tambor de crioula. No passado foi vista como elemento erótico e sensual, que estimulava
a reprodução dos escravos. Hoje a punga é um dos elementos da marcação da dança,
quando a mulher que está dançando convida outra para o centro da roda, ela sai e a outra
entra (Ferretti, 2006). Ferretti, neste artigo sobre o Tambor de crioula no Maranhão
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explica detalhadamente a diferença com o Tambor de Mina, ritual religioso Maranhense.
Existem distinções entre estas duas manifestações: o tambor de crioula é uma dança de
divertimento que se caracteriza pela importância da punga. O tambor de mina é uma
dança religiosa em que o transe é o elemento fundamental. Embora seja uma dança
eminentemente festiva, o tambor de crioula possui diversas relações com a religiosidade
popular, não sendo correto afirmar que é manifestação exclusivamente profana, pois, na
cultura popular o sagrado e o profano encontram-se intimamente relacionados (Ibidem).
Mais uma vez, nesta dança afro-brasileira, encontra-se o elemento religioso ligado ao
profano, e uma sinergia entre a dança, os tambores e a circularidade.
As expressões de danças populares afro-brasileiras que mais viraram símbolosnacionais, tanto no Brasil quanto no exterior, são o samba e a capoeira. Mesmo sendo
duas expressões artísticas muito diferentes, e diferentes das outras mencionadas até
agora, podem-se encontrar vários elementos em comum, típicos das danças de matriz
africana. A capoeira é considerada uma mistura entre dança e arte marcial, caracterizada
por golpes e movimentos acrobáticos desenvolvidos pelos escravos e seus descendentes.
Tomando a capoeira no contexto de cultura afro-brasileira e da expressão da diáspora
africana, é importante sublinhar que existem uma simbologia, ritualidade e ancestralidade
de origem africana que influenciam consideravelmente essa manifestação. Na tese
“Capoeira Angola: cultura popular eo jogo dos saberes na roda”, Abib analisa a capoeira
como uma manifestação da cultura popular onde a memória e oralidade e ritualidade
assumem um papel muito importante (Abib, 2004). O que Abib escreve com respeito às
manifestações culturais de origem africana é relevante para este trabalho:
“É certo que não podemos desconsiderar o processo híbrido que caracterizou a
formação das manifestações afro-brasileiras e mesmo as afro-americanas.
Também é certo que, no Brasil como em poucos lugares do mundo, podemos
verificar o quanto a influência africana foi marcante e mesmo preponderante em
boa parte das manifestações envolvendo os elementos lúdicos de dança, música,
jogo e brincadeira. Não podemos desvincular o contexto de surgimento da
capoeira, do contexto do surgimento do maracatu, por exemplo, ou das congadas
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e moçambiques, do jongo e do próprio samba, apenas para citar as
manifestações mais conhecidas, que partilham, juntamente com a capoeira,
de um mesmo núcleo cultural proveniente da África, responsável por claras
semelhanças entre essas manifestações.”
Dois elementos chave deste “Africanismo” derivado da diáspora africana na capoeira são:
primeiro, a música, executada com instrumentos de percussão sempre presente nas rodas
de capoeira onde acontece o “jogo” entre os capoeiristas. Segundo, o elemento da roda é
uma característica primária da capoeira, sendo sempre mantida como moldura do jogoexecutado no meio.
Segundo o estudo “Dança da Guerra” do antropólogo Julio Cesar de Tavares, a
roda é um elemento fundamental na capoeira; é um espaço onde há uma concentração de
energias que seriam do espaço cósmico e que são “canalizadas pela rítmica do berimbau e
pela energia dos corpos em movimento”. É um espaço onde há a preservação da
“motricidade negro-africana”, baseada na movimentação dos quadris e na conservação da
energia vital da cultura iorubana, o axé (Tavares, 1984, p. 62). Tavares continuaafirmando que a dimensão energética presente na roda contribui para a “versatilidade” e a
“dinâmica mobilidade” do corpo, como pode ser observado nas danças africanas, nas
práticas religiosas e nas outras manifestaões afro-brasileiras (Ibidem, p. 69). A capoeira é
portanto uma forma de ludicidade brasileira que recupera as “unidades básicas da
maneira de agir e estar no mundo da população negra” (Ibidem, p. 60), na qual os gestos
corporais refletem e resgatam a memória do cotidiano dos negros, através do que Tavares
denomina de uma “bricolage gestual” que surgiu instintivamente diante da experiência
dominadora e colonial da escravidão (Ibidem, p.70). Concluindo, Tavares escreve:
A Capoeira faz parte da memória corporal dos negros e de seus descendentes,localizando-se nela os índices que podem falar sobre a sua resistência àhegemonia cultural da civilização ocidental, uma vez que ela compreende ascaracterísticas corporais desenvolvidas pelo negro, tanto na luta como na paz, para garantir sua sobrevivência. (p. 103)
Essa “memória corporal” do negro é o que aproxima as manifestações corporais afro-
brasileiras, trazendo uma corporeidade específica que se originou nos corpos dos
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africanos trazidos ao Brasil em condição de escravos, corpos que sempre lutaram e
reagiram contra os abusos coloniais. Essa corporeidade mostra elementos comuns às
várias formas de expressão artísticas afro-brasileiras, como será evidenciado na próxima
parte deste capítulo.
No final da roda de capoeira, geralmente acontece um samba de roda, outra
manifestação cultural afro-brasileira. Entre todos os tipos de samba, o samba de roda é o
mais próximo das danças populares analisadas até então, possuindo elementos em comum
com as outras manifestações. O samba de roda é originário do Recôncavo Baiano e é
dançado por homens e mulheres dentro de uma roda, os quais entram e saem da roda
alternando-se depois da umbigada, já encontrada no Jongo e no Tambor de Crioula. Estesamba é tocado por um conjunto de pandeiro, atabaque, berimbau, viola e chocalho,
acompanhado principalmente por canto e palmas, e dança-se descalço. Um elemento de
relevância nesta dança para o objeto desta pesquisa é a roda. Como escreve Daniela
Maria Amoroso no artigo “Corpo, o dono do samba: um estudo sobre o samba-de-roda do
Recôncavo”:
“A roda, como o próprio nome diz, é onde tudo acontece. É na roda que se canta,
dança, bate palmas, toca instrumentos. E é na roda que uma energia se cria, semultiplica, se espalha. Entendo que a roda não é uma mera forma de organização
espacial do samba-de-roda e estou convencida de que semelhanças existem entre
o que acontece na roda de capoeira, no samba-de-roda e também no candomblé.
A roda constrói o lugar daquele ritual, que não é religioso, mas sim festivo. Não é
algo banal entrar numa roda para sambar, não é banal iniciar um jogo numa
roda de capoeira.”
O que pode ser destacado como ponto comum entre estes tipos de danças afro-
brasileiras (o Jongo, Tambor de Crioula, Capoeira e Samba de Roda), portanto, são dois
elementos essenciais, sempre presentes na performance de cada uma delas: o som dos
tambores como acompanhamento necessário à dança, e a formação da roda como
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elemento coreográfico da execução das danças. Além disso, todas as danças afro-
brasileiras são dançadas descalços para manter o contato dos pés no chão. Segundo a
visão mítica Nagô “o corpo humano em si é um microcosmo. Os pés apoiam-se no
concreto, no barro de onde saiu para onde voltará, na terra que os antepassados pisaram e
à qual retornarão” (Augras, 1983). Estes três elementos estão presentes e são
fundamentais também na dança Afro, especialmente na dança dos Orixás. Muitas vezes
nas aulas e ensaios de dança Afro do meu campo de pesquisa trabalhou-se o conceito de
roda e circularidade, de energia dos tambores, e de contato com o chão, todos elementos
que caracterizam a dança Afro e que serão portanto retomados na parte seguinte.
A Arte de Dançar Afro
O objetivo é procurar saber o que é a dança afro. Isso é ter coragem.Eliete Miranda
A dança Afro surgiu no Brasil devido as influência trazidas por africanos retirados
do seu país de origem para realizarem trabalho escravocrata em solo brasileiro. Os
escravos brasileiros pertenciam a diversos grupos étnicos, incluindo os Yoruba, da
Nigeria e da República do Benin, os Ewe e os Fon, do Benin e Togo e o grupo linguísticoBantu, do Congo e Angola, e eles trouxeram consigo suas experências corporais,
culturais e religiosas. Aqui no Brasil estas experiências se modificaram, vindo a
apresentar características típicas próprias. As danças lúdicas e religiosas destes povos,
especialmente as de origem Bantu e Yoruba, foram recriadas de maneira própria no novo
mundo, mantendo elementos de matriz africana reconhecíveis. Agora, se tivessemos que
definir e descrever exatamente o que é a dança Afro, as coisas se complicam,
principalmente por duas razões. Primeiro, a dança Afro é uma mistura de estilos e
contribuições de variadas origens africanas reelaboradas no Brasil; usando o termo que
Julio Cesar de Tavares utilizou referenido-se à capoeira, a dança Afro é uma “bricolage”
de múltiplos elementos. Segundo, os mitos e histórias das culturas que deram origem aos
movimentos da dança Afro fazem parte de uma história oral que sempre foi transmitida
de forma não escrita, dando origem a mais prováveis confusões e a menos clareza.
Depois de pesquisar fontes teóricas, perguntar para profissionais da área, observar e
participar da dança Afro nos últimos dois anos, cheguei à conclusão do que definir o que
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é a dança Afro é um verdadeiro desafio. Até hoje não existe uma definição exata; ao
contrário, têm várias versões sobre o que é, quem criou, onde se originou e o que inclui a
dança Afro. Segundo minhas observações, isso depende do fato que a arte de dançar Afro
é algo de extremamente complexo e rico em variedades. Nesta última parte do segundo
capítulo pretendo fazer três coisas: primeiro, quero apresentar uma breve história sobre o
que é a dança Afro, trazendo as diferentes teorias e opiniões sobre a questão; segundo,
quero apontar os elementos corporais (movimentos), musicais e culturais que levam a
definir certa dança de dança Afro; e terceiro quero definir as diferentes modalidades que
fazem parte da dança Afro, de acordo com meu campo de pesquisa.
História
Uma das únicas referências teóricas sobre a dança Afro é o livro “ Dança Afro-
Sincretismo de Movimentos” da dançarina e coreógrafa baiana Nadir Nóbrega Oliveira.
No seu texto a autora evidencia a confusão em volta deste assunto. Oliveira escreve que
“são variadas e antagônicas as opinões e explicações sobre o que está convencionado
como Dança Afro” (Oliveira, 1992). Tentando fornecer uma história de quando e como
iniciou a dança Afro, Nadir escreve que a primeira dançarina e coreógrafa negra aconvencionar uma técnica de dança baseada nas danças negras de Haiti, foi Katherine
Dunham, nos Estados Unidos. Foi ela que, vindo ao Brasil em 1949, conheceu a bailarina
negra do Teatro Municipal Mercedes Baptista e convidou ela para estudar na sua
academia em Nova York (Ibidem). Mercedes Baptista voltou ao Brasil nos anos 50, e
fundou o balé folclórico que leva seu nome, baseado nas técnicas aprendidas com
Dunham (Ibidem). Uma das únicas fontes que contam a história da fundação da dança
Afro no Rio de Janeiro é a dissertação de mestrado na UFRJ do antropólogo Nelson
Lima, o qual escreve sobre Mercedes Baptista e o fato dela ser considerada a mãe do Balé
Afro e fundadora da escola e técnica de dança Afro no Rio de Janeiro (Lima 1995).
Segundo o estudo de Lima, a técnica de Mercedes era baseada nos rituais religiosos de
matriz africana, e tentava reproduzir com fidelidade os movimentos e gestuais dos
Orixás, divindades da religião afro-brasileira do Candomblé (ver Capítulo 3). Esta técnica
foi adaptada pelas duas principais alunas de Mercedes, Isaura de Assis e Marlene Silva,
as quais inovaram e interpretaram as origens africanas com elementos da dança clássica e
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moderna, criando uma linguagem cênica e não só ritual (Lima, 1995). Um dos maiores
defensores desta versão da origem da dança Afro é Charles Nelson, professor de dança
Afro no Rio de Janeiro o qual, durante uma entrevista que tive com ele na Lapa, declarou:
“A Mercedes Baptista foi a criadora da dança afro, não somente no Rio quanto noBrasil. O dela não é estilo de dançar, mas uma escola de Afro, é diferente. Eudancei com ela e com a Katherine Dunham quando ela veio ao Rio… a dança afronasceu no Rio, não em Salvador. Eles dizem que nasceu lá mas foi aqui com aMercedes; eles lá inventaram o swing baiano.” (15 Abril 2009)
Como pode-se ver deste trecho, existe um atrito sobre quem fundou e onde nasceu a
dança Afro. Segundo Charles Nelson, a dança Afro nasceu no Rio e foi fundada pela
Mercedes Baptista. A técnica tem elementos de balé juntos a movimentos inspirados peladança de Orixás, adaptados para palco.
Voltando ao texto de Nadir Nóbrega de Oliveira, ela escreve que, em Salvador, os
grupos folclóricos que começaram a se formar a partir dos anos 60, apresentavam os
“aspectos mais expressivos da cultura africana presentes na Bahia”. Ela continua
afirmando que, até hoje, as manifestações mais exploradas pelos grupos Afro em
Salvador são o Candomblé, a Puxada de Rede, o Maculelê, a Capoeira e o Samba de roda
(Oliveira, 1992, p. 33). Ainda na sua tese de douturado sobre a influência do dançarino
Clyde Morgan na escola de dança da Universidade Federal da Bahia, Nóbrega Oliveira
reafirma a presença de “hibridações no que se chama de dança Afro em Salvador” pois
existiam trocas culturais entre danças africanas, dança moderna, capoeira e candomblé
(Oliveira, 2006, p. 114). Segundo este estudo de Oliveira, o dançarino e coreógrafo negro
norte-americano Clyde Wesley Morgan foi uma presença fundamental na escola de dança
da UFBA e contribuiu para a integração de elementos afro no seu grupo de dança
contemporânea, em um ambiente onde as técnicas de dança ensinadas incluiam somente a
moderna, clássica e contemporânea. Segundo Oliveira, Morgan “captou os movimentosda capoeira e do candomblé, principalmente as armadas, a ginga e o ginká (movimentos
circulares dos ombros, utilizados nas danças de candomblé), introduzindo-os,
artisticamente reelaborados, em suas coreografias (Ibidem, p. 104).
Mais um profissional considerado um dos mestres e fundadores da dança Afro em
Salvador é Raimundo Bispo Dos Santos, melhor conhecido como King, que começou a
atuar como dançarino e coreógrafo nos anos 70, inspirando-se no que tinha aprendido na
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escola de dança da UFBA e nos ensinamentos de Mercedes Baptista, Katherine Dunham
e Domigos Campos, coreógrafo do Brasil Tropical (Oliveira, 2006, p. 34). No artigo da
coreógrafa e educadora Amélia Vitória de Souza Conrado “Dança Ètnica Afro-Baiana”,
ela tenta explicar e compreender o que é a dança Afro e, para este propósito traz
entrevistas com o mestre King. Segundo ele, a técnica da dança Afro é inspirada nos
Orixás, sendo essa uma “técnica própria, uma postura própria dos Orixás, uma cultura”
(Conrado, 2006, p. 38). Ao falar isso, King defende uma não rigidez dos movimentos;
eles devem ser baseados na postura dos filhos de santo observados nos terreiros de
Candomblé, mas cada mestre e professor de dança deveria enriquecer estes movimentos
com estudos e experiências próprias (Conrado, 2006). Similarmente à posição do mestreKing, dois jovens instrutores de dança Afro em Salvador que tive a possibilidade de
entrevistar, colocaram sua opinião, ao lhe ser perguntado “o que é a dança Afro?”:
“É afro-brasileiro. É uma mistura de tudo. Não existe afro puro aqui, teria que ir pra Africa. Não existe nada de escrito, tudo foi passado oralmente, então você não tem algo de definido. Mas eu e Tati trazemos a complexidade. Se definir demais vaisimplificar. O afro é complexo. A base é o movimento dos Orixás. Mas ai, eu uso coisas do dia a dia. O afro-brasileiro já écontemporãneo se explorar as possibilidades dentro dele” (Pakito, 27 Agosto 2009).
A fala de Pakito mostra mais uma vez a complexidade e a falta de definição do que é a
dança Afro. Ele faz questão de explicar que é uma arte brasileira, de origem africana, cuja
técnica é baseada nos movimentos dos Orixás. Ao mesmo tempo, como vimos com o
depoimento do Mestre King, é uma arte de dançar sempre recriada e inovada por cada
professor que traz suas experiências e conhecimentos para enriquecer este estilo de
dança.
Mesmo entre estas versões diferentes do que é a dança Afro, podemos observar
alguns aspectos comuns. A característica principal da dança Afro é certamente sua matriz
africana, sua influência corporal e cultural dos povos da diáspora africana no Brasil.
Usando as palavras de Clyde Morgan na dissertação de Nadir Nóbrega Oliveira, “é bomlembrar que esta dança está ligada a uma tradição, com seu códigos e símbolos”
(Oliveira, 2006, p. 91). Isso quer dizer que o sentido dos movimentos da dança “traduzem
a forma do africano e do seu descendente ver e estar no mundo” (Conrado 2006, p. 27),
recriando uma sabedoria ancestral e expressando ela através do corpo numa linguagem
própria. A dança afro descendente constrói corpos, incluindo movimentos, gestos,
posturas corporais e ritmos, que agem contando suas histórias (Oliveira, 2006, p. 17).
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Estas histórias são inscritas e recriadas pelos corpos dançantes e através da dança
revivem-se mitos, costumes, simbologias e narrativas, caracterizando ela como uma
“manifestação viva de identidade étnica” (Ibidem). Os mitos e símbolos da religião afro-
brasileira do Candomblé marcam a estética da dança Afro no plano sagrado, objeto
principal desta dissertação. Antes de entrar nos detalhes do plano sagrado da dança Afro,
quero apresentar os elementos corporais, musicais e culturais da dança Afro,
evidenciados e observados durante minha pesquisa.
Elementos
Como foi mencionado anteriormente, evidenciei alguns elementos comuns às
danças afro-brasileiras, sendo estes aspectos fundamentais da vida e cultura dos povos
africanos que vieram para o Brasil. Um elemento fundamental na visão dos povos
africanos que influênciou a cultura brasileira é o da circularidade. A presença da roda nas
aulas de dança Afro administradas por Eliete é muito forte. Muitas vezes começamos as
aulas formando um círculo, no qual é posssível olhar para cada pessoa, se introduzir
quando for necessário, e conversar. Este círculo é sempre recriado também no final da
aula, quando todos se juntam dando a mão e passando a energia acumulada durante aaula:
Fizemos esta coreógrafia várias vezes, em pares, se encontrando no meio da sala,trocando de lugares e finalmente convergendo todo mundo para o meio, formandoum círculo de novo. (20 Abril 2009)
Para completar nos alongamos dando-se a mão e passamos o aperto de mão para passar energia, algo que Eliete sempre faz no final da aula (27 Abril 2009)
Levantamos e começamos um alongamento em roda. As aulas do circo voador
(espaço de ensaio) são sempre muito circulares, a gente quase nunca quebra aroda. (4 Maio 2009)
Nestes exemplos pode-se ver como a formação da roda é algo que transmite energia, é
usado como forma de coreografias ou de alongamento, e é uma arrumação que permite
conversar olhando-se. A circularidade é algo de sagrado, algo que é parte constituinte dos
rituais das religiões afro-brasileiras. Ao perguntar “o que é a roda” numa aula no Circo
Voador, os alunos responderam:
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“O que é a roda?Ritual, movimento, troca de energias, circularidade, sintonia e cooperação.Precisa trabalhar a energia, a força da roda, na dança, assim como é feito no
Candomblé “ (31 Agosto 2009).
A roda é portanto um elemento proveniente da visão de vida nas matrizes africanas; ela
está presente nos rituais sagrados de Candomblé e é reapropriada na dança Afro como
meio de troca de energia, de força, de sintonia e de cooperação. Trata-se de um elemento
forte que reflete a importância da circularidade nas múltiplas formas de pensamento
africanas.
Esta energia presente na dança Afro provém também de outras características de
origem africana, trabalhadas e utilizadas na dança, como o contato dos pés com o chão, o
som dos tambores e os elementos da natureza. Os tambores, e outros instrumentos
percussivos em geral, são um componente chave da dança Afro. Eles são considerados
sagrados nas culturas dos povos africanos e a vibração produzida por eles é o que move a
energia do corpo do dançarino. Como disse a ativista do movimento negro Naira
Fernandes durante uma palestra dada em um dos ensaios do grupo Corpafro, “o tambor é
nossa ligação entre nós, onde a gente se identifica, cada toque tem seu significado, ele é
tudo pra gente” (25 Abril 2009). Os toques do tambor definem o ritmo e a modalidade dedança Afro a ser dançada. No caso da dança de Orixás, veremos em seguida como cada
toque corresponde a um tipo de Orixá e portanto de movimento, criando uma linguagem
cooperativa entre corpo e som, entre toque e movimento, tambor e dançarino. Os
tambores ajudam também a criar uma energia mais forte durante a aula ou o ensaio.
Durante minha experiência etnográfica, muitas vezes ouvi comentários como o que M.
(uma aluna e integrante do grupo) fez depois de um ensaio com percussão ao vivo: “a
música eletrónica é diferente dos instrumentos ao vivo. Dançar com a percussão é outracoisa, dá pra sentir a vibração.” (20 Março 2009).
Além do que através do som dos tambores, é possível sentir a vibração do corpo
graças ao contato com os pés descalços no chão. A energia que vem da terra se transfere
pelo corpo todo através dos pés, símbolo da raiz, da força e da firmeza, e símbolo
também da ancestralidade, valor fundamental de descendência africana. Falando em raiz
e ancestralidade, estes são elementos associados ao elemento da natureza terra. A dança
Afro, aplicando os valores da cosmogonia nagô, trabalha muito com os quatro elementos
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da natureza, que possuem significados específicos e são associados às várias regiões do
corpo. Como introdução de uma aula no circo Voador, Eliete, falou sobre estes
significados e associações dos quatro elementos da natureza:
“Os quatro elementos da natureza são:
Fogo: calor, viibração, força, expansão. Transforma, é perigoso, significa energiae ação, sexualidade e fantasias.Terra: fertilidade, base, sustentação, firmeza, ancestralidade e raizÀgua: a água é tudo e tudo é água. A gente é água. Fluidez, adaptação, evolução,vida, movimento.Ar: transição, sopro vital, vento, tempestade, brisa.
Precisa buscar um equilíbrio entre eles e trabalhar eles todos, tanto na nossa vidade dia a dia, quanto na dança. A gente usa eles e eles nos usam também. Dentroda dança Afro é fundamental trabalhar estes 4 elementos, pois eles estão no corpo:
Ar: região cardiaca, toraxÀgua: estômago, barriga,Fogo: pelvis, quadril, região do ventre.Terra: coluna.
Ao trabalhar estes 4 elementos da natureza na dança, portanto, trabalham-se asregiões do corpo, as 4 direções, as mitologias nagôs, os sentimentos e as
sensações. Todos os movimentos estão ligados a elementos da natureza, sendoagitados, outros menos fortes, alguns firmes, outros ondulatórios.“(13 Abril2009).
As notas de campo explicam como os quatro elementos da natureza são muito
importantes de se trabahar na dança Afro, pois estão presentes no corpo e estão ligados às
sensações e a mitologia nagô. Como veremos em seguida, cada Orixá corresponde a um
elemento da natureza, fato esse que influencia o próprio arquétipo e personalidade do
Orixá e portanto o tipo de movimento, determinando a força, a rapidez, a ondulação do
corpo, a direção. Como escreve Rosamaria Barbara em sua tese sobre a dança das Aiabás:
“O corpo é o ponto de conjunção entre as energias naturais e a cultura e, por meio doritmo traduzido em dança, transforma os eventos naturais em significados culturais.Cada gesto mostra o sentido de um símbolo, criando assim a dialética, o fluir dinâmico do ritual” (Bárbara, 2002, p. 54).
Na dança Afro, assim como no ritual do Candomblé, o corpo é a ponte, o contato entre as
forças da natureza e a cultura, através dos gestuais da dança, que comunicam com o
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ritmo dos tambores. A criação de significados acontece graças à movimentação do corpo
na dança, que produz e mostra os símbolos da natureza ligados a significados culturais.
Sem ainda reproduzir os movimentos de Orixá, um ensaio no Centro Coreográfico
focou-se no exercitar os quatro elementos da natureza no corpo. Neste exercício,
tínhamos que andar pela sala, tentando mostrar através do movimento o elemento da
natutreza que a Eliete estava mandando incorporar. As sensações foram intensas e os
movimentos que apareceram foram os seguintes:
1. Agua: o corpo se mexia ondulando, representando a sensação de beber agua, jogar agua, tomar banho, sentir a agua do mar.
2. Terra: foram movimentos de pegar com a mão no chão, sentar e crescer de baixo
para cima, sentir a firmeza da terra, mostrar a raiz de algo crescendo.3. Fogo: sensação de calor, tentando soltar as chamas jogando-se, muita energiasentida no corpo, pulando rápidamente.
4. Ar: voar como se fosse uma ave, pular bem em alto mas leve, movimentos sutis,expandindo o corpo, respirando profundo. (29 Maio 2009)
É interessante ver como o corpo experiencia sensações variadas e as expressa através do
movimento, que é inspirado por dentro, pela emoção que aparece ao sentir cada elemento
da natureza. Estes movimentos de ondulação do corpo, de firmeza no chão, de saltos
fortes e explosivos ou de leveza e sutileza, além de estar estritamente ligados à dança de
Orixás, são movimentos característicos de todas as modalidades da dança Afro.
A maior dificuldade no definir os movimentos da dança Afro é o fato deles não
ter nome. Como disse Charles Nelson durante nossa entrevista:
“Na dança afro os movimentos não têm nome, ao contrário doballet por exemplo. No ballet, alguém pode até ensinar sentado sequiser, é só falar os nomes; eu não tenho como-preciso fazer aula junto com o aluno, preciso mostrar o movimento, pois não tem
nome!” (15 Abril 2009).
Essa falta de codificação gera uma dificuldade no ensino e na definição da dança Afro.
Tomando em consideração estes desafios, e com a ajuda das minhas observações ao
longo da etnografia tentarei descrever as posições e movimentos corporais típicos da
dança Afro.
Primeiro, é importante identificar a postura do corpo na dança Afro: não rígida,
meio inclinada para a frente, com pés paralelos pisando firmes no chão e joelhos
flexionados. Segundo Mestre King esta postura a ser assumida na dança é fundamental e
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é inspirada pela postura dos filhos de santo no Candomblé: joelhos semi-flexionados e
performance meio inclinada, tentando incorporar elementos da “postura ritual” no
“trabalho da dança” (Conrado 2006, p. 40). O aspecto dos joelhos flexionados foi
evidenciado por todos os professores em qualquer aula de dança Afro da qual tenha
participado, tanto como dançarina quanto como observadora. Em uma aula de Tatiana em
Salvador ela explicou: “A base do afro são joelhos sempre dobrados” (27 Agosto 2009).
Este ensinamento é algo que Eliete sempre repete nas suas aulas, desde o próprio
alongamento inicial; um dia, depois de uma sequencia de alongamento, ela disse: “o
alongamento precisa envolver muito trabalho de torso, joelhos e molejo, tudo que é usado
maiormente na dança Afro” (18 Maio 2009). O “molejo” é algo considerado fundamental para quem dança Afro; segundo a dissertação de Nelson Lima, esta flexibilidade do corpo
em se movimentar harmoniosamente chamada molejo, e a capacidade de ter uma
coordenação rítmicas são os dois elementos chave da técnica corporal da dança Afro
(Lima, 1995, p. 77). Durante uma oficina de dança africana da qual participei no Centro
Coreográfico dada pelo dançarino africano (da Costa de Marfim) George Momboye, me
surpreendi ao reparar que a maioria dos gestuais e movimentos eram totalmente
diferentes dos que conheço e que estou acostumada a fazer nas aulas de dança Afro da
Eliete, ou de outros professores brasileiros. Entretanto, foi possível reparar como a base
de joelhos flexionados, o molejo, a ampla movimentação de tronco e quadris e a
polirritmia do som dos tambores fazem parte da dança africana também, rendendo o
elemento “Afro” na dança aqui no Brasil reconhecível. Após a oficina alguns dos
participantes que fazem dança Afro comentaram como esta disciplina de dança é
totalmente diferente do ballet; “o Afro não tem nada de ponta, tudo é dobrado e
flexionado, e tudo é no molejo, nada é esticado. Também tem muito braço, muita força”,
comentou um dos participantes (19 Junho 2009). São exatamente estes detalhes, entreoutros, que identificam as matrizes africanas na dança Afro no Brasil.
Mais um elemento característico da dança Afro observado no meu campo de
pesquisa é a grande movimentação da pélvis e dos quadris. Nadir Nobrega escreve que “a
dança com os quadris é um patrimonio da nossa ancestralidade africana” (Oliveira, 2006,
p. 140). Julio Cesar de Tavares, no seu estudo sobre capoeira citado anteriormente,
escreve que na cultura africana a cintura assume a função-chave do corpo. A soltura dos
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quadris é o que Tavares define de “variável somática” responsável pelos movimentos da
capoeira, do reggae, do soul, do rock ou dos breakers, os requebros das passistas de
samba, os movimentos religiosos da Umbanda e Candomblé (Tavares, 1984, p. 33).
Tavares continua:
“O jogo de cintura, ou jogo de quadris, é marca registrada no cotidiano negroafricano e, por extensão, da afro-diáspora. Movimento dos quadris e energiadinâmica são dois elementos que fazem o corpo do negro ser um corpo quecataliza e reverbera a força energético-cósmica. Lembremos que tais elementossão os traços definidores do corpo em texto na Capoeira. Como resíduos deidentidade para o interior da comunidade, enquanto prática constituída, significamum saber produzido e memorizado pelo corpo. O corpo é signo.” (p. 73)
O movimento dos quadris é portanto um elemento constitutivo do corpo negro e das
danças de matriz africana, símbolo de identidade e de um saber e conhecimento que está
na memória do corpo e é constantemente produzido pelo corpo. Nas danças africanas e
afro-brasileiras, portanto, é muito comum o sacudir dos quadris ao ritmo da percussão.
Sobre este assunto, acho importante trazer aqui algo que a Eliete muitas vezes faz questão
de sublinhar. Durante uma aula no Circo Voador, por exemplo, nós estávamos
executando movimentos que envolviam uma ampla movimentação dos quadris, quando
Eliete gritou: “é mexer mesmo, não é rebolar - é Afro primitivo, não é o tchan!” (22Junho 2009). É interessante ver que o uso de certos termos valoriza e estimula o
movimento de pelvis na dança Afro, e desconsidera o movimento dos quadris como
contendo significado puramente sexual, distinguindo a arte de dançar Afro, nesse caso,
do dançar do grupo de pagode baiano “è o tchan”, popular nos anos noventa, autor de
músicas com teor erótico e duplos sentidos.
O elemento chamada e resposta mencionado ao se falar do hip-hop e do jongo
está presente também na performance da dança Afro. Especialmente na dança de Orixás,é possível observar esta característica típica da estética das danças africanas. No
Candomblé existe uma estreita relação entre a música e a dança, tanto entre quem puxa as
cantigas e os outros religiosos, quanto entre o toque do tambor e os movimentos e
gestuais dos Orixás. Na dança de Orixás no contexto profano da dança Afro, esta
comunicação entre o tambor e o gestual do dançarino é um elemento fundamental. A
cada “chamada” do tambor executando um toque específico, o corpo do dançarino
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“responde” com um gestual e uma postura próprios, instaurando um processo de
interação e diálogo formado por este jogo de “chamada e resposta”. Essa comunicação
entre tambor e dançarino será melhor explorada no quarto capítulo, onde analisarei mais
em detalhe o elemento comunicativo da dança Afro.
Finalmente, vale a pena mencionar a característica polirrítmica e asimétrica da
dança Afro, símbolo das suas origens africanas. No livro A Dança de Yemanjá Ogunté,
Suzana Martins evidencia estas características chamando-as de “polirritmia”,
“policentrismo” e “holismo”, indicando-as como pilares fundamentais e estruturais da
estética negra, das danças africanas e das coreografias dos Orixás. Por “polirritmia”
entende-se a utilização de diferentes ritmos para diferentes movimentos, assim como aexecução de toques rítmicos diferentes dentro de uma mesma estrutura sonora e corporal
e executados de forma sobreposta (Martins, 2008, p. 118). A polirritmia promove uma
complexidade na movimentação do corpo, cujos membros executam movimentos parciais
e diferentes dentro de uma mesma estrutura coreográfica, mostrando a qualidade
asimétrica da dança Afro. Além disso, o pilar do “policentrismo” descrito por Martins
ressalta que os movimentos Afro “se expandem no espaço, sobrepondo-se uns aos outros
a partir do estímulo dado pelos toques dos atabaques os quais, por sua vez, emolduram o
tempo e o desenho espacial” (Ibidem, p. 119). O corpo portanto não se locomove de
maneira fixa e reta; ao contrário, ele se locomove com movimentos sobrepostos se
expandindo no espaço. Por fim, o pilar do “holismo” explica o fato do corpo se
movimentar de maneira que todas as partes interajam entre si, promovendo o movimento
do corpo todo sem enfatizar as articulações individualmente. Esta característica baseia-se
na filosofia holística típica do pensamento africano, onde o todo é maior do que as
individualidades separadas (Ibidem, p. 120).
Já disse que, devido à falta de uma denominação de movimentos na dança Afro, écomplicado tanto estabelecer quanto reconhecer o que exatamente é e faz parte desta arte
de dançar. Entretanto, após um extenso período praticando e vivendo no universo da
dança Afro, consegui ser capaz de distinguir certos movimentos e falar que podem ser
considerados movimentos de dança Afro. Isso aconteceu claramente em duas ocasiões,
nas quais as apresentações de dança Afro estavam juntas a outras modalidades. No
festival de jongo em São José da Serra, mencionado anteriormente, entre muitas rodas de
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jongo e capoeira, apresentações do coco e folia de reis, teve uma apresentação do “Boi de
Miracema”, uma manifestação de bumba meu boi (dança do folclore popular brasileiro)
que incluiu uma coreografia de dança Afro executada por um grupo de meninas. Foi
interessante constatar que, tanto eu quanto duas minhas amigas que também fazem aula
de dança Afro, conseguiram reconhecer imediatamente que aquela coreografia era de
dança Afro, diferente do jongo ou do coco ou da capoeira das outras apresentações. Isso
aconteceu por causa dos movimentos executados e reconhecíveis, como a presença de
muito molejo, amplos movimentos de tronco, mãos espalhadas e braços se
movimentando com força e rapidez, postura do tronco inclinada, pulos e saltos,
movimentação do quadril muito acentuada e alguns gestuais de orixá. (diário de campo,16 Maio 2009). Uma segunda ocasião na qual fui capaz de distinguir imediatamente os
movimentos Afro da dança, foi durante o espetáculo que a companhia do dançarino
George Momboye, anteriormente citado, fez no teatro João Caetano no Rio de Janeiro.
Esta companhia se define como um grupo de dança que mistura a técnica africana com a
contemporânea européia. Durante o show, foi interessante ver a capacidade que tive em
reconhecer os elementos de dança africana, como, mais uma vez, os joelhos flexionados,
a amplitude de movimentos braçais, a execução de pulos, o molejo, a rapidez dos pés, a
força da percussão (diário de campo, 23 Junho 2009).
Espero ter conseguido explicar da melhor forma possível os elementos gerais que
caracterizam a dança Afro, e espero ter mostrado que são elementos de matriz africana,
que têm origem nas culturas e histórias dos povos da diáspora africana no Brasil e que, ao
incorporar e reproduzir eles, a dança Afro recria e transmite estes símbolos culturais e
histórias. Os movimentos e os elementos da dança Afro portanto não acontecem por
acaso; eles têm todo um simbolismo e um significado, ligados a uma história e uma
memória que está no corpo. Como afirmou Vera Lopes coreógrafa e professora de dançacontemporânea, durante uma conversa com o nosso grupo no Centro Coreográfico, “os
do Afro são movimentos que têm força, que têm identidade” (22 Maio 2009). Esta força
ancestral e esta identidade querem ser resgatadas através da dança Afro, que, usufruindo
do corpo como maior locus de memória e meio de comunicação, como será analisado nos
próximos capítulos, mantém vivos e ensina os mitos, os valores, as histórias e as
filosofias que vieram de povos africanos cuja influência está fortamente presente na
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riqueza da cultura brasileira. Tentarei portanto explicar, nesta parte final do primeiro
capítulo, como as diferentes modalidades da dança Afro refletem e recriam as várias
histórias e os variados mundos e valores das culturas africanas que mais tiveram
influência no Brasil, a Bantu e a Yoruba.
Modalidades
A dança Afro é muito rica em movimentos e significados e dentro dela podem ser distinguidas algumas modalidades. A principal distinção que pode ser feita dentro do
Afro é entre as danças lúdicas, ou profanas, e as danças sagradas. As danças lúdicas, por sua vez, podem ser subdivididas em três grupos principais: as danças tradicionais,o afro primitivo, e a dança de blocos Afro. A modalidade sagrada dentro do contexto profano da dança Afro é a dança de Orixás inspirada pelas danças religiosas doCandomblé. Antes de tentar explicar no que consiste cada uma dessas modalidades, éimportante sublinhar que a divisão sagrado/profano dentro das danças afro-brasileirasnunca é completamente rígida, pois a dança na cultura dos povos africanos é uma dasmaiores manifestações presentes nos rituais. Portanto, mesmo as danças lúdicas possuem uma estrutura ou elementos ritualísticos e sagrados. Ao mesmo tempo, éimportante lembrar que, nesta pesquisa, estamos falando de um contexto profano, oda dança Afro. Por isso, quando falarei mais em específico de dança de Orixás, é
preciso saber que a analiso no seu contexto performático e não dentro do contextoreligioso do Candomblé, mesmo se serão feitas comparações entre estes dois mundos.
Começando pelo lado lúdico da dança Afro, vou explicar no que consistem as trêssubdivisões que tentei determinar. As danças tradicionais que fazem parte da dançaAfro são algumas das danças afro-brasileiras, especialmente o samba de roda e omaculelê. Em muitas das aulas de dança Afro das quais participei, tanto as da Eliete,quanto do Charles Nelson, ou da Tatiana em Salvador, reserva-se uma parte da aula para se ensinar e praticar o samba de roda, já analisado anteriormente na sessãofalando das danças afro-brasileiras. Durante uma aula dedicada ao samba de roda,exercitamos o aspecto da circularidade e da ludicidade desta dança, formando a roda, praticando os passos do samba, para a frente, lado e trás, movimentando os quadris,
praticando o jogo de sedução entre homem e mulher, e dançamos cantando e batendo palmas ao mesmo tempo (diário, 25 Maio e 1 Junho 2009). A segunda modalidade pode ser considerada como o Afro-primitivo. Eliete, em entrevista, afirma que o afro primitivo recria os movimentos que estão ligados à natureza: inclui gestuaisanimalescos, de árvores, folhas, terra e gestuais de caça. Os movimentos destamodalidade são muito fortes, envolvem muitos giros, pulos e saltos, muita definiçãodas articulações das mãos, e uma expressão facial intensa, forte, concentrada. Emmuitas aulas exercitaram-se movimentos de afro primitivo:
Hoje fizemos movimenntos de AFRO PRIMITIVO: as mãos ficam sempre muitoabertas, os braços dobrados, fortes. As pernas são sempre flexionadas,
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movimentando o quadril. São movimentos muito cansativos e difíceis, sobretudodificéis de coordenar. (Circo Voador, 1 Junho 2009)
Na aula, fizemos movimentos de Afro primitivo. Eliete explicou que são gestosque fazem muito nas danças na Africa, sobretudo no Senegal. Nos movimentamos pela sala com os braços abertos, com cotuvelos dobrados, abrindo para cima e para baixo. Fizemos um movimento de oferenda com os braços, enquanto o pémarcava com o calcanhar no chão lateralmente. (UERJ, 3 junho 2009).
Hoje fizemos só movimentos de afro primitivo: joelhos sempre flexionados,movimentos de “pernas bamba” se mexendo, pés dobrados nos pulos e nos passos, braços muito grandes, muito movimento de pelvis e percussão muitorápida. (CircoVoador, 22 Junho 2009).
Nos movimentos de Afro primitivo as pernas são muito flexionadas, e tem muito movimento da cabeça. Gritos acompanham aaula toda hora. Fizemos muitos giros da cabeça, com mãos na cabeça ou com braços abertos e mãos espalhadas. O molejo estásempre presente. Fizemos giros com movimentos de oferenda dos braços. Braços e pernas são sempre muito fortes, grandes, comos ombros se movimentando muito. Executamos movimentos de caça, com braços simulando a figura de arco e flecha, pulandoalto. Pés flexionados, muito movimento de quadril e movimentos sincopados. (Aula Charles Nelson, 6 Maio 2009).
Olhando para todos estes excertos de diário de campo, podem se ver algumas
características corporais do Afro primitivo, uma modalidade da dança Afro com
movimentos muito fortes, acentuados, fazendo uso de muito tronco, braços e quadril.
Giros e pulos são muito presentes e os gestuais são de oferenda, de caça, de natureza.
A terceira modalidade que faz parte das danças profanas dentro da dança Afro é a
das danças de blocos Afro de Salvador. As danças de blocos Afro tem movimentos
específicos e reconhecíveis. Os principais ritmos dançados são: o Afoaxé (típico de
grupos como os Filhos de Gandi), o Samba-reggae (ex. Olodum) e o ritmo próprio do Ilê
Aiye, primeiro grupo Afro de Salvador. Cada um desses ritmos percussivos tem uma
dança própria e movimentos associados. Muitos deles são baseados em gestuais de
Orixás que são modificados e reutilizados nessas danças. O Afoaxé é o nome de um
ritmo, de um instrumento e de bloco. O Afoaxe, ou Ijexa, é dançado por Oxum no
Candomble, e por Oxalá tambem. Os Filhos de Gandi na Bahia criaram o primeiro grupo
de afoaxe, com os homens do cais, vestidos de branco e azul, em homenagem a Gandi, a
paz, a Oxalá (aula Circo Voador, 11 Maio 2009). Os movimentos do Afoaxé são
baseados nos movimentos dos Orixás Oxum, Oxalá, Ossaim e Logun Edé e são
movimentos leves, sutis, pequenos, baseados na resistência e no molejo. Os dois passos
principais são:
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1. pés se movimentando chutando levemente para a frente, com joelhos
flexionados, com molejo; as mãos estão fechadas e os braços juntos
ondulando de um lado e outro do tronco.
2. movimento de abre e fecha de pernas e braços simltaneamente, com
molejo constante e movimentação contínua dos ombros. (diário, 11 e 18
Maio 2009)
Estes movimentos típicos do Ijexá mostram a influência Yoruba e da dança de Orixás na
dança Afro. Entretanto, mesmo sendo baseado nos movimentos de Orixá, o afoaxé ainda
não é considerado a dança sagrada de Orixás. Mais um estilo de dança de blocos Afro é a
dança da beleza negra do bloco Afro Ilê Aiye. Este foi o primeiro bloco Afro a ser fundado no bairro do Curuzu da cidade de Salvador, e, como manifestação de resgate da
cultura negra e de valorizar a mulher negra, o bloco organiza cada ano a noite da beleza
negra, onde várias candidatas dançam ao toque dos tambores do Ilê, mostrando a beleza e
a sutileza do feminino, através da dança. A dança é baseada na sutileza da dança de
Orixás; movimentos de Oxum, Iemanja e Iansã (Orixás femininos) estão presentes na
dança da beleza negra, sendo estes orixas femininos inspiração para a feminilidade e a
realeza das mulheres. Durante uma aula na UERJ dedicada ao estudo dos movimentos da
dança da beleza negra, Eliete continuava repetindo de expressar o fato de estar dançando
rainhas negras. Os movimentos utilizam especialmente a parte superior do corpo, com
braços e ombros executando movimentos amplos, e tudo é sempre acompanhado por
molejo (diário, 7 Outubro 2009). Nas aulas de dança de blocos Afro que fiz em Salvador
reconheci imediatamente estes movimentos da dança da beleza negra e, dançando ao
toque do Ilê Aiye, executamos os movimentos sinuosos típico de Oxum, com ampla
abertura de braços e muita movimentação das mãos; tinham também passos baseados nos
movimentos de Oxossi, e a maneira de pisar no chão é diferente do Afro primitivo: os pés parecem deslizar levemente no chão, se movimentando assim como os pés dos Orixás
dançando em um ritual de Candomblé (diário, 11 Agosto 2009). Além dos blocos de
Afoaxé e do Ilê, existem vários outros blocos afro, tanto em Salvador quanto no Rio de
Janeiro, cuja batida e ritmo tocado chama-se de samba-reggae, ou afro-reggae. A maneira
de dançar que acompanha estes ritmos é diferente das outras modalidades, e envolve
movimentos sinuosos, que utilizam muito balanço e flexibilidade do tronco. Eles são
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mais rápidos que os movimentos da dança da beleza negra ou do afoaxé, e trabalha-se
muito o quadril enquanto os braços são “jogados” para os lados e para cima de maneira
muito rápida. Musicalmente falando, os ritmos dos blocos Afro, além das danças, são
variados e inovadores, juntando estilos diferentes de música de matrizes africanas, como
o samba, o reggae, os toques de orixás, e criando fusões Afro complexas e inspiradoras.
Vimos portanto como a dança Afro inclui vários e diferentes estilos e
modalidades. Até agora dei uma descrição das modalidades que fazem parte da esfera
profana da dança Afro mesmo se, como foi já mencionado, os gestuais e movimentos
sagrados dos Orixás são muitas vezes a base dos movimentos das danças até agora
descritas. Dentro da dança Afro, porém, existe a própria dança de Orixás, onde osmovimentos e gestuais executados refletem o mais autenticamente possível os gestos dos
Orixás que dançam na cerimônia religiosa do Candomblé. Durante uma performance de
dança de Orixás, o dançarino tenta recriar no seu corpo os gestos, os arquétipo, os
símbolos e os elementos da natureza associados a cada Orixá. Esta dança será analisada
em detalhe no próximo capítulo, onde explicarei melhor o mundo do Candomblé e dos
Orixás e sua importância na dança Afro.
CAPITULO 3 - Os Cheiros da Natureza Os Cheiros da Natureza Os Cheiros da Natureza Os Cheiros da Natureza
(Incorporando Orixás)
O Candomblé
No começo não havia separação entre o Orun, o céu dos Orixás, e o Aiê, a terra doshumanos. Homens e divindades iam e vinham, coabitando e dividindo vidas eaventuras. Conta-se que, quando o Orum fazia limite com o Aiê, um ser humano tocou
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o Orum com as mãos sujas. O céu imaculado do Orixá fora conspurcado. O brancoimaculado de Obatalá se perdera. Oxalá foi reclamar a Olorum. Olorum, Senhor doCéu, Deus Supremo, irado com a sujeira, o desperdício e a disciplência dos mortais, soprou enfurecido seu sopro divino e separou para sempre e Céu da Terra. Assim, oOrum separou-se do mundo dos homens e nenhum homem poderia ir ao Orum eretornar de lá com vida. E os orixás também não poderiam vir à Terra com seuscorpos. Agora havia o mundo dos homens e dos orixás, separados. Isolados doshumanos habitanttes do Aiê, as divindades entristeceram. Os orixás tinham saudadede suas peripécias entre os humanos e andavam tristes e amuados. Foram queixar-secom Olodumare, que acabou consentindo que os Orixás pudessem vez por outraretornar à Terra. Para isso, entretanto, teriam que tomar o corpo material de seusdevotos. Foi a condição imposta por Olodumare.
Oxum, que antes gostava de vir à Terra brincar com as mulheres, dividindo com elas sua formosura e vaidade, ensinando-lhe feitiços de adorável sedução e irresistível encanto, recebeu de Olorum um novo encargo: preparar os mortais para receberemem seus corpos os orixás. Oxum fez oferendas a Exu para propiciar sua delicadamissão. De seu sucesso dependia a alegria de seus irmãos e amigos orixás. Veio ao Aiê e juntou as mulheres à sua volta, banhou seus corpos com ervas preciosas, cortou seus cabelos, raspou suas cabeças, pintou seus corpos. Pintou suas cabeças com pintinhas brancas, como as penas da galinha d´ angola. Vestiu-as com belíssimos panos e fartos laços, enfeitou-as com jóias e coroas. O ori, a cabeça, ela adornouainda com a pena ecodidé, pluma vermelha, rara e misteriosa do papagaio-da-costa. Nas mãos as fez levar abebés, espadas, cetros, e nos pulsos, dúzias de douradops
indés. O colo cobriu com voltas e voltas de coloridas contas e múltiplas fieiras debúzios, cerâmicas e corais. Na cabeça pôs um cone feito de manteiga de ori, finaservas e obi mascado, com todo condimento de que gostam os orixás. Esse oxo atrairiao orixá ao ori da iniciada e o orixá não tinha como se enganar em seu retorno ao Aiê. Finalmente, as pequenas esposas estavam feitas, estavam prontas, e estavam odara. As iaôs eram as noivas mais bonitas que a vaidade de Oxum conseguia imaginar. Estavam prontas para os deuses.
Os orixás agora tinham seus cavalos, podiam retornar com segurança ao Aiê, podiamcavalgar o corpo das devotas. Os humanos faziam oferendas aos orixás, convidando-
os à Terra, aos corpos das iaôs. Então os orixás vinham e tomavam seus cavalos. E,enquanto os homens tocavam seus tambores, vibrando os batás e agogôs, soando os xequerês e adjás, enquanto os homenss cantavam e davam vivas e aplaudiam,convidando todos os humanos iniciados para a roda do xirê, os orixás dançavam edançavam e dançavam. Os orixás podiam de novo conviver com os mortais. Os orixásestavam felizes. Na roda das feitas, no corpo das iaôs, eles dançavam e dançavam. Estava inventado o candomblé.
(Prandi, 2001, p. 522)
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A dança de Orixás é uma das modalidades dentro da dança Afro. Como foiexplicado no capítulo anterior, os gestuais da dança dos Orixás são aplicados às outrasmodalidades dentro da dança Afro; entretanto, durante a execução da própria dançasagrada dos deuses no contexto profano da dança, o dançarino reproduz a figura dosOrixás, com seus movimentos, gestos, mitos e adereços, transmitindo e recriando ashistórias que fazem parte do patrimônio religiosos e cultural afro-brasileiro. Antes deanalisar detalhadamente o corpo do performer durante a dança de Orixás, é importanteintroduzir o contexto destas divindades afro-brasileiras, protagonistas da religião doCandomblé. O Candomblé é uma religião que veio se constituir no Brasil após otráfico dos escravos que trouxe milhares de homens e mulheres de vários gruposétnicos e regiões da Africa. Estes vários povos trouxeram suas culturas e seus hábitos junto, incluindo suas crenças religiosas, que acabaram influênciando fortemente a re-criação das religiões afro no Novo Mundo. Os maiores grupos que chegaram ao Brasilforam os Bantus, da região de Congo e Angola, os Yorubás, da moderna Nigéria e
República do Benin, e os Jejes, do antigo reino de Daomé. Como a religião se tornousemi-independente em regiões diferentes do país, entre grupos étnicos diferentes,evoluíram diversas "divisões" ou nações, que se distinguem entre si principalmente pelo conjunto de divindades veneradas, os atabaques e a língua sagrada usada nosrituais. Entretanto, como escreve Zeca Ligiéro no seu livro Iniciação ao Candomblé,os três grupos mencionados, iorubás, angolas e jejes, “se destacaram pels herançasdeixadas, visíveis até hoje, balanceadas por uma filosofia realmente animista e por uma crença religiosa que tem como preceito a harmonização com as forças vivas danatureza, onde se pode sentir e conviver com a força divina dos Orixás, dos inquices edos voduns” (Ligiéro, 2006, p. 20). Entre os grupos étnicos, os Yorubás, denominadosde Nagô aqui no Brasil, foram uma das maiores influências na arte, religião e cultura
afro-brasileira, pois eles imigraram em grandes números e “suplantaramnumericamente os Jeje”, após a destruição dos reinos Yorubá de Ketu no Benin e deOió na Nigéria (Pessoa de Barros, 2000, p. 23). A maioria dos Candomblés dasregiões onde houve esta grande imigração Nagô, especialmente no Nordeste (Bahia,Pernambuco e Maranhão) e no Rio de Janeiro, são de origem Yorubá e, especialmente,são da nação de Ketu. Os terreiros da Baixada Fluminense onde fiz minhasobservações são portanto centros de Candomblé nagô da nação de Ketu.
A religião do Candomblé sustenta-se em uma força vital, energia chamada Axé, presente nas forças da natureza e nos seres humanos, considerada a própria presençadivina, contida e representada pelo Deus supremo Olorum e pelos Orixás, deuses que
têm poder sobre os vários tipos de seres e coisas do mundo, e que são associados acada elemento da natureza. Existe portanto uma ligação muito forte entre o divino, ohumano e o natural e as folhas e os ambientes naturais são considerados fundamentais para o Candomblé (Ligiéro, 2000). Como foi mencionado no capítulo anterior, cadaOrixá está ligado a uma força da natureza, que influencia sua personalidade e, comoconsequência, seu modo de agir e de se movimentar. Os gestos, os movimentos e asdanças de cada Orixá estão portanto estritamente conectados com os elementos danatureza. Antes de explorar os arquétipos e os gestuais de cada Orixá, é necessárioclarificar qual é a presença e a importância da dança dentro do Candomblé. Para fazer isso, é preciso fazer uma breve descrição do que envolve um dos rituais públicos destareligião: a “festa pública”.
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Ritual da Festa Pública
Segundo a religião nagô, cada ser humano é filho de um Orixá principal, e de outrossecundários. Ao jogar os búzios, o babalorixá (pai de santo), ou iyalorixá (mãe desanto), considerados os sacerdotes no Candomblé, descobrem o “dono da cabeça” dofilho de santo. Após um processo de iniciação, o fiel pode ”receber” seu santo duranteum ritual de Candomblé, que envolve práticas muito específicas e detalhadas. O ritualanalisado neste texto é a festa pública, que acontece regularmente nos terreiros deCandomblé, segundo um calendário estabelecido pelo próprio pai ou mãe de santo,onde cada festa é dedicada a um Orixá específico, que será o protagonista do ritual. Adança, a música e os cantos acompanham o ritual o tempo todo e é justamente atravésdas cantigas e dos toques dos atabaques que os Orixás chegam a se manifestar. Amaneira deles se amostrarem é dançando no corpo dos filhos de santo, recriando e
contando seus mitos e suas personalidades através dos gestos, cores e adereços da performance.
A festa pública no candomblé é um evento muito parecido com a performanceteatral: o espaço é decorado nos mínimos detalhes, convidam-se pessoas para assistir ao ritual, e existe um “roteiro” a ser seguido. Os fieis participantes entram e saem decena para se arrumarem, e geralmente participa-se de uma confraternização comcomida e bebida após o término do ritual. Utilizando minhas notas de campo,mostrarei brevemente cada um destes elementos performáticos. A decoração doespaço é cuidadosamente executada e é repleta de significação simbólica. Em umafesta de Iemanjá em Nova Iguaçu, por exemplo, as paredes eram decoradas comrecortes de peixes prateados, símbolo da rainha do mar, junto com papeis recortadosem forma de machado, símbolo de Xangô. Teve uma festa pública da qual participeicomo observante que foi um exemplo ótimo de como este ritual é performático. Foi ainauguração de um terreiro em nova Iguaçu da mãe de santo de um amigo que dançacomigo, sendo ela filha da Orixá Obá. Quando cheguei:
“Tudo estava decorado: tinha um bolo laranja, cor de Obá, em cima de uma mesa,tinha quiabo em um recipiente, sendo este a comida de Xangô (marido de Obá),laços em volta das colunas, folhas no chão, pequenos machados de papel nas paredes e fotos de quando a R., Iyalorixá desta casa, foi iniciada raspando acabeça, aos 8 anos. Na casinha do lado do patio etavam os bastidores, como sefosse um camarim, onde todo mundo da casa estava se arrumando. A platéia
estava chegando e tomando seus lugares nas cadeiras que foram colocadas no patio, quando de repente uma chuva fortissima começou a cair e a entrar no barraccão, alagando o chão e começando a molhar todas as decorações. Assim, as pessoas da casa começaram a tentar achar soluções para que a chuva não entrasse.Montaram um telhado improvisado, mas não conseguiram fazer com que a águanão se infiltrasse de qualquer jeito. Tentaram varrer a água que estava alagando ochão de terra, mas ela era mais insistente e continuava voltando. A lona tambémcaiu pois não aguentou a força do temporal. Depois de quase uma hora a chuvalentamente parou e permitiu que tudo aos poucos voltasse ao normal e foi assimque, por volta de 1 hora da manha começou o ritual.” (27 Junho 2009)
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Pela descrição do espaço e da dinâmica do início do ritual, é evidente como este é
parecido com um espetáculo de dança por exemplo. O cenário é preparado com objetos
simbólicos representantes do tema da festa; o lugar de arrumação das pessoas parece com
o camarim de um teatro; os espectadores vão chegando e se acomodando nas cadeiras
preparadas para eles; por fim, imprevistos técnicos acontecem, como neste caso foi a
chuva fortissima que caiu e causou uma reorganização e muito trabalho para que não se
estragassem o cenário e os figurinos. Um cuidado particular foi reservado, como sempre
é, para os atabaques, considerados sagrados na religião afro-brasileira. Eles são
enfeitados com laços, posicionados em uma área própria, e somente os iniciados podem
tocar neles. Os músicos que são autorizados a tocar neles, chamados de ogãs, sãoespecialmente treinados e iniciados para aprender cada toque, cada ritmo e cantiga de
Orixá. No ritual ketu há três atabaques: o Run, o maior deles, de tom grave, tocado com
uma baqueta de madeira e uma das mãos, é considerado como o som que chama os
Orixás; o Rumpi, menor que o Run, percutido por baquetas de madeiras chamadas
aquidavis, e tem função de manter o ritmo; o Lê, atabaque pequeno com tom médio, com
a mesma função do Rumpi (Pessoa de Barros, 2000). A sacralidade dos atabaques é algo
que já foi mencionado no capítulo anterior ao falar da importância dos instrumentos
percussivos na cultura afro-descendente. Na dança Afro, os atabaques e os toques
executados com eles são fundamentais na execução dos passos e na performance do
movimento. Além dos atabaques, outros instrumentos são usados no ritual de Candomblé,
como o agogô ou o adja, instrumentos percussivos com som metálico, utilizados na
dança de Orixás no contexto profano também.
A primeira parte da festa pública no Candomblé é chamada de Xirê, onde os
filhos de santo, guiados pelo toque da orquestra dos atabaques e pelas cantigas, formam
uma roda e dançam em círculo, executando gestos e movimentos específicos de acordocom a música. O elemento da circularidade portanto aparece fortemente desde o início do
ritual, pois a roda é um componente chave neste primeiro momento de danças do xirê. Ao
se locomover em círculo, reparei que os filhos de santo dançam levemente, executando
movimentos de maneira sutil e não completamente definida. Os atabaques e as cantigas
seguem sem interrupção e, ao tocar certo ritmo, os filhos de santo no xirê executam o
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movimento correspondente de maneira imediata, sabendo exatamente qual gestual
acompanha qual toque, mesmo que cada um execute ele com estilo próprio:
“Primeiro começou um xirê com todas as pessoas dançando em circulo com omesmo movimento, cantando e todos mudando de movimento a cada toquediferente que os atabaques mandavam. Todas as pessoas no xirê reconheciamimediatamente o toque e a cantiga, cantada em iorubá, e executavam o movimentodo orixá correspondente ao toque. Tudo isso ainda sem que nenhum “santo”estivesse presente nas pessoas. Os gestuais eram executados com leveza, semexagero, apenas para simbolizar. Cada pessoa executava o gesto com seu próprioestilo, mas era possível reconhecer qual gesto era. Como espectador, fui capaz dereconhecer a maioria dos gestos e saber a qual orixá pertenciam, mesmoreparando a diferença entre a execução do gesto no xirê do ritual e na dança Afro,onde é muito maior e mais estilizado.” (diário, 27 Junho 2009)
É interessante ver como, com o olhar de dançarina de dança Afro, o que capturouminha atenção foi a diferença na execução dos gestuais entre os filhos de santo quedançam no xirê religioso e o dançarino que representa a dança do xirê no palco.Mesmo tendo a mesma forma essencial, os gestos são executados com estilosdiferentes em contextos diferentes, motivados por objetivos diferentes. Entretanto, odançarino no palco, mesmo ampliando e estilizando mais o gestual e o movimento, éinspirado pela postura corporal dos filhos de santo durante o xirê. No seu livro A Dança de Yemanjá Ogunté: sob a Perspectiva Estética do Corpo, Suzana Martinsescreve que todos os corpos no xirê assumem uma postura comum ao se
locomoverem, mesmo com estilo diferente. Martins chama esta postura de “atitudecorporal básica” que consiste em:
“Alinhar verticalmente todo o corpo, acomodando a coluna vertebral em posiçãoereta mas curvando o tronco levemente para frente. A articulação dos ombros éacionada de maneira relaxada, com os braços semiflexionados e os cotovelosapontados para fora; os joelhos também se mantém semiflexionados. Mantendoessa atitude o corpo se desloca para frente, através de um pequeno passo que abree que fecha para um lado e para o outro, alternando os pés, enquanto os braçossemiflexionados balançam num movimento de “ir” e “vir” sutilmente acentuados pelos cotovelos” (Martins, 2008, p. 46)
Esta postura descrita por Suzana Martins é retomada e adaptada na dança Afro. Comoela mesmo escreve, no afoaxé e no samba de roda por exemplo, adota-se esta atitudecorporal basica enfatizando-a, ampliando e marcando os movimentos com maisênfase.
Durante o xirê, os filhos de santo incorporam o Orixá em um momento de êxtase bemmarcante. O corpo do filho de santo começa a tremer ao receber seu “dono da cabeça”e a partir daquele momento, a roda vai ser composta por espíritos divinos dançandonos corpos dos iniciados. Corporalmente e cenicamente falando, é interessante
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observar o momento da “virada” do santo e a sucessiva fase de transe. Durante o xirêda festa da mãe R., minhas notas contam:
“Quando começou-se a tocar para Xangô, as pessoas “viraram” e apareceramvários orixas. O momento foi um ápice, onde a energia aumentou, o toque rápidodespertou um fluxo de energia e movimentação, houve gritos e cantigas em tom bem alto, com as equedes e a plateia incitando e acompanhando a virada dossantos, até que todos os filhos de santo foram levados para a casinha onde iam ser arrumados, cada um com sua roupa específica.” (27 Junho 2009)
O momento da incorporação dos Orixás é o verdadeiro ápice do ritual, e a energiadentro do barracão aumenta incrivelmente, suscitando uma série de reações por partedos participantes, tanto dos ogãs, quanto das equedes ( filhas de santo que não são
rodantes, ou seja não incorporam o santo), e da audience. Após virarem, os filhos desanto são ajudados pelas equedes, que retiram cada objeto material do corpo, comorelógio, óculos ou sapatos, e colocam um pano da costa amarrado no tronco, chamadoojá. Os filhos de santo em união com os Orixás dançam segundo as cantigas especiaisde cada um de seus Orixás, até eles serem retirados do barracão e seguem para oquarto reservado para sua arrumação. Este é geralmente o momento quando se há umintervalo, onde a platéia e os ogãs comem alimentos típicos do santo homenageado nafesta, conversam e confraternizam. Após a pausa, o ritual recomeça e os Orixásentram, vestidos com suas roupas e seus adereços que irei descrever na próxima partedeste capítulo. Na festa pública trazida até agora como exemplo comecei a observar adança dos Orixás:
“Desta vez, cada um dançava muito bem, tendo seu estilo diferente. Ao dançar, me foi possível individuar uns elementostipicamente “Afro” no movimento dos corpos: molejo constante, ombros sempre se movimentando, braços grandes e flexionadose ondulando, mãos abertas ou em punhos, pés leves no chão, joelhos flexionados. O gestual de cada orixá era muito parecido como que a gente faz na aula, mas era executado de maneira mais leve, menos exagerado, não para palco” (27 Junho 2009).
Este excerto mostra como a postura corporal dos Orixás dançando no terreiro de Candomblé tem muitos elementos presentes na
corporeidade do dançarino de dança Afro, como o molejo, a movimentação dos ombros, joelhos e braços flexionados etc. Muitas
vezes Eliete levou seus dançarinos para assistir a festas públicas de Candomblé, para poder fazer um estudo etnográfico e observar os
movimentos e as posturas corporais para poder depois reproduzí-los na sala de aula ou no palco. Entretanto, como escrevi no meu
diário de campo, os movimentos e os gestuais dos Orixás no ritual são geralmente muito mais sutis e menos estilisticamente
trabalhados do que os gestuais que o dançarino treina e ensaia na dança Afro.
Antes de analisar detalhadamente os gestuais, símbolos, mitos e personalidades carragedos por cada principal Orixá do
Candomblé de Ketu, quero terminar esta parte da descrição do ritual mencionando o usual encerramento de uma festa pública, que na
maioria das vezes se estende até 5 ou 6 horas da manhã, tendo o ritual durado a madrugada inteira. Para terminar a roda, depois dos
ogãs ter tocado e cantado várias cantigas para cada Orixá, em uma ordem predeterminada, tocam-se músicas de despedida, até cada
filho de santo incorporado sair de cena, de volta para o quarto de arrumação. O ritual acaba e a confraternização informal começa
entre os que participaram ativamente e os que estavam observando. Geralmente é servida uma comida típica do santo homenageado na
festa, junto com bebida, doces e lembrancinhas. Todo mundo senta e descontrai, come, bebe e conversa geralmente sobre a festa que
acabou de acontecer ou sobre temas relacionados ao Candomblé. Durante uma destas confraternizações, após uma festa de Iemanjá em
Nova Iguaçu, os comentários foram sobre a importância do ogã e dele tocar o ritmo certo: “a leveza dos atabaques é o que faz o
candomblé” disse um dos participantes do ritual. Além de ressaltar a importância da música e do ritmo, foram feitos vários
comentários sobre a dança dos Orixás. Todos admiravam a leveza do Orixá e diziam que o fato de um Orixá ser bonito ou não
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dependia de como dançava, e a leveza e sutileza pareciam ser o que determina a beleza da dança (diário, 9 Maio 2009). É interessante
apontar que, durante as aulas de dança Afro, Eliete também ressalta a importância da execução de movimentos leves e sutis durante a
dança de Orixás. Vamos analisar agora como estes e outros elementos são importantes na dança de Orixás, tanto no contexto sagrado
quanto no profano.
Os Orixás e Suas Danças
Trazidos por navios negreiros Do solo africano para o torrão brasileiro
Os negros escravosQue entre gemidos e lamentos de dor
Traziam em seus corações sofridosSeus Orixás de fé
Hoje tão venerados no Brasil Nos rituais de Umbanda e Candomblé
Neste terreiro em festa Entre mil adobás
Prestamos nosso tributo Aos Orixás
Clara Nunes, “Tributo aos Orixás”Composição: Mauro Duarte / Noca / Rubem Tavares
Os Orixás são deuses africanos estritamente ligados às forças sagradas da natureza e portadores da energia vital presente no
universo e dentro de cada um de nós. Cada Orixá portanto é considerado ser o rei ou rainha de um elemento da natureza, e possui uma
personalidade própria relacionada às manifestações destas forças da natureza que afeta sua maneira de se movimentar e de dançar.
Estes tratos da personalidade são chamados de arquétipos dos Orixás, repletos de símbolos a ser entendidos e interpretados. As
características de cada Orixá os aproxima dos seres humanos, pois eles se manifestam através de emoções como nós. Através de seus
gestos, sua indumentária e seus adereços, os Orixás contam suas características e personalidades e suas histórias, seus mitos nagôs.
Como escreve Rosamaria Barbara na sua tese de doutorado, “muita importância é dada à manifestação e às posturas que o orixá toma
porque, através delas, entende-se quem ele é e qual é a sua história mítica, e qual sua função cósmica e social” (Barbara, 2002, p. 111).
Existem vários Orixás, mas no Brasil só reverenciam-se os mais conhecidos. Neste trabalho, farei uma descrição dos Orixás que, alémde ser mais conhecidos, são os que estudei e ensaiei nas aulas de dança Afro e que observei manifestados nas festas públicas de
Candomblé. Por cada um destes Orixás, incluirei os arquétipos, os mitos principais, os símbolos tais quais indumentária, cores e
adereços, e especialmente os gestuais e movimentos típicos da dança de cada um, pois é a dança que, como escreve Rosamaria
Barbara “representa a vida do Orixá, é a ilustração viva das palavras das cantigas, que são audíveis com a música, a qual dirige e
coordena a dança” (Barbara, 1995, p. 75). A música e a dança expressam o caráter do Orixá e os acontecimentos da sua vida: “Os
Orixás dançam a música que conta os acontecimentos das suas vidas” (Ibidem, p. 77). Focando portanto nas danças e gestuais de cada
Orixá, contarei seus mitos começando por Exu, que é o primeiro a ser honrado no Candomblé, pedindo licença para continuar com a
descrição dos outros Orixás, que dividirei em grupos segundo o elemento da natureza ao qual mais pertencem, pois “a forma da
gestualidade das danças dos Orixás imita a forma das energias da natureza que representa” (Ibidem, p. 85).
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Em cada elemento da natureza vejo um Orixá: quando os bailarinos dançam, viram
água, mata, encruzilhadas e tudo com muita luz.Rubens Barbot
EXU
Laroiê!
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Exú Orixá, conhecido também como Exú Elegbara, é o deus dos caminhos e da comunicação entre o Orum (mundo dos
deuses) e o Aiye (mundo material). Ele é astucioso, brincalhão, e possui dois lados, o positivo e o negativo, que na cosmogonia Iorubá
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não são opostos; ao contrário, ambos fazem parte da natureza humana e convivem no Orixá Exu. Como explicam alguns dos seus
mitos, Exu tem a capacidade de criar mal entendidos e confusões entre as pessoas, e arruma-lhes várias armadilhas. Esta característica
é exemplificada por um dos seus mitos onde conta-se que Exu pintou metade de seu corpo de preto e a outra de vermelho (as cores
que o representam) e apostou com dois amigos de acertar a sua cor para poder ganhar uma recompensa. Mas os dois estavam vendosomente um dos lados do corpo do Exu e acabaram brigando, enquanto Exu ria satisfeito (Ligiéro, 2006, p. 56).
Esta personalidade confusa e brincalhona manifesta-se na dança desse Orixá. É
muito raro achar alguém que seja filho de santo de Exu, e é portanto difícil ver a dança
deste Orixá incorporado em alguém. Durante uma festa pública de Iemanjá em Nova
Iguaçu, tive a sorte de observar um Exu Orixá, e fiquei muito impressionada com seus
movimentos:
“Junto com Iemanjá entrou Exu, com uma vara na mão e umas folhas nas costas.
Ele acompanhava as Iemanjás de maneira muito calma até chegar a sua hora dedançar, quando começou a executar movimentos muito rápidos e agitados, saindoaté do barracão; ele se locomovia com giros descontrolados, com os ombrossempre se movimentando, os braços executando movimentos amplos. Sua dançaera imprevisível, sem regras, possuindo uma grande variedade de movimentos.”(9 Maio 2009)
Os movimentos “descontrolados”, “agitados” e “sem regra” de Exu refletem sua
personalidade. O corpo mostra uma postura impulsiva, rápida, difícil de controlar. Antes
de ir assistir esta festa de santo onde observei a dança de Exu, tinha ensaiado dança de
Orixás no Centro Coreográfico com Eliete e tínhamos estudado Exu entre eles. Durante o
ensaio tive a seguinte experiência:
Os movimentos de Exu são muito rápidos, sem regras, sem definição, mudandomuito. Os passos tinham muita acentuação e um movimento do corpodescontrolado, como se estivesse quase caindo, confuso. Foi muito difícil dançar para Exu. (9 Maio 2009)
Segundo as notas de campo, a dança de Exu que tentamos fazer durante o ensaio
expressou, de maneira parecida com a dança do Orixá no terreiro, a personalidade agitada
e descontrolada de Exu. A postura corporal assumida foi também parecida, executando
movimentos rápidos, acentuados, repletos de mudanças improvisas e sem definição.
Observando a dança de Exu no barracão e executando os movimentos deste Orixá no
ensaio de dança, lembrei-me de uma perfomance de dança da companhia mineira
SeráQue?que assisti no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) do Rio de Janeiro
durante a qual o dançarino e coreógrafo Rui Moreira representou Exu no palco. O corpo
de Rui estava pintado de preto e seus lábios de vermelho, representando as cores de Exu;
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ele tinha uma saia feita de folhas que se espalharam pelo palco todo ao rodar. Os ombros
estavam em constante movimento e ele não parava de rodar, com giros muito rápidos e
fortes, transmitindo a sensação de uma entidade poderosa, mesmo para um observador
que não conhecesse a mitologia dos Orixás (diário, 14 Setembro 2008). O corpo que
dança para Exu é portanto um corpo imprevisível, um corpo que gira, um corpo com
acentos, rápido e em contínua mudança.
Terra
OGUM
Ogunhê
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Ogum é o deus da guerra, do ferro, da tecnologia. Ele tem o poder de abrir
caminhos facilitando os progressos da vida. É um bom guerreiro, forte, teimoso e
traballhador. A cor simbolizando Ogum no Candomblé é azul real e seu símbolo é a faca,
o obé, com a qual consegue cortar para abrir os caminhos na sua frente. Seus gestuais são portanto ligados a este adereço e a sua função: ele movimenta os braços e as mãos como
para cortar algo, ou ainda amolar uma faca, ou partir para a guerra correndo e com a faca
na mão. Ele “dança com ar marcial, agitando sua espada e procurando um adversário para
golpear” (Verger, 1981, p. 94). Nas aulas de dança Afro no ano passado, trabalhamos
muito a corporeidade e os gestuais de Ogum, que representam guerra, força, energia,
ferro. Durante um ensaio Eliete falou: “tem que mostrar esta força no corpo, fazendo tudo
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grande, lá em cima, mostrando o rosto, mostrando frieza racional, força!” (diário, 22
Maio 2009). Para poder melhor representar as qualidades de Ogum no corpo, foi
importante ler alguns detalhes sobre sua personalidade e sua história. Ao ler que ele é o
deus da tecnologia, a instrução da Eliete foi:
“Então temos que trabalhar a tecnologia corporal, colocar umnovo design no nosso corpo. A mão é sempre aberta, abrindo oscaminhos com a faca.” (22 Maio 2009).
O “design corporal” do dançarino ao representar Ogum é um que
possue força, determinação, atitude, decisão, intenção. Os movimentos
são sempre executados com a mão aberta, símbolo de algo que corta.
Tivemos algumas aulas de dança onde estudamos especificamente os
gestuais de Ogum e identifiquei alguns movimentos principais.
Primeiro, com os braços semiflexionados, executa-se um movimento de
amolar a faca, posicionando as mãos abertas com as palmas se olhando,
alternando-se, e abrindo horizontalmente a parte anterior do braço. Ao
mesmo tempo, os pés marcam alternadamente para a frente. O segundomovimento é parecido, mas acontece com deslocamento lateral, e com
uma abertura dos braços maior, chegando estes a se esticar. Após abrir
os caminhos cortando com estes movimentos, Ogum se prepara para a
guerra, com uma mão na frente do corpo e a outra do lado, virando a
palma para cima e para baixo, e executa uma corrida para a frente no
contratempo. Depois de correr, ele pára e gira rapidamente sobre o
próprio eixo, ou executa um movimento com as duas mãos cortando em
cima e em baixo. Para voltar para trás, Ogum pula com uma perna só,
chutando com a outra para a frente e martelando com um pulso no
outro com os braços esticados no alto. Todos estes movimentos são
muito fortes, e assumem mais força ainda quando executados com o
toque de Ogum, que é um ritmo muito rápido e energizante. Quando
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Ogum entra em cena, é como se uma energia indo para a frente e
abrindo espaços tivesse chegado. O corpo dançando para Ogum é
determinado, mostra intenção, força e energia; é um corpo pronto para
lutar e ir para guerra, aberto, erguido e para a frente.
OXOSSI
Okê arô
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Oxossi é deus da caça, dos matos e florestas, protetor dos animais. Ele vive no
mato, é um espírito livre e em harmonia com a natureza. O símbolo que ele carrega é o
ofá, o arco com a flecha, instrumento que ele usa para caçar nas florestas. A imagem de
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caçador é sem dúvida o emblema de Oxossi. Uma das lendas de Oxossi fala que ,
desrespeitando a proibição de caçar num determinado dia, não cumprindo assim a
determinação de Ifá, Oxossi seguiu seu caminho em direção à floresta. Caminhando pela
mata, Oxossi encontrou uma serpente, que era Oxumarê, e matou ela. Em casa, preparou
uma comida com o fruto de sua caça e devorou-a rapidamente. No dia seguinte, quando
Oxum, sua esposa, voltou para casa, encontrou Oxossi morto, com ao seu lado um rastro
de cobra. Desesperada, Oxum procurou Orunmilá que ouviu seu pleito, fez renascer
Oxossi como orixá protetor de todos os caçadores (Prandi, 2001, p. 115).
O principal símbolo corporal na dança desse Orixá é a
reprodução do ofá com as mãos, onde elas estão de punho fechadomenos os dedos indicador e polegar das duas mãos, e onde coloca-se o
dedo indicador direito em cima do polegar esquerdo. Qualquer outro
movimento executado mantendo este gestual indica que quem está
dançando é Oxossi. Durante uma aula de dança no Circo Voador,
fizemos um exercício no qual tínhamos que representar uma frase
através do corpo. Duas alunas da aula receberam uma lenda de umguerreiro que conseguia matar o animal com suas armas secretas.
Enquanto esta lenda estava sendo contada por uma delas, a outra
encenou o gestual do arco e flecha de Oxossi aqui explicado (diário, 15
Junho 2009).
Além do gestual típico, Oxossi se locomove com uns passos muito
sincopados, colocando um pé para frente e depois para trás, para depois
fazer um meio giro e alternar as pernas do outro lado. Enquanto isso, os
braços acompanham o movimento mantendo o gestual das maõs, e os
joelhos estão constantemente flexionados, com molejo sempre presente.
O movimento dos pés é também executado com as mãos em punhos
fechados, se movimentando ao lado do corpo, como se o Orixá estivesse
andando a cavalo. O ritmo compassado típico de Oxossi chama-se de
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aqueré , e guia de maneira muito marcada os passos do Orixá. Os outros
movimentos de Oxossi incluem imitar movimentos de caça como por
exemplo apontar o arco, simbolizado pelo dedo indicador, para todas as
direções. Para poder caçar, Oxossi também se deita no chão com o
corpo alongado e aponta seu arco e flecha para frente. A cor que
representa Oxossi é verde ou azul claro, utilizadas nas suas roupas. A
personalidade deste Orixá é livre, curiosa, solitária, sempre em busca de
algo e determinado a achá-lo. O corpo na dança de Oxossi é um corpo
muito ágil, rápido e esperto, um corpo que está sempre alerto, em
movimento e à procura, que está em contato com a natureza e bem
plantado na terra, seu elemento chave.
OSSAIN
Ewê Ô
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Ossain é o deus das folhas, deus da sabedoria das plantas
medicinais e das curas possíveis através da natureza. Está
profundamente ligado com a imagem da floresta e possui um enormerespeito para a natureza. Seu símbolo é constituído por sete lanças com
um pássaro em cima delas, considerado como o símbolo do poder deste
Orixá, pois é seu mensageiro, que colhe informação por todo lado e
volta para fazer o relato para Ossain (Verger, 1981, p. 122). É um orixá
dinâmico, brincalhão, mas que possue o poder sobre as ervas que
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curam, mesmo que este poder seja dividido com Orunmilá, deus do ifá,
ou seja do destino, que detém o poder sobre as palavras que devem
acompanhar as plantas no momento da seu uso (Verger, 1981, p. 123).
Ossaim anda sempre em companhia de Aroni , um anãozinho de uma
única perna que fuma eternamente um cachimbo e que no brasil foi
associado com a figura popular do saci-pererê, personagem de uma
perna só que anda pulando e vive na floresta em liberdade. Segundo
uma lenda:
“Durante uma festa na qual os homens estavam homenageandoOssaim, chegou um homem estranho, de traje e modos nobres,montado em um antílope. Os homens não o reconheceram mas oreceberam muito bem, pois parecia ser alguém importante, apesar de ter uma perna só. A festa continuou muito animada e oestranho homem era oo que mais dançava. Ele parecia nunca secansar. Quando ele já havia dançado a noite toda, se despediufalando. Foi assim que os homens descobriram que era Ossaim.Ossaim gosta de passar despercebido. Ossaim também gosta de
fazer surpresas. Ele viera dançar com os homens e quem sabelevaria os seus pedidos aos outros orixás” (Prandi, 2001, p.158).
O corpo que dança para Ossain é um corpo dinâmico, rápido e que
executa muitos movimentos. Os movimentos incluem giros, mudança de
direção, e pulos com uma perna só, lembrando sua associação com
Aroni. É um corpo que surpreende, combinando com sua personalidade
revelada pela mitologia do orixá.
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OMOLU (OBALUAIÊ)
Atotô
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Omolu, ou Obaluaiê é o deus da varíola, das doenças contagiosas e especialmente
das doenças de pele. Ele é relacionado com todas as doenças e é o dono das curas. É um
Orixá muito severo, considerado o senhor da terra e da vida e da morte. Sua ira pode
trazer doenças, por isso é um Orixá muito temido. Omolu é filho de Nanã, que abandonou
ele por causa da varíola que marcava seu corpo, e foi adotado por Iemanjá que teve pena
dele. Uma lenda conta que Iemanjá encarregou Iansã de trazer-lhe uma esteira todo dia
para curar o sofrimento de Omolu, que conseguiu curar-se, mas, mesmo assim, não se
esquece de atender a quem precisa (Pessoa de Barros, 2000). Para esconder suas feridas,
Omolu está coberto da cabeça aos pés por uma vestimenta de palha da costa. Ela cobre,
de forma cônica toda a cabeça do Orixá, alongando-se até os pés, que, junto com os
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braços são as únicas partes do corpo deixadas nuas. Além da indumentária singular, o
símbolo de Obaluaiê é o xarará, objeto formado pelas nervuras das folhas de palmeira,
amarradas com tiras de couro e decorado com figuras de búzios, com o qual ele varre a
peste para longe de nós (Pessoa de Barros, 2000). Umas cabaças são penduradas ao seu
ápice, contendo os óleos e remédios deste “médico dos pobres”.
Omolu dança seu ritmo específico, o opanijé, andando para direita e para
esquerda, com três passos para cada lado. Ao mesmo tempo, as mãos espalmadas
movem-se alternadamente para o alto (significando vida) e para baixo (significando
morte), a cada movimento de braços que avançam e se recolhem (Pessoa de Barros,
2000). O ritmo de Omolu tem uma cadência firme e marcada, e os movimentos são portanto lentos e cadenciados. Na festa pública de Candomblé observei Omolu entrar
todo coberto de palha da costa, executando o movimento da mão aqui a pouco descrito,
andando de maneira compassada e com muito molejo do corpo. Nas aulas de dança,
reproduzimos este movimento típico de Omolu, prestando muita atenção ao molejo
cadenciado do corpo, à posição inclinada para a frente e ao movimento significativo da
mão. Nos ensaios exploramos outros movimentos de Omolu, nos quais as mãos ficam
tremendo enquanto o corpo executa um giro de um lado e de outro e, a cada giro, os
braços são jogados para o alto, como para expulsar as doenças do corpo (diário, 5
Setembro 2009). Ao dançar Omolu a sensação do corpo é de tremor, para expulsar tudo
de ruim e doente de dentro. É uma sensação também de vergonha e indignação por ter
sido abandonado. O corpo que dança para Omolu está muito ligado à terra, tendo
momentos nos quais até se ajoelha e bate com o punho fechado no chão, na terra, seu
elemento natural. É um corpo que anda pausadamente, com um molejo bem acentuado,
como para marcar o alto e o baixo, representando mais uma vez a vida e a morte.
OXUMARÊ
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Aoboboi
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Oxumarê é deus do arco-iris, e é também representado como serpente. Durante
seis meses ele é homem e durante seis meses é mulher. Seus elementos são tambémduplos, pois representa as riquezas do subsolo mas ao mesmo tempo tem a função de
levar a água para o céu. É portanto o Orixá da dualidade, com personalidade ambígua e
incostante. Como arco-iris, ele representa a beleza, e a ponte entre o céu e a terra. Como
cobra, ele representa a traição e o perigo (Ligiéro, 2006). Ele é irmão de Omolu, filho de
Nanã, com os quais compartilha o elemento terra. Uma lenda conta da transformação de
Oxumarê em cobra para escapar a Xangõ:
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“ Oxumarê era um rapaz muito bonito e invejado. Suas roupas tinham todas ascores do arco-iris e suas jóias faiscavam de longe. Um dia, Xangô viu Oxumarê passar com suas cores e seus brilhos mas conhecia a fama do orixá de não deixar ninguém dele se aproximar. Assim preparou uma armadilha para capturar o arco-iris. Uma vez que Oxumarê entrou no palácio de Xangô, os soldados aprisionaramele. Desesperado, Oxumarê pediu a ajuda de Olorum, que, ouvindo-o,transformou-o numa cobra, que Xangô largou com nojo e medo. A cobra deslizou pelo chão em movimentos rápidos e sinuosos, escapando e livrando-se do assediode Xangô” (Prandi, 2001: 226).
Sua dança é imprevisível e difícil de ser definida, assim como sua personalidade.
Durante a dança de Oxumarê, o corpo se move de maneira sinuosa, se contorcendo e
formando curvas e ondulações, simulando o corpo de uma cobra. As mãos são juntas e pontudas, para representar a cabeça da serpente. Muitas vezes movimentam-se somente
as mãos nessa forma, mexendo-se rapidamente e de maneira improvisa, como se fosse
um animal vivo. Com os braços e as mãos ele mostra o céu e a terra, referindo-se à sua
dualidade, e movimenta-se rastejando no chão. A expressão facial é também muito
trabalhada na dança de Oxumarê, mexendo a língua dentro e fora da boca, como cobra
faz, e olhando com olhos pequenos e traiçoadores. O corpo que dança para Oxumarê é
sinuoso e alongado, sempre representando uma cobra. É um corpo que rasteja no chão e
que mostra o céu ao mesmo tempo, um corpo duplo e incostante, lindo e perigoso ao
mesmo tempo.
NANÃ
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Saluba
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Nanã é a deusa da terra, da lama, dos pântanos. É a mais velha divindade do
panteão afro-brasileiro e é considerada guardiã da sabedoria e mãe dos mortos. É a mãemítica de Oxumarê e Omolu mas, como ela pariu estes Orixás com formas monstruosas,
abandonou eles, tentando afogá-los na lama, e eles foram salvos por Iemanjá, que teve
pena, adotou-os e cuidou deles (Ligiéro, 2006, p. 82). A personalidade de Nanã é de uma
mulher sábia mas terrível, severa e controladora, autoritária e pronta a ensinar para os
mais jovens, mas também a puní-los se não respeitar as regras. Ela está intimamente
ligada ao culto dos egunguns, ou seja os espíritoss ancestrais do povo-de-santo, e é
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venerada e respeitada por isso. As cores de Nanã são branco e roxo ou lilás claro; ela
veste uma coroa (adê) bordada em palha-da-costa e búzios, e seu símbolo é o ibiri, cetro
feito de fibras vegetais com o formato da letra jota.
Nanã dança de maneira delicada, com ritmo lento, passos curtos, corpo cansado e
curvado para frente, como o de uma velhinha fatigada. Ela se movimenta como se
estivesse andando na lama, movimentando o quadril de um lado e outro enquanto em
posição agachada, com os braços flexionados na frente do corpo, mãos espalhadas
mexendo-se de maneira circular, como para mexer a lama. As costas são curvadas e
quando para, o Orixá movimenta os braços e as mãos como se estivesse colocando algo
em um recipiente. Durante uma coreografia de Nanã que executei em um ensaio dedança, após andar com o movimento de quadril e dos braços apenas descrito, sentei no
chão, e com as mãos toquei o chão com força, como para pegar a lama, e esfreguei as
mãos no rosto e nos braços, simbolizando o molde do ser humano com a lama. Neste
momento senti o próprio contato com o chão, a força que vinha da terra e subia para o
corpo, o poder que a terra e a lama têm de moldar o corpo (diário, 23 Maio 2009). O
corpo de Nanã na dança é um corpo ancião, que anda curvado, com leveza e devagar. É o
corpo de uma senhora que modela o ser, um corpo que anda na lama com dificuldade e
que está ligado à terra, mostrando este contato nos seus gestuais, na sua postura e nos
seus movimentos.
Fogo
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XANGÔ
Caô Cabiessi
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Xangô é o rei do trovão e da justiça. Ele foi rei da cidade de Oyó, esua imagem é de um guerreiro valoroso, viril, e poderoso. Ele não tolera
crime algum pois é o deus que resolve todas as questões da justiça. Tem
controle sobre raios e trovões, forças violentas e foguentas do céu. Além
de rei poderoso, Xangô sempre foi a imagem do conquistador, e casou-
se várias vezes; entre suas mulheres estão Obá, Oxum e Iansã, entre as
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quais houve várias brigas por causa do rei da justiça. Suas cores são o
vermelho, ou marrom, e o branco. Seu símbolo é um machado de duas
láminas chamado oxé , representando a justiça. A personalidade de
Xangô é então muito forte e resoluta; ele gosta muito do poder, e sabe
que ele tem muito.
A postura corporal, os gestuais e os adereços de Xangô mostram
todo esse poder. Durante uma oficina de dança Afro em Salvador, antes
de executar os movimentos, a professora nos contou os tratos e a
mitologia de Xangô para poder incorporá-lo melhor:“Ele é o rei e carrega 12 coroas de ouro, por isso precisa segurá-las e erguer a cabeça bem alta; nunca olha para baixo. O peito ficasempre aberto para mostrar imponência. Ele tem machados nas mãos e segura eles com os braços abertos. Tudo é muito forte.Alguns movimentos dele representam quando ele atira pedras de fogo e raios, pois ele é o deus do fogo e dos trovões. O seu girorepresenta um tornado poderoso, nada é leve com ele.” (27 Janeiro 2009)
A postura corporal que se precisa assumir ao dançar Xangô é portanto uma postura ereta, erguida, imponente, com peito estufado e
aberto, ombros e braços grandes, força nas posições. Este Orixá se locomove andando muito rapidamente para a frente com um passo
específico executado no contratempo, movimentando os braços para trás de um lado e outro do corpo, de maneira oposta ao pé que vai
para trás enquanto o outro fica na frente. Este movimento requer uma incrível coordenação motora, e é muito difícil para o dançarino
executá-lo perfeitamente, especialmente no começo da aprendizagem da dança Afro. O que torna o passo ainda mais complicado são
os ritmos extremamente rápidos de Xangô, como o bata ou o alujá, ritmos vivos e guerreiros. Uma outra maneira de se movimentar, é para os lados, cruzando as pernas e jogando raios com os braços em baixo e em cima. Quando o rei pára, muitas vezes fica segurando
os machados nos punhos fechados com os braços abertos e começa a girar rapidamente, levantando os braços e parecendo um
“tornado poderoso”.
Ao observar a dança de Xangô no terreiro de Candomblé, reparei as mesmas características da postura e os mesmos
movimentos e gestuais, só menos enfatizados e menos marcados. Durante a festa da inauguração do terreiro de R., tiveram três
pessoas que incorporaram Xangô e foi interessante ver os estilos diferentes, mesmo dançando os mesmos movimentos. Um dele
gritava constantemente e mudava sua expressão facial toda hora, chegando a contorcer nariz, olhos e boca. Uma outra mulher
movimentava muito os ombros e as costas, com movimentos muito ondulatórios, e prosseguia na caminhada do contratempo de Xangô
de maneira muito rápida mas leve (diário, 27 Junho 2009).
A representação do Orixá dos trovões nas apresentações de dança Afro mostra seu caráter através de seus gestos e do seucorpo dançante. No espetáculo “O Reino do Outro Mundo: Orixás”, a Cia Barbot de dança, fez uma leitura contemporânea dos Orixás.
Mesmo com músicas contemporâneas e movimentos estilizados, foram mantidos muitos símbolos que representavam de maneira
exaustiva o Orixá dançando no palco. Quando chegou a hora de Xangô dançar, foi uma explosão de simbologias e corpos contando os
mitos nagô dos deuses africanos. O dançarino entrou em cena com sua indumentária vermelha e branca, segurando e ostentando os
machados nas mãos, com cabeça erguida e peito aberto, entrando com toda velocidade como um furacão. O olhar era de rei, firme; os
giros eram rápidos e os pés movimentavam-se rapidamente no contratempo. De repente, Xangô pegou um recipiente com fogo e
dançou na sua postura segurando seu elemento natural. Muitas vezes o dançarino lançava um grito potente, como para afirmar quem é
o poderoso rei. No final da performance de Xangô, ele também contracenou com Oxum e Iansã, duas de suas mulheres, que ficaram
adorando o conquistador uma de cada lado (diário, 9 Julho 2009). Estes três corpos, com seus símbolos de indumentárias, cores,
adereços e gestuais, contaram sem usar palavras um mito que faz parte da história e cultura Iorubá e afro-brasileira. Além disso, a
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dança transmitiu claramente a personalidade do Orixá. Nesse caso, o corpo na dança de Xangô é um corpo firme, erguido, imponente
e poderoso, um corpo que tem fogo dentro de si e que irradia esta energia quente e atrevida ao dançar.
Ar
OXALÁ
Epa babá
Oxalá é o pai de todos os homens, e pai de muitos Orixás também. É deus da
criação e símbolo de todas as coisas. Ele é sábio, autoritário e representa a criação e a
masculinidade. O branco total é sua cor, símbolo da pureza e da totalidade. Sua personalidade possue dois aspectos diferentes. Um dele é um Orixá jovem, guerreiro,
criador da cultura material, chamado Oxaguiã, e o outro é um Oxalá velho, sábio,
cansado, chamado de Oxalufã. Os dois têm personalidades e tratos diferentes, e suas
danças e posturas corporais são bem distinctas também.
Oxalufã
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Este é o Orixá velho, lento, cansado, que é sempre reverenciado ao fim de cada
festa de Candomblé. Seu símbolo é o paxorô, o cajado no qual se apoia para dançar. Ele
se movimenta ao ritmo do igbi, um toque compassado, lento, que combina com os
movimentos pequenos e lentos do pai da criação. Um mito conta a origem da posição
curvada de Oxalufã:
“Oxalá foi consultar os adivinhos para saber como conduzir melhor sua vida. Osvelhos aconselharam-no a oferecer aos outros deuses uma cabaça grande cheia de
sal e um pedaço de pano, para não passar vergonha na terra. Oxalá como eramuito teimoso, deu de ombros aos conselhos e foi dormir sem cumprir orecomendado. Durante a noite, Exu entrou em sua casa trazendo uma cabaça cheiada sal, amarrando-a às costas de Oxalá, que jazia em profundo sono. Na manhãseguinte, Oxalá despertou corcunda e desde então tornou-se o protetor doscorcundas, albinos, aleijados e lhe foi proibido o consumo de sal.” (Prandi, 2001, p. 512).
Durante a dança, Oxalá velho não sai da posição curvada, dá três passos para a frente e
para, tremendo o corpo todo, sempre segurando o cajado com as mãos na sua frente. A
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indumentária de Oxalufã é totalmente branca, com decorações prateadas. Usa uma saia
comprida e um filá de contas encobrindo seu rosto. Outro mito explica porque Oxalá usa
estes últimos dois detalhes, geralmente usados pela Iabás (Orixás femininos). Segundo
este mito, Oxalá foi visitar Nanã, que tem controle sobre os eguns (espíritos dos mortos)
e com o passar dos dias seduziu Nanã para que lhe mostrasse o quarto dos eguns. Um
dia, na ausência de Nanã. Oxalufã vestiu-se de mulher e foi ter com os eguns, chamando-
os exatamente como Nanã fazia, ordenando-lhes que deveriam obedecer a partir dali
somente ao homem que vivia na casa da rainha. Em seu retorno Nanã tomou
conhecimento do fato ficando zangada com o velho rei e foi assim que rogou uma praga
no velho rei que partir dali nunca mais usaria vestes masculinas. Por isso até hoje Oxalufãveste-se com saia cumprida e cobre o rosto como as deusas rainhas. O corpo que dança
para Oxalufã é um corpo velho, cansado, curvado, e se movimentando lentamente,
pausando e se tremendo. É um corpo que mostra a idade e a calma do Orixá pai de todos
os homens.
Oxaguiã
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Oxaguiã é a versão jovem de Oxalá. Ele foi criador da cultur material e inventou o
pilão, que é um dos seus símbolos. Ele é um guerreiro, simbolizado portanto também por
uma espada de prata. O Orixá possui uma personalidade criativa, intrépida, mas ao
mesmo tempo pacata e paciente. Um mito de Oxaguiã conta que:
“Oxaguiã, que gostava muito de guerra voltava para a sua cidade quando viu queela estava muito vazia…soube então que parte do seu povo fora levado eescravizado…cheio de raiva vai à foresta e arranca uma imensa árvore e vem sobeseu tronco até o Brasil…no meio do mar encontra uma linda mulher, Iemanjá-Ogunté, guerreira como ele…fazem um filho Ogunjá…e os três chegam à Bahia para lutar juntos pela sua gente…” (Pessoa de Barros, 2000, p. 126).
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Este mito mostra o espírito guerreiro, intrépido e aventureiro do Oxalá jovem. A dança
de Oxaguiã é muito leve. Os movimentos são sutis, com os pés se movimentando
lateralmente e os braços são puxados de um lado e outro do corpo. Pelo que pude
observar durante meu tempo no campo, a dança de Oxaguiã é caracterizada por
movimentos pequenos e leves, tanto no terreiro quanto no contexto da aula de dança. O
corpo que dança Oxaguiã tem uma forma simples, limpa, é um corpo que desliza no chão
e se movimenta com extrema leveza e calma, mas não com lentidão. É um corpo jovem,
que tem atitude e tranquilidade, um guerreiro da paz.
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IANSÃ (OU OYÁ)
Eparrei
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Iansã é a deusa dos raios, do vento e da tempestade. Ela cuida também dos eguns,os espíritos dos mortos, levando-os ao outro mundo. Ela é uma mulher forte, abusada,
corajosa e espalhafatosa. Ela foi uma das esposas de Xangô e o acompanha na guerra.
Iansã é impulsiva e impetuosa, determinada, audaciosa e autoritária. Seu símbolo é a
espada e um espanta-mosca feito de rabo de cavalo, chamado eruquerê, com o qual
espanta os eguns. Sua cor é o vermelho, cor forte, agressiva e sedutora, assim como a
deusa do vento e da tempestade. A intensidade destas forças da natureza é espressa nos
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movimentos do corpo que dança para Iansã, um corpo rápido, que se mexe com agito e
como se fosse ventanias.
A dança de Iansã envolve muito movimento de quadril, pés rápidos, apenas
tocando no chão antes de se levantar rapidamente; assim como o vento, Iansã parece voar
no espaço onde dança. Os braços são amplos, rápidos, girando para trás e colocando as
mãos nas cadeiras. Ao dançar, Iansã executa muitos giros rápidos e suspende muito as
mãos para o alto, executando um movimento típico, no qual mexe as mãos espalmadas
como para afastar os eguns. Em outros momentos, Iansã pode ser sensual, provocando os
homens ao colocar as mãos nas cadeiras, levantar e movimentar a saia e remexer as
cadeiras. Sua dança é sempre frenética e o seu ritmo, o Ilu, é sempre acelerado. Seu passo principal, o quebra-pratos é extremamente rápido e acentuado, e consiste em arrastar um
pé no chão seguido de um contratempo, repetindo este movimento ora com um, ora com
outro pé (Zenicola, 2003, p. 108). No terreiro de Candomblé, Iansã executa todos estes
movimentos, utilizado o eruquerê também para chicotear suas costas. Sua dança é agitada
e rápida, acentuada e impetuosa. Quando esta dança é trazida para o palco, os elementos
típicos da personalidade e da corporeidade de Iansã são evidenciados mais ainda.
Nas aulas e ensaios de dança Afro, os gestuais e movimentos da deusa do vento
são usados para uma coreografia do grupo CorpAfro, chamada de “Mulheres guerreiras”.
Durante os ensaios, trabalhamos muito cada gestual e olhar da mulher guerreira,
começando por uma caminhada ampla, com mãos nas cadeiras, mostrando “atitude e
carão”, como Eliete sempre fala. Parando com firmeza, o dançarino, ou neste caso, as
dançarinas, como é uma coreografia de só mulheres, mexem os ombros com as mãos nas
cadeiras e olham para cima do ombro. Em seguida chega o giro de Iansã: é uma ventania
rápida em baixo, com as mãos “espantando” em cima. Na hora de andar para trás, as
dançarinas movimentam as cadeiras colocando uma perna para trás, alternadamente, egirando o braço rapidamente fazendo um giro e terminando com a mão na cadeira
novamente. Para sair de cena, Iansã corre com o passo do quebra-pratos, passando como
o vento e saindo. Comentando sobre estes movimentos Eliete falou:
“Ela (Iansã) é uma mulher impulsiva, corajosa, que se movimenta com rapidez,agilidade, energia, determinação e atitude. Os movimentos refletem a personalidade do Orixá e isso dá mais sentido à coreografia das mulheresguerreiras. A gente faz estes gestos todo dia sem perceber” (18 abril 2009).
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Este comentário mostra como os gestuais da dança dos Orixás fazem parte do nosso dia a
dia e são incorporados nas atitudes e nos rituais cotidianos. Ao mesmo tempo, são estasatitudes de todo dia que são incorporadas na dança de Orixás, reforçando a história e a
personalidade de uma mulher guerreira. Falando nisso, uma performance que assisti no
teatro Glaucio Gil de Copacabana representou exatamente o arquétipo de Iansã como
mulher guerreira através dos seus símbolos:
“Ao entrar no teatro, o palco era todo cheio de elementos vermelhos: areia
vermelha no chão, colar de bolas vermelhas, vaso e sapatos vermelhos, e a atriz
era uma mulher negra com um vestido vermelho e batom vermelho. O espetáculo
inteiro foi cheio de referências a Iansã, e os elementos do vermelho e do vento
estavam sempre presentes. Durante a performance, a atriz contou histórias de
várias mulheres guerreiras e falou sobre raça e identidade negra. Teve momentos
de dança nos quais os gestuais de Iansã foram utilizados, como o movimento de
ventanias para trás ou o sacudir as mãos espalmadas afastando os eguns.” (16
Outubro 2009)
A simbologia da deusa do vento está presente em cada elemento desta perfomance que,
através do corpo, seja enquanto dança, ou enquanto cores e elementos naturais, é o corpo
de uma mulher guerreira, um corpo forte, impulsivo e determinado, um corpo que tem
atitude, que luta, que se movimenta como o vento, um corpo “vermelho”, que desafia e
obtém o que deseja.
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Àgua
YEMANJÁ
Odoya
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Yemanjá é a figura maternal, rainha do mar e mãe de todos os seres humanos e
dos peixes. Ela é representada com uma sereia e associada as ondas do mar. Sua
personalidade é de mãe: protetora, cuidadosa dos seus filhos e muito emocional. Na
mitologia Iorubá, ela gerou vários Orixás junto com Oxalá, sendo a segunda esposa dele
depois de Nanã. Yemanjá representa a fertilidade e fecundidade, e é um dos Orixás mais
populares no Brasil. Muitas oferendas são feitas para esse Orixá, geralmente colocando-
as em barcos e levadas para o mar. As cores simbolizando Yemanjá são o azul claro e o
branco, as cores das águas do mar. Seu símbolo é um espelho e peixes prateados, que são
geralmente colocados na sua roupa.
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A dança de Yemanjá reflete sua personalidade maternal e seu elemento natural
das àguas do mar. A dança de Yemanjá se destaca por movimentos de oscilação,
ondulação e flutuação (Martins, 2008, p. 94). As mãos na dança da rainha do mar estão
em um fluxo contínuo e os braços ficam se movimentando como se fossem ondas do mar.
O ritmo é também parecido com o ritmo dos oceanos, e Yemanjá dança parecendo
acariciar as ondas do mar. Além da leveza e ondulação da água, Yemanjá também
representa a fertilidade através de sua dança. Ela movimenta a pélvis ao dançar, símbolo
da reprodução e germinção. Ao se olhar no espelho, ela representa a beleza, mas uma
beleza calma e pacífica. Nas festas públicas observadas, os filhos de santo que
incorporaram Yemanjá dançavam com muita leveza, calma e sutileza. Na festa pública deYemanjá em Nova Iguaçu, duas senhoras mais velhas incorporaram a deusa do mar e, ao
dançar, mostraram e transmitiram a sensação de uma figura materna, calma e acolhedora
(diário, 9 Maio 2009). Nas aulas e ensaios de dança Afro, durante a dança de Yemanjá a
tentativa é sempre de movimentar o corpo como se fosse água. Ao se movimentar com
passos laterais, o dançarino joga os braços de baixo para cima, alternadamente, come se
estivesse jogando água para cima do corpo. Em outro momento, o corpo para e o gestual
executado é de se abaixar para pegar água e jogá-la em cima do corpo colocando as mãos
cruzadas no peito e curvando as costas para trás, criando uma imagem pacífica e sensual
de Yemanjá tomando banho. Mais um movimento representa a deusa do mar tomando
banho: o dançarino anda para a frente com os braços esticados em baixo e o corpo
levemente inclinado, e volta para trás cruzando os braços e as mãos no peito, tudo com
um movimento flutuante do corpo. Durante um ensaio, Eliete falou que “a dança de
Orixás é sensação mais de qualquer coisa”. Qualquer movimento de Yemanjá deve
portanto ser executado sentindo o elemento da água no corpo, sentindo a leveza, a
sutileza, a feminilidade (diário, 5 Setembro 2009). Na dança Afro, uma coreografia em específico fala de Yemanjá e conta sua
história e seu mito: a puxada de rede. Nesta coreografia, a rainha do mar entra em cena,
deslizando os pés no chão lateralmente, locomovendo-se como uma sereia, ondulando os
braços ao lado do corpo e chamando os pescadores, que simbolizam puxar as redes com
seus corpos, enquanto um coral está cantando “E na na e nago, e na na e puxa, puxa a
rede de ioio, canta pra Iemanja”. Enquanto isso, as mulheres dançam segurando as
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peneiras, executando movimentos que simbolizam catar mariscos e peneirar a areia. Esta
pesca se deu graças a Yemanjá, que protege os pescadores e permite uma boa pesca. Este
mito é contado através desta coreografia de dança, onde todos os gestuais contribuem
para simbolizar e comunicar os detalhes desta história: segurar a peneira, catar algo no
chão, sacudir os braços para peneirar, movimentar o corpo sinuosamente, como se fosse
uma onda.
Nas aulas de dança, tem mais um gestual que faz parte da dança de Yemanjá,
simbolizando o Ori, ou seja a cabeça. Este gesto é executado colocando uma mão atrás da
nuca e uma mão na testa, alternando-as pausadamente. A primeira vista, este gestual não
representa nem fertilidade nem as águas do mar. Entretanto, um mito conta a relaçãodeste gestual com Yemanjá:
“Iemanjá trabalhava e reclamava de sua condição de menos favorecida, afinal,todos os outros deuses recebiam oferendas e homenagens e ela, vivia comoescrava, cuidando do marido. Durante muito tempo Iemanjá reclamou dessacondição e tanto falou, nos ouvidos de Oxalá, que este enlouqueceu. O ori(cabeça) de Oxalá não suportou os reclamos de Iemanjá. Oxalá enfermo, Iemanjádeu-se conta do mal que fizera ao marido e, em poucos dias, utilizando-se de ori(banha vegetal), de omi-tutu (água fresca), de obi (fruta conhecida como nóz-de-
cola), eyelé-funfun (pombos brancos) e esò (frutas) deliciosas e doces, curouOxalá. Oxalá agradecido foi a Olodumare pedir para que deixasse a Iemanjá o poder de cuidar de todas as cabeças. Desde então Iemanjá recebe oferendas e éhomenageada quando se faz o bori (ritual propiciatório à cabeça) e demais ritos àcabeça.” (Prandi, 2001, p. 399)
Por isso, a cabeça é simbolizada pela deusa do mar durante a sua dança, mostrando a
grande responsabilidade deste Orixá, pois o ori é considerada a parte do corpo mais
importante na cosmogonia Iorubá. O corpo que dança para Yemanjá é portanto um corpo
suave, leve, maternal. É um corpo que desliza no chão e que se movimenta como uma
onda do mar. È um corpo fluido como a água, que se banha e flutua, cuidando de todos
seus filhos.
OBÁ
Obá Xireê
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Obá é a deusa das águas paradas, das lagoas e dos lagos. É uma mulher idosa,
forte e guerreira, tendo como ferramentas o escudo e a espada. Obá é objetiva, correta,
mas possui um gênio difícil. Além de rainha guerreira, Obá representa a imagem da
mulher traida, devido ao mito mais famoso que a vê envolvida. Ela foi a primeira esposa
de Xangô que, enquanto casado com ela, ficava também com Iansã e Oxum. Interessado
mais por estas últimas, Xangô não prestava atenção para Obá, que pediu ajuda a Oxum
para poder reconquistar o marido. Mas Oxum enganou ela, sugerindo-lhe de cortar sua
própria orelha e preparar com ela uma sopa para Xangô como feitiço de amor,
prometendo-lhe, mentindo, que sua orelha fosse crescer de novo. Obá fez como Oxum
mandou e Xangô, ao ver o “prato especial” preparado pela mulher, ficou espantado e
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revoltado e expulsou Obá da sua casa, ordenando-lhe de sumir (Adilson de Oxalá, 2006,
p. 127-130). Esta lenda faz com que Obá e Oxum sejam grandes rivais até hoje e, se se
encontarem em um terreiro, elas brigam executando uma dança de luta. Esta rivalridade é
espressa não somente na dança, mas nas interações sociais de todo dia também. Ao se
arrumar para ir para uma festa de Yemanjá em Nova Iguaçu, presenciei a seguinte
interação:
“Enquanto a R. (filha de santo de Obá) estava fazendo prancha no cabelo disse para quem estava com a prancha na mão: “cuidado em não queimar minhaorelha”. Ai A. comentou qua ela já teve um passado com orelha, e precisava ter cuidado mesmo, e disse: “ainda bem que a que está fazendo a prancha em vocênão é de Oxum mas de Iemanjá!”. Ai R. disse que não deixa ninguem de Oxum
botar mão na sua cabeça.” (9 Maio 2009)
Este exemplo exemplifica como este mito de Obá ter cortado sua orelha por causa de
Oxum está presente na vida das pessoas que têm um conhecimento disso, perpetuando e
reforçando esta história através das ações cotidianas.
A dança de Obá reflete também o incidente contado neste mito, pois ela dança
com uma das mãos cobrindo a orelha, geralmente a do ouvido isquierdo, o tempo todo.
Executando este gesto, Obá se movimenta lateralmente, com três passos cruzando as
pernas e dando um leve pulo, jogando uma das pernas na frente. Durante as aulas dedança, este é o movimento mais ensaiado. Além disso, o dançarino gira pulando com uma
perna só, e continua cobrindo a orelha com a mão. O único momento no qual este gestual
se desfaz é durante a dança de luta de Obá, na qual ela chuta com as pernas para trás e
fica cortando com os braços em cima e em baixo, similarmente a como Ogum faz
também. Na festa pública da inauguração do terreiro em Nova Iguaçu, Obá foi o Orixá
protagonista da festa, sendo a dona da cabeça da mãe de santo, dona do terreiro. O Orixá
estava todo vestido de laranja, sua cor, segurando um escudo, a espada e o arco e flechatípicos de Oxossi, que Obá usa também na sua dança. O rosto estava coberto com um filá
de contas e ela dançou muito. Os pés do Orixá movimentavam-se leves no chão, a mão
segurando a orelha, e deixando esta pose para executar movimentos de guerra, mais
rápidos, cortando em baixo e em cima como Ogum, girando rápido e movimentando os
braços e as mãos no alto para guerrear (diário, 27 Junho 2009). O corpo na dança de Obá
é um corpo que, através de um gestual específico, conta um mito nagô no qual Obá foi
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traida e enganada. É um corpo determinado na sua luta, um corpo às vezes submisso,
outras revoltado, ora mais lento, ora agitado e guerreiro, ora pronto para chorar sua perda
do amor, ora pronto para lutar contra sua inimiga e conquistar o amor de volta.
OXUM
Ora Ieiê ô
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Oxum é a deusa das águas doces, rainha dos rios, da fertilidade e do amor. É uma
mulher vaidosa, orgulhosa de sua beleza, sedutora e arrogante. É protetora da
menstruação e da gravidez e simboliza o parto e a fertilidade. Seu símbolo é um espelho
em forma de leque, o abebé, no qual a deusa passa horas se admirando e se arrumando.
Suas cores são o amarelo e o ouro, cores representando a riqueza, o brilho e a beleza
deste Orixá, que também é deusa do ouro. Oxum é também simbolizada por um pássaro,
por causa do seguinte mito:
“Oxum era filha de Orunmilá. Um dia casou-se com Xangô, indo viver em seu palácio. Logo Xangô percebeu o desinteresse de Oxum pelos afazeres domésticos, pois a rainha vivia preocupada com suas jóias e caprichos. Aborrecido, Xangômandou prendê-la numa torre, sentindo-se livre novamente. Exu, vendo a situação
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de Oxum correu e contou a seu pai Orunmilá que, fazendo deste seu mensageiro,entregou-lhe um pó mágico que deveria ser soprado sobre Oxum. Exu, que setransforma no que quer, chegou ao alto da torre e soprou o pó sobre Oxum que, nomesmo instante, transformou-se num lindo pombo chamado Adabá, ganhando aliberdade e voltando à casa paterna.” (Prandi, 2001, p. 332)
Oxum portanto foi uma das esposas de Xangô e já vimos ela como protagonista da briga
com Obá por causa de suas artemanhas. Este mito mostra também como a deusa das
águas doces preocupa-se principalmente com suas jóias e caprichos, não dando atenção
para os afazeres da casa. Esta vaidade e personalidade manhosa e sedutora é comunicada
através da sua dança.
A dança de Oxum é muito sensual e delicada. Seus movimentos executados aoritmo do ijexá são suaves, sutis e, como no caso de Yemanjá, o corpo de Oxum se
movimenta lembrando as ondas e a flutuação da água, seu elemento natural. Ela
locomove-se através de passos miudos e lentos onde abre e fecha os pés junto com os
braços, tudo no molejo e na sutileza. Sua dança lembra uma mulher vaidosa e sedutora,
que se abaixa para tomar banho na fonte ou na cachoeira, olha-se no espelho enquanto
penteia o cabelo com a outra mão, se abana graciosamente e enfeita-se com brincos,
aneis, colares, pulseiras, mostrando estas suas jóias com prazer e satisfação (Verger,
1981, p. 176). Ela movimenta os ombros com uma mexidinha sensual, e “sua
movimentação é suave, lenta e densa, fluida como a água” (Zenicola, 2003, p. 112).
Durante uma aula de dança, eu e um meu amigo da dança tivemos que representar Oxum
através do corpo. Comecei me arrumando sentada no chão, utilizando objetos como
brincos, espelho e batom. Soltei o cabelo, e movimentei o corpo da maneira mais
feminina e vaidosa possível: com movimentos lentos, ondulatórios, mexendo os ombros,
olhando intensamente para meu amigo, que começou a se aproximar, me olhar e me
oferecer um drink. Depois de me recusar a aceitar algumas vezes, cedi e dancei com ele(diário, 15 Junho 2009). Esta cena mostra como Oxum está no corpo da vida cotidiana
nos momentos de sedução e feminilidade.
A performance de dança afro “Orixás”, de Rubens Barbot, mencionada
anteriormente, mostrou a dança de Oxum comunicando toda sua beleza e fertilidade. A
dançarina vestia uma roupa amarelo ouro regal, uma coroa com filá de contas cobrindo
seu rosto, e muitas joias douradas que ela tirou e colocou de novo com uma sutileza de
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movimentos impressionante. Ela andava que nem água, escorrendo e fluindo no chão, e
no final colocou suas mãos segurando a barriga, simbolizando a fertilidade da mulher
(diário, 9 Julho 2009). O corpo que dança Oxum é um corpo super feminino, sutil e
suave. É um corpo fluido como a água, sensual e sedutor, um corpo que é consciênte da
sua beleza e mostra isso nos seus gestos, sua maneira de andar e seu olhar.
O mito no corpo
As descrições dos mitos, arquétipos e gestuais de cada Orixá apresentadas
mostram como os mitos estão personificados no corpo que dança. Como afirma Denise
Zenicola ao falar das figuras míticas do malandro e da mulata como representantes da
cultura carioca e como inspiradores dos dançarinos do Samba de Gafiera, “estes mitos em
performance, com sua elegância e estética peculiares, … apresentam formas de dançar
reveladoras das tradições africanas” (Zenicola, 2007, p. 117). Igualmente, a estética
particular dos mitos dos Orixás em performance apresenta uma dança específica e
reveladora da tradição religiosa do Candomblé, parte fundamental da cultura afro-
brasileira. Através desta análise, quis-se evidenciar a importância do mito como forma de
conhecimento e a presença deste mito no corpo, tanto na dança e na música quanto naindumentária ou nas performances e afazeres de todo dia. Como escreve Maria Consuelo
Oliveira Santos em um artigo sobre a função pedagógica do mito:
“O mito se concretiza nas histórias, lendas, contos, casos, seja nas orações, nos
rituais, nas oferendas, na arquitetura, na vestimenta, no comer, no dizer, no
dançar, no cantar, pois o mito não se expressa apenas no discurso linguístico, mas
em inúmeras construções textuais que se explicitam nos vários espaços do fazer
humano, através de uma infinidade de formas que a criatividade humana propõe
cotidianamente” (Santos, 2006, p. 162)
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O mito é portanto expresso pelo seu fazer e, em particular neste caso, é expresso na
dança, através do simbolismo dos gestos e movimentos executados na performance. A
dança Afro reproduz com movimentos, gestos e indumentária as histórias dos Orixás e
recria assim, além de transmitir, os mitos que fazem parte da cultura afro-brasileira. O
dançarino de dança Afro se inspira no ritual de Candomblé para reproduzir no corpo as
qualidades, os movimentos e as energias dos arquétipos dos Orixás, dando origem a uma
performance artística que, mesmo fora do contexto sagrado da religião, é capaz de contar
os mitos afro-brasileiros, os quais, segundo Inaycira Falcão dos Santos “reforçam e
ensinam os padrões e valores de um povo, aliados aos elementos da composição
coreográfica das danças realizadas nos terreiros” (Falcão dos Santos, 2006, p. 31). Énecessário reconhecer a importância do mito como instrumento de comunicação de uma
cultura, e a importância da dança como instrumento de comunicação e recriação dos
mitos. No caso deste trabalho o corpo na dança Afro recria e comunica os mitos dos
Orixás, reforçando a história e cultura nagô no Brasil, trabalhando o resgate e a memória
de uma identidade afro-brasileira e contribuindo para um projeto de arte, cultura e
educação. Para concluir este capítulo e introduzir as temáticas de inteligência do corpo e
estigma que serão analisadas em seguida, trago agora uma comparação sobre o corpo que
dança os orixás no contexto sagrado e no profano.
Dança de Orixás no contexto sagrado e no profano
Analisou-se até agora neste capítulo a importância da dança e da música no ritual
de Candomblé, e descreveram-se os gestos, os mitos os arquétipos dos Orixás, os deuses
africanos que se expressam dançando. Vimos como o corpo, tanto no ritual, quanto na
performance de dança ou na vida cotidiana, conta mitos e histórias de um povo dadiáspora africana no Brasil. Esta mitologia, mesmo tendo origem religiosa, faz parte de
uma cultura mais geral, importante de conhecer para resgatar e valorizar a memória dos
ancestrais e a história afro-brasileira. É importante portanto entender e estudar a religião
do Candomblé, com seus Orixás e seus mitos, pois é parte da cultura afro-brasileira.
Agora, é fundamental deixar claro que não precisa ser de dentro do candomblé para
estudar isso. A dança Afro é uma maneira de estudar e conhecer o mundo dos Orixás,
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aprender seus gestos e seus toques, reconhecer os diferentes ritmos e associá-los às
diferentes divindades. É uma arte que utiliza movimentos ligados na estética dos gestuais
dos Orixás, onde trabalha-se o corpo para que se possa sentir a personalidade, os mitos e
os elementos da natureza de cada Orixá, incorporá-los e expressar estas sensações
dançando. Na dança Afro constata-se o transporte dos gestos dos Orixás na sua gramática
básica que são transformados pela estilística e estética da dança. Como escreve
Rosamaria Barbara na sua dissertação de mestrado sobre a dança das Aiabás, “a estética
do corpo atua como um papel fundamental porque está ligada à sabedoria expressa pelo
próprio corpo…uma sabedoria armazenada e enraizada corporalmente ao longo de um
processo que se passa e atua no e com o corpo” (Barbara, 2002, p. 20). Este processo deaprendizagem, tanto no Candomblé quanto na dança, é uma experiência totalmente
sensorial, que envolve o som, os cheiros, e a sensação dos elementos da natureza e dos
mitos dentro de si:
“Hoje a gente explorou muitos movimentos de cada Iabá. As orixás mulheres sãotão diferentes entre si, e cada uma tem as suas características, seus ritmos, seussignificados. Vimos Oxum, Iansã, Yemanjá e Nanã. Cada uma se expressa de um jeito diferente e isso é muito difícil de expressar através do movimento corporal.A leveza e feminilidade de Yemanjá e Oxum requerem uma concentração na
execução de movimentos lentos e sutis, sempre pensando na constante referênciadas ondas da água, tentando reproduzir esta sensação deste elemento da naturezano corpo e na expressão facial. O toque dos atabaques ajuda na pegada do ritmoque, depois de alguns minutos, parece penetrar dentro do corpo, rendento omovimento mais exato e o tempo dele mais certo…dançar Iansã é pura rapidezsimbolizando o vento, simbolizando a mulher guerreira que passa e que, como umfuracão, deixa as marcas. A força contida num passo dela é símbolo da força da personalidade do orixá, a qual, ajudada pelo toque do tambor, se insere no corpo, provocando uma sensação que se reflete na força dos movimentos de dança” (6Setembro 2008).
Segundo estas notas de campo, a experiência sensorial total ao dançar as Iabás é evidente.
Durante a execução dos movimentos, pensa-se sempre no elemento da natureza que o
corpo deveria expressar, tentando incorporar esta sensação. Nisso o toque dos tambores
tem um papel fundamental enquanto “ajuda na pegada do ritmo que parece penetrar
dentro do corpo”, e “ajuda a personalidade do orixá a se inserir no corpo”. Segundo
Rosamaria Barbara, “a música é a vibração do Orixá e o meio através do qual ele se
canaliza” (Barbara, 2002, p. 121). A música e a dança portanto cooperam e nunca estão
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isoladas, pois “o tambor é a voz do Orixá” (Ibidem, p. 128). Veremos esta cooperação e
comunicação entre dançario e tambor no próximo capítulo.
Vimos portanto como a dança de Orixás, tanto no contexto sagrado quanto no
profano, é uma experiência sensorial, estreitamente ligada aos elementos da natureza,
apreendida na prática, e que incorpora e transmite os mitos e as personalidades de cada
Orixá através do corpo, especialmente através dos gestos. Nesta última parte deste
capítulo quero mais uma vez deixar clara a diferença que existe entre os dois mundo, um
sagrado e outro profano, pois existem dúvidas e confusão com respeito ao assunto. Várias
vezes, durante minha experiência dentro da dança Afro, ouvi comentários falando: “Ah,
isso é macumba!”, ou: “È tudo a mesma coisa: dança afro, capoeira, Candomblé; tudocoisa de preto!”. A própria Eliete, durante uma entrevista com ela, contou de quando foi
dar aula de dança Afro para meninos todos afro-brasileiros e de como, de vinte e quatro
somente ficaram doze alunos, pois os outros falaram imediatamente: “é macumba, é
macumba!” (29 Dezembro, 2009). É evidente como não existe um conhecimento
adequado sobre a dança Afro que, mesmo tendo uma forte conecção com os
ensinamentos e os elementos do Candomblé, não é uma atividade religiosa:
Após uma apresentação do nosso grupo no Forte de Copacabana, os componentes
de um outro grupo de percussão que tinha se apresentado também perguntou:“Vocês são todos de terreiros de Candomblé né?”; ao ouvir uma resposta negativa por minha parte, ele insistiu: “Ué, mas vocês dançam os orixás né?” (26 Setembro2009).
Estes comentários mostram como uma performance artística de dança de Orixás é
considerada ser a mesma do que a performance religiosa. Mesmo sendo os movimentos e
os gestuais dos Orixás os mesmos, durante a cerimônia do Candomblé o fiel está em
transe, e quem está dançando é o próprio Orixá, incorporado no corpo do “cavalo”. Na
dança, o dançarino conscientemente tenta “incorporar” os elementos dos Orixás, emostrá-los através da dança.
Outras dúvidas envolvem o medo do que pode ou não pode ser feito durante a
dança de Orixás. Durante uma discussão no término de uma aula de dança na UERJ,
foram levantadas algumas perguntas:
“Pode aprender esta dança sagrada sem ser da religião? Pensei que não fosse possível estudar danças religiosas ser estar envolvido”.
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“ Qual é a importância da dança no candomblé? Pode-se dançar danças de orixasem apresentações?” (17 Junho 2009)
Estas perguntas evidenciam que, mesmo entre os alunos de dança Afro não existe clareza
sobre o fato de que a apresentação de dança de Orixás no palco é distinta do que a
performance durate o ritual. A Eliete aponta outras diferenças fundamentais entre a dança
de Orixá nos dois contextos. Durante uma entrevista, ela conta:
“Lembro de quando fui dar um curso para pai e mãe de santo e ninguem sabia dançar
para orixá. Fiquei com medo; eu sei coisa de palco, não de dentro de candomblé-eles
ficaram bobos que eu não era de dentro mas sabia tudo e eles queriam saber dançar com
os filhos de santo.”
E ainda:
“Quando dei aula para uma turma, tinha uma menina de dentro do candomblé e a gente
fez dança de orixá. Aí deu pra ver a diferença entre o religioso e o cultural. Fizemos o
movimento de Oxum e falei para ela”olha como você está fazendo o movimento de
Oxum-este é de dentro e este que eu estou fazendo é pra palco. Olha a diferença!” (29
dezembro, 2009).
Com estes depoimentos, a professora de dança Afro deixou claro como o movimento e o
gestual “para palco” é diferente do que o gesto “de dentro do Candomblé”. Como
evidenciei na descrição da dança de Orixá anteriormente, os movimentos executados
durante o ritual são mais leves, menos acentuados, enquanto em uma performance no
palco, o dançarino exagera o movimento, amplia-o e estiliza-o.
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Falando mais especificamente sobre corpo, durante minha etnografia algumas
observações que fiz levantaram umas perguntas que tentei pesquisar. Durante uma festa
pública de Ogum em Caxias, na Baixada Fluminense, pela primeira vez vi meu amigo de
dança Afro incorporar seu santo, Oxaguiã. Conhecendo como ele dança na aula de dança
Afro, foi muito interessante ver ele dançar enquanto estava incorporando Oxaguiã. O
jeito de dançar dos dois era muito parecido. Oxaguiã dançou com uma boa técnica,
deslizando no chão, e movimentando os pés e os braços de maneira parecida com meu
amigo durante a aula (25 Abril 2009). Quando expliquei para ele durante uma entrevista
o que tinha observado, me respondeu:
“O fato do cavalo ou do orixa saber dançar não tem nada a ver um com outro,acho. Eu aprendi a dançar no candomble, antes de fazer aula de afro.” (9 Maio2009).
Em uma entrevista sucessiva ele continuou me explicando:
“A dança do Orixá é diferente da do cavalo. Tem pessoas que não sabem dançar mas o Orixá sabe. Mas ao mesmo tempo, o orixá usa o corpo da pessoa e se eleachar alguém que saiba dançar, o usa mais; não pode melhorar muito se o cavalonão sabe dançar nada.” (27 Junho 2009).
Estes dois depoimentos, junto com as observações da minha etnografia, levantam umaquestão interessante sobre o “corpo dançante”. Segundo o fiel, durante o ritual de
candomblé, é o próprio Orixá que dança, simplesmente usufruindo-se do corpo do assim
chamado cavalo que incorpora a divindade. A capacidade do corpo saber dançar ou não
depende do Orixá, mas parece existir uma ligação com a habilidade do cavalo, podendo
“usar mais” o corpo de alguém que saiba dançar. O Orixá se adapta ao corpo no
Candomblé, pois o Orixá tem respeito com o corpo.
Agora, focando a atenção no caso do meu amigo dançarino A. que incorporaOxaguiã, comecei a pensar nas possíveis hipóteses que pudessem explicar a semelhança
entre os movimentos corporais do A. dançarino e os do Orixá dançando. Em outra festa
pública de Candomblé, dessa vez uma festa de Oxalá em Nova Iguaçu, tive a
oportunidade de observar o Oxaguiã de A. dançar o tempo todo, e reparei mais e mais
como o corpo deste Orixá se locomovia e mexia com a mesma forma e sutileza do meu
amigo na sala de aula. Como ulterior contribuição às minhas suposições, notei uma
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semelhança na atitude corporal e na maneira de dançar também em uma filha-de-santo
que estava em outra festa pública incorporando Xangô, e que neste dia somente dançou
sem “baixar o santo”. Lembrei dos movimentos das costas e dos ombros bem peculiares e
únicos desta mulher enquanto o Xangô dela estava presente, e reparei o mesmo molejo e
a mesma forma destes movimentos no corpo da fiel dançando sem incorporar o Orixá (3
Outubro 2009). Após estas observações, e respeitando a crença religiosa do que é o Orixá
que está dançando na hora do transe no ritual de Candomblé, me perguntei: será que é o
Oxaguiã dele que A. leva para a sala de aula? Ou seja, será que o corpo do A. foi
moldado pela técnica corporal do Oxaguiã que ele carrega por anos que aprendeu a se
movimentar de certa maneira e lembra esta maneira de dançar na hora da aula de dançaAfro? Retomarei esta hipótese de “memória corporal” no capítulo 5, onde utilizarei as
teorias fenomenológicas de aprendizagem, memória e inteligência do corpo para tentar
explicar este fenômeno observado nos dois mundos (o sagrado e o profano) da dança de
Orixás. Antes de chegar lá, quero dedicar uma parte da minha discussão às teorias de
comunicação para melhor entender como opera a linguagem da dança Afro.
CAPITULO 4- Ouvir o Outro Ouvir o Outro Ouvir o Outro Ouvir o Outro
(Comunicar dançando)
A dança e a percussão dizem claramenteo que escapa ao discurso das palavras.
Seu vocabulário permite sondar abismos do desconhecido.Claudio Alberto Dos Santos
Sinergia e Cooperação
Vimos até agora como a dança, e em específico a dança de Orixás, é uma formaartística repleta de símbolos e significados. Foi evidenciado particularmente nocapítulo anterior como cada gesto, cada movimento e cada cor de indumentária sãoelementos que representam, produzem e comunicam certos significados; no caso destetrabalho, estes elementos corporais representam, produzem e contam os mitos e ashistórias das divindades protagonistas da religião afro-brasileira do Candomblé. Quero portanto neste capítulo focar mais na linguagem do corpo e na comunicação nãoverbal da expressão corporal, analisando a dança, e em particular a dança Afro, comotexto repleto de mensagens e significados, evidenciando a variedade e pluralidade de
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linguagens na dança, e analisando a cooperação e os “diálogos” entre os protagonistasda performance de dança Afro.
Ao falar da pluralidade de linguagens, é fundamental utilizar e entender oconceito de gêneros de discurso de Mikhail Bakhtin, o qual afirma que cada campo de
uso da linguagem elabora seus tipos característicos de enunciados, chamando estes de
gêneros de discurso. Estes são extremamente heterogêneos, podem ser orais assim como
escritos, e constituem as unidades fundamentais do diálogo (Bakhtin, 2003). Sempre
segundo Bakhtin, o diálogo é o que faz a comunicação possível. O discurso não depende
de enunciados independentes do emissor, mas é o produto de uma interação entre a
emissão e a recepção do enunciado dentro de certo contexto histórico-cultural e sempre
levando em conta as várias influências externas sobre o ato comunicativo (Bakhtin,
2003). É fundamental então entender a comunicação como um sistema interativo onde as
várias partes estão sempre interligadas. Vale a pena explorar mais esta idéia da vida como
sistema de sinergias e cooperação, de harmonia e colaboração, pois, assim como a vida, a
dança pode ser considerada como tal sistema sinergico, harmonico e cooperativo.
Tomando a idéia principal de autopoeisis, elaborada por Humberto Maturana,
pode-se dizer que a vida é um conjunto de sistemas fechados que precisam de
colaboração e de um processo de articulação. Nós, seres humanos, não somos peçasisoladas e a vida, a natureza e a existência são entrelaçadas e precisam de harmonia para
continuar a existir. Maturana afirma que sem cooperação não tem sistema e que o
elemento principal desta harmonia é o amor. O amor é o que fecha o sistema, é o
sentimento que funda o social, pois permite a aceitação do outro como legítimo outro na
convivência. A emoção do amor é então a base de cada ação, cada relação social e da
comunicação cooperativa. A vida, portanto só existe a partir do princípio comunicativo
da cooperação. Assim, é possível ver como a linguagem entra a fazer parte deste todoharmonioso, pois ela está entrelaçada à emoção e é considerada como uma ação por
Maturana. A linguagem é definida como a “coordenação consensual de condutas de
coordenações”, ou seja como o elemento fundamental da convivência consensual entre
indivíduos e indivíduos e natureza (Maturana, 2002). A linguagem está na base do
conhecimento, o qual leva ao entendimento e consequentemente à comprensão e à
harmonia. O que é fundamental entender no argumento de Maturana é esta idéia de
consenso e sinergia entre as partes da vida, e que esta última só é possível graças à
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cooperação e não à luta entre as partes. A ligação entre emoção, ação e comunicação é
um aspecto chave para entender a autopoeisis e a interação como base da vida.
Esta teoria da interação e da sinergia é retomada também por Lynn Margulis na
sua obra O que é Vida?. A idéia principal neste texto é a de holarquia, ou seja do que o
todo é maior do que a soma das partes, afirmando o poder dos pequenos corpos e da
micro-estrutura, a qual pode ser mais poderosa do que a grande estrutura. Margulis
escreve que a vida surgiu das amoebas e das bacterias e é isso que nos mantem até hoje.
A origem da vida se reproduz continuamente no curso da vida e a vida é exatramente
este encontro de energias, esta sinergia e simbiose entre as partes. Todos estes conjuntos
e sistemas vivos se autoregulam e pode-se afirmar então que a vida é autopoética. A vidae a biosfera se auto-sustentam. Adaptações a vários ambientes se criam e recriam e a vida
é um processo que só pode-se entender em seu meio cósmico (Margulis). A teoria de
Margulis é que não existe contradição na vida pois tudo é parte do processo, tudo é
passagem e os vários encontros geram os fluxos da vida que é então movida por
um”chaos poético”. Uma contribuição importante da autora para este trabalho vem sa sua
afirmação que “a mente e o corpo não são separados, mas parte do processo unificado da
vida. Esta, sensível desde sempre, é capaz de pensar.” (Margulis, p. 23). Esta poderosa
passagem da sua obra propõe um pensamento que desafia a tradicional divisão cartesiana
entre o corpo e a mente, sustentando a idéia que o corpo pensa, e é uma coisa só com a
mente. Contribuindo mais para esta idéia é a discussão do biólogo Francisco Varela sobre
o sistema imunológico, consiiderado como um sistema cognitivo que precisa de harmonia
interacional entre as partes que o constituem para funcionar (Varela). Esta idéia quebra
com o fato que o sistema reage a um estímulo externo; o sistema possui uma inteligência
que reconhece, aprende e memoriza, e é portanto pro-ativo dado que cria possibilidades,
além de ser autônomo e presentes em todos os seres vivos. Estes conceitos serãomaiormente analisados no próximo capítulo, cujo foco é justamente a inteligência do
corpo e dos sentidos.
Na dança a cooperação e a sinergia são elementos fundamentais para a expressão
corporal. Já foi visto no Capítulo 1 como a cooperação entre os dançarinos é necessária
para o sucesso da performance. Existem porém outros tipos de cooperações dos corpos
dançantes, como por exemplo a sinergia entre as diferentes partes do corpo:
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“A gente trabalhou muito a descontrução do movimento. Isso pode ser entediante,mas é realmente útil. Depois de repetir as várias partes do movimento, conseguientendê-lo bem melhor, e consegui executá-lo melhor também. É incrível quantoselementos têm dentro de um movimento de dança. Se for um movimento do braço, precisa prestar atenção à mão, à ponta dos dedos, pois toda articulação estáenvolvida. E quando a gente começa a desenvolver os passos e unir braços, pernas, pés, pescoço, quadril, rosto….ai a gente repara quantas realmente são as partes do corpo envolvidas e quanto precisa-se de um trabalho de coordenação bem complicado.” (20 Maio 2008)
Este excerto mostra a complexidade de um movimento de dança, o qual envolve
múltiplos elementos dentro de si. Cada parte do corpo, ao se movimentar, precisa pensar
em todas as articulações presentes. Ao juntar a movimentação de várias partes do corpo,é preciso ter “um trabalho de coordenação” notável, onde as partes se juntem
sinergicamente para formar o todo. É possível reparar na importância dos detalhes do
movimento, da mão à ponta dos dedos, pois cada mínima parte contribui para a formação
do gesto e do movimento de dança.
Durante um ensaio de dança Afro é evidente a sinergia entre as partes; desta vez
porém a harmonia não é somente entre as partes do corpo, mas é entre o corpo e o
tambor:
Hoje cheguei no ensaio e estava sozinha. Antes de começar a Eliete ficouensaiando “Corpos e Tambores” (nome do espetáculo do grupo). Ela dançou juntocom o tambor, segurando ele, tocando e dançando ao mesmo tempo. Pode-se ver uma sinergia entre o corpo e o instrumento; as formas deste tambor usadoremetem às formas do corpo humano; parecia ter uma fusão entre os dois, um parecia complementar o outro, como peças de um quebra-cabeça que se unem. Ascurvas do tambor e do corpo se pareciam e formavam uma coisa só. (11 Abril2009)
Esta observação de campo descreve a união entre o corpo dançante da Eliete e o tambor
que ela está segurando. Ao dançar, podia-se observar uma “sinergia entre o corpo e oinstrumento”, “uma fusão entre os dois”, como se fossem elementos complementares,
iguais às “peças de um quebra-cabeça”. Ambos o corpo da dançarina e o tambor eram
formados por curvas que se uniam e juntavam formando uma coisa só.
Diálogo e incorporação da linguagem
.
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Vimos portanto como as teorias de cooperação e sinergia entre as partes trazidas por Maturana, Mergulis, Varela e Bakhtin se aplicam à linguagem, no caso deste trabalho,à linguagem do corpo na dança. O elemento corporal é considerado fundamental eevidenciado por muitos ciêntistas da comunicação. Partindo da base que acomunicação é um princípio estruturante que atravessa as várias esferas da sociedade,e que estas diferentes esferas estão sempre cooperando e em sinergia uma com a outra,Anthony Wilden fala da união da comunicação verbal e não verbal. Estas são possibilidades comunicativas presentes na vida que nunca operam em conflito ouseparadas uma da outra, mas ao contrário, elas sempre interagem e colaboram naexpressão comunicativa de todo dia (Wilden). Os estudos de Emile Benvenistecontribuem também para esta visão, pois ele escreve que como a linguagem chega ater significado na prática, quer dizer que esta precisa do corpo e da emoção para que serealize com sucesso. Além disso, ele afirma que a linguagem está profundamenteligada ao contexto e é socialmente construída e que, para se comunicar e se relacionar
com o outro, precisa-se do diálogo (Benveniste, 1988). Unindo estes conceitos, pode-se ver como a dança se insere perfeitamente na discussão da expressão dialógica.Como forma de comunicação não verbal, a dança opera através do instrumentofundamental da linguagem que é o corpo. Possuindo seus próprios gêneros dediscurso e agindo de maneira autopoética, a expressão corporal e a comunicação nadança acontecem graças à interação entre emissor e receptor dentro de umdeterminado contexto, e graças à sinergia e cooperação entre as partes.
Continuando a discussão da ligação entre comunicação e corpo, tanto Bakhtin
como o antropólogo William Hanks exploram o tema da incorporação da linguagem.
Articulando corporeidade à linguagem e imprimindo na linguagem uma apreciaçãoantropológica, Hanks afirma que o campo cultural é a incorporação de valores e de
práticas, e fornece portanto o quadro interpretativo necessário para a linguagem. É o
campo corporal que circumscreve a fala; o discurso então acontece no espaço do corpo
(Hanks, 2008). Como o próprio Hanks afirma em Language and Communicative
Practices, tomando as teorias de Bakhtin, a produção de discurso é um fato social e o
significado se cria a partir do interplay entre a produção e a recepção da mensagem; os
gêneros de discurso então são maneiras práticas de perceber o mundo e agir sobre ele em
várias maneiras (Hanks, 1996). Esta pluralidade e multiplicidade se reflete na
corporeidade que, sempre segundo Hanks, “emerge na atividade, e não é pré-estabelecida
em categorias culturais” (Ibidem p. 254). A corporeidade está portanto sempre mudando;
ela é um processo e não uma coisa (Hanks, 1996). No texto A Cultura Popular na Idade
Média e o Renascimento e suas Fontes, Bakhtin, através da análise do grotesco,
também mostra como o corpo está sempre em movimento e sempre se relacionando com
o mundo. Ao falar deste corpo, Bakhtin escreve que ele “jamais está pronto nem
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acabado; está sempre em estado de construção, de criação … e esse corpo absorve o
mundo e é absorvido por ele” (Bakhtin, 1999, p. 277). Assim como o corpo grotesco, o
corpo dançante está continuamente em movimento e em construção:
“Reparei como cada movimento muda dependendo da diferença do olhar, o qual
determina a intenção atrás da performance do movimento.”(7 Junho 2008)
Neste caso, a mudança do movimento depende da mudança do olhar dos
dançarinos, evidenciando mais uma vez como as várias partes do corpo estãointerligadas e uma influênciando a outra. Um outro exemplo mostra como uma
mudança do toque da música causa uma mudança na maneira de se movimentar o
corpo:
“Ao mudar do toque, que pode acontecer de repente, se passa para a
representação de outra aiabá, com ritmo e expressão corporal totalmente
diferente. O corpo então precisa fazer uma mudança radical de pensamento,
sensação e reprodução do movimento.”(6 Setembro 2008)
É evidente como, nestas experiências, o corpo nunca está fixo, e como cada mínima coisa
tenha uma influência e mude o comportamento corporal. Um olhar diferente, assim como
um toque de tambor diferente, age imediatamente no corpo, ativando uma série de
reações e movimentos diferentes. A comunicação, portanto se realiza na hora que a
resposta interage e coopera com o estímulo emitido, dentro de um contexto cultural de
significados específico.
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Comunicação entre Corpo e Natureza
Mais um elemento corporal evidenciado por Bakhtin que pode ser aplicado àetnografia dos ensaios de dança Afro é a interação e cooperação entre o corpo e os
cosmos, os elementos da natureza. Bakhtin escreve que “os elementos cósmicos se
transformam em alegres elementos corporais” (Bakhtin, 1999, p. 297). Ele afirma que “o
universo parece reagrupado no corpo humano, em toda a sua múltipla diversidade” (p.
317), e que “o corpo é um microcosmos onde se reúne em um todo único tudo o que está
disperso e afastado no cosmos” (p.318). A dança Afro parece exemplificar este conceito
plenamente. Duas ocasiões em particular mostram este contato e sinergia entre o cosmo e
o corpo, justamente como Maturana teoriza falando da autopoesis. Em uma avaliação no
fim da aula onde tínhamos trabalhado o olhar e os movimentos em duplas, o comentários
dos participantes anotados no diário etnográfico se resumiram assim:
“Nos sentimos conectados um com o outro através da expressão facial e
conectados com a natureza, com algo de sagrado e espiritual através dos
movimentos lentos do Afro primitivo. Fazendo este tipo de exercício um com o
outro, veio a se criar uma certa energia no espaço onde estavamos e dentro de
cada um, o que influenciou a dança de cada um de nós. “(7 Junho 2008)
Esta conecção energética mostra como a linguagem da dança, através do “olhar” e de
“movimentos lentos do Afro primitivo” emana enunciados do seu campo, que são
recebidos e interpretados por cada um, criando certa comunicação na qual corpo, espaço
e emoção cooperam e agem junto. Durante outra aula, foi interessante observar esta
sinergia entre corpo e natureza, sentida ao representar a dança de Orixás:
“Estudamos nos detalhes os movimentos de vários orixás e associamos cada um a
um elemento da natureza…Começamos pela água e vimos os movimentos de
Oxum, bem leves e fluidos, lembrando as ondulações da água. Vimos Oxóssi,
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associado à caça e à terra, Xangô ao fogo e Iansã ao ar, com seus movimentos
rápidos e fortes como as ventanias… Pensando nos elementos da natureza
durante a dança fez com que os detalhes dos movimentos e a expressão facial e
corporal fossem mais intensas e mais exatas. É incrível a ligação que existe entre
as forças e energias da natureza e o nosso corpo, e é incrível como o movimento
muda de forma e intensidade quando nos concentramos nesta sintonia e conecção
que existe com a natureza.”(21 Junho 2008)
É evidente a descrição da ligação entre as forças da natureza e a representação de cadaOrixá, como já foi analisado no capítulo anterior. Através dos movimentos de cadaentidade, mostra-se a ligação dela com um elemento da natureza, e conta-se assim ahistória das divinidade religiosas da tradição Afro-brasileira. A sinergia entre fala,corpo e contexto age portanto no ato comunicativo da performance da dança Afro. Umexemplo claro desta sinergia entre estes três elementos vem de algumas frases que nósdançarinos tivemos que criar e expressar através da voz e do movimento durante umensaio do espetáculo da Cia Corpafro “Corpos e Tambores”:
1. Meu corpo é meu instrumento2. Meu corpo é meu tambor 3. Ritmos e curvas se misturam4. Meu corpo é minha história5. Meu corpo é realidade
Estas frases mostram como os dançarino percebem seus corpos em relação à dança Afro e
ao tambor; é como se os corpos se misturassem completamente com o instrumento,
expressando uma sinergia entre o “corpo e o tambor”, entre “os ritmos e as curvas”, entre
“corpo e história e realidade”. Ao ser perguntados sobre esta comunião entre corpo etambor, os membros do grupo comentaram:
“É uma junção entre corpo e tambor e não tem um sem o outro. Um existe dentrodo outro.”“ No meu corpo já existem vários ritmos e várias pulsações. O corpo está cheio deritmos, harmonias, melodias.”“Existe o ritmo corporal do dia a dia e os ritmos e vibrações do tambor, mas, paratocar, precisa-se de um corpo.” (2 Maio 2009)
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Mais uma vez pode-se observar que o corpo e o ritmo do tambor estão interconectados
existindo “um dentro do outro”, e precisando um do outro na performance da dança Afro.
Conversas na dança: a presença do Tambor
Falando da sinergia e da conecção entre as várias partes do corpo e entre corpo e
tambor, o diálogo é um elemento sempre presente na performance da dança Afro. Podem
ser evidenciados em particular três tipos de conversas: entre dançarino e audience, entre
dançarinos, e entre dançarino e tambor. O primeiro tipo de conversa entre performer e
audience foi extensivamente analisado no capítulo 1 através das teorias de interação de
Erving Goffmann e das teorias de performance de Turner e Schechner. A interação e a
comunicação entre os dançarinos foi também analisada no mesmo capítulo, evidenciando
uma conversa entre corpos, uma interrelação entre movimentos, uma sinergia entre
passos e gestos. Um artigo do antropólogo Alejandro Frigerio sobre as qualidades que
caracterizam a performance artística afro-americana evidencia a importância do
“conversacional” durante a performance Afroamericana. Dentro desta qualidade, o autor
destaca vários tipos de conversa: entre solista e coro, entre tambores, entre dançarino e
tambor, entre cantante e tambor, entre dançarinos e entre o cantante e dançarino principale os outros performers (Frigerio, 2003). Dentro de todas estas conversas, a entre
dançarinos e entre dançarino e tambor são as que podem ser aplicada ao meu campo de
pesquisa. Como já falamos da primeira, quero aqui trazer dados etnográficos sobre a
conversa entre dançarino e tambor. O seguinte excerto, usado também no primeiro
capítulo me referindo à experiencia ritual de transe na dança, apresenta uma experiência
pessoal que tive durante uma aula com percussão ao vivo:
“Os tambores ajudaram. É incrível como eles abstraem a mente do esforço queestou fazendo. Senti o toque deles bem perto do meu trabalho hoje e conseguirealmente estabelecer uma conecção entre a música e os movimentos que estavafazendo.” (13 Maio 2008).
Esta experiência como dançarina aponta a importância da percussão ao vivo para a
execução da dança e para o esforço do corpo. Ao “sentir o toque bem perto do meu
corpo”, os tambores ajudaram a “estabelecer uma conecção entre música e movimentos”.
Trazendo as palavras de Argeliers em sua descrição da rumba columbia cubana, Frigerio
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escreve que o dançarino estabelece um “diálogo” com o percussionista, que marca os
gestos e os passos com os quais o dançarino deve responder (Frigiero, 2003, p. 58). Este
diálogo é evidenciado e reafirmado por alguns componentes do grupo Corpafro e pelo
percussionista do grupo depois de um ensaio:
“M.- a música eletronica é diferente do que os instrumentos ao vivo. Dançar coma percussão é outra coisa, dá pra sentir a vibração.F. (percussionista)- a percussão anda bem junto com a dança. Se vocês forem parafrente, a percussão também vai para frente. Se vocês pararem e cansarem, ai eutambém fico desanimado e “mucho”. Hoje foi prazeroso tocar, porque estavasentindo vocês animadas e dançando com prazer.E.- existe uma sinergia entre percussionista e dançarino. Sinto a minha emoção e
ao mesmo tempo sinto a energia e o afeto dele. “ (20 Março 2009)
Estes comentários evidenciam a interação e sinergia existentes entre o dançarino e o
percussionista. Como o prórpio percussionista afirma, o ritmo e a emocão dele mudam
dependendo do ritmo e da emoção de quem está dançando. Eliete reforçou este ponto
dizendo que é preciso sentir a própria “emoção” como dançarina e ao mesmo tempo “a
energia e o afeto dele”. Esta colaboração e sinergia entre música e dança, entre dançarino
e percussionista, corpo e tambor é uma característica também dos rituais de Candomblé.
Segundo Rosamaria Barbara, “não se pode compreender o lado musical ou da dançaisoladamente, porque se trata de um todo semântico no qual cada aspecto estético remete
ao outro na construção do orixá” (Barbara, 2002, p. 125). Ela continua escrevendo que a
música “entra no mundo da motricidade corporea” e “as percussões passam do ouvido ao
corpo inteiro, como se entrassem nos ossos e gerassem uma influência emotiva e
energética no corpo” (Ibidem, p. 141). Esta cooperação entre o alabê, atabaque e orixá no
caso do Candomblé e entre percussionista, tambor e dançarino na dança Afro é muito
forte e todos os elementos precisam estar interligados para poder comunicar.Este capítulo analisou a ligação entre corpo, cultura e comunicação na dança,
mostrando as interações e as conversas deste universo utilizando as teorias de dialogismo,
cooperação e comunicação de vários autores. Viu-se como o princípio comunicativo da
cooperação é o fundamento da vida e da dança, e analisou—se o diálogo como forma
primária de comunicar sentidos e significados. Seja entre dançarinos, ou entre dançarino
e audience, ou entre dançarino e tambor, a transmissão de mensagens acontece através do
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diálogo e da interação, onde a mensagem é uma estrutura complexa de significados e
onde o significado não é fixo (Hall, 2003). Stuart Hall continua explicando em outro
texto que o significado não está inerente às coisas, mas é construido e produzidos na
prática. Como vimos antes, esta produção de significado na prática acontece através da
interação e do discurso, no qual o objeto em questõ só assume significado em relação ao
espectador e ao “outro” que está interagindo (Hall, 1997). No caso deste trabalho, viu-se
como na prática o corpo em movimento do dançarino consegue estabelecer um diálogo e
comunicar umas mensagens que fazem parte de um dado contexto cultural, neste caso, o
da experiência e história de matrizes africanas no Brasil.
CAPITULO 5 - A Intuição do Corpo A Intuição do Corpo A Intuição do Corpo A Intuição do Corpo
(O Corpo na Dança e a Dança no Corpo) Be content with a body that refuses to hold still.
Margaret Lock
Corpo como instrumento, “pessoa” e mediador cultural
Há séculos o pensamento ocidental considerou o ser humano como algo constituido por duas partes separadas, o corpo e a alma. Nesta visão dualística, o corpo éconsiderado como objeto material conhecível e como suporte do espírito, visto como
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sujeito imaterial, psíquico e racional. Foi somente a partir das últimas décadas que ocorpo tem alcançado um outro tipo de argumento. Com esse novo argumentoestabelece-se uma ruptura com a visão cartesiana, em direção a uma teoriaconstrutivista do corpo. Através de uma viagem entre algumas teorias antropológicasdo corpo, com as quais me familiarizei no curso de antropologia do corpo do primeirosemestre 2009, mininstrado pelo Prof. Julio Tavares, este capítulo visa a explorar aconstrução da corporeidade como meio comunicativo e como sujeito constitutivo doreal e, mais especificamente, pretende apresentar um corpo como protagonista naconstrução de significados na performance da dança Afro.
Começando a analisar como o corpo é produto da sociedade, Marcel Mauss, no
texto As Técnicas Corporais, escreve como o corpo humano é moldado e adaptado às
condições estabelecidas pelas disciplinas e pelos elementos de poder na sociedade. Ele
enfatiza a transmissão da tradição, querendo dizer que as técnicas corporais são ensinadase o corpo é o produto de uma adaptação. O modo de olhar, assim como o modo de andar
e o comportamento são atividades resultantes de um trabalho fisiológico e são produto da
transmissão cultural (Mauss, 1934). Mauss portanto fala de um homem total, constituído
pelo lado físico, psicológico e sociológico. Mesmo que nos textos de Mauss esteja
presente uma dicotomia entre corpo e alma, ele começa a reconhecer a interação e
cooperação entre estes elementos.
Mauss traz exemplos de como o corpo aprende coisas diferentes a partir desituações diferentes, tais quais a questão de gênero, idade e ambiente. O homem consegue
utilizar seu corpo e produzir técnicas corporais dependendo do ambiente, e acostuma o
corpo a determinada ação. O corpo é definido por Mauss como o instrumento e meio
técnico do homem, e as técnicas são procedimentos incorporados ligados à tradição e à
transmissão, especialmente oral. Segundo Mauss, o processo é inconsciênte, onde o corpo
é um elemento da natureza que absorve a consciência coletiva da sociedade e da cultura.
O corpo portanto é considerado como um produto de um pensamento coletivo. Mesmo
tendo elementos inovadores na análise de Mauss, ele não consegue quebrar
definitvamente com o dualismo cartesiano que sempre influenciou as ciências ao se falar
de corpo e alma como duas coisas distintas onde a alma é considerada a parte pensante,
ou seja o “eu”. No entanto, ao introduzir o corpo na sua discussão, Mauss contribui para
se entender o corpo como sujeito pensante e como pessoa.
Falando da noção de pessoa, Mauss também escreve sobre a formação da
categoria do “eu” e sobre as várias formas de ser um determinado sujeito em determinado
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lugar, pois existem formas diferentes de ser pessoa em ambientes diferentes. Trazendo
esta discussão para o campo da dança, é interessante perguntar “qual é a noção de pessoa
do dançarino Afro no campo da dança Afro? Quem é este dançarino na dança?”. Para se
compreender as respostas a estas perguntas, vamos considerar a linguagem com a qual os
“dançarinos” coonceituam a si próprios e o contexto que os envolve, pois como afirma
Stuart Hall, “a realidade é constantemente mediada pela linguagem ou através dela”
(Hall, 2003, p.392). O primeiro detalhe interessante a respeito disso que fiquei reparando
ao longo da minha convivência com profissionais ou amadores do campo da dança Afro,
é que eles se definem como “dançarinos” e não como “bailarinos”, sendo esta última
categoria mais ligada ao ballet clássico. Isso não quer dizer que não tenha técnicas de ballet no Afro, mas a categoria usada para se denominar cria uma distinção entre as duas
áreas de dança.
Um segundo aspeto sobre esta noção de pessoa é entender as dinâmicas e muitas
vezes as contradições entre como os “dançarinos” se identificam e como os outros olham
para eles e categorizam eles. Muitas vezes ouvi minha professora falar “ele\ela acha que
dança mas não dança nada!”, se referindo a alunos que se definem “dançarinos” mas que
ela acha que tenham muito ainda para aprender para poder se definir como tais. Durante
uma entrevista com outra professora de dança com a qual fiiz algumas aulas em Salvador,
ela disse:
“Minha aula não é para dançarino profissional, é pra quem quer aprender. Tem
todos os níveis, de quem “se diz” dançarino, porque, assim, digo “se diz” porque
muitos se acham ne… até pessoas mais velhas que querem se divirtir.” (Tatiana,
26 Agosto 2009).
É possível portanto ver como esta noção e categoria de
“dançarino” é bem flúida e depende da visão de quem está classificando.
Com respeito à categoria específica de “dançarino de dança Afro”,
quero apontar as pré-noções que a maioria das pessoas tem sobre quem
é, ou deveria ser, que dança Afro, e utilizarei como exemplo as
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experiências vividas em primeira pessoa sobre esta questão. Muitas
vezes, ao falar que pesquiso e que faço dança Afro, a reação das pessoas
é de surpresa e incompreensão. Dois exemplos mais recentes destas
reações vieram um de uma professora acadêmica de dança e outro de
um amigo de uma minha amiga. Ao falar da minha pesquisa, a
primeira me perguntou: “Como você se envolveu e porque você estuda
algo tão longe de você?”. O segundo comentário que recebi foi com tom
mais surpreso ainda e disse: “Você faz dança Afro? Como assim? Você
é branca!”. Analisando estas reações é possível ver como, pelo menos
por quem é de fora e não me conhece, uma branca, e ainda mais não
brasileira, não se encaixa nas noções assumidas de quem deveria ser um
dançarino de Afro, cujo componente racial é, evidentemente, um
componente do imaginário vinculado a tal categoria. Voltarei a analisar
esta questão da “noção de pessoa” sugerida por Mauss com mais
detalhes no próximo capítulo sobre corpo e identidade, onde falareitambém do corpo do pesquisador no campo pesquisado.
Voltando a explorar mais uma visão construtivista do corpo, a
autora Mary Douglas no seu livro Pureza e Perigo fornece um exemplo
de como analisar a construção do discurso e ver como os elementos
estão interligados. Metodologicamente, querendo comprender o
conjunto, ou seja o sistema, ela trabalha com elementos da semiologia
cuja unidade de análise é o signo. O corpo para ela é o signo que dá
conta da estruturação dos sistemas de classificação, e é uma forma de
produzir um sentido. O signo portanto é visto como mediador da
cultura, e o corpo, sendo um signo, é considerado como um elemento de
comunicação e da cultura. A cultura, segundo Douglas, é a mediação
das experiências dos indivíduos e ela reduz, controla, reforça, classifica
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e ordena. O corpo então é a chave da comunicação e é nele que se
realizam as ambiguidades presentes na sociedade com as quais Douglas
se preocupa. O corpo é o suporte, o significante; Mary Douglas deu
significado a este suporte nas culturas. O corpo é portanto o suporte das
classificações em cada determinada cultura (Douglas, 1982).
Mas, Douglas não foi a única a se preocupar com as “impurezas” e “sujeiras”
presentes nas sociedades. No texto “The Pre-Eminence of the Right Hand”, Robert Hertz
discute a ligação entre cérebro e movimento com resguardo ao maior uso da mão direita
sobre a esquierda. Tomando as pesquisas biológicas segundo as quais existe uma ligação
entre o desenvolvimento da parte esquierda do cérebro e o desenvolvimento da parte
motória direita, Hertz pergunta “somos destros porque a parte esquierda do cérebro é
mais desenvolvida, ou pode ser o contrário?”. Ele levanta uma questão ignorada por
todos sobre a possibilidade do movimento de um lado do corpo ter uma influência sobre
a maior atividade de uma parte oposta do cérebro. Sob esta perspectiva, Hertz conduz
uma discussão sobre a hierarquia da mão direita, instituída socialmente. Ele afirma que
até pode existir uma predisposição biológica para a mão direita, mas a sociedade a
reforça, desvalorizando a mão esquierda. A esquierda é portanto vista como “sinistra”, e
inferior (Hertz, 1909).
O dualismo entre sagrado e profano que existe no mundo está presente no corpo
também, e as práticas religiosas legitimam este dualismo. Além da religião, hoje em dia a
ciência, como antigamente era a filosofia, é outro cânone que legitima o dualismo na
sociedade. Hertz tenta quebrar com esta visão escrevendo, neste texto, que o orgânico,
mesmo sendo importante, não determina completamente o indivíduo, pois o social
participa muito também. O processo cognitivo não é só biológico, mas também social, enós somos cultura e natureza ao mesmo tempo. Tudo conflui no sujeito, o qual vira um
ser dinâmico, instável, ator de práticas sociais, as quais possuem múltiplas facetas e
sempre deveriam ser analisadas a partir de múltiplas perspectivas (Hertz, 1909).
Pensando o texto de Hertz no contexto da dança, é claramente possível ver como odualismo entre os dois lados do corpo está presente e incorporado em nós, e como olado direito assume um papel prioritário sob dois pontos de vista. Primeiro,convencionalmente, todos os movimentos, as coreografias e as direções que uminstrutor de dança passa são sempre a partir do lado direito primeiro. Sem o professor
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precisar mais falar depois de algum tempo, os alunos de dança já sabem que precisamcomeçar com o lado direito: com o pé, a perna, o braço, a mão direita primeiro, paradepois executar o movimento do outro lado. Para que possa-se apreender bem omovimento, ele é executado e repetido mais do lado direito, pois é o primeiro a ser utilizado. Ao trocar e executar os passos do lado esquierdo, os dançarinos encontrammuita dificuldade. Um exemplo prático disso vem do meu diário de campo,registrando uma aula de dança Afro no Circo Voador:
“Hoje estávamos fazendo uma série de movimentos seguindo a Eliete-elaexecutava, e a gente repetia os movimentos depois dela. Muitos deles requeriammovimentar uma lado do corpo de cada vez, e sempre começávamos com o ladodireito. Ao mudar para o lado esquierdo, eu e os outros alunos, nos sentimostotalmente desorientados e parecia como se o movimento, executadoanteriormente do lado direito razoavelmente bem e sem confusão, estivesse agora
errado. A execução do lado direito saiu “automaticamente”; no entanto, antes defazer o mesmo movimento do lado esquerdo, foi preciso parar para pensar e tentar várias vezes coordenar as partes inferiores e superiores do corpo para reproduzir aquela energia do lado esquierdo.” (6 Abril 2009)
Esta experiência pode ser tanto um resultado da hierarquia do lado
direito sobre o esquerdo que viemos incorporando socialmente durante
a nossa vida, quanto um resultado mais especificamente do ambiente da
dança, que reforça esta hierarquia e ensaia primeiro, e portanto mais, o
lado direito do corpo.
Mas, além das visões construtivistas analisadas até agora, como
pode também ser possível entender esta execução e prática de
movimentos mais ou menos “automâtica”? Como o corpo consegue se
comportar de certa maneira ou outra, dependendo do contexto? Qual é
o papel e a importância do corpo dançante na produção de significados?
Para que possa-se tentar responder a estas perguntas é preciso exploraroutras abordagens teóricas com respeito ao corpo, as quais vão
desconstruindo mais e mais o dualismo entre o corpo-objeto e a alma-
sujeito, e as quais propõem uma idéia de um corpo-sujeito capaz de
entender e de produzir conhecimento.
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O Corpo que (se)pensa dançando
Uma análise que pense o corpo como sujeito ativo moldado socialmente deve semdúvida considerar o conceito de habitus de Bourdieu. Segundo Bourdieu, o habitus é um
principio tanto estruturado quanto estruturante, pois expressa a maneira pela qual a
sociedade está depositada nas pessoas sob forma de habilidades ou modos estruturados de
pensar, sentir e agir, que, em seguida guiam as pessoas nas suas respostas criativas às
solicitações dos seus milieus sociais (Wacquant.)
O conceito de habitus portanto propõe um sujeito ativo, produto de experiências
individuais situacionadas dentro de um campo social. Ao explicar o habitus de Bourdieu,
Setton escreve que “ os habitus individuais, produtos da socialização, são constituídos em
condições sociais específicas, por diferentes sistemas de disposições produzidos em
condicionamentos e trajetórias diferentes, em espaços distintos…” (Setton, 2002: 65).
Usando as próprias palavras de Bourdieu, ele diz que o conceito de habitus confere ao
agente uma “capacidade de construir a realidade social, ela mesma socialmente
construída, que não é a de um sujeito transcendental, mas a de um corpo socializado”
(Bourdieu, 2001, p. 167). No mesmo texto “O conhecimento pelo corpo”, Bourdieu
afirma que “Aprendemos pelo corpo” (Ibidem, p. 172). Segundo o autor, a ordem socialse inscreve nos corpos, e existe uma “compreensão prática”, onde é “o sentido prático do
habitus habitado pelo mundo que ele habita…que constrói o mundo e lhe confere um
sentido” (Ibidem, p. 173).
O habitus se realiza portanto no corpo, o qual é produzido por rotinas e ensinamentose que, ao mesmo tempo, realiza as aprendizagens. Segundo Bourdieu, o habitus é umconjunto de disposições corporais incorporadas socialmente. O aprendizado portanto émuito mais do que uma internalização de idéias e de regras; ele é mais um aprendizadoque ocorre agindo. Um exemplo prático disso vem das aulas e ensaios de dança, onde
o corpo aprende o movimento fazendo-o. A seguir está um trecho de diário de campode uma aula de dança Afro que fiz em Salvador:
“Depois do alongamento, chegou a hora na qual todo mundo na aula forma váriasfilas e a professora executa um movimento na frente de todos nós, que, seguindoela, reproduzimos o movimento e executamos ele até a outra extremidade da sala.Aí reparei que só conseguia reproduzir o movimento se, ao olhar a professorafazendo ele, eu tentasse fazê-lo junto. Se ficasse somente olhando primeiro, nahora de partir para executar o movimento, não conseguia acertar os passos e mecoordenar.” (18 Agosto 2009).
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A partir deste conceito, pode-se ver como há um conhecimento que é corporificado, ouseja que está presente dentro do meu corpo e que me garante andar no mundo. Esteconhecimento é o resultado da constante interação entre o corpo e o mundo, entre o“eu” e o contexto, que estão sempre em contato e influênciando um ao outro.
Esta idéia de Bourdieu nos leva a uma postura mais radical ainda, onde o corpo, o
mundo e o indivíduo se entrelaçam e interagem de tal maneira que o dualismo cartesiano
pode-se considerar superado. Trata-se da abordagem fenomenológica de Merleu-Ponty,
fundamental para analisar o corpo em movimento na dança. Através desta abordagem,
desconstrói-se a idéia de corpo como simples expressão de significado e, em seu lugar,
ergue-se um corpo sujeito, produtor de significado e de discurso. Na obra A
Fenomenologia da Percepção, Merleu-Ponty pergunta: “se o corpo é instrumento, quemo instrumentaliza? A resposta é o próprio corpo, na medida que é extensão do meu “ser”,
torna-se dele o agente. No momento em que corpo e consciência são interagentes,
deveria-se reconhecer certa subjetividade ao corpo (Merleu-Ponty, 1971).
O corpo, segundo Merleu-Ponty, é o locus da manifestação da existência, dos atos
incorporados, e é sujeito. É no corpo-próprio o lugar onde o sujeito “reconhece o corpo e
estabelece com ele uma subjetividade incarnada, instaurada e instauradora de sentidos”
(Julio). Tudo portanto está no corpo, e este é o veículo de comunicação do ser no mundo.
Gestos e vozes são linguagens construídas através do meu corpo. O mundo então não
pode ser pensado fora da experiência corporal, pois o corpo não é só suporte; ele é a
janela da minha experiência no mundo (Merleu-Ponty, 1971).
Esta visão fenomenológica de Merleu-Ponty vê um corpo, ou seja um sujeito, que
não é somente “pensante”, mas que é também um sujeito que sente ao mesmo tempo.
Este corpo está toda hora se deparando com o mundo, considerado pelo autor como algo
concreto, como objetos não abstratos. O corpo é o ponto de vista sobre este mundo e se
relaciona com os objetos, com as formas presentes ao seu redor de maneira efetiva eafetiva, pois o corpo não é só movimento, mas também sensibilidade, e a emoção é
fundamental na experiência do mundo. É preciso portanto realizar experiências sensório-
motoras antes de tudo no próprio corpo, para poder entendê-las. De maneira parecida
Sartre, no texto O Corpo, extraído de “O ser e o Nada: Ensaio de Ontologia
Fenomenológica”, escreve que eu sou o que o mundo é capaz de apresentar para mim, e
que o meu lado sensível emerge na hora que me coloco em relação com as formas do
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mundo (usando o conceito de Merleau-Ponty) diante de mim. O mundo é o encontro da
sensação com a ação; ele é fruto de uma experiência vivida e da capacidade de imaginar
esta experiência vivida. Não existe portanto um “fora” e um “dentro” do mundo (Sartre,
1997).
Voltando à teoria de Merleau-Ponty, pode-se afirmar que esta visão une inteligência, motricidade e percepção em um
corpo-sujeito. Este corpo não é simplesmente uma coleção de orgãos, mas é organizado segundo um “esquema corporal” que, unindo
os elementos de corpo, espaço e ação, expressaria a localização do corpo no mundo e permite entender como exprimir e situar seu
corpo no mundo (Merleu-Ponty, 1971). Ao falar de espaço e localização, aparece um elemento fundamental na discussão de Merleau-
Ponty: o movimento. O movimento não é somente ação locomotora; ele é provido de sentido e significado, e ele cria a consciência, a
imagem corporal e o espaço. Na hora da execução do movimento, o sujeito não precisa pensar antes para poder executar; é algo que
acontece simultaneamente. O corpo em movimento é portanto a demonstração da atividade do movimento. O ato do movimento não é
mecânico; ele traz uma inteligência em si. Isso quer dizer que existe uma “compreensão corporal” que leva o corpo a se movimentar,
respondendo fisicamente após compreender a situação. A resposta corporal já é interpretação; ela não é nem uma resposta mecânica,nem uma avaliação mental; esta resposta corporal já é uma compreensão da situação (Merleu-Ponty, 1971).
Para entender o que isso significa praticamente na dança, trago aqui um momento de uma aula no Circo Voador, onde o
corpo compreendeu a situação e executou o movimento sem que tivesse uma avaliação mental anteriormente. Nesta situação minha
professora colocou vários ritmos diferentes de música, trocando toda hora e deixando-nos livres para executar qualquer movimento.
Ao ouvir a música o corpo já respondia de certa maneira:
“Durante a aula executamos movimentos variados ao mudar constante dos ritmos, rapidamente. Naquele momento o corpo está pensando; a gente reflete depois no movimento que já conhece por cada estilo de música, mas a memória está no corpo.” (30Março 2009).
Neste caso, através do sentido da audição, o corpo compreendeu uma situação que, de acordo com as memórias de experiências
passadas, pediu ao próprio corpo de se movimentar com um certo “estilo”. Como tudo aconteceu de maneira tão rápida, a
interpretação da música foi a própria resposta corporal e não um pensamento anterior à movimentação. Isso indica que o corpo
“pensou” e “lembrou-se” sozinho dos movimentos aprendidos e dos diferentes ritmos, e foi capaz de executar o que aprendeu na
prática. Utilizando as palavras de Merleu-Ponty, ao falar de “adquirir o hábito de uma dança”, ele escreve: “é o corpo…que agarra e
que “compreende” o movimento. A acquisição de um hábito é bem a apreensão de uma significação, mas é a apreensão motora de
uma significação motora” (Merleu-Ponty, 1971, p. 154). A própria Eliete (minha professora), durante uma outra aula no Circo Voador
na semana seguinte disse: “não se trata de copiar o movimento, é entender ele. O importante é sentir, cada um com seu jeito, prestar
atenção aos detalhes e ver a ciência do movimento” (Eliete, 6 Abril 2009).
Voltando à relação entre o corpo e o mundo, Merleau-Ponty diz que precisamos
habitar o mundo do objeto para penetrar nele, ou seja, o corpo não pode se distanciar do
objeto para conhecê-lo; ao contrário, precisa penetrá-lo. A visão fenomenológica propõe
um abandono de si no outro, para poder conhecer o outro habitando e adotando-o. A
divisão corpos-objetos do positivismo não está mais presente aqui. Segundo Merleau-
Ponty os objetos são corpos e os corpos são objetos, e o mundo é mobiliado por corpos e
objetos, por formas que se relacionam toda hora, criando várias possibilidades de
encontros no espaço. Dentro deste espaço do mundo, o corpo tem seu mundo próprio,
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sua singularidade, onde o gesto é fundamental na produção de linguagem e comunicação
deste corpo com o mundo. O gesto é onde o corpo se realiza, é a estrutura da memória. O
gesto é usado para recuperar a memória, pois nele pensamento e movimento estão juntos.
Cada gesto é um ato significativo, pois fornece muita informação sobre a vida do sujeito.
Não existiria portanto vida sem gestos, pois até a fala é executada por gestos. O corpo é
então um medium, elemento fundamental da comunicação (Merleu-Ponty, 1971).
Fazendo uma comparação com Goffman, cuja teoria foi analisada no capítulo 1 deste
trabalho, podemos dizer que o acontecimento motor conforme é visto por Merleau-Ponty
estabelece os jogos interacionais pelos gestos, e mostra a dimensão corporal e sensorial
das mesmas interações. A comunicação, segundo o autor é, portanto, vista como aextensão do homem em contato com o outro. Vamos agora explorar mais em detalhe esta
noção da importância do gesto como criador de significado, e o uso deste gesto na
performance da dança Afro.
O gesto na Performance da dança Afro
Continuando a discussão sobre a importância do gesto, uma grande contribuição
vem de George Herbert Mead. Baseando sua teoria na interação social, Mead afirma queé no gesto que se produzem a experiência e o significado, e, mais especificamente, o
autor considera o que ele define de “conversation of gestures” como a chave da
organização social (Mead, 1967). Essa conversa, portanto, esta comunicação, é o que
gera a interação, movida por uma operação coordenada e cooperativa. O sentido está na
organização da experiência através de gestos e a produção de significado deriva da co-
operação na conversa de gestos (Ibidem). Pode-se observar aqui uma semelhança com a
teoria de Erving Goffman analisada anteriormente, onde as conversas corporais e as
interações entre indivíduos criam significados e organizam as situações sociais. Goffman
relativiza tudo, juntando as técnicas do corpo com a formação do “eu”. A linguagem em
Goffman se realiza no corpo e como um ato performático. A fala não é somente um som,
mas uma perspectiva e uma atitude. Através de atos de fala, de condutas e de linguagem
se produz o “eu”, que é portanto uma construção social. Comparando então Goffman com
Mead no discurso sobre linguagem, segundo este último, toda conversa tem uma ordem e
um jogo gestual que a organiza (Mead, 1967). Por ambos, a cooperação entre os
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indivíduos é fundamental para o sucesso da interação e a produção de significado, assim
como foi visto no capítulo anterior analisando as teorias cooperativas de Maturana,
Bakhtin e os outros autores utilizados.
Um exemplo de uma conversa corporal que se realiza através do gesto é a
experiência de “contracenar” na dança. Usa-se esta expressão quando quer se indicar uma
interação entre dois ou mais dançarinos, os quais vão respondendo um ao gesto e ao
movimento do outro, tentando estabelecer um diálogo e construir uma coreografia. A
contracena na dança é parecida com o jogo na capoeira, onde constroi-se uma conversa
de gestos entre os corpos envolvidos no jogo. Nos ensaios do Centro Coreográfico do Rio
de Janeiro exercitamos várias vezes o ato de contracenar:“O outro exercício de hoje foi uma contracena onde cada um começou a criar movimentos no meio da sala, e aos poucos teve que contracenar um com o outro,até juntar-se a todo mundo e contracenar com todos ao mesmo tempo, juntos, setocando, até parar no chão e andando juntos, entrelaçados no chão, juntando oscorpos. Os corpos se juntaram, entrelaçaram, se tocaram sem reter nada, ousando. Não foi fácil. Tem que se desenvolver muita confiança para este tipo de trabalho,aprender a conhecer os outros. Experiencia-se muito medo de não saber oslimites, até onde você pode ir. Foi uma maneira para se descobrir também, namudança de olhar, e ver que nosso corpo é um mistério a ser desvendado.” (18Abril 2009).
Pode-se observar como esta interação corporal foi cheia de movimentos, emoções,
medos, descobertas e como “não foi fácil”. Para que se crie uma coreografia de corpos
em movimentos, todos estes fatores precisam interagir, e eles somente interagem a partir
dos próprios gestos executados por corpos em movimento. Graças aos gestos então, os
corpos puderam “se juntar, entrelaçar e se tocar sem reter nada”. Confiando no outro e
estabelecendo a cooperação entre os dançarinos, foi possível realizar a descoberta do
próprio corpo e do dos outros, rendendo possível a realização da contracena.
Percebemos então a convergência das contribuições de Mead e Goffman. No
entanto, outros autores, além dos analisados no capítulo 1, contribuem com outras
abordagens a interação e conversa de gestos como produtoras de significado. Mais em
específico, continuaremos vendo como esta interação acontece no campo da performance,
seja esta sagrada ou profana, seja entre os atores envolvidos no ritual ou no palco com a
audience. O texto “Performance and the Cultural Construction of Reality: a New Guinea
Example” de Schieffelin traz um exemplo de etnografia e análise de ritual, neste caso um
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ritual espírita na Nova Guiné, onde o autor inclui uma descrição detalhada, seguida por
uma análise, na qual ele ressalta a importância dos atores da performance, tanto dos
envolvidos no ritual quanto da audience (Schieffelin, 1993). Assim como Turner também
teoriza, Schieffelin escreve que o ritual é validado pelo público e que o significado só se
dá durante a interação social. Não existem portanto estruturas fixas: elas são construídas a
cada ritual e as crenças vão se formando dependendo do ritual. Não existe portanto uma
estrutura, uma lógica de significado, pois o sistema de crenças não é fixo e depende do
jogo entre a platéia e os atores em um determinado contexto. O ritual é formado pelo
conjunto de evocações que um evento cria, e são estas evocações que precisam ser
observadas e analisadas (Schieffelin, 1993).Como exemplificação deste argumento, trarei minha experiência pessoal como
espectadora de rituais de Candomblé da nação de Ketu no Rio de Janeiro. Desde que
comecei a fazer dança Afro, me interessei para conhecer mais sobre os Orixás que a gente
estava dançando, e foi assim que comecei a frequentar festas de terrreiros de candomblé.
Lembro das minhas primeiras vezes assistindo estes rituais quando, mesmo sendo
fascinada e atraída por aquelas cerimônias, não conseguia entender muito do que estava
acontecendo. Na maioria das vezes, eu ia acompanhada por um amigo que é iniciado na
religião, o qual tentava me explicar os inúmeros símbolos que estavam presentes no
ritual, com seus usos e significados. Mesmo assim, lembro que não conseguia entender
plenamente e ter uma exata noção da dinâmica das festas. Com o passar do tempo, fiquei
frequentando mais e mais os terreiros e continuei dançando a dança de Orixás nas aulas
com a Eliete, até que ultimamente, depois de quase dois anos de convivência e
experiência dentro deste contexto, reparei o quanto um ritual de candomblé Ketu diz para
mim. No mês de Junho fui para a inauguração de um Ilê em Nova Iguaçu e me deparei
com a seguinte experiência pessoal:“Cada pessoa executava o gesto com seu próprio estilo, mas podia-se reconhecer qual gesto era. Como espectador, fui capaz dereconhecer a maioria dos gestos e saber a qual orixá pertenciam, mesmo reparando a diferença entre a execução do gesto no xirêdo ritual e na dança, onde é muito maior e mais estilizado… Foi interessante ver a simbologia pela qual, como audience, fui capazde reconhecer cada Orixá, antes das danças: as cores da roupa, as guias no pescoço, as ferramentas de cada um…”(27 Junho2009).
Este reconhecimento de gestos e símbolos que cada orixá apresenta
durante o ritual, só foi possível graças a minha vivência e experiência.
Foi somente por causa deste idioma corporal, conforme conceitua
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Goffman e que venho aprendendo há uns anos, que os gestos e os
símbolos do ritual do candomblé adquiriram um sentido e evocaram
significado para mim naquela circunstância.
Assim como o ritual para Schieffelin, a performance para Richard Schechner,
como já vimos no capítulo 1, existe na interação entre ator e audience e é composta por
vários momentos e fases que vão da preparação com treino e ensaio, ao após
apresentação. No texto “ Points of Contact Between Anthropological and Theatrical
Thought ”, Schechner apresenta como esta ligação entre ritual e performance exemplifica
a ligação entre teatro e antropologia. A antropologia permite a passagem da vida de todo
dia ao plano do teatro, do espetáculo. Ao se fazer uma análise antropológica, pode-se
olhar para o cotidiano como um conjunto de atitudes corporais, ou seja um conjunto de
desempenhos, de coreografias (Schechner, 1985). Um exemplo desta interação entre ator
e audience na vida cotidiana pode ser trazido de uma experiência recente que tive
andando pela rua em Salvador:
Hoje experienciei algo que nunca tinha acontecido comigo no Rio. Me arrumei de
manhã e coloquei uma bata amarela e preta, com um desenho de uma máscara
africana. Como meu cabelo estava rebelde, amarrei ele com um pano amarelo,
coloquei uns brincos com búzios e minha guia dourada no pescoço. Sai para
tomar café e a garçonete do hotel comentou “tá bonita hoje, toda de Oxum”. Daí
fui para a aula, e um professor do curso que estava fazendo disse “hoje você
vestiu seu projeto”, sabendo que estava pesquisando dança de Orixás. À noite sai
andando na Avenida Sete até o Pelourinho e pelo menos duas pessoas
comentaram “Que Oxum linda” ou saudaram “Ora ie ie o”. (13 Agosto 2009).
Lendo este trecho de diário, pode-se ver como os símbolos que estava
vestindo, referendo-se à deusa das águas doces Oxum, assumiram e
evocaram este significado em um contexto, tal qual a cidade de
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Salvador, onde estes gestos corporais são entendidos através de uma
vivência muito presente da religião Afro-brasileira, parte do cotidiano
da cultura baiana. O amarelo presente na roupa e nos acessorios que
estava vestindo foi imediatamente associado à cor símbolo da Iabá
rainha dos rios. Os búzios e a estampa do vestido contribuiram para a
formação de um visual “Afro”, o que pode ter provocado mais tais
respostas. No Rio de Janeiro, ao contrário, não sendo estes gestuais uma
parte predominante da experiência das pessoas no cotidiano da cidade,
nunca encontrei uma tal interpretação ao atuar certos gestos visuais.
O gesto é um elemento muito poderoso e capaz de comunicar
coisas que a palavra por si só não consegue transmitir. No campo do
sagrado, dos rituais e das emoções, o uso do gesto é fundamental.
Rosamaria Barbara escreve que “O corpo expressa muito mais o
contato com o divino que as simples palavras.” (Barbara, 1995, p. 168).
È por isso que a comunicação nos rituais transmite-se através da dança,da música, dos movimentos corporais. Na performance de dança o gesto
nasce do sentimento e é “como a exteriorização de sentimentos que se
evidenciam no corpo” (Oliveira, 2006, p. 60). No momento da dança de
Orixás, o gestual assume uma importância especial, conectando o corpo
com uma energia da natureza e com um sentimento específico ligado a
certo Orixá.
Um exemplo interessante desta conexão entre dança e ritual através do gesto é fornecido
pelo artigo “O Gestual Cotidiano das Lavadeiras e sua Relação com os Orixás uma
Concepção Coreográfica”, onde Maria de Lurdes Barros da Paixão afirma que o mito
pode se reafirmar na dança através dos movimentos do corpo, mesmo que estejamos
falando da dança em um contexto técnico-artístico e dessacralizado (Barros da Paixão,
2002, p. 99). O que faz possível a transmissão do mito e das histórias sagradas afro-
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brasileiras na dança Afro não é o contexto, mas a linguagem do corpo através da fala do
movimento.
Vários exemplos desta linguagem dos gestos contando mitos afro-brasileiros vêm
dos gestuais da dança de orixás na dança Afro, como já tivemos oportunidade de ver no
capítulo 3, falando sobre as características dos Orixás. Os movimentos das mãos de Iansã
relembram o mito que conta da deusa do vento e da tempestade afastando os eguns
(espiritos dos mortos) ao entrar no cemetério para enterrar o marido Xangô. A postura
corporal deste último na dança, com cabeça erguida e peito aberto, reafirma o mito dele
ser o rei forte e poderoso, que nunca olha para baixo e sempre mostra imponência. A
dança de Obá, durante a qual ela segura uma mão na orelha toda hora, incorpora o mitosegundo o qual Oxum mandou Obá cortar a orelha e colocá-la na comida de seu marido
Xangô, para poder conquistar seu amor de volta. Mas esta foi uma cilada armada pela
própria deusa dos rios e das águas doces, também apaixonada por Xangô, para que o rei
repudiasse Obá. Cada gesto de cada Orixá executado na dança reafirma um mito,
ajudando a retornar à ancestralidade e resgatando os fatos que ficaram na memória e que
falam da história e da cultura de um povo (Barros da Paixão, 2002, p. 99). Cabe aqui
trazer o texto de Leda Martins “Performances do Tempo e da Memória: os Congados”,
onde ela afirma que a memória do conhecimento “se recria e transmite pelos repertórios
orais e corporais, gestos, hábitos, cujas técnicas e procedimentos de transmissão são
meios de criação, passagem, reprodução e de preservação dos saberes” (Martins, 2003, p.
69). Ela continua escrevendo sobre o papel do corpo:
“O corpo na performance ritual é local de inscrição de um conhecimento que segrafa no gesto, no movimento, na coreografia, na superficie da pele, assim comonos ritmos e timbres da vocalidade… Nas performances da oralidade, o gestoinstitui e instaura a própria performance” (p. 70)
O corpo portanto, com todos seus elementos, a pele, o movimento, o gesto, os ritmos, a
voz, é o lugar de memória do conhecimento, que se institui atraves da performance,
graças à repetição de gestos, coreografias, músicas e cantos, técnicas que são todas
veiculadas pelo corpo. Martins escreve sobre os Congados, um tipo de performance afro-
brasileira; assim como a dança Afro, estas performances carregam, transmitem e recriam
no corpo uma memória ancestral de origem africana, com suas histórias, seus valores e
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suas características. Sendo a cultura afro-brasileira uma cultura predominantemente oral e
gestual, o corpo vira local de memória por excelência, fazendo da dança a própria
inscrição da memória neste corpo. Continuando com as palavras de Leda Martins:
“O corpo em performance restaura, expressa e, simultaneamente, produz esseconhecimento, grafado na memória do gesto” (Martins, 2003, p. 82)
O gesto vira portanto o protagonista da produção de conhecimento e do locus da
memória. Ele é o instrumento de transmissão e reprodução das histórias ancestrais dos
povos de matriz africana, que por séculos basearam a transmissão de suas culturas na
oralidade. Tanto o ritual no campo sagrado quanto a performance da dança Afro no
contexto profano são dois lugares onde o corpo expressa as memórias inscritas nele na prática e é utilizado para que recrie e transmita os mitos afro-brasileiros através da
música, dos cantos, da indumentária, da dança, ou seja, através dos gestos.
Finalmente podemos analisar a visão de Harold Scheub sobre gesto e interação na
produção de significado na performance oral. Aqui o autor afirma que a matéria de toda
performance é a cultura, formada por várias narrativas. O narrador portanto pega os
elementos da vida cotidiana e usa eles na narrativa e na performance de arte, a qual
provoca uma experiência estética na platéia. Na narrativa há portanto uma tradição
atualizada através do real, ou seja a cronologia do passado é atualizada no tempo
presente, juntando o mundo real ao mundo da fantasia. O narrador trabalha sempre em
cima das reações da platéia e dos elementos emotivos sinalizados no corpo da audience.
O gesto nisso é fundamental: ele tem a força de capturar a platéia e é o veículo da
emoção, fornecendo a ligação entre corpo, oralidade e emoção presente na performance,
assim como no ritual (Scheub, 1977).
Para exemplificar como o gesto é tão poderoso na resposta emocional da platéia,
uso a reação que eu tive como audience de um espetáculo de dança Afro no momento dadança de Orixás. A experiência foi quando fui assistir o espetáculo da Cia Rubens Barbot
de dança previamente mencionado, intitulado “Orixás”. Este foi uma reinterpretação
contemporânea da dança dos Orixás que, ao mesmo tempo, mantinha os gestuais e a
simbologia típicos de cada orixá. Os elementos presentes no contexto estimulavam cada
sentido, do cheiro do incenso, à luz das velas, ao vento do palco aberto onde a companhia
estava se apresentando, ao toque dos atabaques. Cada vez que um orixá entrasse em cena,
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todos os sentidos corporais se envolviam para curtir e compreender o espetáculo. Em dois
momentos em particular, na apresentação de Oxum e na entrada final de Oxalá, meu
corpo começou a se arrepiar e se emocionar de tal maneira que cheguei a chorar. Agora,
racionalmente falando, não havia razão alguma para que eu tivesse esta reação, mas
entendo que houve, como hipótese, uma compreensão corporal que aconteceu, estimulada
pelos gestos presentes na performance, assim como no ritual.
Para resumir estas construções de significados a partir da conversa de gestos entre
indivíduos, Mead fala sobre o aspecto da memória. O autor considera a memória como
um catálogo de experiências de gestos. As memórias e os gestos só se configuram através
da experiência e a memória é produto da atividade pública do indivíduo. Algo só temsignificado se for construído pela ação; portanto, se não há memória da experiência, o
gesto visual não possui significado. Este gesto será percebido mas não será
compreendido, pois não tem consciência sem a experiência (Mead, 1967). Analisaremos
agora mais esse aspecto do gesto dentro do contexto da memória corporal para
chegarmos ao conceito de “embodiment”, que está na base de toda a discussão
desenvolvida até agora sobre corpo e dança.
Memória corporal e Embodiment
Evidenciei já no capítulo 1 e ao longo deste capítulo também a forte conecção que
existe entre performance e ritual, entre o contexto sagrado e o profano; no caso deste
trabalho as experiências performáticas no campo profano da dança Afro oferecem uma
clara noção de quanto este campo profano se aproxime do contexto sagrado do ritual de
Candomblé, onde os “santos” são incorporados pelos sujeitos do ritual. Com respeito a
este campo sagrado, é interessante olhar para uma análise do corpo em estado de possessão, e por isso podemos fazer uso dos estudos de Paul Stoller sobre “Spirit
possession”. Na obra Embodying Colonial Memories, Stoller explora o campo dos
sentidos e das sensorialidades, analisando as performances dos corpos envolvidos na
possessão de espíritos em rituais e olhando para as sensações, as vibrações e as emoções
presentes nos sujeitos destes eventos. Ele considera o corpo como fundamental, assim
como “os cheiros, os sabores, as texturas e as sensações” (Stoller, 1995, p. 22).
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O que é que estas sensações provocam dentro de um ritual coletivo? Utilizando os
conceitos de Connerton, Stoller escreve que uma memória social se forma nestes rituais,
pois eles se referem a pessoas e eventos históricos ou mitológicos e estas referências não
são simplesmente pensadas ou contadas: elas são atuadas através de práticas corporais
(Stoller, 1995). Estas práticas, ou seja “o substrato incorporado da performance”, é a
chave para a memória cultural, onde “o passado é, como era, sedimentado no corpo”
(Ibidem, p. 29). Indo mais além desta concepção do Connerton, Stoller adiciona os
sentidos e as sensações a estas experiências e performances, afirmando que a memória
cultural é um fenômeno incorporado. Esta afirmação é bem exemplificada pelas histórias
que o Stoller traz no seu texto do livro Corregidora de Gayl Jones. Trazendo uma históriado meu campo etnográfico, é evidente como a memória “embodied ” está presente nos
corpos dos dançarinos do nosso grupo de dança Afro. Em um ensaio no Centro
Coreográfico do dia 25 de Abril 2009, cada pessoa do grupo interpretou uma parte de
uma poesia, cujo texto é o seguinte:
Echoam Atabaques nas Senzalas…
Ressoam Atabaques nos terreiros das fazendas, sufocando gemidos, lamentos, tormentos
Ressoam Atabaques nos terreiros das fazendas, para afastar a saudade da terra amada
que deixou
Ressoam Atabaques nos terreiros das fazendas, louvando Zumbi dos Palmares, negro de
grande valor
Ressoam ainda hoje os Atabaques, nos morros, guetos, favelas, alertando ao povo negro
que a liberdade ainda não chegou.
Cada dançarino declara estes versos ao se afastar de uma figura corpórea que tinha sido formada e que a gente chama de
“árvore”, ou seja um conjunto dos nossos corpos encaixados um no outro, onde as pernas, os braços, as mãos, os troncos e as cabeças
são utilizados para formar o tronco, os galhos e as folhas da árvore Baoba, elemento sagrado na cosmogonia Africana, símbolo de raiz
e ancestralidade. Ao se movimentar para longe da árvore e ao declarar esta poesia, o corpo de cada um incorporou na voz, no olhar, na
atitude e em cada gestual as sensações que esta realidade, esta história oral conta para nós. Os gestos corporais eram cheios de dor na
primeira estrofa, de tristeza e saudade na segunda, de força e orgulho na terceira, e de raiva e realidade na última estrofa.
Esta performance é um exemplo de como a memória é um saber prático e de
como a memória de um grupo se constitui em performances que re-apresentam o passado,
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re-experienciando-o e revivendo-o, assim que não fique tão distante. Como os
participantes do grupo disseram depois da performance desta poesia, “a gente busca
nossa identidade através da dança” (S.); “com nossas conversas a gente resgata nossa
história e nossa memória” (F.); e “isso está no corpo, é uma memória que vai aparecendo
através do gestual” (E.). Como escreve Oswald Barroso no artigo “Incorporação e
memória na performance do ator brincante”, a gente possui um conhecimento habitual,
uma “recordação no corpo”, adquirida através de um percurso de incorporação (Barroso,
2004, p. 70). O corpo pode portanto ser lido como um texto que contém significados e,
utilizando a noção de Connerton, Barroso escreve que “muitas formas de memória se
sedimentam no corpo” (Ibidem, p. 76). Em tudo isso a importância do espaço e do gestosão fundamentais na conservação da memória cultural através do corpo, pois, como
lembra Bastide, “os rituais não são mais que a tradução dos mitos em gestos” (Barroso,
2004: 77).
Para explicar mais a noção de embodiment , retomamos o discurso de Thomas
Csordas, o qual considera o corpo como “fundamento existencial da cultura” (Csordas,
1994). O corpo não é portanto separado da mente e não é só suporte, mas é chão da
cultura e do “eu”. O ser é dinâmico, sempre em movimento na prática da experiência. O
corpo é o lugar da fluição da experiência e a cultura está incorporada no corpo. Ao
estudar e etnografar a religião pentacostal, Csordas mostra a interação corpo\mente e
mostra que existe uma dimensão abstrata do corpo tanto quanto a dimensão incorporada
da mente. No estudo dele sobre glossolalia, relatado no texto “Embodiment as a
Paradigm”, pode-se observar o envolvimento sensível da palavra e o intercâmbio entre
corpo e linguagem. A narrativa provoca respostas não só intelectuais mas sensíveis, então
as histórias são compreendidas sensorialmente. Existe portanto uma correspondência
entre o mito narrado e a experiência corporal. Csordas descreve como as respostasgestuais imediatas a gestos de outras pessoas, as quais mostravam uma impressão de
espontaneidade coletiva, indicavam o entendimento imediato e intuitivo de todos do
significado implícito do gesto (Csordas, 1990). Um pouco mais adiante no texto, Csordas
escreve que este sentido de fazer o que “parece estar certo” emerge espontaneamente,
com tanto que os participantes tenham acesso imediato ao conhecimento corporal
inculcado como disposições compartilhadas culturalmente (Ibidem).
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Trazendo esta discussão para a dança, consigo pensar em várias ocasiões nas
quais este senso do que “parece estar certo” foi o guia inspirador da execução de vários
movimentos e gestuais. Dois exemplos são bastante explicativos deste processo de
compreensão corporal devida ao embodiment de certas disposições; o primeiro mostra
uma resposta corporal a um estímulo auditivo, o outro apresenta uma resposta a um
estímulo visual. Primeiro, durante o alongamento de uma aula no dia 3 de Junho na UERJ
aconteceu algo que reparei ser fruto de um certo hábito e de uma memória corporal:
“Estávamos em uma posição com um joelho dobrado e a outra perna esticadaatrás, com as mãos apoiadas no chão, alongando as coxas, quando a Eliete deu a
ordem: “abram”. Eu imediatamente reagi e me posicionei com as duas pernasesticadas , tronco lá em baixo e mãos ainda no chão. Mas reparei que algumas das pessoas que eram novas na aula e não estavam acostumadas com o alongamentoda Eliete, não assumiram logo a nova posição, pois não tinham entendido ocomando.” (3 Junho 2009).
Esta experiência mostra como, respondendo a uma ordem vocal tão
genêrica como “abram”, só me foi possível executar o passo certo pois
eu já tinha no meu corpo um conhecimento prévio do movimento que ia
seguir aquela posição na qual estava.
Durante uma aula de dança em Salvador, meu corpo pensou e
respondeu automâticamente ao movimento da professora:
“Assim que a professora abaixou o tronco, apoiou as mãos nochão e flexionou os joelhos, entendi imediatamente qualmovimento ia seguir-sabia que ia ser o movimento rápido baseadono passo de Xangô, com o contratempo dos pés, e jogando umbraço e depois o outro para a frente.”(25 Agosto 2009).
Neste caso um pequeno gesto corporal da instrutora de dança foi
suficiente para meu corpo já reagir e executar o movimento que ela ia
mostrar ainda. Isso mostra como o corpo possui uma memória e uma
inteligência em si, como Lakoff e Johnson afirmam ao mostrar como
“reason is fundamentally embodied” (Lakoff and Johnson, 1999, p. 17).
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Neste capítulo “The Embodied Mind”, parte da obra Philosophy in the
Flesh, os autores escrevem que não existe uma plena capacidade
autônoma da razão como separada e independente de capacidades
corporais tais quais a percepção e o movimento (Lakoff and Johnson,
1999). Eles continuam dizendo que nossas categorias são formadas
através do embodiment , ou seja, elas são parte da nossa experiência. O
corpo está portanto envolvido em construir e formar a própria natureza
da conceptualização (Ibidem, p. 37).
Segundo esta teoria do embodiment , alguma coisa que aprendemos
se encarna, se transforma em corpo. O corpo é flúido e forma uma rede
de conexões com o ambiente, “envolvendo aspectos sensório-motores,
emocionais e racionais” (Meyer, 2007, p. 144). Como Sandra Meyer
continua escrevendo, “o corpomente é um auto-organizador e
transformador de processos que ocorrem em seu próprio meio e nas
relações que estabelece com o ambiente” (Ibidem). Esta perspectiva nospermite de deixar do lado o entendimento dualista entre corpo e mente e
pensar “o pensamento e a cognição enquanto processos encarnados”
(Ibidem, p. 145); assim, acaba a concepção de uma separação entre
pensamento e movimento, entre razão, percepção e ação. Cabe aqui
lembrar o exemplo vindo da minha etnografia analisado no capítulo 3,
sobre o caso do corpo de A. dançando na sala de aula e enquanto seu
Oxaguiã estava incorporado no ritual de Candomblé. Após ter
apresentados as teorias fenomenológicas do corpo e a noção de
embodiment neste capítulo, podemos melhor compreender a
possibilidade do corpo de A. estar trazendo sua própria memória ao
dançar na sala de dança Afro, mostrando o que ele aprendeu
corporalmente ao longo dos anos no terreiro de Candomblé.
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Aplicando esta noção mais ao campo da dança, e tomando a idéia
principal da tese de doutorado de Helena Katz podemos pensar a dança
como um “pensamento do corpo”. Katz escreve que é como se o corpo
desenvolvesse uma própria inteligência e diz que a qualidade de
movimento mais completa, que pode ser identificada como pensamento
do corpo, é a dança (Katz, 1994). Retomando e complementando esta
idéia, Helena Bastos escreve que “o movimento é o fundamento do
conhecimento, e a dança ganha existência no corpo a partir de
movimentos. É na ação que a dança constrói o corpo para que possamos
entender o seu funcionamento e, consequentemente, conhecer” (Bastos,
2007, p. 213). Corpo e movimento portanto interagem e criam
conhecimento na dança.
Um aspecto interessante de se analisar a respeito, sugerido por
um artigo de Airton Tomazzoni, é ver como “os movimentos do corpo
impõem sua materialidade, sua fisicalidade” (Tomazzoni, 2007, p. 170).Ele escreve que na dança os signos são determinados pelas qualidades
do corpo em movimento e “pela aparência desse corpo, pela sua forma”.
Ou seja, ”antes de qualquer coisa, é o nível sensórial que fala” (Op. Cit:
170), pois os sentidos dos movimentos remetem a suas qualidades. Nas
palavras de Tomazzoni “o movimento não depende do enredo ou da
história, mas das qualidaes dos corpos em movimento” (Ibidem, p. 171)
e é então no próprio movimento corporal que se funda o significado.
Este conceito pode ser aplicado à experiência do dançarino durantre a
execução de movimentos de orixás. Durante um ensaio no Centro
Coreográfico, por exemplo, Eliete colocou um CD com músicas de
orixás e começamos a seguir ela, executando os movimentos típicos de
cada um. Começamos por dançar Iemanjá, a deusa das águas salgadas,
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depois Omolu, deus que espanta as doenças, e enfim Iansã, rainha dos
ventos e da tempestade. Além da diferença nos movimentos próprios de
cada orixá, o que pude reparar foi a diferença na qualidade do
movimento e do corpo ao dançar:
“Na hora de dançar Iemanjá, foi como se a sensação domovimento da água tivesse entrado dentro do corpo. Cada passo ecada gesto era sinuoso, tinha uma qualidade de leveza e sutileza, etinha um aspeto ondulatório, como se fossem as próprias ondas domar. Ao mudar para a dança de Omolu, o corpo começou a semovimentar diferentemente. Mais do que ondulação, agora eraum certo tremor a caracterizar os movimentos. O tronco e os
joelhos assumiram um molejo intenso e os braços, mãos e coluna,ficavam se tremendo, como se fosse para deixar sair as doenças.Finalmente, a dança de Iansã fez o corpo se movimentar comextrema rapidez, força e energia, parecendo ser carregado pelovento e mostrando a qualidade de ar presente na dança de Oya.”(5 Setembro 2009).
É aqui evidente como os mitos e as qualidades de cada orixá sãoincorporadas no corpo dançante. Na dança, o sentido do movimento
pode-se entender diretamente pela qualidade do movimento, seja esta
sutil e ondulatória, firme no chão, ou rápida e aeréa que nem uma
ventania. Ao mesmo tempo é esta qualidade do movimento que produz o
significado de um certo mito ao re-atuá-lo e incorporá-lo.
Este capítulo visou fazer uma viagem através de várias teorias
sociológicas e antropológicas do corpo, enriquecidas e exemplificadas
por casos etnográficos e de auto-etnografias, bem como experiências
corporais vividas no campo da dança Afro. Começou-se por analisar as
visões construtivistas do corpo, que consideram este último como
produto da sociedade, instrumento do homem e suporte das
classificações sociais. Vimos como, mesmo não inteiramente, estas
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teorias começaram a quebrar com o dualismo cartesiano que vê o corpo
como objeto totalmente separado de uma mente ativa. Para
desconstruir mais este pensamento dualista, explorou-se o conceito de
habitus de Bourdieu, que levou às abordagens fenomenológicas de
Merleau-Ponty e Sartre. Aqui viu-se a importância das sensações e das
percepções no entendimento e na produção do conhecimento. A
proposta neste nível da análise é de um corpo-próprio que possui uma
inteligência em si capaz de compreender e produzir significados.
Sempre analisando este discurso com referência ao campo da
dança, continuou-se a ver a centralidade do corpo através do papel
fundamental que o gesto tem na comunicação e na produção de
conhecimento. Tomando as teorias de Mead como base, analisou-se
como o significado se produz na interação entre os atores e a audience.
Vários exemplos práticos foram trazidos para exemplificar este conceito
presente nos textos de Goffman, Schieffelin, Scheub e Schechner,retomando e aprofundando a discussão sobre performance iniciada no
capítulo 1, focando-se sobre a performance da dança Afro e sua
proximidade com rituais sagrados.
Fazendo a conecção entre profano e sagrado, viu-se como o corpo
é protagonista tanto na performance quanto no ritual, não somente ao
nível de comunicador e produtor de significados, mas também como
sede de memórias incorporadas. Inspirando-se nas obras de Csordas,
Stoller e Lakoff e Johnson, explicou-se e aplicou-se o conceito de
embodiment à prática da dança Afro, onde os corpos re-atuam e re-
produzem os mitos ao incorporar os gestos mantedores de memórias.
Trazendo esta análise neste capítulo quis demonstrar como o corpo é
um sujeito pensante, comunicador e produtor de significados, e como os
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gestos incorporados na memória corporal mantém, comunicam e
produzem a história oral de um povo através da prática da dança Afro,
em particular da dança de Orixás. Para concluir este trabalho,
apresentarei no próximo e último capítulo a discussão sobre corpo e
identidade, analisando em específico as categorias e as noções racias
envolvidas no campo da dança Afro.
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CAPITULO 6 – Sentir na Pele
(Corpo, Identidade e Alteridade)
Precisamos vencer o preconceito do corpo discriminado.
Eliete Miranda
Ao longo deste trabalho falou-se do corpo como agente
protagonista da comunicação e produção de significados na dança Afro.
Viu-se como certos gestos, movimentos e elementos corporais específicos
são capazes de contar e recriar os mitos e as histórias de um povo dadiáspora africana no Brasil. Abordou-se também o tema da busca de
identidade que o dançarino procura na dança Afro, e da manutenção de
certa memória e identidade através dos gestos e da dança. Quero agora,
neste último capítulo, aprofundar mais a questão sobre a ligação entre
corpo e identidade na dança Afro, trazendo ao mesmo tempo uma
discussão sobre a situação de alteridade experienciada pessoalmente nocampo da minha pesquisa. Começarei portanto por apresentar como a
dança Afro é uma forma de resgate e de se identificar com um passado
ancestral de matriz africana. Após isso, mostrarei como a categoria do
dançarino de dança Afro é uma categoria essencializada e repleta de
estereótipos. Analisarei, por fim, o preconceito contra a dança Afro
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assim como o estigma atribuido aos dançarinos brancos de dança Afro,
considerados como não pertencentes à categoria, trazendo uma
discussão sobre categorias e identidade racial no contexto da dança Afro
no Brasil.
Resgate e Identidade
Já evidenciei no capítulo anterior, trazendo a obra de Leda
Martins e outros autores, a importância da performance da dança Afro,
e das performances afro-brasileiras em geral, com respeito ao resgate da
memória ancestral, da sabedoria e do conhecimento. As performances
afro-brasileiras fazem parte da bagagem que veio com os africanos
trazidos à força para o novo mundo. No seu texto “Memória e
Performance nas Culturas Afro-brasileiras”, Florentina Souza escreve:
“Na diáspora forçada, fugindo à coisificação, os africanos eafrodescendentes costuraram e teceram identidades e, a partir damemória, reorganizaram suas vidas desenhando novasconfigurações culturais advindas da sua situação em terrasestrangeiras. Enfaticamente, no campo da música, da dança e dareligiosidade, as tradições culturais permaneceram como espaçosprivilegiados de memória e de recriação, o que faz dasperformances um dos elementos significativos na transmissão,circulação e reconfiguração da memória dos afrodescendentes”(Souza, 2007, p. 31).
A dança portanto, assim como a música e a religiosidade, é uma dasperformances onde a “transmissão, circulação e reconfiguração” da
memória dos afrodescendentes acontece. É através deste resgate da
memória que novas identidades se tecem. A arte de dançar Afro faz com
que a construção destas identidades seja positiva, estimulando e
viabilizando o conhecimento da riqueza cultural afro-brasileira para os
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afrodescendentes e para todos os que entram em contato com a dança
Afro. As performances afro-brasileiras como a dança Afro agregam e
reproduzem informações sobre as culturas africanas e as da diáspora,
“fundem mito e história, experiência e criação, intensificando a
produção de discursos identitários” (Souza, 2007, p.37).
Como já vimos no primeiro capítulo ao analisar as razões pelas
quais as pessoas dançam, a busca de identidade aparece entre as
motivações. Trago aqui novamente alguns depoimentos dos alunos de
dança Afro:
“È uma coisa muito enraizada na cultura brasileira. Tem uma identidade forte
porque a cultura africana aqui é muito forte”
“Trabalhar nosso corpo e nossa identidade ao mesmo tempo-a aula refletiu
isso”
“Cada vez que eu danço é que nem encontrar a mim mesmo”
“Entrei para a dança para me encontrar como mulher negra; adança não é só uma questão de corpo mas de identidade afro-brasileira, de resgate, de resistência”
Estes comentários mostram como a dança e o corpo estão
profundamente ligados à questão identitária e ao resgate da memória.As pessoas definem a dança como algo que tem uma identidade forte, e
como uma maneira para trabalhar a identidade. Uma das alunas, por
exemplo, dança para “encontrar a si mesma”. No último depoimento,
uma outra aluna, uma mulher negra, procura se encontrar e resgatar
sua identidade, quem ela é e com que ela se identifica. Antes de
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prosseguir, acho importante clarificar o que se entende por “se
identificar”, e explicar como a identidade pessoal depende tanto de um
grupo ou categoria específica.
Ao longo deste trabalho foram apresentadas discussões de autores a respeito da
construção da noção de pessoa. Com Mead e Goffman em particular, vimos como a
interação social entre pessoas é fundamental na construção de significados e dos próprios
indivíduos. Esta abordagem que concentra seus estudos sobre a inter-relação entre
pessoas chama-se de interacionismo simbólico, que surgiu no começo do século XX nos
EUA, principalmente com as obras de George Herbert Mead e de Charles Cooley. O
maior argumento desta abordagem é que os selves são produtos sociais, mas que ao
mesmo tempo eles são também criativos e agentes na sociedade. Os indivíduos agem
segundo os significados que as coisas têm para eles, e estes significados provêm da
interação social e são modificados através da interpretação. Cooley escreve sobre o que
ele chama de “looking glass self”, dizendo que o indivíuo não pode ter uma idéia de self
sem interagir e confrontar-se com os outros. Cooley também nos lembra que, como nos
percebemos e fazemos sentido de quem somos através da mente dos outros, somos
influenciados pelas outras pessoas (Cooley, 2001). É portanto extremamente importante para os indivíduos ser aceitos pelos outros e, muitas vezes, isso acontece pertencendo a
um grupo específico. Cada indivíduo pode escolher de se afiliar a vários grupos
diferentes, assumindo múltiplas identidades dependendo da situação. Um exemplo
prático desta assumpção de identidade pode se ver no texto de Barth Os Grupos Étnicos e
suas Fronteiras, onde o autor fala de identidades e grupos étnicos. Barth escreve que “a
identidade étnica implica uma série de retições quanto aos tipos de papel que um
indivíduo pode assumir” (Barth, 2000, p. 36); esta identidade faz parte do “eu”, e é uma
das múltiplas identidades que a pessoa tem. Cada situação exige que esta identidade seja
mais ou menos representada. Assim, ela também pode ser escolhida como identidade
principal para se afiliar a certos grupos específicos. Barth diz: “quando os atores usam
identidades étnicas para se categorizar e categorizar os outros, passam a formar grupos
étnicos”; esta afirmação implica que os atores escolhem usar a identidade étnica em
certas situações e para certos fins.
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A autora Marilyn Strathern no seu ensaio O Gênero da Dádiva fornece uma
ulterior contribuição com respeito à construção de identidade. Ao analisar as relações de
gênero na Melanesia, ela e afirma que as categorias antropológicas ocidentais não servem
para analisar a categoria de pessoa em outras sociedades. Na Melanesia, por exemplo,
não existe uma divisão definida de sexo e gênero e as diferenças entre as identidades
masculina e feminina só se formam quando os dois entram em contato, na ação. A
identidade não é então substancial, mas se constitui na interação; ela é construída pelo
que se faz, não pelo que se é (Strathern, 2006). As afirmações de Barth e de Strathern
remetem ao que Goffman teoriza no seu livro A Representação do Eu na Vida Cotidiana,
já analisado em vários momentos neste trabalho, ou seja, o self é construído nas relaçõessociais e não é uma categoria pré-existente. Se constitui nas interações sociais em um
determinado contexto, e é portanto múltiplo e variável. Tomando em conta as
considerações apresentadas, é possível ver como a dança, neste caso a dança Afro, é uma
maneira prática de se construir uma identidade, em específico uma identidade étnica,
afiliando-se às origens africanas da dança. Os dançarinos de dança Afro, portanto,
resgatam certa identidade afro-brasileira, assumindo um orgulho racial e uma auto-
imagem positiva devido aos exemplos positivos que a dança fornece da cultura negra,
valorizando seus mitos, sua história, os gestos e indumentária de um povo que foi
historicamente retratado como inferior e com imagens negativas. Afirmei também que as
identidades são construídas e flexíveis e em constante mudança. Entretanto, as pessoas
mantém umas categorias mentais fixas e determinadas, rendendo a questão da identidade
motivo de descriminação. Para entender melhor o que estou tentando dizer, começarei
por apresentar uma breve explicação sociológica sobre os termos categorias e
estereótipos.
Categorias e Estereótipos
Berger e Luckmann escrevem no texto “A Construção Social da Realidade” que, oque torna possível a criação do mundo social é o exercício de reificação de categorias.Por reificação os autores intendem a “aprensão dos fenômenos humanos como sefossem coisas, como se fossem fatos da natureza”. A categoria, por sua vez é aestrutura de todo o universo de significados do sistema e é aceita pela inteiridade dasociedade exatamente porque é reificada (Berger e Luckmann, 1973). Como cientistasocial, é muito importante estar ciente desta construção social das categorias, as quais
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se tornam naturalizadas. A cada categoria estão associadas características e qualidadesque se consideram adequadas e próprias da categoria. Para pertencer ou ser inseridonestes grupos aos olhos da sociedade, os membros precisam ter qualidades e exercer papeis que sejam congruentes e coerentes com a definição da categoria. E é essaatitude que conduz à formação de estereótipos. Segundo a leitura de Stuart Hall, a açãode estereotipar reduz as pessoas a poucas características simples e essenciais,representadas como se fossem fixadas na natureza (Hall, 1997, p. 256). A análise deHall se foca nas categorias raciais e na construção da exclução e descriminação do“outro”. O primeiro passo para que isso aconteça é a prática dos estereótipos, pois as pessoas usam os “tipos” para fazer sentido das coisas. Hall escreve: “nós entendemoso mundo referindo objetos, pessoas ou eventos particulares aos esquemas declassificação geral nos quais, segundo nossa cultura, eles se inscrevem” (Ibidem, p.257). Existem portanto expectativas de membros de cada categoria, e construiram-sediferenciações raciais naturalizadas. Como escreve também o antropólogo Livio
Sansone no seu livro Negritude sem Etnicidade construiram-se “visõesessencializantes da diferença pautada pela cor, que associam a cada fenótipo certascaracterísticas psicológicas e culturais peculiares” (Sansone, 2004, p. 160).Continuando o argumento, Sansone escreve que os membros da comunidade negratêm enfatizado estas diferenças “intrínsecas” e “naturais” dos pretos, como a de“dançar melhor” (Ibidem, p. 161).
No caso da dança Afro a expectativa é do que os negros saibam dançar melhor do queos brancos. Um dançarino branco que dance muito bem o Afro é considerado umaexceção e é reconhecido com surpresa e incredulidade. A dissertação de mestrado de Nelson Lima sobre dança Afro evidencia a questão racial. Escreve o autor que, na hora
de aprender os movimentos e as coreografias, o professor de dança Afro “exigia maisdos alunos negros, que aprendessem mais rápido e que dançassem melhor” (Lima,1995, p. 63). Além disso, a pesquisa do referido antropólogo aponta que os dançarinos brancos “dão conta do recado” quando conseguem mostrar as habilidade esperadas“naturalmente” dos negros (Ibidem, p. 76). Tais dados mostram a essencialização doconceito de raça e a expectativa de qualidades inatas nos dançarinos de dança Afro.Outro estudo antropológico de Natasha Pravaz da York University mostra aconstrução social da “mulata” e em várias ocasiões mostra a idéia do que os brancosnão sabem sambar. Ao trazer uma entrevista com uma dançarina do “Samba TropicalGirl”, esta afirmou que “a mulher brança não traz o samba na raça. Não importaquanto sambe, ela não sabe sambar, pois não tem nada a ver. Pode até saber sambar
mas não tem nada a ver com o samba” (Pravaz, 2003, p. 18). O estudo de Pravazapresenta a idéia tanto da incapacidade da branca de sambar, quanto do seu não pertencimento a este mundo, indicando uma impossibilidade do branco se identificar com o samba.
Minha experiência no campo confirma as afirmações de Lima e de Pravaz, e a presença de estereótipos raciais na dança Afro. Muitas vezes ouvi e anotei comentáriosrefletindo a noção do que as pessoas não esperam que os brancos saibam dançar Afro.Um dia, depois de uma aula no Circo Voador, eu e Eliete fomos passear pela Lapaconversando sobre dança e comentando a aula. Eliete contou suas experiências comocoreógrafa na Bahia e comentou que ela sempre colocava dançarinos ou atores brancosno palco se eles fossem bons, apesar da atitude de desconfiança dos outros,
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especialmente do Zebrinha (coreógrafo de dança Afro, atualmente coreógrafo doBallet Folclórtico da Bahia). Ela contou de uma vez na qual “estas meninas brancasarrasaram no show e no final Zebrinha foi até dar os parabéns!” (diário, 27 Abril2009). Mudando de assunto, Eliete comentou sobre a aula de hoje no Circo, e falouque “o povo da aula é realmente interessado na dança Afro; parece que eles estão buscando uma identidade mesmo, apesar de ser todo mundo branquinho!” (diário, 27Abril 2009). A primeira história da Eliete mostra o preconceito que se há contracolocar dançarinos brancos em shows de dança Afro, especialmente na Bahia, ondequer-se manter e mostrar a dança Afro como o mais “pura” e “autêntica” possível.Durante uma entrevista com o professor de dança Afro Pakito em Salvador, ele contoude uma audição que ele fez para o Ballet Folclórico, e disse “a cor da pele me ajudouna audição; eu passei e outro loiro não” (Pakito, 26 Agosto 2009). A cor da pele nadança Afro aparentemente simboliza a capacidade de saber dançar ou não. O segundocomentário da Eliete evidencia como a cor da pele aparentemente deveria estar ligada
a uma noção de identidade. A surpresa no afirmar que os alunos estão buscando umaidentidade “apesar” de ser branco mostra a pre-noção do que somente os negros poderiam se identificar com a dança Afro.
Durante minha vivência como dançarina branca de dança Afro senti muito osestereótipos raciais na pele, sendo muitas vezes classificadas como a que “dá conta dorecado” ao dançar Afro. Após uma aula no Circo Voador um dia, uma das alunas,negra e baiana, comentou: “Você é italiana, não é negona e dança tão bonito. Achoisso tão legal!” (diário, 14 Setembro 2009). O tom surpreso do comentário feito indicaa crença em uma incongruência entre as identidades “italiana e não negona”, e alguémque “dance bonito” o Afro. Outro exemplo mostra um comentário parecido:
“Hoje a gente ensaiou no Centro Coreográfico, nos preparando para aapresentação. Ensaiamos muito a dança de Orixás e a coreografia do xirê, na qualeu danço para Nanã. No final do ensaio, algumas das meninas comentaram: “Ela éótima dançando Nanã! Dança tão bem e é branca!” (diário, 30 Maio 2009).
Mais uma vez o comentário indica o tom de incredulidade diante de uma brancadançando bem para Orixá. A naturalização das categorias é evidente, sendo a de“branco” ou “italiana” associada com a incapacidade de dançar o Afro, coisa quedeveria ser natural para uma “negona”.
Experiências como essas foram múltiplas ao longo do meu tempo no círculo dadança Afro. Em outra ocasião senti como a categoria de raça, junto com a de gênerosão repletas de noções estereótipadas:
“Um dia nosso grupo ensaiou na UERJ para se preparar para uma apresentaçãao.Após o ensaio eu e A. ainda ficamos para a aula da Eliete na mesma UERJ. Aoentrar na sala de aula juntos e suados, explicamos para os outros alunos que nósestávamos vindo de um ensaio de 3 horas com a Eliete, eles comentaram sereferindo a mim: “como você aguenta?”. Mas ninguém falou nada para o A.”(diário, 3 Junho 2009)
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Nesse caso, houve um comentário surpreso diante da minha pessoa conseguir aguentar um ensaio de 3 horas de dança Afro e ainda ter força para enfrentar uma aula de mais3 horas; este comentário entretanto não foi feito com o meu companheiro de dança queestava na mesma situação do que eu. Foi inevitável pensar que a diferença nasrespostas diante das duas pessoas fosse porque eu sou uma mulher branca enquanto eleé um homem negro. O que isso quer dizer na nossa sociedade é que a mulher égeralmente considerada como uma categoria mais fraca do que o homem, e o branco éconsiderado ter menos força e resistência do que o negro.
Cabe aqui sinalizar as estratégias e as consequências políticas que muitas vezes seescondem atrás deste essencialismo que acredita em categorias biológicasnaturalizadas e que as reproduz na linguagem e nos atos cotidianos. As afirmaçõessobre habilidades ou direitos exclusivos de dado grupo reflletem o que Gayatri Spivak chamou de “essencialismo estratégico” , utilizado como arma política por um grupo
específico, neste caso um grupo étnico, para defender sua territorilidade e afirmar seucontrole sobre certa área de conhecimento. Apesar de ter seus motivos, talessencialismo revela-se uma ferramenta perigosa, tanto do lado dos gruposhegemônicos quanto do lado dos suballternos, conduzindo à prática de estigma e preconceito, como veremos na próxima parte deste capítulo.
Estigma e Preconceito Racial
Além dos estereótipos, a prática das diferenciações naturalizadas entre categoriascria uma separação entre “nós” e “eles”, facilitando uma formação de grupos, edefinindo quem é “de dentro” e quem é “de fora”. Durante a minha pesquisa surgiram
muitas vezes ocasiões nas quais houve a prática de estereotipar e formar gruposdividindo quem pertence e quem não. Principalmente, apareceram três tipos declassificações identitárias e de alteridade. Primeiro, experimentei uma condição dealteridade atribuída pelos outros, tanto por brancos como por negros, tanto por integrantes da dança Afro como por quem não está próximo a este universo, sendoconsiderada como alguém que não pertence à prática da dança Afro. Segundo,experienciei fazer parte da dança Afro e do universo Afro-brasileiro, sendo incluídaespecialmente pelos integrantes do meu grupo de dança e por quem me conhece pessoalmente além da minha aparência. Terceiro, devido à proximidade com meuscompanheiros de dança Afro e com a realidade Afro-brasileira, senti na pele adesqualificação e o preconceito contra a arte de dançar Afro.
Começando pela minha experiência de exclusão, segue um exemplo do que aconteceudurante um encontro casual na Lapa com o professor de dança Afro Charles Nelson:
“Durante nossa conversa, uma das pessoas que estava lá no grupo entrou naconversa, enquanto estava explicando para Charles Nelson que precisa ter mais pesquisa sobre dança afro e cultura negra. Esta outra pessoa, um brasileiro negroestudante de música, interveio falando que depende de quem pesquisa e de como pesquisa. Pelo olhar dele pude reparar que estava se referindo a mim como pesquisadora, com um tom de não aceitação. Eu não conhecia esta pessoa,somente hoje, nesta ocasião, ele me viu e escutou que era uma pesquisadoraitaliana de dança afro. Reparando o tom de irritação na sua voz, pedi para ele
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explicar mais o que ele queria dizer com isso e ele disse: “você não tem direito de pesquisar a dança afro, pois a cultura é nossa; o problema está exatamente no fatoque somente quem é de fora estuda nossa cultura”. Ao tentar explicar para ele queestava talvez sendo preconceituoso, ele disse “vocês foram agressivos contra agente e portanto a gente para se defender agora precisa ser agressivos comvocês”. (15 Abril 2009)
Os fortes comentários deste afro-brasileiro deixaram clara a construção de dois grupos e
culturas separadas, a dos brancos e a dos negros. Apenas a minha aparência e a cor clara
da minha pele despertaram uma reação distanciadora, afirmando que “não tenho direito
de pesquisar a dança afro”, pois isso faz parte de uma cultura que ele definiu como
”nossa”, ou seja, exclusiva dos afro-brasileiros. Além disso, ele me chamou abertamentede “quem é de fora”. Por fim, o discurso dele evidenciou mais uma forma de
descriminação e divisão ao definir “vocês”, ou seja “os brancos” “contra a gente”, ou seja
“os negros”. Neste momento me senti como “o outro” sendo excluído e descriminado
por estar onde não deveria. Segundo a definição de Muniz Sodré em sua obra “Claros e
Escuros”, o “Outro” é o intruso que não conhece seu lugar e se aproxima demais onde
não deveria, ocupando o espaço do “Mesmo” (Sodré, 2000, p. 261). Historicamente o
“outro” sempre foi um membro de grupos étnicos não hegemônicos, como indios ou
negros. Neste caso entretanto, como pesquisadora branca e européia fui considerada uma
intrusa no campo da dança afro-brasileira.
Cabe aplicar a teoria do “estigma” de Erving Goffman a esta situação vivenciada no campo. Segundo o sociólogo o
estigma é um atributo incongruente com o estereótipo criado para um particular tipo de indivíduo. O estigma é uma característica
que entra em discrepância com a identidade social do indivíduo, ou seja, com aquelas características estereotipadas que definem
dada categoria de pertencimento do indivíduo (Goffman, 2008, p. 13). No exemplo trazido do campo, minha nacionalidade e minha
cor foram considerados como atributos incongruentes com a categoria de dança Afro ou cultura afro-brasileira em geral. Quando
afirmo que fui estigmatizada por causa da cor da minha pele, as pessoas não sempre acreditam, pois o ser branco é considerado um
atributo de vantagem e de quem não sofre discriminação. Por isso é importante esclarecer, com ajuda de Goffman, que não existem
dois papéis fixos e específico, o do normal e do estigmatizado. Simplesmente, cada um pode desempenhar cada um desses papéis
dependendo da situação. Portanto, alguém que é estigmatizado em determinado aspecto ou contexto, pode exibir os preconceitos
normais contra outra pessoa em dada circumstância (Goffman, 2008, p. 149). Outras vezes vivenciei o mesmo sentimento de exclusão
devido aos comentários de outras pessoas. Ao explicar o tema da minha pesquisa para uma professora universitária de dança, ela
respondeu: “Como você se interessou por algo tão distante e diferente de você? Porque está pesquisando isso?” (16 Junho 2009). A
pergunta da professora de dança evidencia o seu entendimento do que, somente pelo fato de ser branca e italiana, únicas informações
pessoais que ela possuia de mim, o tema da dança Afro seria algo totalmente “distante” e “diferente” de mim. Agora eu pergunto:
depois de três anos de intenso envolvimento com a dança Afro, quer como dançarina, quer como pesquisadora, onde todo dia fiz
questão de aprender mais e mais sobre este tema e de praticar os ensinamentos do campo, será que minha realidade é tão distante e
diferente do tema da minha pesquisa? Será que qualquer afro-brasileiro que nunca praticou nem se interessou pela dança Afro deve
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ser considerado mais próximo desse contexto? Em outra ocasião uma aluna de dança Afro, que fez umas aulas de dança Afro na
Europa, comentou após uma aula no Circo Voador:
“Lá era um monte de branco querendo ensinar e não sabe nada. Tinha uma mulher brasileira, do sul, branca que passa tudo errado, a meu custo, da minha história.Eles se apropriam e passam errado. Tenho preconceito mesmo.” (14 Setembro2009)
Utilizando termos como “minha história” e “eles”, a aluna cria uma clara separação entre
grupos, entre “nós” e “o outro”, confessando de ter preconceito contra o branco que não
sabe nada de dança Afro.
Assim como fui estigmatizada e senti o preconceito na pele durante meu
envolvimento no campo, experienciei também um sentimento de inclusão e demesmificação dentro de um grupo ao qual não pertenço “naturalmente”. Em vários
momentos minha professora de dança e meus amigos me incluiram na categoria de
“preta” e na questão da identidade negra. Antes de uma apresentação no Centro
Coreográfico, nosso grupo CorpAfro se reuniu no camarim e formou uma roda, um
segurando a mão do outro para passar energia. Enquanto isso, Eliete disse:
“Somos o único grupo Afro a dançar, precisamos representar nossa luta, nossaidentidade, pois somos negros.” (5 Junho 2009).
Nesse comentário eu, única branca do grupo, fui completamente incluida na categoria de
negro e no grupo de afro-brasileiros, representando junto com os outros “nossa luta” e
“nossa identidade”. Neste caso, minha pessoa não só foi aceita e incluida como alguém
“de dentro”, mas minha própria identidade sofreu uma mudança e me senti realmente
parte do grupo, igual aos outros, lutando e acreditando pela e na mesma causa e sentindo
minha pele negra, pois a identidade depende muito da relação que se há com o corpo.
Através da dança Afro e da convivência do meu corpo com a cultura e a realidade afro-
brasileira assumi muitas vezes uma identidade que é vista como incongruente e distanteda categoria racial à qual pertenço. Por causa dessa incongruência fui estigmatizada e
excluída pelos que conhecem somente meus atributos mais superficiais.
Como membro do grupo CorpoAfro e convivendo com o universo da dança Afro,
a terceira condição experimentada foi o preconceito que aflige a dança Afro e os afro-
brasileiros. Primeiro, através das discussões que Eliete sempre promove nas aulas de
dança, lembrou-se várias vezes o sofrimento do povo negro, escravizado e abusado de
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maneiras diferentes desde o periódo colonial até hoje. Antes de uma aula no Circo
Voador, lemos e comentamos uma poesia de Solano Trindade falando sobre o navio
negreiro cujos versos lembram o sofrimento, a melancolia e a resistência dos negros
escravizados:
Vamos Olhar o Navio Negreiro
Trazendo carga humana.
Lá vem cheio de melancolia,
Cheio de inteligência
Cheio de resistência.
Comentando sobre esta poesia Eliete ressaltou que essa resistência é o que a genteexperiencia todo dia para sobreviver. Nós alunos expressamos o sentimento provocado
por esta poesia através de desenhos. Surgiram desenhos como o de um navio cheio de
lágrimas e gotas vermelhas simbolizando o sofrimento, mas com a presença de estrelas
amarelas simbolizando a esperança. Outra aluna formou um coração de papel e rasgou-o,
simbolizando o que foi feito com o coração e a alma dos negros trazidos como escravos,
rasgados de seu continente natal. Outro aluno comentou: “tudo é tão confuso e doloroso
ao se falar de escravidão que eu não entendo até hoje. Se alguém quiser explicar, por
favor, porque eu não entendo, to muito confuso”. As palavras deste afro—brasileiro
mostram a incapacidade de entender e se conformar com as atrocidades sofridas pelo
povo negro. Após os comentários de todos nós, Eliete disse chorando: “o que a gente
sente tá aqui dentro de nós. É preciso buscar e resgatar nossa identidade e não é fácil”
(diário, 27 Abril 2009). Esses momentos de conscientização e de conversa sobre o
assunto da identidade negra e do sofrimento do povo negro rendem possível uma maior
identificação e um maior entendimento da questão por parte de quem não faz parte
oficialmente desse grupo étnico.Além disso, através da convivência com Eliete e meus amigos da dança Afro, me
foi possível ver e sentir o preconceito que existe contra o corpo Afro. O ano passado
nosso grupo foi convidado para participar de uma série de apresentações de dança no
Centro Coreográfico para celebrar o dia da dança no 29 de Abril. No fim de semana após
a apresentação, durante nosso ensaio no CCRJ, discutimos a apresentação do grupo e o
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fato de ser o único grupo de dança Afro presente, que foi recebido com muita resistência
e preconceito:
“As pessoas não sabiam o que esperar da gente, tinha muita resistência. Quandonos viram nos arrumarmos começaram a olhar torto para nossa roupa. Éramos osúnicos e éramos diferentes” (2 Maio 2009).
O olhar preconceituoso dos outros é algo vivenciado muitas vezes por Eliete e nosso grupo, assim como por outros grupos de dança
Afro. Essa resistência contra a dança Afro cria várias dificuldades em conseguir praticar essa arte. Durante uma entrevista em
Salvador, a professora de dança Afro Tatiana disse:
“A gente passa por muito preconceito. Se se falar que faz-se afro aqui, você nem imagina. Pra conseguir espaço é difícil porque nos falam que a gente faz barulho”(26 Agosto 2009).
Neste caso, Tatiana nos informa da dificuldade em conseguir um espaço para dar aula de dança Afro, por causa da concepção do que
durante uma aula de dança Afro se faz “barulho”. Nosso grupo CorpAfro sofreu um preconceito parecido quando, ao ensaiar nosso
espetáculo na Escola de Arte Martins Pena, uma professora de música que estava na sala de baixo, entrou na nossa sala gritando
“parem de fazer barulho!” (2 Outubro 2009). Se prestarmos atenção a este vocabulário usado, “fazer barulho”, pode-se ver o
desprezo e a não consideração existentes com o som dos tambores e com a arte de dançar Afro. Muitas vezes, a origem do
preconceito vem de causas religiosas, como analisei no capítulo 3, ao confundir a dança Afro com “macumba”, a qual também sofre
muito preconceito no Brasil. Outras vezes, a discriminação é racial, coisa que o povo brasileiro custa admitir mas que está muito
presente nesta sociedade.
Quis trazer essa minha experiência no campo onde o corpo sentiu na pele as
consequências das divisões e categorias raciais, com a esperança de quebrar alguns
preconceitos e estereótipos. Afinal, o racismo não se combate com mais racismo.Concluo este capítulo expressando um desejo de igualdade, tolerância e entendimento das
diversidades, usando as palavras de Franz Fanon no seu livro Pele Negra Máscaras
Brancas:
“Eu, homem de cor, só quero uma coisa: que jamais o instrumento domine ohomem. Que cesse para sempre o domínio do homem pelo homem…
Ambos (o negro e o branco) têm que se liberar das vozes desumanas de seusancestrais para que nasça uma autêntica comunicação…
Superioridade? Inferioridade? Por que, simplesmente, não tentar alcançar o outrosentir o outro, revelar-me ao outro?” (Fanon, 1983, p.189)
Com a esperança e a crença do que a dança Afro contribua para uma autênticacomunicação, para que se possa e se queira realmente alcançar o outro, sentir o outroe se entregar ao outro.
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CONCLUSÃO
Este trabalho procurou promover uma viagem pela experiência dos sentidos
corporais envolvidos na performance da dança Afro. Analisou-se a performance
evidenciando seu caráter ritual, as interações presentes, a formação de identidades através
dela, assim como importância do corpo, da sua linguagem e da sua inteligência própria.
Através da observação e experiência como dançarina na dança Afro, procurei entender e
mostrar como o corpo, com seus gestos e movimentos, carrega uma memória ancestral,
produzindo e transmitindo significados que fazem parte de um legado afro-brasileiro,
cuja riqueza e importância cultural nunca foram suficientemente e adequadamente
valorizadas
Juntando as experiências do campo, por intermédio do material etnográfico, com
a teoria antropológica e sociológica mostrou-se a quantidade e variedade dos símbolos
presentes tanto nas performances sagradas do candomnlé quanto nas performances
profanas da dança. A interação, cooperação e comunicação entre os atores da
performance é o que produz significados, que são transmitidos pela linguagem do corpo,
através de gestos, indumentária, cores, movimentos, adereços, olhares e energias
incorporadas.Ao dançar e interagir com o outro, o corpo utiliza-se da memória e inteligência
próprias, sendo capaz de pensar e agir automaticamente, promovendo uma aprendizagem
que acontece na prática e um conhecimento corporal e sensorial. Além disso, no caso da
dança Afro, o performer constrói identidades e lida com questões raciais, culturais e
religiosas que muitas vezes são erroneamente entendidas e reproduzidas.
Espero, através desta pesquisa ter mostrado a “infinita beleza” da dança Afro e da
cultura afro-brasileira, assim como espero que este estudo colabore para um maior
entendimento da cultura, religiosidade e estética afro-brasileiras. Neste projeto de
valorização da cultura Afro e de luta contra o preconceito com essa cultura, a dança é um
instrumento valioso, pois pode promover a abertura para a alteridade, e pode ser o meio
do ensino de histórias e tradições que compõem grande parte da cultura brasileira mas
que infelizmente sempre foram ignoradas e não valorizadas. Com a implementação da lei
10.639, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas, a
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dança Afro merece entrar como ferramenta de ensino dessa história e cultura que precisa
ser resgatada e e levada para a frente. Como resposta à pergunta que Gayatri Spivak faz
no texto “Can the Subaltern Speak ”, e discordando com a resposta negativa da autora que
afirma que os subalternos não falam pois alguém fala por eles (Spivak, 2007), acho que a
dança Afro pode ser uma forma de expressão e uma maneira do subalterno falar,
divulgando sua história e sua cultura. Os corpos dançantes falam e se comunicam,
mostrando a capacidade do grupo subalterno de se representar. Ao mesmo tempo, os
postulados de Spivak valem para evidenciar como esse grupo sempre foi esquecido e
discriminado pelas forças dominantes.
Do ponto de vista antropológico, espero ter promovido uma discussão focada no
campo da performance, contribuindo para a consideração da importância do corpo como
meio de comunicação, produtor de significados, locus de memória e dono de uma
inteligência própria, capaz de compreender através dos sentidos, mostrando que não
temos uma separação entre corpo e mente, mas uma fusão e cooperação entre todas as
partes do “eu”. As sensações, os pensamentos e as emoções são todos envolvidos na
performance do dia a dia, assim como na performance da dança, promovendo um
entendimento e um conhecimento completos, variados e dinâmicos. Além dessa questão
corpórea, espero ter desconstruído alguns dos estereótipos e categorias raciais que levam
à prática da discriminação e que não permitem escutar, sentir e se entregar ao outro. É
preciso nos abrirmos mais, nos entregarmos e aguçarmos nossos sentidos para que
póssamos perceber e experienciar a infinita beleza do outro e da dança Afro.
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LISTA DE IMAGENS
I.
Apresentações1. Dança de Yemanjá-Forum Social Mundial 2008, Aterro do Flamengo, Rio de
Janeiro.
2. Dança de Nanã- Forum Social Mundial 2008, Aterro do Flamengo, Rio de
Janeiro.
3. Dança de Oxum- Forum Social Mundial 2008, Aterro do Flamengo, Rio de
Janeiro.
4. Mulheres Guerreiras- Forum Social Mundial 2008, Aterro do Flamengo, Rio de
Janeiro.
5. Ibidem
6. Dança da Beleza Negra- Casa da Gávea, Rio de Janeiro (30 Abril 2008).
7. Formação da àrvore Baobá- Formatura da Eliete na UFRJ (14 Dezembro 2007).
8. Puxada de Rede- Formatura da Eliete na UFRJ (14 Dezembro 2007).
9. Samba de Roda-Messan Orun, Santa Teresa, Rio de Janeiro (8 Setembro 2007).
10. Dança de Yemanjá- Messan Orun, Santa Teresa, Rio de Janeiro (28 Outubro
2007).11. Dança de Xangô- Messan Orun, Santa Teresa, Rio de Janeiro (28 Outubro 2007).
12. Ibidem
13. Confraternização após espetáculo- Messan Orun, Santa Teresa, Rio de Janeiro (28
Outubro 2007).
14. Instrumentos Percussivos.
15. Dança da Beleza Negra – Hotel Scorial, Catete, Rio de Janeiro (12 Dezembro
2007).
16. Dança de Yemanjá - Hotel Scorial, Catete, Rio de Janeiro (12 Dezembro 2007).
17. Dança das Iabás\movimento de Oxum- Hotel Scorial, Catete, Rio de Janeiro (12
Dezembro 2007).
18. Samba de Roda- Hotel Scorial, Catete, Rio de Janeiro (12 Dezembro 2007).
19. Arrumação no camarim- Viradão Cultural no Centro Coreográfico do Rio de
Janeiro (5 Junho 2009).
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20. Dança de Omolu- Casa e Construção, Botafogo, Rio de Janeiro (19 Setembro
2009).
21. Dança de Nanã- Casa e Construção, Botafogo, Rio de Janeiro (19 Setembro
2009).
22. Dança de Ogum- Casa e Construção, Botafogo, Rio de Janeiro (19 Setembro
2009).
23. Afro Primitivo- Casa e Construção, Botafogo, Rio de Janeiro (19 Setembro 2009).
24. Mulheres Guerreiras (movimentos de Iansã) - Casa e Construção, Botafogo, Rio
de Janeiro (19 Setembro 2009).
II. Festas Públicas de Candomblé
25. Omolu- Ilê do Pai Jobi, Coelho da Rocha (3 Maio 2008).
26. Oxaguiã- Ilê do Pai Jobi, Coelho da Rocha (3 Maio 2008)
27. Xirê antes dos Orixás se manifestarem- Ilê do Pai Jobi, Coelho da Rocha (18
Novembro 2007)
28. Oxalá em primeiro plano e outros Orixás no Xirê- Ilê do Pai Jobi, Coelho da
Rocha (18 Novembro 2007).
III. Aulas e Ensaios
29. Gestual de Iansã- Martins Pena, Rio de Janeiro (2 Setembro 2009)
30. Gestual de Ogum- Martins Pena, Rio de Janeiro (2 Setembro 2009)
31. Gestual de Oxumarê- Martins Pena, Rio de Janeiro (2 Setembro 2009)
32. Gestual de Omolu- Martins Pena, Rio de Janeiro (2 Setembro 2009)
33. Afro Primitivo- UERJ (30 Setembro 2009)
34. Movimento de Ijexá - UERJ (30 Setembro 2009)
35. Percussão - UERJ (30 Setembro 2009)
36. Alongamento – Circo Voador, Rio de Janeiro (30 Novembro 2009)
37. Àrvore Baoba – Centro Coreográfico do Rio de Janeiro (10 Maio 2009)
38. Movimento de Ijexá – Escola de dança, Pelourinho, Salvador (25 Agosto 2009)
39. Alongamento Afro- Escola de dança, Pelourinho, Salvador (27 Agosto 2009)
40. Ilê do Pai Jobi, Coelho da Rocha, 18 Novembro 2007.
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