Post on 11-Nov-2018
ERYC DE OLIVEIRA LEO
EMPDOCLES ENTRE MTHOS E LGOS
UM ESTUDO SOBRE A RELAO ENTRE OS POEMAS DE EMPDOCLES DEPOIS
DO PAPIRO DE ESTRASBURGO
Dissertao a ser apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Filosofia da Universidade de
Braslia como requisito parcial obteno do
ttulo de Mestre em Filosofia. Trabalho vinculado
linha de pesquisa Histria da Filosofia Antiga e
Medieval.
Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli.
Braslia
Maio de 2013
Leo, Eryc de Oliveira.
Empdocles entre Mthos e Lgos Um estudo sobre a
relao entre os poemas de Empdocles depois do Papiro de
Estrasburgo / Eryc de Oliveira Leo. Braslia, 2013.
124 p.
Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli
Dissertao (Mestrado em Filosofia) Universidade de
Braslia (UnB).
1. Monismo 2. Pluralismo 3. Natureza 4. Cincia 5. Magia.
I. Ttulo
UNIVERSIDADE DE BRASLIA
Dissertao de autoria de Eryc de Oliveira Leo, intitulada Empdocles entre Mthos e Lgos
um estudo sobre as relaes entre os poemas de Empdocles depois do Papiro de Estrasburgo,
apresentada como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em filosofia pela
Universidade de Braslia, em 03 de Maio de 2013, defendida e aprovada pela comisso julgadora
abaixo:
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Gabriele Cornelli
Orientador (Presidente UnB)
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Jos de Santoro Moreira (UFRJ)
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Gilmario Guerreiro da Costa (UCB)
Braslia
Maio de 2013
Andreia Leo,
por existir.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Gabriele Cornelli pelo apoio e estmulo produo acadmica de
excelncia e incansvel rigor cientfico.
Aos meus pais Neide e Ernane Leo (in memoriam), pelo estmulo a curiosidade e o valor
dado ao esprito investigativo desde sempre.
Ao meu tio Magno Leo e minha av Vicentina Leo (in memoriam), pelo estmulo,
confiana e exemplo de carter humano.
Aos grandes mestres, que desde os tempos da formao bsica, exerceram forte influncia
em meus gostos e estilo de pesquisa, dentre os mais influentes: Jos Fbio e Gilson Sobral.
A todos os amigos que participaram de minha formao acadmica e humana, dentre os
mais influentes: Sergio Leandro, Thiago Soares e Felipe Cabral, pelo apoio, discusses e amizade
ao longo desses anos.
A todos os familiares e amigos que, direta ou indiretamente, participaram do processo que
tornou esta dissertao possvel.
A todos os membros da Ctedra UNESCO Archai: As Origens do Pensamento Ocidental,
pelos vrios momentos de discusses e orientaes mtuas.
Aos professores Dr. Fernando Jos de Santoro Moreira e Dr. Gilmario Guerreiro da Costa
pelos preciosos feedbacks e pela gentileza de aceitarem compor a comisso examinadora.
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES) pelo suporte
oferecido a esta pesquisa.
(...) v-se o pensamento filosfico e cientfico mover-se numa dialtica que
vai do diverso ao uniforme, para voltar do uniforme ao diverso. Diante de tal
alternativa em contnua reviravolta, perda de tempo propor um problema de
origem. Pouco importa que o conhecimento comece pela apercepo do
diverso ou pela constituio do idntico, j que o conhecimento no se detm
nem no diverso nem no idntico! (...) O conhecimento um desejo alternativo
de identidade e de diversidade (Bachelard, 2009, p.15).
Dupla a gnese de mortais, dupla a morte;
Pois, por um lado, a conjugao de todas as coisas, no s cria como destroi;
Por outro lado, na sequncia, depois de ser compactado, cresce e dissipa-se;
E, continuamente se renovando, estas coisas jamais cessam (Empdocles,
B17.3-6)
RESUMO
Essa dissertao de mestrado tem como objetivo principal fornecer evidncias de ordem
filosfica, sociolgica, filolgica e historiogrfica, para o fato da unidade temtica dos dois
poemas de Empdocles, intitulados Sobre a Natureza e Purificaes. Tal fato encontra-se
registrado na evidncia direta do texto de Empdocles conhecido como Papiro de Estrasburgo,
publicado por Martin-Primavesi (1999). Para ficar apenas com o exemplo mais importante, no
conjunto d do Papiro de Estrasburgo, por exemplo, ocorre uma transio temtica de ordem
cientfica para mstica, mostrando claramente que tais aspectos da filosofia de Empdocles no
foram concebidos por ele como incompatveis ou incoerentes. Dada a estrutura temtica dos
versos de Empdocles, o desenvolvimento desse trabalho passa pelo estudo das relaes, em
contexto arcaico, entre ideias e crenas de ordem mstica e ideias e crenas de ordem cientfica.
Foram escolhidos aqueles aspectos considerados centrais para a compreenso da estrutura
unitria dos versos de Empdocles, deixando de lado os temas e evidncias que no
contribussem para o entendimento do modo como Empdocles, em particular, e alguns de seus
contemporneos, em geral, compreendiam a dinmica csmica em seus aspectos fsicos e ticos.
Seguindo essa abordagem, foi analisada a estrutura organizacional dos fragmentos de
Empdocles do ponto de vista das evidncias filolgicas disponveis no atual momento histrico,
de modo a estabelecer os fatos historiogrficos bsicos em relao aos quais seja possvel
estabelecer uma interpretao coerente dos fragmentos de Empdocles. Em seguida, levando em
considerao as evidncias da relao entre a filosofia de Parmnides e a filosofia de
Empdocles, foram analisados os fragmentos necessrios para tomar uma posio com relao ao
tipo de monismo estabelecido por Parmnides, bem como os fragmentos que apontam para as
caractersticas do pluralismo de Empdocles, mostrando que existe uma leitura possvel que torna
essas duas abordagens metodolgicas compatveis entre si. Assumindo essa estrutura lgica,
foram levantados os pontos de contato entre a filosofia de Empdocles e uma srie de contextos
de ordem mstica e cientfica, tais como, de um lado, a magia, o xamanismo, o orfismo e o
pitagorismo, e de outro, a teoria dos quatro elementos, os experimentos cientficos mentais e os
aspectos cientficos comparveis s categorias cientficas modernas que influenciaram a tradio
de pensamento que culminou com o surgimento da cincia atual. Aps a exposio e delimitao
dessas categorias, elas foram usadas para interpretar a epistemologia, a tica e a fsica de
Empdocles, em seus aspectos cientficos e msticos, contribuindo para a histria, tanto da
filosofia quanto das religies, bem como para as discusses relacionadas relao dialtica entre
a histria dos eventos e a histria das ideias.
Palavras-chave: Monismo, Pluralismo, Natureza, Cincia, Magia
ABSTRACT
The main goal of this master thesis is to provide philosophical, sociological, philological and
historiographical evidences to the fact of the thematic unit of the two poems of Empedocles,
entitled On Nature and Purifications. This fact is recorded in the direct evidence of
Empedocles text known as the Strasbourg Papyrus, published by Martin-Primavesi (1999). To
illustrate that it is enough to quote the example of Papyrus ensemble d where there is a thematic
transition between scientific and mystical themes, what clearly proves that Empedocles
philosophy were not conceived by him as incompatible or inconsistent. Given the thematic
structure of Empedocles verses, the development of this work passes through the study of the
relations, in archaic context, between mystical ideas and beliefs, and scientific ideas and beliefs.
Were chosen those aspects considered as central to understanding the unitary structure of the
Empedocles verses, leaving aside the issues and evidences that did not contribute to the
understanding of how Empedocles, in particular, and some of his contemporaries, in general,
understood the cosmic dynamic in its physical and ethical aspects. Following this framework,
were analyzed the organizational structure of Empedocles fragments from the standpoint of
philological evidences available in the current historical moment, in order to establish the basic
historiographical facts in respect of which it is possible to establish a coherent interpretation of
the Empedocles fragments. Then, taking into account the evidence of the relationship between
Parmenides philosophy and Empedocles philosophy, were analyzed the fragments needed to
take a position with respect to the kind of monism established by Parmenides, as well as the
fragments that points to the characteristics of Empedocles pluralism, showing that there is a
possible reading that makes these two methodological approaches compatible. Assuming this
logical structure, were raised the points of contact between the Empedocles philosophy and a
variety of scientific and mystical contexts, such as, on one hand, magic, shamanism, orphism and
pythagoreanism, and on the other, the theory of the four elements, the scientific mental
experiments and the scientific aspects comparable with modern scientific categories that
influenced the tradition of thought that culminated in the emergence of modern science. After
exposure and delineation of these categories, them were used to interpret Empedocles
epistemology, ethics and physics, in its scientific and mystical sides, contributing to the history
both of philosophy and religion as well as for discussions related to the dialectical relationship
between the history of the events and the history of the ideas.
Keywords: Monism, Pluralism, Nature, Science, Magic
LISTA DE ILUSTRAES
QUADRO 1 Fragmentos de Empdocles com indicao de Origem..........................................19
QUADRO 2 Pontos de Contato entre Papiro de Estrasburgo e Fontes Empedocleanas............ 21
QUADRO 3 Diferenas gerais entre Pitagorismo e Orfismo......................................................97
QUADRO 4 Ocorrncias do termo em Homero..........................................................107
TABELA 1 Nmero total de versos de Empdocles...................................................................20
LISTA DE ABREVIATURAS
DK = DIELS-KRANZ (1992)
KRS = KIRK-RAVEN-SCHOFIELD (1983)
LSJ = LIDDELL-SCOTT-JONES (1940)
Orig. = Do original
NOTA PRVIA
Todas as citaes de termos ou frases curtas em grego antigo mencionadas durante a
redao do texto foram transliteradas segundo as normas da Sociedade Brasileira de Estudos
Clssicos (SBEC). Em casos de citaes de bloco de textos em grego antigo, tanto o original
quanto a traduo foram citados. Em casos de trechos de autores contemporneos em lngua
estrangeira, somente foram citadas as tradues para o portugus. Os originais foram mantidos
em notas. Todas as tradues so minhas.
SUMRIO
INTRODUO ........................................................................................................................... 13
1. TRADIO, ORGANIZAO E UNIDADE TEMTICA EM EMPDOCLES .......... 17
1.1 OS DOIS POEMAS .................................................................................................................. 18
1.2 PAPIRO DE ESTRASBURGO .................................................................................................... 21
2. O PLURALISMO DE EMPDOCLES ................................................................................ 26
2.1 TIPOS DE MONISMO E PLURALISMO ...................................................................................... 30
2.1.1 Monismos ..................................................................................................................... 30
2.1.2 Sentidos do Verbo Ser em Parmnides ..................................................................... 31 ..................................................................................................................................... 32
2.1.3 Sentido Existencial ...................................................................................................... 36
2.1.4 Investigao Sobre a Natureza .................................................................................. 41
2.1.5 Pluralismo de Unidades Parmenideanas .................................................................. 44 2.2 O PLURALISMO DE EMPDOCLES .......................................................................................... 48
2.2.1 Empdocles: Discpulo de Parmnides ..................................................................... 48 2.2.2 Enta empedocleanos: Dinmica de Razes e Foras .............................................. 54
3. MTHOS E LGOS NA MAGNA GRCIA ...................................................................... 58
3.1. TRADIO CIENTFICA ......................................................................................................... 61
3.1.1 Origens Empedocleanas da Cincia .......................................................................... 61
3.1.2 A Teoria dos Elementos e Os Experimentos Mentais ............................................. 65
3.1.2 Os Quatro Elementos antes de Empdocles ............................................................. 69 3.2. TRADIO MSTICA ............................................................................................................. 71
3.2.1 Categorias e Fenmenos Mstico-Religiosos ............................................................ 71
3.2.2 Xamanismo .................................................................................................................. 73 3.2.3 Magia ........................................................................................................................... 82 3.2.4 Natureza e Empatia .................................................................................................... 87
3.2.5 Orfismo e Pitagorismo................................................................................................ 92 3.2.6 Parentesco Universal e Epistemologia Emptica ..................................................... 99
CONSIDERAES FINAIS .................................................................................................... 109
REFERNCIAS ........................................................................................................................ 117
FONTES PRIMRIAS .................................................................................................................. 117
FONTES SECUNDRIAS ............................................................................................................. 117 INSTRUMENTOS ........................................................................................................................ 124
INTRODUO
H um tpos () recorrente na filosofia antiga: o tpos da suposta incompatibilidade
entre Mthos () e Lgos (), entre discurso mtico e discurso racional, entre
inconsciente e consciente, entre irracional e racional, entre pensamento mstico e pensamento
cientfico. Tal assunto se torna cada vez mais paradigmtico quanto mais o historiador da
filosofia se aproxima das origens, dos primeiros autores a tentar, pretensamente, a reforma
conceitual que buscar substituir o Mthos pelo Lgos. Todavia, nessas primeiras tentativas de ir
alm da mitologia, enquanto narrativa dos deuses, em direo arkh () primordial,
enquanto narrativa histrica do mundo, os pr-socrticos se utilizaram de cosmogonias com
elementos tanto mticos quanto ontolgicos, mantendo em muitos casos uma relao de
complementaridade entre Mthos e Lgos1.
Embora a presena do pensamento mtico no tenha sido ainda completamente abolida
nem mesmo no mundo moderno aps o advento da conscincia histrica (Eliade, 1994), os
elementos mticos do pensamento dos pr-socrticos tm sido negligenciados por vrios
historiadores da filosofia antiga contemporneos (Kingsley, 1995). Tais historiadores,
restringidos pela viso apenas racionalista da filosofia, encontram-se constantemente em
1 Os nomes mthos e lgos sero tomados neste trabalho, no em algum de seus vrios sentidos gregos, mas
como conceitos filosficos representantes de um problema difcil de definir relacionado ao moderno problema da
incompatibilidade entre cincia e religio. Toda a discusso que ser feita nos captulos seguintes ter como objetivo
esclarecer da melhor forma possvel, os conceitos centrais da filosofia de Empdocles e que lhe permitem transitar
entre o ciclo csmico sensvel e o ciclo csmico suprasensvel, utilizando os mesmos conceitos e pontos de partida.
Sempre que o termo mthos for aqui utilizado, estar se referindo aos conceitos modernamente classificados como
msticos, religiosos ou metafsicos enquanto que o termo lgos ser tomado para representar os conceitos que
daro origem posteriormente s vrias abordagens cientficas, em seus vrios graus de preciso, todas com algum
mtodo de teste emprico de seus resultados, e sempre abertas a possibilidade de refutao. At o advento da cincia
moderna, esses conceitos estiveram bastante relacionados. Com o surgimento e desenvolvimento das cincias
experimentais na idade moderna, mthos e lgos comearam a se diferenciar cada vez mais, at o ponto em que,
diferentemente dos povos primitivos, as dimenses da f e da racionalidade se tornaram mbitos diferentes e
incompatveis do pensamento humano. De certo modo, devido a esse tipo de experincia que o olhar do historiador
moderno da filosofia antiga precisa tomar partido de uma srie de contextos para conseguir entender o tipo de
racionalidade existente no perodo das origens da filosofia grega. E foi devido suposta separao entre os mbitos
do mthos e do lgos que os historiadores da filosofia antiga do sculo XIX encontraram-se em enormes dificuldades
para interpretar o sentido de contextos tais como o do orfismo, do dionisismo, da magia e do xamanismo em suas
relaes com os primeiros filsofos. Atualmente, esses vrios elementos da cultura grega j receberam vrios e
detalhados tratamentos por fillogos, antroplogos, etngrafos e historiadores das religies ao longo do sculo XX, e
tornaram o estudo das relaes entre mthos e lgos mais rica em elementos. Assim, o problema das relaes entre
mthos e lgos em Empdocles ser abordado nesta dissertao a partir dessa tradio multidisciplinar de estudos
clssicos, buscando se aproximar do olhar dos antigos.
14
dificuldades para entender o sentido de certos elementos mticos presentes nos textos dos
primeiros gregos, responsveis pela criao do campo intelectual da filosofia. Segundo Kingsley:
A tradio de pesquisadores ps-Iluministas ao longo dos ltimos dois sculos tem
persistentemente visto a historia da filosofia antiga como uma evoluo progressiva em direo
a certo ideal de racionalidade extremamente vago, embora misteriosamente sedutor; e ao faz-lo
decidiu aceitar quase incondicionalmente a avaliao arrogante de Aristteles da filosofia dos
pr-socrticos como no mais do que uma tentativa balbuciante de dizer o que somente ele,
afinal, era capaz de articular com alguma fluncia (Kingsley, 1995, p.3)2.
A distncia temporal que nos separa dos gregos do V sculo antes de nossa era dificulta o
acesso s referncias de ordem religiosa e cultural, tais como o uso entre os filsofos de eptetos e
figuras divinas, ou a presena simultnea de uma narrativa de tom lgico e racionalista e outra de
cunho mtico, cheia de referncias culturais de ordem ritual e sagrada3. A busca de sentido para a
dialtica entre Mthos e Lgos e a descrio fiel das evidncias no tratamento historiogrfico dos
antigos sero dois dos principais objetivos deste trabalho.
Alm da presena da viso cclica da vida csmica e humana, essencial para o pensamento
mtico, os gregos mantiveram uma srie de temas importantes para a conscincia mtica, tais
como a importncia das origens, a ideia de que, aquilo que primordial, a arkh (), precede
a existncia humana; a importncia da memria, dentre outros (Eliade, 1994). Segundo Eliade:
Veremos, entretanto, que a desmitificao da religio grega e o triunfo, com Scrates e
Plato, da filosofia rigorosa e sistemtica, no aboliram definitivamente o pensamento
mtico. Alm do mais, difcil conceber o ultrapasse radical do pensamento mtico
enquanto o prestgio das origens permanece intacto e enquanto o esquecimento do que
se passou in illo tempore ou num mundo transcendental considerado o principal
obstculo ao conhecimento ou salvao. Veremos que Plato ainda adere a esse modo
de pensamento arcaico. E que na cosmologia de Aristteles sobrevivem ainda venerveis
temas mitolgicos (Eliade, 1994, p.101).
Tambm Dodds, a partir de abordagens psicolgicas, sociolgicas e antropolgicas,
discutiu a presena de elementos mticos e racionais nos vrios momentos do desenvolvimento da
filosofia e da cultura grega desde Homero at o perodo helenstico (Dodds, 2002). Segundo ele,
2 Orig.: (...) post-Enlightenment scholarship over the past two centuries has persistently viewed the history of early
Greek philosophy as a progressive evolution towards some extremely vague, but numinously seductive, ideal of
rationality; and in doing so it has almost unquestioningly decided to embrace Aristotles arrogant assessment of
Presocratic philosophy as no more than a stammering attempt to say what only he, at last, was able to articulate with
any fluency. 3 Alguns exemplos de tais elementos so: o poema sobre a natureza e o das purificaes de Empdocles; o promio e
a apresentao dos caminhos da verdade e da opinio em Parmnides e a presena dos mitos nos dilogos platnicos.
15
em nenhum momento os gregos desenvolveram o projeto racionalista at as ltimas
consequncias. Sempre houve, em algum nvel, a presena de elementos mticos no pensamento
dos gregos:
(...) os homens que criaram o primeiro racionalismo europeu nunca foram at o
perodo helenstico simplesmente racionalista. Ou seja, eles imaginavam e estavam
profundamente cientes do poder, do encantamento e do perigo do irracional. Mas eles s
puderam descrever o que ocorria abaixo do limiar de conscincia, em uma linguagem
mitolgica ou simblica, pois no possuam um instrumento para compreend-lo, e
menos ainda para control-lo (Dodds, 2002, p. 255).
Um dos objetivos desta dissertao apontar os aspectos mticos e racionais do
pensamento de Empdocles, mostrando como o agrigentino realizou a sntese entre esses dois
tipos de pensamento, sem levar a cabo o divrcio entre Mthos e Lgos em sua inteireza. Sero
analisados os contextos de mbito tanto mstico quanto cientfico com o qual Empdocles
estava dialogando em seus versos. Ainda com relao ao difcil divrcio total entre Mthos e
Lgos, no s no pensamento arcaico como na cultura contempornea, Eliade diz o seguinte:
(...) o homem a-religioso no estado puro muito raro, mesmo na mais dessacralizada das
sociedades modernas. A maioria dos sem-religio ainda se comporta religiosamente,
embora no esteja consciente do fato. No se trata somente da massa das supersties
ou dos tabus do homem moderno, que tm todos uma estrutura e uma origem mgico-
religiosas. O homem moderno que se sente e se pretende a-religioso carrega ainda toda
uma mitologia camuflada e numerosos ritualismos degradados (Eliade, 2008, p. 166).
Ao longo dos estudos desenvolvidos sobre Empdocles no sculo XX, desde a publicao
dos fragmentos dos pr-socrticos por Diels-Kranz (1992) at a publicao do papiro de
Estrasburgo por Martin-Primavesi (1999), os dois poemas de Empdocles foram cada vez mais
sendo entendidos como um todo coerente. O papiro de Estrasburgo apenas trouxe uma
confirmao direta de que o texto de Empdocles apresentava, mesmo dentro de cada um dos
poemas, certas transies temticas entre Mthos e Lgos que demonstraram que a separao
entre esses mbitos est mais relacionada crtica e organizao posterior dos versos de
Empdocles, do que ao prprio Empdocles. O desenvolvimento dessa tradio ser delineado
em seus aspectos gerais no captulo 1, desde a discusso de alguns aspectos filolgicos da
organizao efetuada por Diels, at as principais evidncias descobertas com a publicao do
papiro de Estrasburgo por Martin-Primavesi (1999).
16
Na obra de Empdocles, reconhecem-se conceitos e princpios que contriburam para a
estruturao da investigao filosfica. No se pode negar que Empdocles, assim como outros
pr-socrticos, estava interessado em descrever com preciso o funcionamento de todas as coisas,
desde a fisiologia at a astronomia, passando pela botnica, qumica, tica e meteorologia. E que
esses temas comearam a ser tratados pelos pr-socrticos com mtodos diferentes daqueles do
contexto pico anterior (Lloyd, 1971). com essa etapa do desenvolvimento da lgica e da
metodologia filosfica em mente que tambm o monismo e o pluralismo desses autores ser
investigado, de modo a entender o tipo de metodologia de pesquisa pretendido por Empdocles
em suas investigaes. Para isso, sero abordados no captulo 2 os aspectos que aproximam o
pluralismo de Empdocles do monismo de Parmnides, a fim de lanar luz sobre o mtodo de
pesquisa e a natureza da concepo cosmolgica adotada por Empdocles. Um dos problemas
que logo saltam a vista nesse contexto : Como a postura monista pode ser compatvel com a
pluralista? Esse problema ser tratado a partir do estudo dos fragmentos centrais de Parmnides
onde o tipo de monismo adotado por esse autor ser discutido. E a partir do contexto filosfico
anterior e posterior s discusses de Parmnides o problema da metodologia de pesquisa de
Empdocles, mais ligado a perspectiva do lgos, ser delineado.
Assumindo a unidade temtica de Empdocles, entre uma tendncia de ordem cientfica
mais vinculada ao lgos, e uma tendncia de ordem mstica mais ligada ao Mthos, no captulo 3
sero discutidos alguns aspectos da filosofia de Empdocles que possam ajudar o leitor
contemporneo a entender o modo pelo qual Empdocles pode associar em sua vida e discurso,
os temperamentos mstico e cientfico. Nesse contexto, os aspectos principais da filosofia de
Empdocles aparecem como fundamento tanto do ciclo csmico entendido como movimento de
elementos materiais, como do ciclo csmico entendido como movimento de elementos materiais
imperceptveis aos seres mortais, que do ponto de vista religioso, so representados como almas e
deuses. Ver-se-, nesse contexto, que os conceitos empedocleanos centrais apresentam traos de
ordem mgica que permitem sua aplicao tanto em mbito mstico quanto cientfico.
17
1. TRADIO, ORGANIZAO E UNIDADE TEMTICA EM EMPDOCLES
A primeira condio para entender Empdocles est em banir a noo de um abismo
entre crenas religiosas e pontos de vista cientficos. Seu trabalho um todo, em que a
religio, a poesia e a filosofia esto indissoluvelmente unidas. Sua imaginao criativa,
reunindo elementos disponveis em todas as partes cosmogonia hesidica e jnica,
racionalismo parmenidiano, misticismo rfico, lenda potica, a experincia de um fsico,
a resposta sensria de um poeta para as paisagens e sons da natureza, e os medos e
esperanas de um esprito exilado do paraso para um breve perodo de tempo de vida
que no vida ' mas construindo todos esses elementos juntos em uma viso unitria
da vida do mundo e do destino da alma humana, ligada, como o macrocosmo, ao ciclo de
nascimento e morte (Cornford, 1952, p.121-2)4.
A interpretao de um texto antigo requer, como j dizia Schleiermacher, no s a adoo
de uma srie de contextos que tornem possvel algum tipo de aproximao com o autor antigo,
como tambm certas anlises estruturais de ordem filolgica, gramatical e lgica. Tanto um
procedimento quanto outro necessrio e cada um ajuda a desenvolver a anlise do outro, de
modo que a interpretao de um texto avana em espiral por meio da relao mtua entre
procedimentos de ordem gramatical e procedimentos de ordem psicolgica5. Nesse processo, a
historiografia moderna de Empdocles passou por vrios momentos desde as primeiras edies
de seus fragmentos at os grandes debates desenvolvidos ao longo do sculo XX. A tradio
hermenutica de Empdocles oscilou nesse tempo entre uma abordagem unitria de seu
pensamento e outra dupla. Mas com a publicao do papiro de Estrasburgo, as antigas hipteses
4 Orig.: The first condition for an understanding of Empedocles is to banish the notion of a gulf between religious
beliefs and scientific views. His work is a whole, in which religion, poetry, and philosophy are indissolubly united.
His imagination is constructive, gathering elements from every available quarter Hesiodic and Ionian cosmogony,
Parmenidean rationalism, Orphic mysticism, poetic legend, the experience of a physician, a poets sensuous response
to the sights and sounds of nature, and the fears and hopes of a spirit exiled from heaven for a brief span of life that
is no life but building all these elements together into a unitary vision of the life of the world and the destiny of the
human soul, bound, like the macrocosm, upon the wheel of birth and death. 5 Cf.: Schleiermacher (2003)
18
de unidade das obras obtiveram uma confirmao filolgica. Os dois poemas de Empdocles no
mais podem ser considerados de modo separados em uma anlise contempornea de Empdocles.
Seu pensamento deve ser considerado, de agora em diante, como a tentativa de tornar coerente os
ciclos da natureza de ordem material e de ordem mstica.
1.1 Os Dois Poemas
No mesmo perodo histrico em que o a dicotomia entre cincia e religio j havia
crescido e se desenvolvido ao longo de toda a idade moderna, a gerao de fillogos alemes que
fundou na atualidade os estudos pr-socrticos enxergou como problema central da filosofia de
Empdocles a aparente dicotomia entre o poema intitulado purificaes (katharmo
) e o poema sobre a natureza (Per phses ), dado que o primeiro
apresentaria teorias sobre as prticas purificatrias necessrias para evitar o sofrimento em
reencarnaes futuras, enquanto que o segundo descreveria uma doutrina puramente materialista
segundo a qual todas as coisas so formadas pela mistura e separao de quatro razes terra, ar,
fogo e gua regidas por duas foras amor e dio responsveis por provocar o nascimento e a
morte a partir da composio e decomposio de membros vivos. Nesse contexto, parece no
haver compatibilidade entre uma abordagem que consegue explicar todos os eventos naturais a
partir do domnio compartilhado que o amor e o dio exercem sobre os quatro elementos bsicos
ao longo do ciclo csmico. Tal dificuldade forou os fillogos a levantar algumas hipteses
explicativas para o fato de um mesmo autor supostamente sustentar opinies to dspares. Uma
delas supe que o autor escreveu os dois poemas em momentos diferentes de sua vida, mantendo
apenas alguns conceitos bsicos em cada uma das duas fases. Outros autores no acreditam que
haja grandes problemas em sustentar que Empdocles tenha escrito ambos os poemas no mesmo
perodo, sustentando que Empdocles seja um tipo de cientista com temperamento duplo, capaz
de passar 6 dias da semana exercendo atividades de pesquisa experimental, e 1 dia alimentando
sua f em alguma atividade mstica sincrtica.
Tal dificuldade de entender o aspecto multifacetado do pensamento de Empdocles entre
os dois poemas talvez esteja relacionado dificuldade de ordem lgica, filolgica e gramatical,
dada a escassez de dados sobre a relao entre os poemas e a prpria natureza dos dados, sempre
19
provenientes at o papiro de Estrasburgo de citaes de terceiros em organizaes temticas
que tratam Empdocles no como fim, mas como meio para argumentar e discutir outros autores
ou assuntos.
O fato de a maioria dos fragmentos no estar endereada nem a um nem a outro desses
poemas deixou uma enorme margem de liberdade para a classificao dos fragmentos entre os
dois poemas. De fato, os fragmentos com tons materialistas foram includos no poema sobre a
natureza enquanto que os msticos e religiosos foram associados ao poema das purificaes. Em
relao ao nmero de fragmentos existentes de Empdocles, o nmero de trechos com indicao
de origem representa cerca de 15% em relao totalidade dos fragmentos disponveis6. Tais
fragmentos com alguma indicao de origem esto citados no quadro 1 abaixo.
QUADRO 1 Fragmentos de Empdocles com indicao de origem
Local Critrio de
Classificao Fragmento DK 31 B
Per
phses
Indicao direta 1, 8, 17, 34, 54, 62, 75, 85, 96, 103, 104, 134
Endereamento
2 pessoa do
singular
2, 4, 5, 6, 21, 23, 38, 110 e 111
Katharmo
Indicao direta 112, 113, 115 e 153a
Endereamento
2 pessoa do
plural
114, 124 e 136
A partir desses poucos fragmentos com indicao de origem, foram deduzidas os
princpios bsicos de cada um dos poemas e, a partir de uma diviso entre matrias relacionadas
ao universo fsico, de um lado, e matrias referentes religio de outro, todos os outros 85% dos
fragmentos foram distribudos entre esses dois poemas7. Ao seguir tal mtodo e perceber que o
nmero de versos de teor materialista era muito maior do que aqueles de carter mstico,
6 Considerando-se que, de fato, Empdocles tenha escrito apenas dois poemas e excetuando-se os fragmentos
descobertos pelo papiro de Estrasburgo, h, segundo o TLG, 164 fragmentos de Empdocles. Dentre esses, apenas
cerca de 28 possuem algum tipo de endereamento identificvel diretamente a um dos poemas, ou indiretamente
considerando o fato de que um est dirigido segunda pessoa do singular enquanto que o outro est dirigido
segunda pessoa do plural. Veja-se, a esse respeito, Long (1949) e Trpanier (2004). 7 O primeiro a sugerir o mtodo da assinalao dos fragmentos a partir da distino temtica entre materialismo e
espiritualismo foi Scalinger, seguido de Sturz em 1805. Diels seguiu a autoridade desses autores em sua organizao.
Cf.: Long (1949).
20
Diels achou melhor propor uma emenda ao texto de Digenes Larcio a fim de reduzir o nmero
de versos do poema das purificaes. Segundo o texto tradicional de Digenes, os dois poemas
teriam 5000 versos (D.L. VIII, 77; DK 31 A1), enquanto que o texto do Suda diz que o texto
sobre a natureza teria 2000 versos (DK 31 A2). Assim, Diel props a alterao em Digenes de
5000 (pentakiskhlia ) para 3000 (pnta triskhlia ) aumentando
o nmero de versos do poema fsico com relao ao poema das purificaes a fim de tornar sua
classificao mais prxima da realidade, j que ele havia inserido 346 versos ao poema sobre a
natureza e apenas 110 ao poema das purificaes. Tal proporo de 3,14 para 1, enquanto que a
proporo sem considerar a emenda seria de 2 para 3, o que tornaria seus dados, embora bastante
numerosos com relao a outros pr-socrticos, bastante fora da realidade. Com a emenda de
Diels essa proporo passou a ser de 2 para 1, tornando, pelo menos, o nmero de versos do
poema fsico maior do que o do poema das purificaes. Mas, uma vez que a grande maioria dos
versos obteve uma classificao seguindo critrio temtico e no filolgico, a classificao de
Diels se torna altamente questionvel em relao a 85% de seus versos, de modo que tal emenda
s pode fazer sentido se a anacrnica dicotomia entre cincia e religio for mantida. Assim a
emenda de Diels de carter ideolgico e busca salvar os dados tal como ele acredita que eles
devam ser e no tal como eles foram encontrados nas evidncias historiogrficas existentes em
sua poca. bastante provvel que tal origem dos estudos sobre Empdocles tenha contribudo
para manter a ideia da dicotomia insupervel entre os poemas do agrigentino. O mtodo temtico
de distribuio bastante inteligente e engenhoso, mas tal arranjo no pode ser considerado um
fato historiogrfico, nem ser confundido com o arranjo real tomado por Empdocles.
TABELA 1 Nmero total de versos de Empdocles
Natureza dos
Dados
Texto
considerado
N de
versos de
Per
phses
(A2)
N de
versos de
katharmo
(A1 e A2)
N total
de versos
(A1)
Proporo
entre n versos
do Per phses
e N versos do
katharmo
Dados
historiogrficos
tericos
A2 e A1 sem
emenda de Diels 2000 3000 5000 0,666 / 1
Dados
historiogrficos
Encontrados
Nmero de
versos
encontrados por
346 110 456 3,145 / 1
21
Diels
Dados
historiogrficos
Alterados
A2 e A1 com
emenda de Diels 2000 1000 3000 2 / 1
A bifurcao da filosofia de Empdocles no foi um fenmeno ocasionado apenas pela
natureza globalizante de seus versos, ou pelo arranjo dos versos dado por Diels. Desde a
antiguidade, o interesse diverso dos comentadores provocou uma diviso de Empdocles j na
antiguidade, quando Aristteles e a descendncia peripattica privilegiou os comentrios acerca
da perspectiva fsica de Empdocles, enquanto que a academia e os neo-platnicos privilegiaram
o estudo das doutrinas da alma de Empdocles (Long, 1949).
1.2 Papiro de Estrasburgo
Embora os estudiosos ao longo do sculo XX j estivessem convictos de que os poemas
de Empdocles no eram de todo incompatveis e j tivessem analisado os vrios pontos de
contato e as vrias possveis interpretaes dos elementos bsicos da teoria empedocleana, o
surgimento do papiro de Estrasburgo trouxe uma prova filolgica definitiva para as suspeitas
desses autores8. Esse papiro contem o nico texto em primeira mo de um autor pr-socrtico e
foi identificado a partir da feliz coincidncia de um de seus versos conservados ser exatamente o
trecho final de B17 de Empdocles (Martin-Primavesi, 1999). Alm deste ponto de contato, h
outras relaes entre os trechos conhecidos e os pedaos de texto do papiro, listadas no quadro
abaixo:
QUADRO 2 Pontos de Contato entre Papiro de Estrasburgo e fontes empedocleanas9
Papiro de Estrasburgo Fontes empedocleanas
Linhas a(i) 1 5 = B 17.31-35
Linhas a(i) 6 a(ii)2 Parecido com B21.7-12
Linhas a(i) 8 a(ii) 2
= Quatro versos de Empdocles
citados por Aristteles, Metafsica, B 4
1000 a 29-32
8 Dentre os vrios autores que trabalharam em alguma teoria sobre a compatibilidade entre os dois poemas de
Empdocles esto: Cornford (1952; 1957), Guthrie (1969), Long (1949), KRS (1983), Barnes (1967), e Long (1966). 9 Cf.: MartinPrimavesi (1999)
22
Linhas a(ii) 18 20 Parecido com B 35.3-5
Linha a(ii) 30
Contem um verso de Empdocles
citado por Simplcio, Fsica, p. 161.
20 Diels
Linhas b 2 e 4 = B 76.3 e B76.2
Linha c 2-8 = B20
Linha d 5-6 = B139
As evidncias encontradas por Martin-Primavesi levam a crer que os pedaos preservados
do texto de Empdocles so de transmisso direta, dado que no h neles quaisquer registros de
texto em prosa ligando vrias citaes. Do mesmo modo, alguns trechos dos conjuntos a e d
apresentam transies temticas que no caberiam em uma sequencia de citaes organizadas
tematicamente. Assim sendo, vrios problemas filolgicos e filosficos podem ser resolvidos ou
melhor abordados com os novos dados disponveis a partir desses textos.
Desde o perodo do neoplatonismo, quando a filosofia se tornou uma espcie de grande
comentrio aos textos clssicos, que a atividade de organizar, citar e comentar um autor se tornou
quase sinnima da atividade acadmica do filsofo. J Aristteles havia ensinado o modelo que
seria seguido pelos comentadores do futuro. No s ele como vrias geraes de filsofos citaram
trechos da filosofia pr-socrtica para discutir toda a variedade de assuntos possveis, sempre
voltando queles que seriam os pioneiros e iniciadores da tradio de pensamento sobre os vrios
temas filosficos.
Nesse processo cada um, seguindo o prprio estilo de organizao temtica da discusso
motivada por certos objetivos, costuma citar apenas as partes dos textos ligadas aos temas de
interesse e que ajudem de alguma forma a tornar claros seus problemas e temas de investigao.
Assim, de se esperar que os textos sobreviventes dos pr-socrticos no apresentem muitas
transies temticas. Os autores antigos interessados no ciclo csmico ou na metempsicose, em
geral, no citavam os trechos de transio, mas apenas os trechos onde Empdocles estivesse
discutindo especificamente uma ou outra matria. E no havia motivos para fazer tal tipo de
citao, j que os leitores supostamente poderiam acompanhar o argumento e o comentrio
somente a partir da citao especfica, e na pior das hipteses, poderiam procurar o texto de
Empdocles e l-lo em primeira mo. Tal fato certamente contribuiu para as incertezas com
relao unidade do pensamento de Empdocles ao longo de seus dois principais poemas.
23
Para os objetivos desta dissertao, o papiro de Estrasburgo fornece evidncias
conclusivas para a ocorrncia de transies temticas de carter cientfico para mstico em um
mesmo conjunto de versos, mostrando que o texto de Empdocles, como um todo, no estava
organizado tematicamente tal como as citaes de autores antigos e tal como a organizao
temtica seguida por Diels sugerem. De modo que, embora haja dois poemas, aparentemente h
apenas um sistema terico.
Tanto em a(i) 6 quanto em c 3-4, em um momento do ciclo csmico em que os vrios
membros comeam a se aglutinar, formando seres mortais, tal experincia descrita a partir da
primeira pessoa do plural por Empdocles, ou seja, ao invs de se referir aos quatro elementos
como submetidos s foras do ciclo csmico, ele se refere s pessoas do atual ciclo csmico, que
supostamente experimentaro essas revolues do ciclo csmico. Neste caso, Empdocles parece
estar se referindo ao movimento experimentado pela alma humana em seu processo de
transmigrao ao longo do ciclo csmico. Da mesma forma, quando em a(ii) 17, o dio est em
plena ascenso na ltima fase da separao dos elementos, em direo ao predomnio completo
do dio, novamente a referncia primeira pessoa do plural utilizada para identificar o sujeito
que se desloca para o centro. Em ambos os casos, todo o movimento poderia ser explicado a
partir dos princpios bsicos da natureza. Mas Empdocles utiliza uma referncia similar a
utilizada em B115 quando se refere aos damones (), s unidades capazes de transmigrar
entre os vrios mbitos materiais. Segundo a interpretao de Cornford(1957), Kahn(1960b) e
OBrien(1969), essas almas, damones, seriam formadas por fragmentos de amor que so
encarnados como seres vivos individuais, mas que, do ponto de vista macrocsmico, seriam um
nico indivduo divino que continuamente nasce e morre: a esfera. Em B115, Empdocles diz
claramente que ele um desses damones que decaiu aps confiar no dio em outro momento do
ciclo csmico. Em B59, h uma referncia a unio de damones entre si para a formao de seres
cada vez mais complexos ao longo de uma sucesso onde muitas coisas surgem em uma
sequencia temporal (B59.3). Ou seja, parece haver damones em cada membro utilizado para
formar seres mais complexos. E nesse sentido, parece haver inclusive seres mais complexos do
que estes presentes na atual fase do ciclo csmico, que tero seus damones formados a partir da
juno de vrios damones atuais. Mas, mesmo nesse perodo seguinte, ainda haver seres menos
complexos, o que justificaria o discurso de Empdocles aos seus concidados para que eles se
24
purifiquem, j que alguns dentre os atuais seres humanos podem, em uma prxima etapa do ciclo
csmico, terem seus damones divididos ao invs de aumentados, fazendo com que eles
encarnem em seres menos nobres. Assim, a fsica de Empdocles torna-se um sistema no qual a
tica tambm est presente, onde vantajoso, do ponto de vista tico, viver de acordo com os
instintos csmicos do amor, no s do ponto de vista da unio puramente materialista de
diferentes partes, como tambm do ponto de vista psicolgico do temperamento amoroso, ligado
aos sentidos e aos pensamentos. O dio, tanto como princpio da separao de membros, como
instinto csmico capaz de desencadear o desentendimento, o pensamento unilateral e a morte,
deve ser evitado a fim de manter-se sempre evoluindo junto com as outras partes do ciclo
csmico, em formas de vida cada vez mais superiores at chegar esfera, a unidade de todos os
damones, destino de todos ao final do ciclo csmico.
Outro elemento importante lembrado por Martin-Primavesi a diferena entre a memria
individual e a memria coletiva. Em todas as ocorrncias da primeira pessoa do plural, os eventos
referidos esto sempre fora do perodo compreendido entre a primeira encarnao da alma no
singular, damn () nos membros mortais, e o atual momento do ciclo csmico. Quando
Empdocles se refere ao mundo atual ou ao mundo anterior a esse no qual os membros esto
recebendo pores de amor, Empdocles utiliza normalmente a referncia primeira pessoa do
singular (B115.13, B117 e B118). Essa indicao tem como pano de fundo a ideia do parentesco
universal entre todas as formas de vida do ksmos, bem como a ideia de que todas as almas so
partes de uma mesma alma, a alma do mundo, e possuem, nesse sentido uma espcie de memria
em comum em algum momento do ciclo csmico em que o amor se rene. Ao passo que, no atual
momento do ciclo csmico, bem como em outros momentos em que o amor no est fortemente
presente, cada uma das almas dos vrios seres mortais representa um aspecto do todo, uma parte
da memria e sabedoria coletiva do ksmos que est temporariamente impossibilitada de ter
pensamentos mais geis e memria mais abrangente. nesse contexto que os seres considerados
superiores conseguem lembrar-se de outras existncias e reconhecer damones em formas de vida
diferentes, tal como Empdocles diz que Pitgoras capaz em B129.
Mas do ponto de vista da unidade temtica dos poemas de Empdocles, a evidncia mais
importante o conjunto d no qual a transio temtica ocorre de maneira bastante clara entre o
trecho d 11-14, no qual so descritas as vrias combinaes de criaturas mortais, e o trecho d 15-
25
18 onde h uma transio para o tema da encarnao do damn. Alm disso, em d 1-10 a
descrio do fim do atual estgio csmico interrompida pelo j conhecido trecho B139 (=d 5-6)
no qual Empdocles se lamenta de ter cometido o crime que supostamente o fez decair de um
deus para a forma de um homem.
26
2. O PLURALISMO DE EMPDOCLES
H um consenso geral entre os historiadores da filosofia pr-socrtica de que Parmnides
seja o divisor de guas entre os primeiros filsofos jnicos e os filsofos pluralistas posteriores.
Mas o tipo de apropriao que cada um desses filsofos fez de sua cultura uma questo em
aberto que est longe de ser esclarecida diante das mltiplas evidncias historiogrficas e das
vrias possveis inter-relaes entre os primeiros filsofos10
. Em geral, h uma srie de
dificuldades que todo estudioso da antiguidade enfrenta: a distncia histrico-cultural dos
primeiros filsofos, a diversidade de mediaes historiogrficas, a legitimidade ou no de certos
textos e tradies antigas, o modo como esses filsofos reagiram uns aos outros, em mbitos do
conhecimento considerados filosficos ou no, etc. No caso dos pr-socrticos esses problemas
se tornam ainda maiores, pois esses autores estavam em processo de criao do campo filosfico
entendido em sentido amplo, e nesse processo, a apropriao que cada autor fazia do conceito de
filosofia era singular e estava relacionada com o projeto que cada um tinha enquanto criador de
uma rea nova. Nesse mesmo contexto estavam tambm em jogo atividades ligadas histria,
medicina, religio, poltica, etc. Todas tomando partido de mtodos e objetos diferentes de
conhecimento, entrando em conflito umas com as outras e definindo seus escopos a partir dessas
disputas e de uma srie de processos filosfico-sociais difceis de identificar11
. No meio desse
processo, Empdocles uma figura paradigmtica do ponto de vista da multiplicidade de temas
de que trata, e da dificuldade de compatibilizar todas as evidncias ligadas a ele. Apesar de
10
Dentre os que aceitam Parmnides como ponto de inflexo na histria da filosofia pr-socrtica pode-se citar:
Burnet (1994), Jaeger (1952), Guthrie(1969), Mourelatos (1970), Barnes (1982), Curd (2004) e Graham (2006) 11
Sobre a inovao disciplinar representada pela inveno da filosofia grega, no contexto da historiografia moderna
baseada na ideia moderna e acadmica de disciplina e em outras abordagens recentes da filosofia grega, veja-se
Lks (2007, 2010).
27
existirem muitos e extensos fragmentos conservados desse pr-socrtico, a vasta historiografia
disponvel sobre o agrigentino est longe de chegar a um consenso sobre como se deve lidar com
as vrias evidncias aparentemente contraditrias ligadas a Empdocles. Para ficar apenas com
um exemplo mais recente, foi necessrio ter achado um novo papiro com evidncias de transies
temticas dentro de uma mesma sequncia de versos de Empdocles para que certo consenso a
respeito da compatibilidade entre os dois poemas de Empdocles fosse analisada com maior
ateno pelos historiadores, embora, mesmo sem levar em conta os novos fragmentos, houvesse
uma srie de pontos de concordncia entre os poemas e tal incompatibilidade no tenha sido
enfatizada pelos antigos. Da mesma forma, ainda recente a tentativa de explicar o importante
dilogo entre Parmnides e os pluralistas posteriores12
.
A historiografia tradicional frequentemente interpretou o sistema de Empdocles como
uma tentativa de reconciliar o imobilismo de Parmnides com o mobilismo de Herclito. Burnet
contesta essa afirmao dizendo que seria difcil encontrar traos de Herclito na abordagem de
Empdocles, mas mantm a ideia de que Empdocles tenha conciliado a abordagem monista de
Parmnides com algum tipo de abordagem cosmolgica (Burnet, 1994). Burnet entende que haja
uma grande incompatibilidade entre o poema de Parmnides e a filosofia de Herclito. De modo
que, em Parmnides, a mudana enxergada no mundo seja apenas uma iluso provocada pela
incapacidade dos mortais de enxergar o Uno. Segundo ele:
Em vez de contemplar o Uno com um impulso para a mudana, como fizera Herclito, e
assim torn-lo capaz de explicar o mundo, Parmnides rejeitou a mudana como uma
iluso. Ele mostrou de uma vez por todas que, se levamos o Uno a srio, somos
obrigados a negar tudo o mais (Burnet, 1994, p.149).
Apesar dessa suposta diferena radical de opinies entre Parmnides e Herclito, Burnet
reconhece que tanto Parmnides quanto Herclito postularam a existncia de duas perspectivas de
investigao: uma do ponto de vista dos homens e outra do ponto de vista divino. KRS tambm
reconhecem esse ponto em comum13
. Recentemente tambm Casertano percebeu as similaridades
12
Uma das grandes responsveis pela apresentao de uma abordagem historiogrfica dialgica entre Parmnides e
os pluralistas seguintes tais como Empdocles, Anaxgoras, os Atomistas e at Plato, Curd (2004). Suas principais
ideias sero expostas mais adiante. 13
Segundo KRS: A superioridade do deus em relao ao homem, e da viso sinttica das coisas por parte da
divindade relativamente viso catica dos homens, profundamente sublinhada por Herclito (KRS, 1983, p.
28
entre os autores, acentuando o carter cosmolgico tanto de Parmnides como de Herclito, e
mostrando que a perspectiva fenomnica dos mortais e a realidade divina no so incompatveis.
Segundo ele, referindo-se unidade dos opostos em B62, B67, B88 e B76 de Herclito:
(...) no se exclui que os fragmentos tenham tambm um valor cosmolgico, e neste caso
no estariam muito distantes da perspectiva jnica e parmenidiana segundo a qual no h
incompatibilidade entre a afirmao da eternidade e a de um nascimento-morte de todas
as coisas, entre a afirmao da imobilidade e a do movimento, porque as primeiras se
referem realidade entendida como uno-todo e as segundas realidade entendida como
multiplicidade de fenmenos (Casertano, 2009, p. 105).
Tanto Burnet, quanto KRS e Casertano, entendem que haja pontos de concordncia e de
discordncia entre Parmnides e Herclito igualmente fortes. E todos eles partem de uma anlise
existencial do poema de Parmnides, ou seja, assumem que o verbo ser no fragmento B2 de
Parmnides deva ser traduzido e interpretado como existe ao invs de de tipo copulativo.
Como tentarei mostrar mais adiante, essa traduo do verbo torna o poema de Parmnides
insustentvel em seus prprios versos. Em seguida, argumentarei que a filosofia ps-
parmenidiana, mesmo seguindo caminhos diferentes, teve fortes influncias de Parmnides
entendido pela interpretao copulativa do verbo ser. Apresentarei a esse respeito a interpretao
de Mourelatos (1970) e Curd (2004).
Nos ltimos anos, vrios historiadores vem tentando reconstruir o dilogo entre os pr-
socrticos com a inteno de deixar o debate entre esses autores mais afinado diante da srie de
evidncias fragmentrias e aparentemente contraditrias que restaram desses filsofos. No que se
refere linha de continuidade que liga Herclito, Parmnides e Empdocles, o estudo de Curd
intitulado The Legacy of Parmenides de singular importncia. Curd argumenta de maneira
bastante convincente que o monismo de Parmnides compatvel com a perspectiva cosmolgica
dos pluralistas posteriores. Segundo ela a perspectiva heraclitiana do constante devir foi
fundamental para a reforma metodolgica da investigao cosmolgica feita por Parmnides:
Do ponto de vista de Parmnides, h dois aspectos da teoria dos opostos de Herclito
que so mais importantes. O primeiro a alegao de que haja uma unidade de opostos;
o segundo o papel dos opostos em explicar o vir-a-ser e outros tipos de mudanas.
Esses dois aspectos esto relacionados porque a unidade dos opostos que permite a
198). Sobre essa questo compare-se os fragmentos B78 e B102 de Herclito com os fragmentos B1.28-32 e B8.50-
52 de Parmnides. Sobre o paralelo entre Parmnides e Herclito, veja-se tambm Graham (2002).
29
mudana ordenada. Os opostos so intrinsecamente instveis. Sua tendncia natural seria
transformarem-se um no outro; essa a fonte da mudana, nascimento e morte (Curd,
2004, p.121)14
.
Segundo Curd, do ponto de vista do argumento apresentado por Parmnides nas trs
partes de seu poema, no possvel fazer uma abordagem cosmolgica genuna com entidades
opostas. Ele no deixou claro quantas entidades genunas so necessrias para dar conta da
mudana que existe no mundo. Mas de seu poema, depreende-se que seriam necessrias uma
pluralidade de entidades genunas, cada uma coerente com os critrios descritos no caminho da
verdade, seguindo os sinais daquilo que do en () para que as mudanas fenomnicas
que vemos no mundo sejam explicadas a partir da mistura e separao dessas entidades
imutveis. Segundo Curd, o poema de Parmnides se torna um todo coerente se o considerarmos
como um todo: o promio mostrando a natureza da verdade e da opinio e a atitude do jovem
diante dessas duas possibilidade de pensar e conhecer, a parte da verdade fornecendo os critrios
do que seja uma entidade genuna, e a parte da opinio oferecendo um modelo cosmolgico
decepcionante no que diz respeito s entidades genunas opostas, ou heraclitianas (Curd, 2004).
Embora Empdocles aceite os preceitos parmenidianos acerca do en, ele segue o
costume dos mortais (B.9), utilizando os conceitos de gerao e destruio, e faz uma abordagem
cosmolgica pluralista, maneira daquela mostrada por Parmnides na Dxa (), utilizando
mistura e separao de elementos para explicar a multiplicidade dos fenmenos do ksmos
(). Assim, tomando-se o conceito tradicional de monismo como a afirmao de que s
existe uma entidade no ksmos, Empdocles parece abandonar o sistema monista de Parmnides
e dos jnicos. No entanto, no h sinais de que Empdocles tenha discordado de Parmnides. As
evidncias mostram Empdocles aprovando a perspectiva parmenideana, acrescentando
elementos originais na investigao cosmolgica e acomodando imagens parmenideanas, como a
da esfera homognea de Parmnides, em sua cosmologia (Graham, 2010). Desse modo, preciso
reconsiderar o tipo de monismo adotado por Parmnides com o tipo de pluralismo adotado por
Empdocles, de modo a tornar as evidncias existentes coerentes, no s internamente, no
14
Orig.: From Parmenides point of view, there are two aspects of Heraclituss theory of opposites that are most
important. The first is the claim that there is a unity of opposites; the second is the role of the opposites in accounting
for coming-to-be and other sorts of changes. These two aspects are related, because it is the unity of the opposites
that allows for ordered change. The opposites are inherently unstable. Their natural tendency would be to shift back
and forth into each other; this is the source of change, birth, and death.
30
contexto de cada autor, como tambm do ponto de vista da tradio filosfica da poca, que se
constituiu atravs da disputa interna e externa na criao do campo intelectual da filosofia (Lks,
2012).
2.1 Tipos de Monismo e Pluralismo
2.1.1 Monismos
Segundo a definio de Curd (2004), possvel distinguir pelo menos trs variedades de
monismo: o material, o numrico e o predicativo:
1. Material: Monismo adotado por Tales e Anaxmenes, consistente com a existncia de
muitos objetos e itens no mundo, sendo cada um desses feito de uma modificao de um
princpio material.
2. Numrico: Monismo tradicionalmente atribudo a Parmnides e Melisso, afirma que h
apenas uma coisa ou item no universo. No est claro se essa nica coisa pode admitir
mais de um predicado. A depender disso, ser ou no possvel dizer algo alm de aquilo-
que- .
3. Predicativo: afirmao de que cada coisa que seja possa ser apenas uma coisa, possa
carregar apenas o predicado que indica o que tal coisa , e deva sustentar esse predicado
de modo particularmente forte. Assim sendo, para ser uma entidade genuna, uma coisa
deve ser uma unidade predicativa, com uma nica indicao do que , mas no o caso
que necessariamente exista apenas uma tal coisa. Com relao a esse tipo de monismo
Curd diz: Se algo , digamos F, deve ser todo, apenas e completamente F. No monismo
predicativo, uma pluralidade numrica de tais seres-unos (como se pode cham-los)
possvel (Curd, 2004, p.66).15
Por extenso definio de Monismo Numrico dada acima, pode-se chamar Pluralismo
Numrico teoria segundo a qual existe mais de uma coisa ou item no universo.
15
Orig.: If it is, say F, it must be all, only, and completely F. On predicational monism, a numerical plurality of such
one-beings (as we might call them) is possible.
31
Assim definidos, segundo Curd, uma abordagem cosmolgica pode sustentar
coerentemente algumas combinaes entre essas abordagens tericas, dentre elas:
Monismo Predicativo e Monismo numrico
Monismo Numrico e Monismo Material
Monismo Material e Pluralismo Numrico
Monismo Predicativo e Pluralismo Numrico
Para dar conta da tarefa de discutir o tipo de monismo adotado por Parmnides, o tipo de
leitura feita pelos pluralistas seguintes e o debate entre os intrpretes de Parmnides e dos
pluralistas seguintes, faz-se necessrio comear com uma discusso sobre o uso do verbo ser no
segundo fragmento de Parmnides.
2.1.2 Sentidos do Verbo Ser em Parmnides
Boa parte da compreenso do poema de Parmnides est vinculada traduo que se faz
do verbo ser no fragmento B2. Teoricamente, nesse contexto, pode-se traduzi-lo por ou por
existe. E em cada uma dessas tradues possvel fazer mais de uma interpretao lgica do
termo. Cada uma dessas acepes define um tipo de monismo por parte de Parmnides e um tipo
de pluralismo adotado por aqueles que seguiram algum de seus princpios. Em uma exposio
semanticamente aberta do fragmento B2, pode-se dizer que, neste momento do poema,
Parmnides apresenta os nicos caminhos (hodo monai - ) de investigao
possveis: Um, por um lado (h mn - ), que /existe (hps stin ), e outro, por
outro lado (h d '), que no /no existe (hs ouk stin ). Com relao ao
primeiro caminho, a deusa diz que caminho de persuaso (Peithos esti kleuthos
), pois segue a verdade (Althii gr opde ). Com relao
ao segundo caminho, a deusa diz que totalmente inescrutvel (pan-a-peutha - --).
Mais a frente, em B8.1-2, Parmnides retoma o caminho que /existe, e apresenta uma srie de
sinais sobre esse caminho. Aps a apresentao desses sinais, em B8.50 Parmnides cessa o
discurso sobre a verdade e apresenta o mundo decepcionante das opinies dos mortais.
32
esse o centro do argumento de Parmnides. E a discusso inteira depende do tipo de
predicao adotada no primeiro caminho de investigao, o que depende de um bom
entendimento da funo do verbo ser em B2.
Ao longo do tempo, os vrios filsofos e historiadores alinharam-se a vrias correntes de
interpretao baseadas em diferentes apropriaes do verbo ser em Parmnides16
. Uma linha de
interpretao interessante para o contexto deste trabalho que leva em conta elementos histrico-
culturais para entender os pr-socrticos aquela iniciada por Mourelatos (1970), e que vem
influenciando interpretes como Nehamas (1981) e Curd (2004), responsveis por um tipo de
interpretao do poema de Parmnides que pe seus argumentos em forte dilogo com os
filsofos posteriores influenciados de algum modo por ele. Segundo esses autores, o poema de
Parmnides estatui princpios metafsicos para a investigao da natureza, fornecendo
questionamentos importantes para a investigao da natureza por parte da filosofia seguinte,
comeando com os pluralistas, Empdocles e Anaxgoras, at alcanar Plato e Aristteles e, por
meio deles, toda a tradio filosfica ocidental. Segundo Curd:
Ao contrrio de alguns comentadores, eu no tomo Parmnides como algum que tenha
proibido ou negado a possibilidade de uma cosmologia genuna. Ao contrario, ele tinha
como objetivo criticar explicaes anteriores da natureza das coisas e ao mesmo tempo
formular requisitos metatericos para uma exposio cosmolgica aceitvel. Tal
exposio deve estar fundamentada em entidades metafisicamente genunas e deve usar
mecanismos que no comprometam a realidade de tais coisas bsicas. Na seo do
poema sobre a altheia (), Parmenides argumenta que aquilo-que- de tal modo
que no vem a ser, no morre, no muda e que qualquer coisa que seja deve ser um todo
de um mesmo tipo. Apenas o que genuinamente nesse sentido pode ser um objeto de
pensamento genuno e dessa maneira de conhecimento ou entendimento (veja-se B2, B3,
B8.1-6, com o argumento inteiro em B8). Qualquer exposio confivel do cosmos que
ir contar como conhecimento deve estar adequadamente fundamentada naquilo-que-.
Qualquer coisa que seja no sentido sancionado pelos argumentos de B8 conta como algo
metafisicamente bsico e poderia servir como fundamento para uma explicao
teoricamente aceitvel do mundo que percebemos (Curd, 2004, p. xvii xviii)17
.
16
Segundo Palmer (2009), essas vrias interpretaes podem ser classificadas em: Estritamente Monista, Lgico-
Dialtica, Via Meta-Princpios, Aspectual e Modal. 17
Orig.: Unlike some commentators, I do not take Parmenides to have forbidden or denied the possibility of genuine
cosmology. Rather, his aim is to criticize previous accounts of the nature of things while formulating metatheoretical
requirements for an acceptable cosmological account. Such an account must be grounded in metaphysically genuine
entities and use mechanisms that do not undermine the reality of those basic things. In the Altheia section of the
poem, Parmenides argues that what-is is in such a way that it does not come to be, pass away, or alter, and that
anything that is must be a whole of a single kind. Only what genuinely is in this way can be an object of genuine
thought and so of knowledge or understanding (see B2, B3, B8.1-6, with the full arguments in B8). Any reliable
account of the cosmos that will count as knowledge must be suitably grounded in what-is. Anything that is in the
33
Tambm Mourelatos acredita que o argumento de Parmnides no seja contrrio ao
Pluralismo. Segundo ele, o argumento de Parmnides contrrio ao dualismo:
Se o monismo de Parmenides essencialmente um no-dualismo, ento a relao entre
sua filosofia e aquela de Zeno e Melisso, e a relao entre a sucesso eleata e os
pluralistas do quinto sculo, se torna interessantemente complexa e dialtica. Do ponto
de vista lgico, o no-dualismo compatvel com a pluralidade numrica, desde que se
tenha o cuidado de excluir qualquer relao de contrariedade ou oposio entre pares de
elementos reais (Mourelatos, 1970, p.133)18
.
Tal apropriao de Parmnides, tanto em Mourelatos, quanto em Curd, depende de uma
forte crtica ao sentido existencial do verbo ser em B2. Ambos assumem que tal interpretao foi
bastante influente e que existe forte consenso entre os crticos de que o verbo ser em suas
formas conjugada (stin ), infinitiva (enai ) e participial (en ) apresenta
fora existencial em B2 e nas ocorrncias em que o verbo ser constitui uma referncia B2.
H ainda a possibilidade de considerar o stin como uma confuso entre predicao
copulativa () e o sentido existencial (existe). Tal interpretao, levada a cabo por Guido
Calogero sugere que a mensagem do poema de Parmnides se reduz ao fato de que os
julgamentos positivos so possveis apenas no caso em que eles dizem apenas , enquanto que
julgamentos negativos so impossveis, uma vez que eles no se referem a nada. Segundo essa
interpretao, a adio de qualquer predicado predicao copulativa seria equivalente insero
de um no , uma vez que a incluso de um predicado implicaria na excluso de outros
predicados. Assim, a interpretao do poema de Parmnides se reduziria a essa aplicao
copulativa do sentido de stin associada ao sentido existencial no fato de que o nico predicado
logicamente coerente com o argumento de B2 seria algo que fosse um, todo, imutvel, imvel,
homogneo, contnuo, indiferencivel, etc (Calogero, 1932, apud Mourelatos, 1970). Mourelatos
critica a interpretao de Calogero, estendendo a crtica tambm interpretao de Owen de
Parmnides em Eleatic Questions (Owen, 1960), dizendo que sua teoria extremamente pobre,
way sanctioned by the arguments of B8 counts as metaphysically basic and could serve as the foundation for a
theoretically acceptable account of the world that we perceive. 18
Orig.: If Parmenides monism is essentially a nondualism, then the relationship between his philosophy and that of
Zeno and Melissus, and the relationship between the Eleatic succession and the fifth-century pluralists, becomes
interestingly complex and dialectical. So far as logic is concerned, nondualism is compatible with numerical
plurality, provided one is careful to exclude any relations of contrariety or opposition between pairs of real elements.
34
que suas concluses nos levariam a crer que Parmnides no estaria interessado em nada
concreto, substancial e relacionado de algum modo com a tradio cosmolgica:
Se assumirmos uma confuso entre o "" da predicao copulativa e o "" existencial, o
argumento de Parmnides se torna muito fcil. A complexa estrutura de B8, a extenso
do poema, a dupla explicao, a forma pica, o promio, as metforas tudo isso se
torna suprfluo se a inteno de Parmnides for meramente chamar a nossa ateno para
o fato de que (genuinamente) s proposies positivas so possveis, e de que o universo
deve ter a simplicidade de uma proposio (genuinamente) positiva. Isso, naturalmente,
uma reduo ad absurdum da filosofia antes mesmo de Grgias. Se Parmnides tivesse
sido compreendido por seus contemporneos pela linha interpretativa de Calogero, a
filosofia teria caminhado direto para a produo de paradoxos dos megricos. A relao
entre Parmnides e Empdocles, Anaxgoras, e os atomistas teria sido baseada em um
mal-entendido (Mourelatos, 1970, p.54)19
.
Um dos importantes trabalhos que contriburam para a crtica do sentido do verbo ser
grego, no s em Parmnides, como no contexto da filosofia grega em geral, foi o trabalho de
Kahn intitulado The Greek Verb To Be and the Concept of Being. Segundo ele, quando utilizado
sem predicados, o valor de stin () no significa existe e sim o caso, verdade, etc.
Segundo Kahn, referindo-se ao sentido de enai () em Parmnides:
Sua tese inicial, de que o caminho da verdade, convico, e conhecimento o caminho
do que " ou "que " (hs esti), pode ento ser entendida como uma afirmao de que o
conhecimento, a crena verdadeira, e a verdadeira declarao esto todos
indissoluvelmente ligados a "aquilo que o caso" - no meramente ao que existe, mas ao
que o caso... A doutrina do Ser de Parmnides antes de tudo uma doutrina
relacionada realidade como o que o caso (Kahn, 1966, p.251, apud Mourelatos,
1970, p.48)20
.
Fundamentando uma opinio generalizada sobre filosofia grega, Kahn notou que a
ontologia dos gregos se refere fundamentalmente a questes relacionadas essncia das coisas, e
19
Orig.: If we assume a confusion of the is of copulative predication with the is of existence, Parmenides
argument becomes too easy. The elaborate structure of B8, the length of the poem, the double account, the epic form,
the proem, the imagery all these become otiose if Parmenides intention was merely to call our attention to the fact
that only (genuinely) positive propositions are possible, and that the universe must have the simplicity of a
(genuinely) positive proposition. That, of course, is a reduction ad absurdum of philosophy even before Gorgias. Had
Parmenides been understood by his contemporaries along the lines of Calogeros interpretation, philosophy should
have moved straight into the paradox-mongering of the Megarians. The relation of Parmenides to Empedocles,
Anaxagoras, and the atomists would have been based on a misunderstanding. 20
Orig.: His initial thesis, that the path of truth, conviction, and knowledge is the path of what is or that it is (hs
esti), can then be understood as a claim that knowledge, true belief, and true statement are all inseparably linked to
what is so not merely to what exists but to what is the case Parmenides doctrine of Being is first and
foremost a doctrine concerning reality as what is the case.
35
no existncia (Mourelatos, 1970). Partindo de Kahn e criticando o sentido misto de Calogero21
,
Mourelatos far uma apropriao bastante original do sentido veritativo do verbo enai em B2,
naquilo que ele chamou de predicao especulativa. Para melhor compreender o sentido proposto
por esses autores, seguindo a sugesto de Mourelatos (1970), segue abaixo a proposta de traduo
de B2 com o sentido copulativo do verbo stin (), , onde tanto o sujeito quanto o
predicado aparecem em branco:
' ' , ,
,
( ),
' ,
( )
.
Pois bem, agora eu declamarei, e tu, ouvindo, memoriza a mensagem
Os nicos caminhos de investigao que so para pensar [conhecer]:
Um, que ____ ____ e que no possvel que ____ no seja____,
o caminho da Persuaso ( Pois segue a Verdade)
O outro, que ____no ____ e que necessrio que ____no seja ____,
Este eu te digo que uma via totalmente insondvel
Pois nem conhecerias aquilo que no ____ (pois no executvel)
Nem apontarias
(DK 28 B2)
Mourelatos sugere quatro possibilidades de preencher os espaos em branco do sujeito e
do predicado. Na primeira, associando substantivos a adjetivos, os caminhos seriam entendidos
como descries ou colees de fatos (histora, ), tal como em Parmnides obscuro.
Na segunda, os caminhos seriam entendidos como dois modos de atribuir coisas a uma classe ou
tipo, como catalogao ou classificao segundo a natureza (kat phsin diaresis,
), relacionando substantivo com substantivo, tal como em Azul uma cor
(Mourelatos, 1970). E em uma terceira possibilidade, o seria interpretado logicamente com
a funo de identidade, de conectar coisas. Defendendo uma viso diferente dessas ltimas trs,
Mourelatos, em uma quarta possibilidade, sustenta uma interpretao que, por um lado, remove
21
A mesma crtica ser feita por Curd com relao a Owen (Curd, 2004).
36
as distines, assim como o sentido da identidade, e por outro estabelece uma relao assimtrica,
assim como o predicativo. Assim sendo, se X Y, no necessrio que Y seja X, pois
esse sentido remeteria primeira possibilidade, ao stin () da classificao, ao sugerir que o
predicado (termo da direita) seja uma condio necessria para o sujeito (termo da esquerda).
Mas, ao contrrio, tal interpretao entende a predicao como a afirmao de uma nova
descoberta. Alm disso, uma vez que o predicado tenha sido dado, o sujeito de algum modo
redundante, suprimvel, redutvel ao predicado. Do mesmo modo, dado esse predicado, ele
de algum modo final, elementar, no havendo necessidade nem possibilidade de nenhuma outra
predicao desse tipo (Mourelatos, 1970, p. 57).
2.1.3 Sentido Existencial
Ao longo da histria da crtica, a traduo de stin () por existe e de en () por
aquilo que existe foi bastante influente. Segundo Curd, boa parte dos interpretes que seguiram
essa interpretao tais como Guthrie(1969), KRS(1983), Barnes(1982), McKirahan(1994),
Furley(2006), Stokes(1971), Gallop(1984), Finkelberg(1988), OBrien(1987)22
, etc (Curd, 2004)
foram fortemente influenciados pelo artigo Eleatic Questions (Owen, 1960). Segundo Owen, o
sujeito do verbo em B2 deveria ser interpretado como aquilo que pode ser pensado ou falado,
uma vez que, aquilo que no se pode pensar ou falar, argumenta ele, no existe:
(...) no preciso provar que o sujeito do argumento pode ser falado e pensado, pois
estamos falando e pensando nele. Da a tentao de dizer que o stin no tem sujeito;
pois o argumento de Parmnides no precisa supor nada exceto que estamos pensando e
falando sobre alguma coisa, e isso parece ser garantido, de qualquer modo, pelo fato de
estruturarmos e seguirmos o argumento. O sujeito completamente formal, at ele ser
preenchido com os atributos (comeando com a existncia) que so deduzidos para ele
(Owen, 1960, p. 95)23
.
22
Para maiores detalhes sobre essa tradio historiogrfica veja-se Curd, 2004, p.27, n.9. 23
Orig.: () it needs no proving that the subject of the argument can be talked and thought about, for we are talking
and thinking about it. Hence indeed the temptation to say that the has no subject; for Parmenides argument
need assume nothing save that we are thinking and talking of something, and this seems to be guaranteed by our
framing or following the argument at all. The subject is quite formal, until it is filled in with the attributes (beginning
with existence) that are deduced for it.
37
Owen rejeitou a ideia de que Parmnides tenha escrito dentro de uma tradio
cosmolgica que o ligasse tanto aos antecessores jnicos quanto aos sucessores itlicos. Ao
contrrio, segundo ele, o eleata estaria pondo um fim especulao jnica:
A comparao com o cogito de Descartes inevitvel: ambos os argumentos rompem
com premissas herdadas, ambos partem de um pressuposto cuja negao peculiarmente
auto-refutvel. Isso parece ser suficiente para estabelecer que, no sentido descrito,
Parmnides no tenha apoiado seu argumento em suposies derivadas de cosmlogos
anteriores. Para mim, parece razovel coloc-lo como o mais radial e o pioneiro mais
consciente entre os pr-socrticos conhecidos por ns (Owen, 1969, p.95)24
.
Aps um perodo de larga influncia do stin existencial de Owen, uma srie de
interpretes comearam a questionar a opinio de Owen adotando verses copulativas ou mistas
para o verbo ser em Parmnides25
. Esses interpretes levaram em conta, basicamente dois
problemas: qual o sujeito de stin em B2 e qual o significado de stin no poema de
Parmnides em geral. Uma vez que um determinado sentido tenha sido escolhido em B2, parece
coerente que esse mesmo sentido deva ser aplicado em outras passagens como B3, B6 e B8 sobre
o en. Curd nota que, embora haja desacordo entre os vrios intrpretes sobre o sentido escolhido
para o verbo ser, no h desacordo sobre quais sejam os fragmentos essenciais. Os interpretes das
vrias tendncias citam os mesmos fragmentos para sustentar as diferentes opinies (Curd, 2004).
Os adeptos de concepes copulativas do verbo ser em B2, de tipo veritativa no sentido de
Kahn identidade de fatos ou predicativa no sentido forte de Mourelatos e Curd identidade
de objetos costumam utilizar mais evidncias e exemplos de fora dos textos de Parmnides,
enquanto que os adeptos de concepes existenciais, tais como Owen, procuram se limitar ao
texto. Segundo Curd:
Aqueles que interpretam o esti como existe esto menos inclinados a procurar
paralelos fora de Parmnides (exceto, talvez, no Sofista de Plato, onde eles tambm
veem um sentido fundamentalmente existencial em ao) Isso consistente com o ponto
de vista (que acredito estar equivocado) segundo o qual Parmnides no estava
24
Orig.: The comparison with Descartes cogito is inescapable: both arguments cut free of inherited premisses, both
start from an assumption whose denial is peculiarly self-refuting. This seems sufficient to establish that Parmenides
does not, in the sense described, rest his argument on assumptions derived from earlier cosmologists. To me it seems
sufficient to establish him as the most radical and conscious pioneer known to us among the Presocratics. 25
Entre eles pode-se citar: Kahn (1966), Mourelatos (1970), Furth(1968), Furley (1973), Goldin (1993) e Mason
(1988).
38
preocupado com questes cosmolgicas e pode ser entendido independentemente de
seus antecessores (Curd, 2004, p.34-35)26
.
Assim, uma vez que se assuma que Parmnides estava firmemente ligado tradio
cosmolgica pr-socrtica, interessado em reformar a investigao cosmolgica, preciso dar
conta da ampla tradio hermenutica que data de Plato de que Parmnides era um Monista
Numrico, ou seja, de que Parmnides acreditava que existe apenas uma coisa, ora chamada de
o Um, ora de o Todo e ora de o Ser. Segundo Curd, os primeiros responsveis por essa
interpretao foram Plato, Aristteles e Teofrasto. E atualmente, na esteira da historiografia
Zeller-Dielsiana baseada na autoridade desses filsofos, essa tradio foi retomada (Mourelatos,
1970). H uma enorme diferena entre o Parmnides histrico e o Parmnides de Plato. O
primeiro um estudioso daquilo que e da verdade, enquanto que o segundo um estudioso do
Um. Segundo Mourelatos, atualmente se reconhece que a verso platnico-aristotlica da
filosofia de Parmnides, alm de ter sido filosoficamente tendenciosa devido ao interesse
dialtico desses filsofos, foi fortemente influenciada pelas ideias de Melisso, Zeno, alm de
doutrinas sobre o Um da academia (Mourelatos, 1970). Sobre a tradio antiga ligada a
interpretao existencial do stin de Parmnides, Curd diz:
Um dos mais antigos registros dessa viso de Parmnides est no dilogo Parmnides de
Plato, no qual Zeno se autodescreve como tendo defendido o monismo de seu mestre
dos ataques daqueles que acham tal viso ridcula (Prm. 128b7-e4). Parmnides
descrito como defensor de sua prpria tese de que existe um Um como um sujeito para
o passatempo trabalhoso, que constitui a segunda parte do dilogo (Prm. 137b3-4).
Explicaes anlogas do monismo de Parmnides so encontradas em Aristteles e em
Teofrasto, e na doxografia que deriva deles (Curd, 2004, p.64)27
.
Segundo os argumentos elencados em DK28 B2 e B8, no h nada fora daquilo que
(en) que contribua para caracteriz-lo. Isso no implica necessariamente que exista apenas uma
coisa que seja. Como foi dito antes, o monismo predicativo no incompatvel com o pluralismo
26
Orig.: (...) Those who interpret the esti as exist are less inclined to look for parallels outside of Parmenides
(except, perhaps, in Plato Sophist, where they see an existential sense primarily at work as well). This is consistent
with the view (which I hold to be mistaken) that Parmenides was not concerned with cosmological issues and can be
understood independently of his predecessors. 27
Orig.: One of the earliest records of this view of Parmenides is in Platos dialogue, the Parmenides, in which Zeno
describes himself as having defended his masters monism from the attacks of those who find such a view ridiculous
(Prm. 128b7-e4). Parmenides is shown as adopting his own thesis that there is a One as a subject for the laborious
game that constitutes the second part of the dialogue (Prm. 137b3-4). Similar accounts of Parmenides monism are
found in Aristotle and Theophrastus, and in the doxography that descends from them.
39
numrico. Para que essas duas abordagens sejam compatveis, necessrio que, em um
pluralismo numrico, cada entidade seja una do modo predicativo indicado pelos argumentos em
B8. Por outro lado, se o stin for entendido existencialmente, e o sujeito dele for algo como o
todo, ento o monismo numrico ser plausvel (Curd, 2004). Um dos trechos mais citados pelos
adeptos desse tipo de monismo em Parmnides so os versos B 8.22-25, onde dito que o en
indivisvel (oud diairetn estin ), todo semelhante (pn estin homoon
), todo cheio daquilo que (pn d mplen estin entos
) e todo contnuo (xynekhs pn estin ). Assim, em uma viso
existencial do en, seu carter continuo se torna pleno, no permitindo separao entre entidades
e levando concluso de que apenas o todo, o ser ou o Um existe da forma indicada pelos
argumentos de B8, e as mudanas enxergadas no mundo pelos homens so apenas vises
distorcidas de mortais que consideram o existir e o no ser da mesma forma (broto ... plein te
ka ouk enai tautn nenmistai ... ).
Para resolver esse impasse, Curd recorre aos fragmentos que relacionam o pensamento, a
investigao e o en. Para ela, est claro que nos () e noen () em Parmnides referem-
se primeiramente a pensamento, concepo e entendimento, mais do que a conhecimento (Curd,
2004). Em Parmnides, h uma conexo fundamental entre nos e a investigao sobre aquilo-
que-, pois, seguindo a deciso de B2 sobre o caminho da verdade, em B6.1 Parmnides diz que
necessrio que aquilo-que- para dizer e pensar (noen) seja, pois para ser28
. E mais adiante,
associa aos mortais bicfalos (B6.5), para os quais ser e no ser o mesmo (B6.8), um
pensamento errante (plaktn non ). Em B7.2 a deusa manda o jovem desviar o
pensamento (nma ) dessa via de investigao.
Em todos esses fragmentos, traduzi nos por pensamento. Mas para tornar claro o sentido
que esse termo tem no contexto grego, faz-se necessrio tomar alguns exemplos de aplicao em
alguns autores antigos. Referindo-se a nos como compreenso, Herclito disse:
, .
Muita instruo no ensina compreenso; Pois teria ensinado Hesodo,
Pitgoras, e novamente Xenfanes e Hecateu.
28
Orig.:
40
(DK 22 B40)
Nesse contexto, embora Hesodo, Pitgoras, Xenfanes e Hecateu tenham aprendido
vrios assuntos e tido vrios pensamentos, faltou-lhes nos, o entendimento p