Post on 21-Oct-2021
ENTRE LONAS E PICADEIROS: UM ESTUDO SOBRE AS ARTES
CIRCENSES
Thalita Costa da Silva1
José Willington Germano2
1. O Circo na História
O circo é considerado um dos espetáculos de entretenimento mais antigos do
mundo, sendo impossível pensar, data ou local, precisos para o seu surgimento. Há,
dessa maneira, indícios do despontar dessa arte milenar em vários lugares: na Grécia,
em Roma, na Índia e na China.
Partindo desse pressuposto, tentar-se-á fazer um resgate histórico-social e
cultural do circo. Assim, essa arte mambembe será apresentada perpassando-se desde
sua origem, remetendo o leitor desde a Antigüidade Clássica, até sua organização na
Modernidade, período este, que se firmou com a Revolução Industrial e que está
diretamente associado ao desenvolvimento intenso do capitalismo.
A procedência do circo não pode ser apontada como única, determinada e
localizada somente em um espaço e tempo social e cultural. Por isso, a seguir, serão
apresentadas diversas suposições sobre suas origens, as quais são diversas e por sua vez,
contraditórias. Dentre essas hipóteses, têm-se a Grécia Antiga, a Índia e o Império
Egípcio, em que se defende o circo como originário de hipódromos, que são locais onde
se domavam os animais exóticos capturados em combates, para então exibi-los,
simbolizando os retornos e as vitórias em guerras. Ainda não se percebe em tal
concepção características presentes no circo moderno, a não ser o fato de que esta seria
uma forma de entretenimento para população.
Nos hipódromos, com o passar do tempo, a presença de um elemento que
posteriormente seria central no circo: o sátiro, que foi substituído pela figura do
palhaço. Inicialmente nesses lugares, em seguida em outros espetáculos, sejam públicos
ou reservados, os palhaços desenvolveram-se representando e satirizando, na maioria
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2 Professor Titular do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
das vezes, o que seria proibido na vida oficial. Em geral, as reuniões reservadas eram
sinônimo de muita fartura, conforme cita Castro (2005):
A Grécia herdou de outros povos a figura dos gelotopoioi - os que fazem rir. Havia os que trabalhavam em espetáculos públicos e os que freqüentavam a mesa dos ricos e os symposiuns dos filósofos [...] se discutia alta filosofia, bebia-se muito e assistia-se a espetáculos especiais [...]. Os gregos tinham ainda a figura dos parasitas. Esta palavra não tinha o sentido pejorativo que tem hoje. Parasita significava conviva, aquele que alegrava um banquete divertindo o anfitrião. No início, o termo se referia ao sacerdote que participava de um banquete dedicado aos deuses, mas acabou sendo usado para todos os convidados encarregados da diversão, fossem eles palhaços ou filósofos. (CASTRO, 2005, p. 23).
Percebe-se, nesta figura, um caráter ambivalente, pois ao passo que seus
gracejos eram ofertas ao divino, estavam presentes também numa parte desregrada da
vida, a qual foi representada, posteriormente, em comédias que perpassaram os tempos.
Enfatizando a Grécia Antiga, Torres (1998), por sua vez, aponta alguns dos
mais variados números circenses como originários das Olimpíadas. Ali, o corpo era
demonstrado na ginástica olímpica, através de malabares e de contorcionismos, como
uma forma de superação extrema dos limites dos seres humanos. Nota-se, no entanto,
que alcançar essa superação, através da prática das artes circenses não era exclusividade
da civilização grega. Também em Pompéia, uma comuna italiana, situada na província
de Nápoles e que foi arruinada durante a erupção do vulcão Vesúvio no ano 79 depois
de Cristo, essas habilidades tomaram impulso de forma tal, que no ano 70 antes de
Cristo, havia um anfiteatro dedicado às demonstrações suas demonstrações incomuns.
Logo em seguida, em Roma, tendo em vista tamanha a afeição do povo pela
prática das artes circenses, foi criado um espaço exclusivo para as apresentações – o
Circo Máximo de Roma, que sofreu vários incêndios. Contudo, segundo Ruiz (1987)
afirma, no ano 40 antes de Cristo foi construído, sobre o Circo Máximo, o Coliseu de
Roma, “cujas ruínas ainda hoje atestam o arrojo daquela iniciativa” (RUIZ, 1987. p. 15).
Naquela construção de três andares, cabiam 87 mil espectadores e nela apresentavam-se
animais exóticos e homens capturados em guerras, engolidores de fogo, malabaristas e
contorcionistas, entre outros.
Devido à instauração da escravidão gerou-se intenso desemprego na zona rural
e a grande massa de desempregados migrou para as cidades romanas, trazendo, entre
outras conseqüências, graves problemas sociais para Roma. Por isso, temeroso de que
pudessem ocorrer revoltas, o Imperador César (63 a.C.-14 d.C) instituiu a política do
Pão e Circo, em que se oferecia aos romanos, alimentação e diversão. Diariamente,
ocorriam nos estádios, a exemplo do Coliseu, lutas entre gladiadores e lá se distribuíam
alimentos. Dessa forma, a população pobre esquecia os problemas, obliterando seu o
espírito crítico e a sua capacidade contestadora. Foi assim que o Império Romano criou
a prática do Pão e Circo, que se reconfigurou e ainda é praticada. Nos casos
contemporâneos, as brigas entre gladiadores são substituídas, entre outras formas, pelos
showmícios, de forma tal que desvie a atenção da população para que a mesma não tome
conhecimento da sua realidade e, conseqüentemente, se rebele contra as forças
dominantes.
Contudo, a partir do ano 54 depois de Cristo, quando Nero (37-68 d.C) ascende
na condição de imperador romano, as arenas do Coliseu passaram a ser palco de
espetáculos sangrentos, o que provocou grande desinteresse do povo pelas artes
circenses por um longo período na história. Assim, os artistas tiveram as exibições de
suas aptidões deslocadas para as praças públicas, feiras e entradas das igrejas,
reinventando, dessa forma, as tradicionais exibições, para que as mesmas não fossem
legadas ao esquecimento.
Aos poucos, a vontade de divertir-se foi inventando e em séculos de feiras populares, barracas exibindo fenômenos, habilidades incomuns, truques mágicos e malabarismo, foram alicerçando o gênero que tinha remotas raízes nas práticas atléticas da Grécia e nos espetáculos populares entre gregos e romanos, onde entroncam as criações dos palhaços – na baixa comédia, com seus tipos característicos – e nas apresentações da Commedia del’Arte. (RUIZ, 1987, p. 15, grifo do autor).
Deu-se início, desse modo, à vida mambembe, nômade e errante, indo de
cidade em cidade, improvisando espetáculos em diferentes lugares, para os mais
diversos espectadores. Assim, as artes circenses foram moldadas de forma tal, que
passaram a surgir diversas companhias, organizadas com todos os elementos
necessários para as performances, compostas por grupos de saltimbancos e que
percorreram parte da Europa. Em suas exposições, além de demonstrações de
habilidades peculiares, havia ainda “exibições de destreza a cavalo, combates simulados
e provas de equitação”. (RUIZ, 1987. p. 16).
Após este resgate sobre algumas das prováveis origens do circo, tentar-se-á,
fazer considerações acerca do seu desenvolvimento até o século XIX, em especial, na
Europa, local em que sua presença se fez de forma mais eloqüente no decorrer dos
séculos e que por sua vez, originou dinastias circenses pelo mundo.
Assim, é de extrema importância a compreensão do mundo medieval e suas
contribuições, para que se possa inserir o circo no universo da cultura popular. Durante
a Idade Média, além dos poderes dos senhores de terras, os espetáculos circenses
também foram descentralizados e somente este tipo de espetáculo era permitido na vida
oficial dos cristãos. As artes circenses voltaram a ter espaço somente nas feiras, nas
festas de aldeias e em banquetes reservados à nobreza.
Na tentativa de evitar tratar da Idade Média de forma reducionista, a mesma
será compreendida a partir da sociedade que a constitui, o qual, por sua vez, é
extremamente complexa e contraditória.
O cotidiano medieval foi intensamente marcado pela presença do catolicismo.
Tal religião pregava entre outras coisas, que o ser humano deveria seguir uma vida
regrada, dedicada ao trabalho e às orações. Entretanto, segundo Bakhtin (1987), foi no
auge da Idade Média que as Saturnais, celebrações romanas realizadas em janeiro, em
que os escravos vestiam-se como seus senhores e festejavam com eles a Idade de Ouro,
simbolizando a igualdade e a harmonia entre todos foram tolhidas pela Igreja, ressurgiu,
dessa vez, transformada na Festa dos Loucos em alguns lugares e Festa do Asno em
outros. Os participantes proclamavam a esbórnia e quebravam as hierarquias,
ridicularizavam as autoridades e satirizavam a Igreja. Essas festas eram marcadas por
longos cortejos acompanhados pela abundância de bebidas e de muita lascividade. Era
estabelecido, um mundo ao avesso, em que tudo virava de ponta cabeça e as hierarquias
entre os participantes eram banidas, era a carnavalização da vida oficial.
Muitas autoridades clericais, por sua vez, eram contra os excessos cometidos
nessas festas, as quais, durante séculos foram utilizadas pelos seus participantes como
uma fuga à rigidez religiosa a que eram submetidos na vida
oficial do cotidiano medieval. Nessa vida oficial, o que se falava ou se fazia em
público era extremamente vigiado e censurado com rigor, enquanto isso, na vida
carnavalizada, ou extra-oficial, todas as extravagâncias e excentricidades eram
permitidas.
Essas manifestações, por sua vez, desmascaram as afirmações feitas por
autores e artistas renascentistas de que a Idade Média não havia produzido
manifestações culturais importantes, considerando-a ainda como a “Idade das Trevas”.
Como não conseguia ir contra essa vida extra-oficial, a Igreja foi aos poucos
inserindo o que era permitido para aplicar seus ensinamentos moralizantes. E foi assim,
que os espetáculos voltaram a fazer parte do cotidiano medieval.
No início, eram pequenas cenas representadas dentro das igrejas. Mas a coisa foi crescendo, tomou as ruas e, ao final, envolvia toda a cidade [...]. A cidade medieval esperava ansiosa o momento em que seria o palco de um evento de grandes proporções e os espetáculos começam a trair gente de outros lugares, a promover o comércio e a venda de produtos da região. (CASTRO, 2005, p. 37).
As feiras serviam como pontos de encontros entre os mais diversos artistas:
dançarinos, equilibristas, malabaristas, acrobatas, jograis, trovadores, amestradores de
animais, músicos, dançarinos, bonequeiros, entre outros.
Para atrair a atenção dos que freqüentavam as feiras, erguia-se um tablado, que
mais parecia um banco e, sobre ele, eram apresentadas diversas atrações. Seria por este
motivo que surge o termo saltimbanco – saltare in banco. Eram realizadas as mais
variadas performances como amostras daquilo que era extraordinário ao cotidiano, todas
as bizarrices estavam passíveis a serem admiradas a troco de alguns tostões.
Fazendo um retorno à Antigüidade, percebe-se que em Roma, por exemplo, os
nobres mantinham, em suas propriedades uma trupe de palhaços anões, pois se
acreditava que ter anões em casa simbolizava bons presságios. No entanto, ao se
remontar à Idade Média, percebe-se que alguns personagens circenses antes mesmo
desse retorno às construções dos lugares reservados aos espetáculos ultrapassaram, ou
melhor, foram recolhidos aos espaços privados. Em uma sociedade que se valorizava a
figura do belo, o grotesco e o disforme eram vistos como piadas e, geralmente,
ridicularizados. Contudo, além de se destacarem pelo contraste físico em relação ao que
se pensava como perfeição, os anões, os feios, os corcundas e outros disformes se
sobressaíam ainda, por utilizar o humor exacerbado como uma forma “de sobrevivência
e de ascensão social” (CASTRO, 2005. p. 24). Os gracejos por eles utilizados, quase
sempre estavam envoltos de críticas àquela sociedade que o ridicularizava, entretanto,
os faziam com tamanha inteligência que dificilmente eram percebidos e quando o eram,
dificilmente lhes acontecia algo, pois gozavam de intensa proteção de seus senhores.
Esses disformes são então, considerados os ancestrais dos bobos da corte, que tiveram
seu auge ainda na Idade Média e que vieram a se transformar nos palhaços da
atualidade.
A partir do século XVII, já na Modernidade, os lugares em que se poderiam
realizar espetáculos voltaram a ser construídos.
O mundo passava, nesse momento, por intensas modificações econômicas,
políticas e culturais que apontavam para a visível transição da antiga ordem econômica,
o feudalismo dominante na Idade Média, para o capitalismo. Isso fez com que se
impulsionasse o declínio das feiras européias, pois gradativamente, a produção artesanal
deu lugar ao processo de padronização para criação de produtos em larga escala, de
forma tal que pudesse atender aos interesses de uma massa de consumidores. Essa
redução gradativa da importância das feiras gerou complicações diretas para aqueles
que viviam da cultura popular, visto que tradicionalmente, eram os locais de exibição de
diversas expressões dos saltimbancos, entre outros artistas.
Contudo, ao invés de ser relegada ao esquecimento, a cultura popular se
reinventou, adequando-se ao novo período e gerando novas manifestações que
pudessem ser comercializadas e pudessem alcançar os mais diversos espectadores.
O caso mais notável de comercialização da cultura popular é o circo, que remota à segunda metade do século XVIII; Philip Astley fundou seu circo em Westminster Bridge em 1770. Os elementos do circo, artistas como palhaços e acrobatas, como vimos, são tradicionais; o que havia de novo era a escala da organização, o uso de um recinto fechado, ao invés de uma rua ou praça, como cenário da apresentação, e o papel do empresário. Aqui, como em outros âmbitos da economia do século XVIII, as empresas em grande escala vinham expulsando as pequenas. (BURKE, 1989, p. 270-271).
Assim, por volta de 1770, conforme anteriormente apontado, foi criado pelo
suboficial inglês e experiente cavaleiro Philip Astley, o que hoje se conhece como circo
moderno. Este cavaleiro conseguiu realizar aquilo que ainda no início do século XVIII,
um picador alemão chamado Beates, havia tentado. Beates incorporava em uma mesma
apresentação, o tradicional espetáculo romano com as provas hípicas e, em decorrência
do grande sucesso, chegou a construir um suntuoso circo de madeira em Paris, na
segunda metade do século. E foi a partir dessa idéia, que Astley construiu e inaugurou
um edifício permanente em Londres o Astley’s Royal Amphitheare of Arts.
O picadeiro assumiu a forma de um círculo perfeito, que media treze metros de
diâmetro, pois Astley observou que seria mais fácil se manter de pé sobre o dorso de um
cavalo em movimento contínuo e circular. A medida se justifica por uma lei da Física,
chamada força centrífuga, pois para que se conseguisse tamanha façanha, era necessário
que fosse realizado em um círculo perfeito. Foi acrescentada ainda, uma arquibancada
próxima ao picadeiro. Contudo, essa estrutura ainda não assumia a mobilidade dos
circos da atualidade, apesar de ter sido o grande precursor do formato da estrutura física
que possibilitou o caráter itinerante dos circos modernos. O ambiente era fechado nas
laterais, dando um aspecto de teatro e que facilitava para que se cobrassem ingressos e
não se dependesse apenas da benevolência de seus espectadores como ocorriam nas
feiras livres, nas apresentações dos ambulantes.
Astley apresentava, inicialmente, em seu espaço somente os elegantes números
eqüestres, e depois passou a alterná-los com exibições de saltimbancos, de equilibristas,
de saltadores e de um palhaço. Parte dos artistas que compunham o espetáculo de Astley
era selecionada entre os militares reformados ou dispensados pelo Exército Inglês, e
eram escolhidos de acordo com a aparência física, postura, destreza e empatia junto aos
espectadores.
Um dos motivos prováveis para o sucesso do circo foi a inserção da
possibilidade para que outras pessoas, e não somente a nobreza e os militares tivessem
acesso às aulas de equitação. Foi construído, um espaço direcionado para que se
ensinassem as técnicas de montaria à burguesia e, para ter acesso aos segredos desse
exercício, bastava que se adquirisse o ingresso para assistir aos atos. Assim, os
espetáculos dirigidos a um público freqüentador de feiras, passaram a ser apresentados
somente a um público aristocrata e, futuramente, devido às modificações nos estratos
sociais, à burguesia em ascensão.
Toda a suntuosidade dos espetáculos não demorou em conquistar toda a
Europa, o que fez com que Astley e a sua companhia fossem chamados inclusive, a se
apresentar a Luis VX, a convite do embaixador francês. O resultado dessa apresentação
foi visualizado onze anos depois, quando Astley criou uma filial francesa do seu circo, o
Amphithéatre Anglois, que ficou aos cuidados do italiano e também cavaleiro, Antônio
Franconi. Este, não só desenvolveu bem o trabalho que lhe fora atribuído, como
também o manteve constantemente atualizado.
Percebe-se que o circo moderno desenvolveu-se a partir do adestramento e
apresentações a cavalo, originando assim, a criação da expressão “circo de cavalinhos”,
a qual ficou popularmente conhecida e que até hoje é utilizada por muitos de seus
espectadores. No entanto, as exibições com os números eqüestres possuíam um ar tanto
quanto enfadonho, observa-se então, o grande feito de Fraconi, que revolucionaria a
maneira de se fazer circo, o mesmo inseriu números de acrobacias, equilíbrio e outros
provenientes das feiras ambulantes. Além disso, acrescentou ao espetáculo o
adestramento de outros animais, que não os cavalos.
Esse fato não seria tão relevante se não se levasse em consideração o momento
histórico pelo qual a França passava: a era napoleônica. Neste período, mais
especificamente entre 1794 e 1807, houve forte censura e restrição para autorizações de
funcionamento de teatros, o que fez com que Fraconi e sua família usassem
oficialmente, pela primeira vez na França, o termo “circo”.
A rigidez militar estava presente em vários momentos da construção do
espetáculo: os ensaios seguiam um rigor militar; os uniformes foram confeccionados
imitando fardas militares de alta patente; em números de risco que causavam tensão,
rufavam-se os tambores e ouviam-se as vozes de comando. Essa união entre o rigor e a
disciplina militar e a irreverência e a habilidade dos artistas circenses foi responsável
pela criação de um espetáculo completo, pois os militares e os artistas descobriram
afinidades que foram essenciais para o desenvolvimento das encenações.
As representações cômicas incorporavam-se às exibições eqüestres, o palhaço
montava no cavalo com a frente voltada para a calda do animal, escorregava passando
por baixo do mesmo, quebrando assim, expectativas e transformando aquilo que seria
razão de admiração para o militar, num motivo de muitas gargalhadas para seu público.
O palhaço era uma espécie de paródia ao que seria o montador de origem militar. Surgiu
então, o “grotesco a cavalo”.
Não tardou para que todo esse sucesso fosse copiado. Começaram a surgir na
Europa, as primeiras dinastias do circo. Logo, surgiram diversas companhias circenses
na Alemanha, na Espanha, na Itália, entre outros lugares. No entanto, o primeiro a
utilizar a terminação “circus”, foi o inglês Charles Dibdin Hughes, que também seguiu
os passos do espetáculo de Astley criando em Londres, o Royal Circus. Hughes
acrescentou ainda, dramaticidade às suas performances, firmando assim,
definitivamente, o termo “circo-teatro”, apesar dessa característica só se tornar mais
visível em fins do século XIX e meados do século XX.
Valorizando sua origem nômade, os artistas que provinham das ruas saíram em
busca de outras cidades da Inglaterra.
Sem dúvida, o circo moderno, já sem as fortes características helênicas ou
romanas, conquistou toda a Europa e percebeu-se então, a necessidade de assumir novos
espaços.
Observa-se que o espaço conquistado, não foi somente físico, os elementos do
espetáculo circense assumiram lugar privilegiado também na literatura do século XIX,
quando os românticos, inspirados em William Shakespeare (1564-1616), se
contrapuseram à racionalidade dos clássicos. Propunham a liberdade no processo de
criação, produzindo os dramas em uma espécie de oposição entre o trágico e o cômico,
o sério e o risível, o possível e o impossível, a ordem e a desordem, assim como as
trupes fazem até os dias atuais em suas apresentações. Outro aspecto enfatizado pelos
românticos é o corpo, que é observado ao mesmo tempo como uma postura erótica e
celestial, o qual também é notado nos espetáculos circenses.
Observa-se ainda que o corpo, para a realização das habilidades
extraordinárias, assume caráter de superação dos limites do ser humano.
O artista tem consciência de que pode fracassar. O desempenho artístico do acrobata e sua possível queda não são ilusórios e não pertencem ao reino da ficção. O público, por seu lado, presencia a elaboração do suspense e do temor, que serão logo superados. Em seguida, o espetáculo é acometido pela descontração da performance
dos palhaços. No espetáculo circense o corpo do artista mostra toda a sua potencialidade. Ele se desnuda para revelar, no espetáculo, a sua grandeza. Riso e fracasso, descontração e possibilidade de queda são os componentes extremos que embasam o espetáculo de circo. A possibilidade de fracasso é evidente, para ser superada, em seguida, com o riso descontraído dos palhaços. Em um pólo, o corpo sublime dos ginastas; no outro, o grotesco dos clowns. (BOLOGNESI, 2003, p. 45, grifos do autor).
E foi esse circo que, por volta de 1830, pela primeira vez, atravessou o Oceano
Atlântico a caminho dos Estados Unidos, local em que surgem as primeiras estruturas
de lona. A necessidade por esse tipo de sustentação, que não fosse fixa, surgiu a partir
da característica itinerante dos seus componentes, a qual sempre foi marcante nos
mesmos. Foi dessa forma que esse tipo de organização chegou, em seguida, à América
do Sul, através dos portos do Rio de Janeiro e de Buenos Aires.
Havendo, no entanto, vestígios da presença anterior de ciganos expulsos da
península ibérica e que desenvolviam habilidades semelhantes a algumas apresentadas
nos circos que aportavam e erguiam suas tendas.
Assim, as artes mais diversas passaram a se aglutinar sob lonas, unindo pessoas
do mundo inteiro e, conseqüentemente, associando os mais diversos valores morais,
sociais e culturais, não só dos artistas, como também do “respeitável público”,
tornando-se uma sociedade singular composta por variadas nações.
Os artistas estão distribuídos em diversas atividades exercidas no circo
moderno, porém, segundo afirma Ruiz (1987), “um grande circo tem que possuir
obrigatoriamente, ao mesmo tempo, palhaços, animais e trapezistas”. (p. 20)
E foi essa abundância de artistas circenses que, em organização familiar,
constituiu e fixou esta arte no Brasil, a qual prosseguiu passando por diversas
modificações.
2. O Circo no Brasil
Sugere-se que a arte circense tenha sido introduzida no Brasil pela frota de
Pedro Álvares Cabral, através das palhaçadas de um tripulante que veio em sua
expedição. Seria ele, Diogo Dias, segundo relata Pero Vaz de Caminha em carta enviada
ao Rei D. Manuel (1495-1521):
E além do rio andavam muitos deles, dançando e folgando uns ante outros, sem se tomarem pelas mãos, e faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém que é homem gracioso e de prazer, e levou consigo um gaiteiro nosso, com sua gaita, e meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos. E eles folgavam e riam e andavam com ele mui bem, ao som da gaita. Despois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. (CAMINHA, 1500).
O termo “gracioso”, para a época, possuía o significado que hoje conhecemos
como o bobo, ou melhor, o palhaço. Assim como o “salto real” seria o salto mortal e as
“voltas ligeiras” seriam acrobacias, geralmente utilizadas nas apresentações dos
saltimbancos da época.
Entretanto, o circo propriamente dito, só adentrou no Brasil no século XIX,
com a chegada de famílias circenses européias e norte-americanas, as quais percorreram
todo o país. Afirma-se que o primeiro circo com lona e picadeiro chegou ao país em
1830, o Circo Bragasse. Todavia, já no século XVIII, fugidos devido a perseguições na
Península Ibérica, percebe-se a presença de ciganos no Brasil, os quais, por sua vez,
utilizavam para suas apresentações, estrutura semelhante às do circo de pau fincado.
Além disso, exercerciam habilidades idênticas às dos saltimbancos, viajando
constantemente de uma cidade para outra, sempre adaptando as apresentações aos locais
aonde chegavam e de acordo com a simpatia demonstrada por seus espectadores. Assim,
nota-se que mesmo antes do circo aos moldes do circo de Philip Astley chegar ao país,
já havia no país vestígios da arte mambembe.
Unindo o fascínio e a desconfiança que o povo tinha em relação aos ciganos, o
circo seduziu os seus espectadores por onde passavam com a graciosidade de seus
números.
A aceitação inicial do circo pela sociedade brasileira estimulou a vinda e
permanência contínuas de várias famílias circenses ávidas a ganhar dinheiro,
estruturando, dessa forma, o circo brasileiro.
Sucessivamente eles foram chegando e ficando: Albano Pereira, português (1833); Alexandre Lowande, americano (1861); Manoel Fernandes, chileno (1887); Tomás Landa, peruano (1887); os Nelson, ingleses (1872); José Rosa Savala (1887); Juloi Seyssel, francês (1887); os Palácios, argentinos (1884); os Ozon, franceses (1887); Leopoldo Temperani, italiano (1884); João Bozan, argentino (1881); Franck Olimecha, japonês (filho do patriarca Torakine Haytaka) (1888); Takasawa Mange, também japonês (1887); Francisco Azevedo, português (1874); José Ferreira da Silva Polidoro, português (1873); os Alciati, italianos (1893); Francisco Stringhini, italiano (1892); Antônio das Neves, português (1889); os Casali, argentinos (1874); Jean François, francês (1881); os Robatini, italianos (1892); os Stevanowich, iugoslavos (1892); os Queirolo (1910) e os brasileiros Antônio Carlos do Carmos, Manuel Pery, Galdino Pinto (pai do famoso Piolim), Sévula Rocha, João Alves, José Pantojo, Narciso de Abreu, a família Nogueira, Nestor de Freitas, Luiz Gonzaga, Hilário Maria de Almeida, Orlandino Leite, Isidoro Gonçalves, Juvenal Pimenta, a família Martinelli, Fred Villar, George (o Carequinha), a família Spinelli. Os Cardona e os Teresa merecem citações à parte. (RUIZ, 1987, p. 21-22).
Outra família, não citada por Ruiz e que, entretanto, trouxe grandes
contribuições para a fixação e as transformações da arte circense no Brasil, foi a família
Avanzi. Esta estava constituída a partir da união entre francesa de tradicional
ascendência circense, Armandine Ribolá (1897- 1977) e o descendente de italianos,
Nerino Avanzi (1884-1962), que não pertencia à família tradicional de circo como
Armandine que, porém desenvolveu grande apreço pelas artes desde a infância. Foi
então que surgiu, em 1913, o Circo Nerino, que a viria percorrer parte do Brasil e da
América Latina “de trem, navio, barcaça e, por fim, de caminhão por estradas de terra
que na época era de terra mesmo” (AVANZI; TAMAOKI, 2004, p. 09) até 1964,
quando depois de quase 52 anos de espetáculos que oscilaram entre glórias e tropeços, o
mesmo ergueu a lona pela última vez, em Cruzeiro (SP). Este circo será mais bem
apresentado na seção seguinte, como um representante do circo brasileiro, a partir das
memórias de Roger Avanzi (1922- ), o Palhaço Picolino II, fruto do casamento entre
Armandine e Nerino, o Palhaço Picolino I.
Por hora, apresentar-se-á o desenvolvimento e as transformações do circo no
Brasil, desde sua chegada, até os tempos atuais, além de analisar a sua organização
interna e a relação com a sociedade sedentária.
O interesse por essas artes milenares foi um dos principais motivos pelos quais
essas famílias nômades se mantinham unidas. Esse tipo de organização familiar sob a
qual se mantinha o circo refletia diretamente nas relações sociais e de trabalho, pois
apesar de haver contratações de outros artistas fora desse convívio, era a própria família
que sustentava essa estrutura. Era através das memórias dos mais antigos que se
transmitia, de geração a geração, as tradições, as crenças, os valores, os conhecimentos
e as práticas circenses.
O circo/família passou a ser reconhecido como uma forma tradicional de
ordenação, possivelmente como uma maneira específica de oposição aos elementos
verificados como “não-tradicionais” que começaram, com o decorrer do tempo, a ser
incluídos no picadeiro. Fazer parte do tradicional, nesse mundo fascinante e misterioso,
significa participar de todos os processos de montagem do seu produto. Isso seria desde
o “fazer a praça”, momento em que se divulgava a chegada do circo nas cidades e que
se cuidava, junto às prefeituras, da parte burocrática para sua instalação, à montagem da
lona, perpassando pelas exibições, até o desarmamento da lona, e não somente
realizando a apresentação do número especial ao qual cada artista é designado.
Dessa forma, o circense tradicional, seria aquele que recebia e transmitia a
experiência, resgatando as relações que se davam, levando-se em consideração a família
como o mastro central que conserva toda aquela estrutura, além de participar de toda a
seqüência para a realização de um espetáculo.
Tradicional, significa os pioneiros... os primeiros circos que começaram no Brasil. Então isso é tradicional. Então isso começou o circo, os mais antigos, então da família vem a primeira geração, a segunda, a terceira e assim por diante, então esse é o caminho, de geração em geração, da tradição, se aprende desde pequeno, depois os filhos deles, e assim seguindo [...] A nossa família, tem os tradicionais, e tem, existem outras famílias que usam o mesmo regulamento que nós aprendemos [...] Regulamento que eu falo é sobre a montagem do circo, desmontagem, aprender a fazer uma praça, ou seja secretariado... é capataz... diretor... é artista... construir e manter seu próprio aparelho, ou seja, tudo sobre o circo. [...] manter o circo sempre para o próximo. (Pedro Robatini apud SILVA, 1996, p. 56-57).
A organização familiar desse grupo nômade dava-se de forma nuclear e, no
sentido stricto da palavra, não diferia da organização da sociedade ocidental sedentária.
Isso que dizer que a sua estrutura é constituída por pessoas do mesmo sangue, ou unidas
legalmente através do matrimônio, habitando em um ambiente familiar comum e que
estavam estabelecidas em casamento sob o regime monogâmico. Em geral, esse grupo
familiar era regido pela regulamentação patriarcal, ou seja, eram os homens que se
tornavam chefes e que tomavam as decisões inerentes à família e à companhia.
Entretanto, essa família nômade se diferencia da sociedade sedentária com
relação ao papel da mulher em sua constituição. A mulher circense, desde cedo é
instruída a cumprir com uma atividade, sendo preparada para não se tornar somente
doméstica, mas para transformar-se numa artista de circo. Vale salientar que os papéis e
os espaços destinados à mulher dentro do espetáculo variaram muito do fim do século
XIX ao início do século XXI. Em alguns momentos coube a ela papéis principais e
essenciais para os espetáculos, assim como em outros, foi-lhe delegada apenas
atribuições de partner, ou assistente de picadeiro.
Às crianças, pertencia a responsabilidade de que sua tradição fosse preservada
e levada adiante e, eram seus pais, ou parentes próximos era quem as instruíam para que
as mesmas se tornassem artistas e, além disso, apesar das dificuldades impostas pela
vida nômade, passavam também pelo processo de alfabetização. Quando não se
conseguia matricular essas crianças em escolas fixas das cidades por onde o circo
passava, ou contratava-se um professor particular que pudesse acompanhar a trupe, ou
caberia a uma pessoa do próprio circo, a responsabilidade pela aprendizagem das
mesmas. Devido à característica nômade e a ausência de políticas educacionais voltadas
às crianças circenses, percebe-se que até os dias atuais, há grande dificuldade para que
as mesmas consigam ser matriculadas em escolas fixas. No circo/família, todos eram
responsáveis pelas crianças, ainda que não possuíssem relação de parentesco. O fato de
geralmente os casamentos se darem entre os próprios integrantes, dava por fim a essa
ausência de relação.
Havia ainda, aqueles que não nasciam no circo, mas que a ele se incorporavam,
através de fugas e do matrimônio com circenses e que passavam pelo mesmo ritual de
aprendizagem ao qual passavam os menores. A partir de então, o sujeito que antes era
exterior ao picadeiro, poderia ser considerado um artista circense tradicional. Porém, é
importante observar que eram poucos os circos brasileiros, até o início do século XX,
que contratavam artistas, pois eram os membros da família os responsáveis pelo
espetáculo e, geralmente, não recebiam um salário determinado e, quando muito, eram
recompensados com uma espécie de mesada determinada pelo proprietário. A maior
parte do dinheiro arrecadado nas “praças” era utilizada para compra de alimentos, de
roupas para as exibições e para a melhoria da estrutura física do circo.
A maioria das pessoas morava no próprio circo, apesar da precariedade que
muitas vezes se verificava, sendo poucos aqueles que possuíam residência fixa no local
em que o circo se aportava.
Esse caráter itinerante sempre despertou grande encantamento e ao mesmo
tempo, aguçava o temor de seu público, mais uma vez, o circo estava cercado por
contradições.
Os circenses eram muitas vezes observados como um grupo exterior à
sociedade, pertencentes a um outro mundo. É possível que essa visão tenha sido herdada
do pensamento que se tinha na Idade Média, em que o circo e outras formas de diversão,
estavam relegados a uma vida extra-oficial. Ao passo que exerciam o fascínio e
encantamento, aqueles eram também rejeitados socialmente por seus expectadores, além
de serem constantemente vigiados em seu modo de vida. O nomadismo de certa, forma,
perturbava e ia de encontro com os interesses daqueles que possuíam uma vida
sedentária, numa sociedade que à época, estava se firmando enquanto nação e que como
conseqüência, pregava a fixação de moradia, com intuito de se criar e de se firmar a
noção de identidade nacional com valores pré-estabelecidos.
As mulheres circenses, por participarem dessa vida pública e por exporem seu
corpo nas exibições, passaram a ser julgadas como desavergonhadas e sedutoras, iam
contra a moral vigente na época, apesar de na vida privada serem submetidas às mesmas
regras rígidas as quais as mulheres da sociedade sedentárias estavam submetidas.
Enquanto isso, os homens nômades eram vistos como desordeiros e encantadores de
moças inocentes.
Por parte do circense, este era um processo tenso, que no seu entendimento, estava instalado na relação do “nós, os da lona” com “eles, os de fora”, como se fossem dois momentos de “ação e reação”, em que apenas diferenças existissem [...] Esta tensão era permanentemente mediada pela tradição, levando o circense a elaborar o seu modo de trabalhar e o seu modo de constituir-se como família.” (SILVA, 1996, p. 1125-126 grifos da autora).
Assim, esse artista necessitava, ao mesmo tempo, criar estratégias para atrair
seus espectadores e se reafirmar enquanto uma família que realizava um trabalho digno
que, entretanto, lhes proporcionava um cotidiano diferente dos demais.
Mesmo com esses problemas relacionados à convivência com o seu público, às
precárias condições de estradas e escassas formas de entretenimento, em fins do século
XIX e princípio do século XX, o circo era a principal distração para a sociedade
sedentária.
Além disso, faz-se necessário realçar que o circo se consolidou no Brasil de
forma diferente a da Europa. Para tanto, teve que adaptar seu espetáculo à satisfação de
seu público, o qual passava por transformações históricas distintas das européias.
O circo brasileiro não se instalou em uma sociedade com valores aristocráticos consolidados. Para a história do circo, isso significa dizer que um dos seus maiores símbolos, o cavalo, não teve, em terras brasileiras, o sentido maior que ocupou no circo da Europa. Aqui, ao contrário, prevaleceu a pluralidade artística dos saltimbancos. Ou seja, o “militarismo” que Astley incorporou ao espetáculo circense não teve forma impositiva por aqui, muito embora ele esteja presente na organização do espetáculo. Contudo, sua presença não foi decididamente significativa. O Brasil adotou o espetáculo mesclado, com predomínio das habilidades artísticas e corporais dos artistas ambulantes. Apenas no século XX o circo brasileiro incorporou, por exemplo, os animais e as feras amestradas como elementos prioritários de seus espetáculos. (BOLOGNESI, 2003, p. 49).
Por conseguinte, muitos personagens assumiram singularidades em relação aos
demais espetáculos pelo mundo, em especial aos espetáculos da Europa. Como
exemplo, Torres (2005) cita o palhaço, que “desenvolveu características próprias, como
falar muito, ao contrário do palhaço europeu do séc. XIX, sobretudo, que era mais de
mímica” (p. 31).
Com o surgimento de outros meios de entretenimento e as constantes
transformações do mundo moderno, em meados do século XX, houve uma significável
redução do público que assistia às apresentações. O circo teve que se reinventar para
poder sobreviver.
Assim, a partir da década de 1910, junto ao picadeiro, onde eram realizadas as
apresentações das habilidades extraordinárias, instalou-se um palco para representar
dramas. Foi então, que o teatro ingressou no circo, sendo absorvido definitivamente pela
tradição circense, como um novo elemento pertencente a esse universo.
A introdução do teatro no circo no Brasil se deve ao palhaço Benjamin de
Oliveira (1870-1954), filho de escravos e que foi alforriado ao nascer, na cidade de
Patafufu, atual Pará de Minas (MG). Benjamin transformou-se em circense aos 12 anos,
quando fugiu com o Circo Soutero e é considerado o primeiro palhaço negro do Brasil.
O espetáculo passou a ser então, dividido em duas partes: na primeira, havia as
apresentações de números de variedades e na segunda parte, eram realizados os dramas.
Inicialmente, a aprendizagem dessas encenações se dava através da transmissão oral ou
reproduzindo o que se via nos teatros ou nos cinemas. Todavia, o teatro é o elemento
que estabelece definitivamente a escrita no circo/família, pois posteriormente, tornou-se
necessário que se soubesse ler e escrever para que ocorresse o espetáculo. Supõe-se que
este tenha sido o instrumento que possibilitou a ruptura inicial com a estrutura do
circo/família, já que muitas famílias enviaram suas crianças para estudar em escolas
fixas e a organização do circo/família pressupunha que o artista seria completo e tinha
as crianças como as responsáveis pela perpetuação do espetáculo. Contudo, esse não foi
o único motivo para essa transformação. Nem todos os circos tradicionais adotaram o
teatro como recurso para seus espetáculos, um exemplo bastante conhecido é aquele que
foi um dos maiores e mais famosos circos no Brasil, o Circo Garcia (1928-2002).
A transmissão dos saberes circenses que anteriormente era feita de geração a
geração diminui consideravelmente. Os artistas passaram a enviar seus filhos para
estudar em escolas fixas para que eles criassem os dramas escritos para serem depois
encenados e, principalmente, para que assumissem a parte administrativa do circo.
A opção de que as crianças não seguissem com os aprendizados circenses foi
tomada por parte dos artistas mais velhos do circo, pais que começavam a sofrer com o
declínio do interesse do público pelo produto de seu trabalho. Assim, a organização
familiar do circo começa a modificar-se para uma estrutura, na qual a transmissão do
saber não é mais de ordem coletiva, mas que possui organização e prática de empresa
capitalista em que seus artistas já não são aqueles organizados em parentesco, mas sim,
aqueles que são contratados por possuírem habilidades singulares. O circo assume em
sua organização uma divisão do trabalho, em que cada artista é unicamente responsável
e especializado para a execução de seu número, não havendo mais envolvimento com as
demais áreas que compunham o espetáculo circense.
A partir da década de 1960 o circo começa a passar por uma crise nas suas
bilheterias provocando mais alterações nesse meio de entretenimento. Isso, segundo
Magnani (1984), está relacionado não somente com as influências das transformações
econômicas ou com as modificações nos meios de comunicação em massa. É necessário
refletir que, além disso, o modo de pensar e de agir da classe trabalhadora passou a
interferir diretamente em seus hábitos de diversão e de lazer.
As adaptações às quais o circo teve que se submeter para continuar atraindo a
atenção de seu público foram diversas, e não estão relacionadas somente ao tipo de
espetáculo, mas aos elementos que os constituíam enquanto circo/família, os quais
determinavam a forma de “socialização/formação/aprendizagem”, além da organização
de trabalho. Devido a esse motivo, as atividades de ensino/aprendizagem das artes
circenses passaram também a ser assumidas por escolas. Dessa forma, a arte circense
deixou de ser somente familiar.
A partir de então, a transmissão do saber circense feita de forma oral e
tradicional tornou-se escassa, ainda que pequenas companhias permaneçam até hoje
com essa estrutura de organização dos espetáculos em torno de trupes familiares.
Magnani (1984) aponta ainda para a existência de três categorias elementares
do espetáculo mambembe no Brasil: o circo de atrações, restrito às trupes de grande
porte e que tem como base para suas exibições, a tradição circense; o circo-teatro, em
que se evidencia a apresentação de dramas e comédias, o último tipo apresentado é o
circo de variedades, o qual recorre tanto às exibições tradicionais quanto aos novos
elementos que são constantemente inseridos nesse universo mágico.
A partir da década de 1980, com o desenvolvimento das escolas de circo,
outras artes passaram a ser (re)inseridas aos ensinamentos circenses, tais quais: o teatro,
a música e a dança. Surgiu em São Paulo, a primeira escola de Circo, a Academia Piolin
de Artes Circenses, que apesar de não ter sido uma grandiosa experiência em termos
estruturais, simbolicamente serviu para impulsionar a criação de outras novas e
significativas escolas, entre elas, o Circo Voador, a Escola Picadeiro, a Escola Nacional
de Circo, a Escola Picolino, entre outras.
O resultado dessa mistura de linguagens atualmente é chamado de “novo
circo”, trupes que se destacam difundindo a magia do circo com a presença de
elementos outros meios de entretenimento, apesar do preconceito exercido por parte das
famílias circenses tradicionais. Preconceito este, que se deve às polêmicas causadas pela
utilização da expressão “novo circo”, que por sua vez, causa a impressão de que tudo o
que era anterior a ele, seria velho. Entretanto, o intuito verdadeiro desse novo circo ou
“circo contemporâneo”, não seria de apagar a constituição dos espetáculos do circo
tradicional e sim, recuperar parte daquilo que havia sido perdido e reformular as
apresentações de forma tal, que o circo voltasse a permear o imaginário do público e
que este voltasse a se interessar pela magia do espetáculo circense.
Surgiu então, em 1986, o primeiro grupo circense constituído por artistas não
tradicionais, que atravessou ao longo de 21 anos as intensas transformações surgidas
desde as primeiras escolas circenses no Brasil, a Intrépida Trupe. Em seguida, ainda na
década de 1980, surgiram também os Parlapatões e a Pia Fraus, todos carregavam
consigo o legado do circo tradicional adicionando uma nova linguagem.
Apesar de parte dos autores que versam sobre o circo afirmarem que não há
mais o preconceito das tradicionais famílias com relação aos que se inserem
gradativamente aos espetáculos, o mesmo ainda se torna evidente e forte. É possível que
esse julgamento desfavorável não seja somente pela rejeição às novidades inseridas por
esses novos grupos, mas pelo temor da fuga do público a quem se destinam os gracejos
e de perder ainda, os incentivos e as escassas políticas governamentais e não-
governamentais destinadas essa forma de entretenimento. Fica evidente, dessa forma,
que os interesses envolvidos são múltiplos.
O principal representante do circo contemporâneo mundialmente conhecido é o
canadense Cirque Du Soleil, atualmente apontado como um exemplo dereinvenção
constante do circo, mas que segue outra lógica que não a do entretenimento, a lógica do
mercado.
Retornando ao aspecto do circo no Brasil, percebe-se que atualmente há um
esforço intenso para que as artes circenses não sejam esquecidas. Além disso, o circo
tem assumido uma outra feição, a social. Este fato se tornou perceptível após parceria
firmada ainda na década de 1980, com o então ministro da Cultura da França, Jack
Lang. Esse intercâmbio resultou no Projeto Universidade do Circo, que envolve
diversos artistas e que tem como objetivo dar prosseguimento ao trabalho de muitas
escolas circenses que trabalham com crianças de rua, promovendo assim, a integração
social entre crianças e jovens em risco social.
Observa-se dessa forma, que o circo, tanto no Brasil como em outras partes do
planeta, retém grande importância tanto no espaço cultural, quanto no político e
no social, além de ser fortemente visado na esfera econômica. Deve-se
salientar então, que o lazer, necessita de ser analisado e compreendido não somente
como uma forma distração, de entretenimento ou mesmo de alienação, servindo para
preencher o tempo ocioso, porém deve ser interiorizado como um elemento essencial
para complementar na formação de seres humanos.
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