ENTRE LONAS E PICADEIROS: UM ESTUDO SOBRE AS …

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ENTRE LONAS E PICADEIROS: UM ESTUDO SOBRE AS ARTES CIRCENSES Thalita Costa da Silva 1 José Willington Germano 2 1. O Circo na História O circo é considerado um dos espetáculos de entretenimento mais antigos do mundo, sendo impossível pensar, data ou local, precisos para o seu surgimento. Há, dessa maneira, indícios do despontar dessa arte milenar em vários lugares: na Grécia, em Roma, na Índia e na China. Partindo desse pressuposto, tentar-se-á fazer um resgate histórico-social e cultural do circo. Assim, essa arte mambembe será apresentada perpassando-se desde sua origem, remetendo o leitor desde a Antigüidade Clássica, até sua organização na Modernidade, período este, que se firmou com a Revolução Industrial e que está diretamente associado ao desenvolvimento intenso do capitalismo. A procedência do circo não pode ser apontada como única, determinada e localizada somente em um espaço e tempo social e cultural. Por isso, a seguir, serão apresentadas diversas suposições sobre suas origens, as quais são diversas e por sua vez, contraditórias. Dentre essas hipóteses, têm-se a Grécia Antiga, a Índia e o Império Egípcio, em que se defende o circo como originário de hipódromos, que são locais onde se domavam os animais exóticos capturados em combates, para então exibi-los, simbolizando os retornos e as vitórias em guerras. Ainda não se percebe em tal concepção características presentes no circo moderno, a não ser o fato de que esta seria uma forma de entretenimento para população. Nos hipódromos, com o passar do tempo, a presença de um elemento que posteriormente seria central no circo: o sátiro, que foi substituído pela figura do palhaço. Inicialmente nesses lugares, em seguida em outros espetáculos, sejam públicos ou reservados, os palhaços desenvolveram-se representando e satirizando, na maioria 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2 Professor Titular do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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ENTRE LONAS E PICADEIROS: UM ESTUDO SOBRE AS ARTES

CIRCENSES

Thalita Costa da Silva1

José Willington Germano2

1. O Circo na História

O circo é considerado um dos espetáculos de entretenimento mais antigos do

mundo, sendo impossível pensar, data ou local, precisos para o seu surgimento. Há,

dessa maneira, indícios do despontar dessa arte milenar em vários lugares: na Grécia,

em Roma, na Índia e na China.

Partindo desse pressuposto, tentar-se-á fazer um resgate histórico-social e

cultural do circo. Assim, essa arte mambembe será apresentada perpassando-se desde

sua origem, remetendo o leitor desde a Antigüidade Clássica, até sua organização na

Modernidade, período este, que se firmou com a Revolução Industrial e que está

diretamente associado ao desenvolvimento intenso do capitalismo.

A procedência do circo não pode ser apontada como única, determinada e

localizada somente em um espaço e tempo social e cultural. Por isso, a seguir, serão

apresentadas diversas suposições sobre suas origens, as quais são diversas e por sua vez,

contraditórias. Dentre essas hipóteses, têm-se a Grécia Antiga, a Índia e o Império

Egípcio, em que se defende o circo como originário de hipódromos, que são locais onde

se domavam os animais exóticos capturados em combates, para então exibi-los,

simbolizando os retornos e as vitórias em guerras. Ainda não se percebe em tal

concepção características presentes no circo moderno, a não ser o fato de que esta seria

uma forma de entretenimento para população.

Nos hipódromos, com o passar do tempo, a presença de um elemento que

posteriormente seria central no circo: o sátiro, que foi substituído pela figura do

palhaço. Inicialmente nesses lugares, em seguida em outros espetáculos, sejam públicos

ou reservados, os palhaços desenvolveram-se representando e satirizando, na maioria

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2 Professor Titular do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

das vezes, o que seria proibido na vida oficial. Em geral, as reuniões reservadas eram

sinônimo de muita fartura, conforme cita Castro (2005):

A Grécia herdou de outros povos a figura dos gelotopoioi - os que fazem rir. Havia os que trabalhavam em espetáculos públicos e os que freqüentavam a mesa dos ricos e os symposiuns dos filósofos [...] se discutia alta filosofia, bebia-se muito e assistia-se a espetáculos especiais [...]. Os gregos tinham ainda a figura dos parasitas. Esta palavra não tinha o sentido pejorativo que tem hoje. Parasita significava conviva, aquele que alegrava um banquete divertindo o anfitrião. No início, o termo se referia ao sacerdote que participava de um banquete dedicado aos deuses, mas acabou sendo usado para todos os convidados encarregados da diversão, fossem eles palhaços ou filósofos. (CASTRO, 2005, p. 23).

Percebe-se, nesta figura, um caráter ambivalente, pois ao passo que seus

gracejos eram ofertas ao divino, estavam presentes também numa parte desregrada da

vida, a qual foi representada, posteriormente, em comédias que perpassaram os tempos.

Enfatizando a Grécia Antiga, Torres (1998), por sua vez, aponta alguns dos

mais variados números circenses como originários das Olimpíadas. Ali, o corpo era

demonstrado na ginástica olímpica, através de malabares e de contorcionismos, como

uma forma de superação extrema dos limites dos seres humanos. Nota-se, no entanto,

que alcançar essa superação, através da prática das artes circenses não era exclusividade

da civilização grega. Também em Pompéia, uma comuna italiana, situada na província

de Nápoles e que foi arruinada durante a erupção do vulcão Vesúvio no ano 79 depois

de Cristo, essas habilidades tomaram impulso de forma tal, que no ano 70 antes de

Cristo, havia um anfiteatro dedicado às demonstrações suas demonstrações incomuns.

Logo em seguida, em Roma, tendo em vista tamanha a afeição do povo pela

prática das artes circenses, foi criado um espaço exclusivo para as apresentações – o

Circo Máximo de Roma, que sofreu vários incêndios. Contudo, segundo Ruiz (1987)

afirma, no ano 40 antes de Cristo foi construído, sobre o Circo Máximo, o Coliseu de

Roma, “cujas ruínas ainda hoje atestam o arrojo daquela iniciativa” (RUIZ, 1987. p. 15).

Naquela construção de três andares, cabiam 87 mil espectadores e nela apresentavam-se

animais exóticos e homens capturados em guerras, engolidores de fogo, malabaristas e

contorcionistas, entre outros.

Devido à instauração da escravidão gerou-se intenso desemprego na zona rural

e a grande massa de desempregados migrou para as cidades romanas, trazendo, entre

outras conseqüências, graves problemas sociais para Roma. Por isso, temeroso de que

pudessem ocorrer revoltas, o Imperador César (63 a.C.-14 d.C) instituiu a política do

Pão e Circo, em que se oferecia aos romanos, alimentação e diversão. Diariamente,

ocorriam nos estádios, a exemplo do Coliseu, lutas entre gladiadores e lá se distribuíam

alimentos. Dessa forma, a população pobre esquecia os problemas, obliterando seu o

espírito crítico e a sua capacidade contestadora. Foi assim que o Império Romano criou

a prática do Pão e Circo, que se reconfigurou e ainda é praticada. Nos casos

contemporâneos, as brigas entre gladiadores são substituídas, entre outras formas, pelos

showmícios, de forma tal que desvie a atenção da população para que a mesma não tome

conhecimento da sua realidade e, conseqüentemente, se rebele contra as forças

dominantes.

Contudo, a partir do ano 54 depois de Cristo, quando Nero (37-68 d.C) ascende

na condição de imperador romano, as arenas do Coliseu passaram a ser palco de

espetáculos sangrentos, o que provocou grande desinteresse do povo pelas artes

circenses por um longo período na história. Assim, os artistas tiveram as exibições de

suas aptidões deslocadas para as praças públicas, feiras e entradas das igrejas,

reinventando, dessa forma, as tradicionais exibições, para que as mesmas não fossem

legadas ao esquecimento.

Aos poucos, a vontade de divertir-se foi inventando e em séculos de feiras populares, barracas exibindo fenômenos, habilidades incomuns, truques mágicos e malabarismo, foram alicerçando o gênero que tinha remotas raízes nas práticas atléticas da Grécia e nos espetáculos populares entre gregos e romanos, onde entroncam as criações dos palhaços – na baixa comédia, com seus tipos característicos – e nas apresentações da Commedia del’Arte. (RUIZ, 1987, p. 15, grifo do autor).

Deu-se início, desse modo, à vida mambembe, nômade e errante, indo de

cidade em cidade, improvisando espetáculos em diferentes lugares, para os mais

diversos espectadores. Assim, as artes circenses foram moldadas de forma tal, que

passaram a surgir diversas companhias, organizadas com todos os elementos

necessários para as performances, compostas por grupos de saltimbancos e que

percorreram parte da Europa. Em suas exposições, além de demonstrações de

habilidades peculiares, havia ainda “exibições de destreza a cavalo, combates simulados

e provas de equitação”. (RUIZ, 1987. p. 16).

Após este resgate sobre algumas das prováveis origens do circo, tentar-se-á,

fazer considerações acerca do seu desenvolvimento até o século XIX, em especial, na

Europa, local em que sua presença se fez de forma mais eloqüente no decorrer dos

séculos e que por sua vez, originou dinastias circenses pelo mundo.

Assim, é de extrema importância a compreensão do mundo medieval e suas

contribuições, para que se possa inserir o circo no universo da cultura popular. Durante

a Idade Média, além dos poderes dos senhores de terras, os espetáculos circenses

também foram descentralizados e somente este tipo de espetáculo era permitido na vida

oficial dos cristãos. As artes circenses voltaram a ter espaço somente nas feiras, nas

festas de aldeias e em banquetes reservados à nobreza.

Na tentativa de evitar tratar da Idade Média de forma reducionista, a mesma

será compreendida a partir da sociedade que a constitui, o qual, por sua vez, é

extremamente complexa e contraditória.

O cotidiano medieval foi intensamente marcado pela presença do catolicismo.

Tal religião pregava entre outras coisas, que o ser humano deveria seguir uma vida

regrada, dedicada ao trabalho e às orações. Entretanto, segundo Bakhtin (1987), foi no

auge da Idade Média que as Saturnais, celebrações romanas realizadas em janeiro, em

que os escravos vestiam-se como seus senhores e festejavam com eles a Idade de Ouro,

simbolizando a igualdade e a harmonia entre todos foram tolhidas pela Igreja, ressurgiu,

dessa vez, transformada na Festa dos Loucos em alguns lugares e Festa do Asno em

outros. Os participantes proclamavam a esbórnia e quebravam as hierarquias,

ridicularizavam as autoridades e satirizavam a Igreja. Essas festas eram marcadas por

longos cortejos acompanhados pela abundância de bebidas e de muita lascividade. Era

estabelecido, um mundo ao avesso, em que tudo virava de ponta cabeça e as hierarquias

entre os participantes eram banidas, era a carnavalização da vida oficial.

Muitas autoridades clericais, por sua vez, eram contra os excessos cometidos

nessas festas, as quais, durante séculos foram utilizadas pelos seus participantes como

uma fuga à rigidez religiosa a que eram submetidos na vida

oficial do cotidiano medieval. Nessa vida oficial, o que se falava ou se fazia em

público era extremamente vigiado e censurado com rigor, enquanto isso, na vida

carnavalizada, ou extra-oficial, todas as extravagâncias e excentricidades eram

permitidas.

Essas manifestações, por sua vez, desmascaram as afirmações feitas por

autores e artistas renascentistas de que a Idade Média não havia produzido

manifestações culturais importantes, considerando-a ainda como a “Idade das Trevas”.

Como não conseguia ir contra essa vida extra-oficial, a Igreja foi aos poucos

inserindo o que era permitido para aplicar seus ensinamentos moralizantes. E foi assim,

que os espetáculos voltaram a fazer parte do cotidiano medieval.

No início, eram pequenas cenas representadas dentro das igrejas. Mas a coisa foi crescendo, tomou as ruas e, ao final, envolvia toda a cidade [...]. A cidade medieval esperava ansiosa o momento em que seria o palco de um evento de grandes proporções e os espetáculos começam a trair gente de outros lugares, a promover o comércio e a venda de produtos da região. (CASTRO, 2005, p. 37).

As feiras serviam como pontos de encontros entre os mais diversos artistas:

dançarinos, equilibristas, malabaristas, acrobatas, jograis, trovadores, amestradores de

animais, músicos, dançarinos, bonequeiros, entre outros.

Para atrair a atenção dos que freqüentavam as feiras, erguia-se um tablado, que

mais parecia um banco e, sobre ele, eram apresentadas diversas atrações. Seria por este

motivo que surge o termo saltimbanco – saltare in banco. Eram realizadas as mais

variadas performances como amostras daquilo que era extraordinário ao cotidiano, todas

as bizarrices estavam passíveis a serem admiradas a troco de alguns tostões.

Fazendo um retorno à Antigüidade, percebe-se que em Roma, por exemplo, os

nobres mantinham, em suas propriedades uma trupe de palhaços anões, pois se

acreditava que ter anões em casa simbolizava bons presságios. No entanto, ao se

remontar à Idade Média, percebe-se que alguns personagens circenses antes mesmo

desse retorno às construções dos lugares reservados aos espetáculos ultrapassaram, ou

melhor, foram recolhidos aos espaços privados. Em uma sociedade que se valorizava a

figura do belo, o grotesco e o disforme eram vistos como piadas e, geralmente,

ridicularizados. Contudo, além de se destacarem pelo contraste físico em relação ao que

se pensava como perfeição, os anões, os feios, os corcundas e outros disformes se

sobressaíam ainda, por utilizar o humor exacerbado como uma forma “de sobrevivência

e de ascensão social” (CASTRO, 2005. p. 24). Os gracejos por eles utilizados, quase

sempre estavam envoltos de críticas àquela sociedade que o ridicularizava, entretanto,

os faziam com tamanha inteligência que dificilmente eram percebidos e quando o eram,

dificilmente lhes acontecia algo, pois gozavam de intensa proteção de seus senhores.

Esses disformes são então, considerados os ancestrais dos bobos da corte, que tiveram

seu auge ainda na Idade Média e que vieram a se transformar nos palhaços da

atualidade.

A partir do século XVII, já na Modernidade, os lugares em que se poderiam

realizar espetáculos voltaram a ser construídos.

O mundo passava, nesse momento, por intensas modificações econômicas,

políticas e culturais que apontavam para a visível transição da antiga ordem econômica,

o feudalismo dominante na Idade Média, para o capitalismo. Isso fez com que se

impulsionasse o declínio das feiras européias, pois gradativamente, a produção artesanal

deu lugar ao processo de padronização para criação de produtos em larga escala, de

forma tal que pudesse atender aos interesses de uma massa de consumidores. Essa

redução gradativa da importância das feiras gerou complicações diretas para aqueles

que viviam da cultura popular, visto que tradicionalmente, eram os locais de exibição de

diversas expressões dos saltimbancos, entre outros artistas.

Contudo, ao invés de ser relegada ao esquecimento, a cultura popular se

reinventou, adequando-se ao novo período e gerando novas manifestações que

pudessem ser comercializadas e pudessem alcançar os mais diversos espectadores.

O caso mais notável de comercialização da cultura popular é o circo, que remota à segunda metade do século XVIII; Philip Astley fundou seu circo em Westminster Bridge em 1770. Os elementos do circo, artistas como palhaços e acrobatas, como vimos, são tradicionais; o que havia de novo era a escala da organização, o uso de um recinto fechado, ao invés de uma rua ou praça, como cenário da apresentação, e o papel do empresário. Aqui, como em outros âmbitos da economia do século XVIII, as empresas em grande escala vinham expulsando as pequenas. (BURKE, 1989, p. 270-271).

Assim, por volta de 1770, conforme anteriormente apontado, foi criado pelo

suboficial inglês e experiente cavaleiro Philip Astley, o que hoje se conhece como circo

moderno. Este cavaleiro conseguiu realizar aquilo que ainda no início do século XVIII,

um picador alemão chamado Beates, havia tentado. Beates incorporava em uma mesma

apresentação, o tradicional espetáculo romano com as provas hípicas e, em decorrência

do grande sucesso, chegou a construir um suntuoso circo de madeira em Paris, na

segunda metade do século. E foi a partir dessa idéia, que Astley construiu e inaugurou

um edifício permanente em Londres o Astley’s Royal Amphitheare of Arts.

O picadeiro assumiu a forma de um círculo perfeito, que media treze metros de

diâmetro, pois Astley observou que seria mais fácil se manter de pé sobre o dorso de um

cavalo em movimento contínuo e circular. A medida se justifica por uma lei da Física,

chamada força centrífuga, pois para que se conseguisse tamanha façanha, era necessário

que fosse realizado em um círculo perfeito. Foi acrescentada ainda, uma arquibancada

próxima ao picadeiro. Contudo, essa estrutura ainda não assumia a mobilidade dos

circos da atualidade, apesar de ter sido o grande precursor do formato da estrutura física

que possibilitou o caráter itinerante dos circos modernos. O ambiente era fechado nas

laterais, dando um aspecto de teatro e que facilitava para que se cobrassem ingressos e

não se dependesse apenas da benevolência de seus espectadores como ocorriam nas

feiras livres, nas apresentações dos ambulantes.

Astley apresentava, inicialmente, em seu espaço somente os elegantes números

eqüestres, e depois passou a alterná-los com exibições de saltimbancos, de equilibristas,

de saltadores e de um palhaço. Parte dos artistas que compunham o espetáculo de Astley

era selecionada entre os militares reformados ou dispensados pelo Exército Inglês, e

eram escolhidos de acordo com a aparência física, postura, destreza e empatia junto aos

espectadores.

Um dos motivos prováveis para o sucesso do circo foi a inserção da

possibilidade para que outras pessoas, e não somente a nobreza e os militares tivessem

acesso às aulas de equitação. Foi construído, um espaço direcionado para que se

ensinassem as técnicas de montaria à burguesia e, para ter acesso aos segredos desse

exercício, bastava que se adquirisse o ingresso para assistir aos atos. Assim, os

espetáculos dirigidos a um público freqüentador de feiras, passaram a ser apresentados

somente a um público aristocrata e, futuramente, devido às modificações nos estratos

sociais, à burguesia em ascensão.

Toda a suntuosidade dos espetáculos não demorou em conquistar toda a

Europa, o que fez com que Astley e a sua companhia fossem chamados inclusive, a se

apresentar a Luis VX, a convite do embaixador francês. O resultado dessa apresentação

foi visualizado onze anos depois, quando Astley criou uma filial francesa do seu circo, o

Amphithéatre Anglois, que ficou aos cuidados do italiano e também cavaleiro, Antônio

Franconi. Este, não só desenvolveu bem o trabalho que lhe fora atribuído, como

também o manteve constantemente atualizado.

Percebe-se que o circo moderno desenvolveu-se a partir do adestramento e

apresentações a cavalo, originando assim, a criação da expressão “circo de cavalinhos”,

a qual ficou popularmente conhecida e que até hoje é utilizada por muitos de seus

espectadores. No entanto, as exibições com os números eqüestres possuíam um ar tanto

quanto enfadonho, observa-se então, o grande feito de Fraconi, que revolucionaria a

maneira de se fazer circo, o mesmo inseriu números de acrobacias, equilíbrio e outros

provenientes das feiras ambulantes. Além disso, acrescentou ao espetáculo o

adestramento de outros animais, que não os cavalos.

Esse fato não seria tão relevante se não se levasse em consideração o momento

histórico pelo qual a França passava: a era napoleônica. Neste período, mais

especificamente entre 1794 e 1807, houve forte censura e restrição para autorizações de

funcionamento de teatros, o que fez com que Fraconi e sua família usassem

oficialmente, pela primeira vez na França, o termo “circo”.

A rigidez militar estava presente em vários momentos da construção do

espetáculo: os ensaios seguiam um rigor militar; os uniformes foram confeccionados

imitando fardas militares de alta patente; em números de risco que causavam tensão,

rufavam-se os tambores e ouviam-se as vozes de comando. Essa união entre o rigor e a

disciplina militar e a irreverência e a habilidade dos artistas circenses foi responsável

pela criação de um espetáculo completo, pois os militares e os artistas descobriram

afinidades que foram essenciais para o desenvolvimento das encenações.

As representações cômicas incorporavam-se às exibições eqüestres, o palhaço

montava no cavalo com a frente voltada para a calda do animal, escorregava passando

por baixo do mesmo, quebrando assim, expectativas e transformando aquilo que seria

razão de admiração para o militar, num motivo de muitas gargalhadas para seu público.

O palhaço era uma espécie de paródia ao que seria o montador de origem militar. Surgiu

então, o “grotesco a cavalo”.

Não tardou para que todo esse sucesso fosse copiado. Começaram a surgir na

Europa, as primeiras dinastias do circo. Logo, surgiram diversas companhias circenses

na Alemanha, na Espanha, na Itália, entre outros lugares. No entanto, o primeiro a

utilizar a terminação “circus”, foi o inglês Charles Dibdin Hughes, que também seguiu

os passos do espetáculo de Astley criando em Londres, o Royal Circus. Hughes

acrescentou ainda, dramaticidade às suas performances, firmando assim,

definitivamente, o termo “circo-teatro”, apesar dessa característica só se tornar mais

visível em fins do século XIX e meados do século XX.

Valorizando sua origem nômade, os artistas que provinham das ruas saíram em

busca de outras cidades da Inglaterra.

Sem dúvida, o circo moderno, já sem as fortes características helênicas ou

romanas, conquistou toda a Europa e percebeu-se então, a necessidade de assumir novos

espaços.

Observa-se que o espaço conquistado, não foi somente físico, os elementos do

espetáculo circense assumiram lugar privilegiado também na literatura do século XIX,

quando os românticos, inspirados em William Shakespeare (1564-1616), se

contrapuseram à racionalidade dos clássicos. Propunham a liberdade no processo de

criação, produzindo os dramas em uma espécie de oposição entre o trágico e o cômico,

o sério e o risível, o possível e o impossível, a ordem e a desordem, assim como as

trupes fazem até os dias atuais em suas apresentações. Outro aspecto enfatizado pelos

românticos é o corpo, que é observado ao mesmo tempo como uma postura erótica e

celestial, o qual também é notado nos espetáculos circenses.

Observa-se ainda que o corpo, para a realização das habilidades

extraordinárias, assume caráter de superação dos limites do ser humano.

O artista tem consciência de que pode fracassar. O desempenho artístico do acrobata e sua possível queda não são ilusórios e não pertencem ao reino da ficção. O público, por seu lado, presencia a elaboração do suspense e do temor, que serão logo superados. Em seguida, o espetáculo é acometido pela descontração da performance

dos palhaços. No espetáculo circense o corpo do artista mostra toda a sua potencialidade. Ele se desnuda para revelar, no espetáculo, a sua grandeza. Riso e fracasso, descontração e possibilidade de queda são os componentes extremos que embasam o espetáculo de circo. A possibilidade de fracasso é evidente, para ser superada, em seguida, com o riso descontraído dos palhaços. Em um pólo, o corpo sublime dos ginastas; no outro, o grotesco dos clowns. (BOLOGNESI, 2003, p. 45, grifos do autor).

E foi esse circo que, por volta de 1830, pela primeira vez, atravessou o Oceano

Atlântico a caminho dos Estados Unidos, local em que surgem as primeiras estruturas

de lona. A necessidade por esse tipo de sustentação, que não fosse fixa, surgiu a partir

da característica itinerante dos seus componentes, a qual sempre foi marcante nos

mesmos. Foi dessa forma que esse tipo de organização chegou, em seguida, à América

do Sul, através dos portos do Rio de Janeiro e de Buenos Aires.

Havendo, no entanto, vestígios da presença anterior de ciganos expulsos da

península ibérica e que desenvolviam habilidades semelhantes a algumas apresentadas

nos circos que aportavam e erguiam suas tendas.

Assim, as artes mais diversas passaram a se aglutinar sob lonas, unindo pessoas

do mundo inteiro e, conseqüentemente, associando os mais diversos valores morais,

sociais e culturais, não só dos artistas, como também do “respeitável público”,

tornando-se uma sociedade singular composta por variadas nações.

Os artistas estão distribuídos em diversas atividades exercidas no circo

moderno, porém, segundo afirma Ruiz (1987), “um grande circo tem que possuir

obrigatoriamente, ao mesmo tempo, palhaços, animais e trapezistas”. (p. 20)

E foi essa abundância de artistas circenses que, em organização familiar,

constituiu e fixou esta arte no Brasil, a qual prosseguiu passando por diversas

modificações.

2. O Circo no Brasil

Sugere-se que a arte circense tenha sido introduzida no Brasil pela frota de

Pedro Álvares Cabral, através das palhaçadas de um tripulante que veio em sua

expedição. Seria ele, Diogo Dias, segundo relata Pero Vaz de Caminha em carta enviada

ao Rei D. Manuel (1495-1521):

E além do rio andavam muitos deles, dançando e folgando uns ante outros, sem se tomarem pelas mãos, e faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém que é homem gracioso e de prazer, e levou consigo um gaiteiro nosso, com sua gaita, e meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos. E eles folgavam e riam e andavam com ele mui bem, ao som da gaita. Despois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. (CAMINHA, 1500).

O termo “gracioso”, para a época, possuía o significado que hoje conhecemos

como o bobo, ou melhor, o palhaço. Assim como o “salto real” seria o salto mortal e as

“voltas ligeiras” seriam acrobacias, geralmente utilizadas nas apresentações dos

saltimbancos da época.

Entretanto, o circo propriamente dito, só adentrou no Brasil no século XIX,

com a chegada de famílias circenses européias e norte-americanas, as quais percorreram

todo o país. Afirma-se que o primeiro circo com lona e picadeiro chegou ao país em

1830, o Circo Bragasse. Todavia, já no século XVIII, fugidos devido a perseguições na

Península Ibérica, percebe-se a presença de ciganos no Brasil, os quais, por sua vez,

utilizavam para suas apresentações, estrutura semelhante às do circo de pau fincado.

Além disso, exercerciam habilidades idênticas às dos saltimbancos, viajando

constantemente de uma cidade para outra, sempre adaptando as apresentações aos locais

aonde chegavam e de acordo com a simpatia demonstrada por seus espectadores. Assim,

nota-se que mesmo antes do circo aos moldes do circo de Philip Astley chegar ao país,

já havia no país vestígios da arte mambembe.

Unindo o fascínio e a desconfiança que o povo tinha em relação aos ciganos, o

circo seduziu os seus espectadores por onde passavam com a graciosidade de seus

números.

A aceitação inicial do circo pela sociedade brasileira estimulou a vinda e

permanência contínuas de várias famílias circenses ávidas a ganhar dinheiro,

estruturando, dessa forma, o circo brasileiro.

Sucessivamente eles foram chegando e ficando: Albano Pereira, português (1833); Alexandre Lowande, americano (1861); Manoel Fernandes, chileno (1887); Tomás Landa, peruano (1887); os Nelson, ingleses (1872); José Rosa Savala (1887); Juloi Seyssel, francês (1887); os Palácios, argentinos (1884); os Ozon, franceses (1887); Leopoldo Temperani, italiano (1884); João Bozan, argentino (1881); Franck Olimecha, japonês (filho do patriarca Torakine Haytaka) (1888); Takasawa Mange, também japonês (1887); Francisco Azevedo, português (1874); José Ferreira da Silva Polidoro, português (1873); os Alciati, italianos (1893); Francisco Stringhini, italiano (1892); Antônio das Neves, português (1889); os Casali, argentinos (1874); Jean François, francês (1881); os Robatini, italianos (1892); os Stevanowich, iugoslavos (1892); os Queirolo (1910) e os brasileiros Antônio Carlos do Carmos, Manuel Pery, Galdino Pinto (pai do famoso Piolim), Sévula Rocha, João Alves, José Pantojo, Narciso de Abreu, a família Nogueira, Nestor de Freitas, Luiz Gonzaga, Hilário Maria de Almeida, Orlandino Leite, Isidoro Gonçalves, Juvenal Pimenta, a família Martinelli, Fred Villar, George (o Carequinha), a família Spinelli. Os Cardona e os Teresa merecem citações à parte. (RUIZ, 1987, p. 21-22).

Outra família, não citada por Ruiz e que, entretanto, trouxe grandes

contribuições para a fixação e as transformações da arte circense no Brasil, foi a família

Avanzi. Esta estava constituída a partir da união entre francesa de tradicional

ascendência circense, Armandine Ribolá (1897- 1977) e o descendente de italianos,

Nerino Avanzi (1884-1962), que não pertencia à família tradicional de circo como

Armandine que, porém desenvolveu grande apreço pelas artes desde a infância. Foi

então que surgiu, em 1913, o Circo Nerino, que a viria percorrer parte do Brasil e da

América Latina “de trem, navio, barcaça e, por fim, de caminhão por estradas de terra

que na época era de terra mesmo” (AVANZI; TAMAOKI, 2004, p. 09) até 1964,

quando depois de quase 52 anos de espetáculos que oscilaram entre glórias e tropeços, o

mesmo ergueu a lona pela última vez, em Cruzeiro (SP). Este circo será mais bem

apresentado na seção seguinte, como um representante do circo brasileiro, a partir das

memórias de Roger Avanzi (1922- ), o Palhaço Picolino II, fruto do casamento entre

Armandine e Nerino, o Palhaço Picolino I.

Por hora, apresentar-se-á o desenvolvimento e as transformações do circo no

Brasil, desde sua chegada, até os tempos atuais, além de analisar a sua organização

interna e a relação com a sociedade sedentária.

O interesse por essas artes milenares foi um dos principais motivos pelos quais

essas famílias nômades se mantinham unidas. Esse tipo de organização familiar sob a

qual se mantinha o circo refletia diretamente nas relações sociais e de trabalho, pois

apesar de haver contratações de outros artistas fora desse convívio, era a própria família

que sustentava essa estrutura. Era através das memórias dos mais antigos que se

transmitia, de geração a geração, as tradições, as crenças, os valores, os conhecimentos

e as práticas circenses.

O circo/família passou a ser reconhecido como uma forma tradicional de

ordenação, possivelmente como uma maneira específica de oposição aos elementos

verificados como “não-tradicionais” que começaram, com o decorrer do tempo, a ser

incluídos no picadeiro. Fazer parte do tradicional, nesse mundo fascinante e misterioso,

significa participar de todos os processos de montagem do seu produto. Isso seria desde

o “fazer a praça”, momento em que se divulgava a chegada do circo nas cidades e que

se cuidava, junto às prefeituras, da parte burocrática para sua instalação, à montagem da

lona, perpassando pelas exibições, até o desarmamento da lona, e não somente

realizando a apresentação do número especial ao qual cada artista é designado.

Dessa forma, o circense tradicional, seria aquele que recebia e transmitia a

experiência, resgatando as relações que se davam, levando-se em consideração a família

como o mastro central que conserva toda aquela estrutura, além de participar de toda a

seqüência para a realização de um espetáculo.

Tradicional, significa os pioneiros... os primeiros circos que começaram no Brasil. Então isso é tradicional. Então isso começou o circo, os mais antigos, então da família vem a primeira geração, a segunda, a terceira e assim por diante, então esse é o caminho, de geração em geração, da tradição, se aprende desde pequeno, depois os filhos deles, e assim seguindo [...] A nossa família, tem os tradicionais, e tem, existem outras famílias que usam o mesmo regulamento que nós aprendemos [...] Regulamento que eu falo é sobre a montagem do circo, desmontagem, aprender a fazer uma praça, ou seja secretariado... é capataz... diretor... é artista... construir e manter seu próprio aparelho, ou seja, tudo sobre o circo. [...] manter o circo sempre para o próximo. (Pedro Robatini apud SILVA, 1996, p. 56-57).

A organização familiar desse grupo nômade dava-se de forma nuclear e, no

sentido stricto da palavra, não diferia da organização da sociedade ocidental sedentária.

Isso que dizer que a sua estrutura é constituída por pessoas do mesmo sangue, ou unidas

legalmente através do matrimônio, habitando em um ambiente familiar comum e que

estavam estabelecidas em casamento sob o regime monogâmico. Em geral, esse grupo

familiar era regido pela regulamentação patriarcal, ou seja, eram os homens que se

tornavam chefes e que tomavam as decisões inerentes à família e à companhia.

Entretanto, essa família nômade se diferencia da sociedade sedentária com

relação ao papel da mulher em sua constituição. A mulher circense, desde cedo é

instruída a cumprir com uma atividade, sendo preparada para não se tornar somente

doméstica, mas para transformar-se numa artista de circo. Vale salientar que os papéis e

os espaços destinados à mulher dentro do espetáculo variaram muito do fim do século

XIX ao início do século XXI. Em alguns momentos coube a ela papéis principais e

essenciais para os espetáculos, assim como em outros, foi-lhe delegada apenas

atribuições de partner, ou assistente de picadeiro.

Às crianças, pertencia a responsabilidade de que sua tradição fosse preservada

e levada adiante e, eram seus pais, ou parentes próximos era quem as instruíam para que

as mesmas se tornassem artistas e, além disso, apesar das dificuldades impostas pela

vida nômade, passavam também pelo processo de alfabetização. Quando não se

conseguia matricular essas crianças em escolas fixas das cidades por onde o circo

passava, ou contratava-se um professor particular que pudesse acompanhar a trupe, ou

caberia a uma pessoa do próprio circo, a responsabilidade pela aprendizagem das

mesmas. Devido à característica nômade e a ausência de políticas educacionais voltadas

às crianças circenses, percebe-se que até os dias atuais, há grande dificuldade para que

as mesmas consigam ser matriculadas em escolas fixas. No circo/família, todos eram

responsáveis pelas crianças, ainda que não possuíssem relação de parentesco. O fato de

geralmente os casamentos se darem entre os próprios integrantes, dava por fim a essa

ausência de relação.

Havia ainda, aqueles que não nasciam no circo, mas que a ele se incorporavam,

através de fugas e do matrimônio com circenses e que passavam pelo mesmo ritual de

aprendizagem ao qual passavam os menores. A partir de então, o sujeito que antes era

exterior ao picadeiro, poderia ser considerado um artista circense tradicional. Porém, é

importante observar que eram poucos os circos brasileiros, até o início do século XX,

que contratavam artistas, pois eram os membros da família os responsáveis pelo

espetáculo e, geralmente, não recebiam um salário determinado e, quando muito, eram

recompensados com uma espécie de mesada determinada pelo proprietário. A maior

parte do dinheiro arrecadado nas “praças” era utilizada para compra de alimentos, de

roupas para as exibições e para a melhoria da estrutura física do circo.

A maioria das pessoas morava no próprio circo, apesar da precariedade que

muitas vezes se verificava, sendo poucos aqueles que possuíam residência fixa no local

em que o circo se aportava.

Esse caráter itinerante sempre despertou grande encantamento e ao mesmo

tempo, aguçava o temor de seu público, mais uma vez, o circo estava cercado por

contradições.

Os circenses eram muitas vezes observados como um grupo exterior à

sociedade, pertencentes a um outro mundo. É possível que essa visão tenha sido herdada

do pensamento que se tinha na Idade Média, em que o circo e outras formas de diversão,

estavam relegados a uma vida extra-oficial. Ao passo que exerciam o fascínio e

encantamento, aqueles eram também rejeitados socialmente por seus expectadores, além

de serem constantemente vigiados em seu modo de vida. O nomadismo de certa, forma,

perturbava e ia de encontro com os interesses daqueles que possuíam uma vida

sedentária, numa sociedade que à época, estava se firmando enquanto nação e que como

conseqüência, pregava a fixação de moradia, com intuito de se criar e de se firmar a

noção de identidade nacional com valores pré-estabelecidos.

As mulheres circenses, por participarem dessa vida pública e por exporem seu

corpo nas exibições, passaram a ser julgadas como desavergonhadas e sedutoras, iam

contra a moral vigente na época, apesar de na vida privada serem submetidas às mesmas

regras rígidas as quais as mulheres da sociedade sedentárias estavam submetidas.

Enquanto isso, os homens nômades eram vistos como desordeiros e encantadores de

moças inocentes.

Por parte do circense, este era um processo tenso, que no seu entendimento, estava instalado na relação do “nós, os da lona” com “eles, os de fora”, como se fossem dois momentos de “ação e reação”, em que apenas diferenças existissem [...] Esta tensão era permanentemente mediada pela tradição, levando o circense a elaborar o seu modo de trabalhar e o seu modo de constituir-se como família.” (SILVA, 1996, p. 1125-126 grifos da autora).

Assim, esse artista necessitava, ao mesmo tempo, criar estratégias para atrair

seus espectadores e se reafirmar enquanto uma família que realizava um trabalho digno

que, entretanto, lhes proporcionava um cotidiano diferente dos demais.

Mesmo com esses problemas relacionados à convivência com o seu público, às

precárias condições de estradas e escassas formas de entretenimento, em fins do século

XIX e princípio do século XX, o circo era a principal distração para a sociedade

sedentária.

Além disso, faz-se necessário realçar que o circo se consolidou no Brasil de

forma diferente a da Europa. Para tanto, teve que adaptar seu espetáculo à satisfação de

seu público, o qual passava por transformações históricas distintas das européias.

O circo brasileiro não se instalou em uma sociedade com valores aristocráticos consolidados. Para a história do circo, isso significa dizer que um dos seus maiores símbolos, o cavalo, não teve, em terras brasileiras, o sentido maior que ocupou no circo da Europa. Aqui, ao contrário, prevaleceu a pluralidade artística dos saltimbancos. Ou seja, o “militarismo” que Astley incorporou ao espetáculo circense não teve forma impositiva por aqui, muito embora ele esteja presente na organização do espetáculo. Contudo, sua presença não foi decididamente significativa. O Brasil adotou o espetáculo mesclado, com predomínio das habilidades artísticas e corporais dos artistas ambulantes. Apenas no século XX o circo brasileiro incorporou, por exemplo, os animais e as feras amestradas como elementos prioritários de seus espetáculos. (BOLOGNESI, 2003, p. 49).

Por conseguinte, muitos personagens assumiram singularidades em relação aos

demais espetáculos pelo mundo, em especial aos espetáculos da Europa. Como

exemplo, Torres (2005) cita o palhaço, que “desenvolveu características próprias, como

falar muito, ao contrário do palhaço europeu do séc. XIX, sobretudo, que era mais de

mímica” (p. 31).

Com o surgimento de outros meios de entretenimento e as constantes

transformações do mundo moderno, em meados do século XX, houve uma significável

redução do público que assistia às apresentações. O circo teve que se reinventar para

poder sobreviver.

Assim, a partir da década de 1910, junto ao picadeiro, onde eram realizadas as

apresentações das habilidades extraordinárias, instalou-se um palco para representar

dramas. Foi então, que o teatro ingressou no circo, sendo absorvido definitivamente pela

tradição circense, como um novo elemento pertencente a esse universo.

A introdução do teatro no circo no Brasil se deve ao palhaço Benjamin de

Oliveira (1870-1954), filho de escravos e que foi alforriado ao nascer, na cidade de

Patafufu, atual Pará de Minas (MG). Benjamin transformou-se em circense aos 12 anos,

quando fugiu com o Circo Soutero e é considerado o primeiro palhaço negro do Brasil.

O espetáculo passou a ser então, dividido em duas partes: na primeira, havia as

apresentações de números de variedades e na segunda parte, eram realizados os dramas.

Inicialmente, a aprendizagem dessas encenações se dava através da transmissão oral ou

reproduzindo o que se via nos teatros ou nos cinemas. Todavia, o teatro é o elemento

que estabelece definitivamente a escrita no circo/família, pois posteriormente, tornou-se

necessário que se soubesse ler e escrever para que ocorresse o espetáculo. Supõe-se que

este tenha sido o instrumento que possibilitou a ruptura inicial com a estrutura do

circo/família, já que muitas famílias enviaram suas crianças para estudar em escolas

fixas e a organização do circo/família pressupunha que o artista seria completo e tinha

as crianças como as responsáveis pela perpetuação do espetáculo. Contudo, esse não foi

o único motivo para essa transformação. Nem todos os circos tradicionais adotaram o

teatro como recurso para seus espetáculos, um exemplo bastante conhecido é aquele que

foi um dos maiores e mais famosos circos no Brasil, o Circo Garcia (1928-2002).

A transmissão dos saberes circenses que anteriormente era feita de geração a

geração diminui consideravelmente. Os artistas passaram a enviar seus filhos para

estudar em escolas fixas para que eles criassem os dramas escritos para serem depois

encenados e, principalmente, para que assumissem a parte administrativa do circo.

A opção de que as crianças não seguissem com os aprendizados circenses foi

tomada por parte dos artistas mais velhos do circo, pais que começavam a sofrer com o

declínio do interesse do público pelo produto de seu trabalho. Assim, a organização

familiar do circo começa a modificar-se para uma estrutura, na qual a transmissão do

saber não é mais de ordem coletiva, mas que possui organização e prática de empresa

capitalista em que seus artistas já não são aqueles organizados em parentesco, mas sim,

aqueles que são contratados por possuírem habilidades singulares. O circo assume em

sua organização uma divisão do trabalho, em que cada artista é unicamente responsável

e especializado para a execução de seu número, não havendo mais envolvimento com as

demais áreas que compunham o espetáculo circense.

A partir da década de 1960 o circo começa a passar por uma crise nas suas

bilheterias provocando mais alterações nesse meio de entretenimento. Isso, segundo

Magnani (1984), está relacionado não somente com as influências das transformações

econômicas ou com as modificações nos meios de comunicação em massa. É necessário

refletir que, além disso, o modo de pensar e de agir da classe trabalhadora passou a

interferir diretamente em seus hábitos de diversão e de lazer.

As adaptações às quais o circo teve que se submeter para continuar atraindo a

atenção de seu público foram diversas, e não estão relacionadas somente ao tipo de

espetáculo, mas aos elementos que os constituíam enquanto circo/família, os quais

determinavam a forma de “socialização/formação/aprendizagem”, além da organização

de trabalho. Devido a esse motivo, as atividades de ensino/aprendizagem das artes

circenses passaram também a ser assumidas por escolas. Dessa forma, a arte circense

deixou de ser somente familiar.

A partir de então, a transmissão do saber circense feita de forma oral e

tradicional tornou-se escassa, ainda que pequenas companhias permaneçam até hoje

com essa estrutura de organização dos espetáculos em torno de trupes familiares.

Magnani (1984) aponta ainda para a existência de três categorias elementares

do espetáculo mambembe no Brasil: o circo de atrações, restrito às trupes de grande

porte e que tem como base para suas exibições, a tradição circense; o circo-teatro, em

que se evidencia a apresentação de dramas e comédias, o último tipo apresentado é o

circo de variedades, o qual recorre tanto às exibições tradicionais quanto aos novos

elementos que são constantemente inseridos nesse universo mágico.

A partir da década de 1980, com o desenvolvimento das escolas de circo,

outras artes passaram a ser (re)inseridas aos ensinamentos circenses, tais quais: o teatro,

a música e a dança. Surgiu em São Paulo, a primeira escola de Circo, a Academia Piolin

de Artes Circenses, que apesar de não ter sido uma grandiosa experiência em termos

estruturais, simbolicamente serviu para impulsionar a criação de outras novas e

significativas escolas, entre elas, o Circo Voador, a Escola Picadeiro, a Escola Nacional

de Circo, a Escola Picolino, entre outras.

O resultado dessa mistura de linguagens atualmente é chamado de “novo

circo”, trupes que se destacam difundindo a magia do circo com a presença de

elementos outros meios de entretenimento, apesar do preconceito exercido por parte das

famílias circenses tradicionais. Preconceito este, que se deve às polêmicas causadas pela

utilização da expressão “novo circo”, que por sua vez, causa a impressão de que tudo o

que era anterior a ele, seria velho. Entretanto, o intuito verdadeiro desse novo circo ou

“circo contemporâneo”, não seria de apagar a constituição dos espetáculos do circo

tradicional e sim, recuperar parte daquilo que havia sido perdido e reformular as

apresentações de forma tal, que o circo voltasse a permear o imaginário do público e

que este voltasse a se interessar pela magia do espetáculo circense.

Surgiu então, em 1986, o primeiro grupo circense constituído por artistas não

tradicionais, que atravessou ao longo de 21 anos as intensas transformações surgidas

desde as primeiras escolas circenses no Brasil, a Intrépida Trupe. Em seguida, ainda na

década de 1980, surgiram também os Parlapatões e a Pia Fraus, todos carregavam

consigo o legado do circo tradicional adicionando uma nova linguagem.

Apesar de parte dos autores que versam sobre o circo afirmarem que não há

mais o preconceito das tradicionais famílias com relação aos que se inserem

gradativamente aos espetáculos, o mesmo ainda se torna evidente e forte. É possível que

esse julgamento desfavorável não seja somente pela rejeição às novidades inseridas por

esses novos grupos, mas pelo temor da fuga do público a quem se destinam os gracejos

e de perder ainda, os incentivos e as escassas políticas governamentais e não-

governamentais destinadas essa forma de entretenimento. Fica evidente, dessa forma,

que os interesses envolvidos são múltiplos.

O principal representante do circo contemporâneo mundialmente conhecido é o

canadense Cirque Du Soleil, atualmente apontado como um exemplo dereinvenção

constante do circo, mas que segue outra lógica que não a do entretenimento, a lógica do

mercado.

Retornando ao aspecto do circo no Brasil, percebe-se que atualmente há um

esforço intenso para que as artes circenses não sejam esquecidas. Além disso, o circo

tem assumido uma outra feição, a social. Este fato se tornou perceptível após parceria

firmada ainda na década de 1980, com o então ministro da Cultura da França, Jack

Lang. Esse intercâmbio resultou no Projeto Universidade do Circo, que envolve

diversos artistas e que tem como objetivo dar prosseguimento ao trabalho de muitas

escolas circenses que trabalham com crianças de rua, promovendo assim, a integração

social entre crianças e jovens em risco social.

Observa-se dessa forma, que o circo, tanto no Brasil como em outras partes do

planeta, retém grande importância tanto no espaço cultural, quanto no político e

no social, além de ser fortemente visado na esfera econômica. Deve-se

salientar então, que o lazer, necessita de ser analisado e compreendido não somente

como uma forma distração, de entretenimento ou mesmo de alienação, servindo para

preencher o tempo ocioso, porém deve ser interiorizado como um elemento essencial

para complementar na formação de seres humanos.

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