Post on 11-Nov-2018
Educar para o Cuidado e a Cultura da Paz: outras formas de estar no mundo
Maristela Barenco Corrêa de Mello
Cuidar das coisas implica em ter intimidade, senti-las dentro, acolhê-las, respeitá-las,
dar-lhes sossego e repouso. (...) A relação não é de domínio sobre,
mas de con-vivência. Não é pura intervenção,
mas inter-ação e comunhão (Leonardo Boff, em Saber Cuidar).
O tema “outras formas de estar no
mundo” é imprescindível por duas evidências
que ele engendra: que há uma
pluralidade de formas e que há, por isso,
saídas, alternativas e esperanças.
A perspectiva da Educação supõe
sempre uma obstinação no
sentido da transformação, da
invenção de formas e caminhos
Desafio Contemporâneo da
Educação
Não reduzir o mundo, a vida e o conhecimento ao que existe e ao
que é hegemônico
Para interpretar o contexto
precisamos buscar novos operadores
cognitivos , que são como guias imaginários que nos apoiam na
travessia.
Disponho-me a fazer uma análise, entre muitas outras. Toda análise é uma
jornada interpretativa que se
tece a partir do lugar ideológico em
que se ocupa.
Trago ainda para a travessia o pensamento complexo de Edgard
Morin; a leitura poética do mundo de Paulo
Freire; a alfabetização ecológica de Fritjof
Capra; a perspectiva do Cuidado de Leonardo Boff, a perspectiva da cooperação e do amor de Humberto Maturana
Considero a arte, a poesia e a literatura operativos cognitivos importantes
porque interligam a
realidade e as dimensões do
humano
Manoel por Manoel
Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui menino peralta.Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na minha infância.Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto.
Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto. Cresci brincando no chão, entre formigas.De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina.
É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor.Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos.Era o menino e o sol.O menino e o rio. Era o menino e as árvores
BARROS, Manoel de. M emórias I nventadas. A Terceira I nfância. São Paulo: Editora Planeta do Brasil Ltda., 2008.
Necessitamos voltar a reaprender a ler o mundo perceptivo, que precede à
leitura da palavra, como nos ensinava Paulo Freire:
“Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas
como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e
aventuras maiores.
A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço – o sítio das avencas de minha
mãe -, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele engatinhei,
balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso
mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele
contexto – em cuja percepção me experimentava e, quanto mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber – se encarnavam numa série de coisas,
de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia apreendendo no meu trato com eles, nas minhas
relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais.
Os “textos’, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no canto
dos pássaros – o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do
sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões,
relâmpagos; as águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios,
riachos.
Os “textos”, as “palavras” as “letras” daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos
seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores – das rosas, dos jasmins -, no corpo das árvores, na casca dos frutos. Na tonalidade diferente de cores de um
mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada
inchada: o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais
além de madura.
A relação entre estas cores, o desenvolvimento do fruto, a sua resistência à nossa manipulação e o seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação
da ação de amolegar”.
Somos analfabetos relacionais!
Nossa lógica é analítica,
racionalista, disjuntiva,
fragmentada, antropocêntrica, não consegue conviver com a alteridade
Há três matrizes que formam as premissas de nossa forma
hegemônica de estar no mundoHorizonte SociopolíticoLógica Colonialista – Modelo
Civilizacional Planetário: foi responsável por exterminar as comunidades originárias (de 6 milhões existem aproximadamente 200 mil), por trazer aproximadamente 10
milhões de negros para serem escravos, e se consolidou sobre o trabalho de mulheres e
crianças. Esta lógica não respeita as alteridades
Horizonte EconômicoLógica Capitalista Globalizada:
Não foi capaz de gerar riqueza sem gerar desigualdade e exclusão, violência estrutural e destruição
ambiental
Horizonte Cultural e Epistemológico
Lógica Moderna e Cartesiana: instaurou a disjunção como método analítico, responsável pela divisão entre sujeito-objeto, observador –observação, corpo-alma, razão-emoção, bem-mal, luz-sombra,
natureza e cultura
Da Idade Média para a Renascença, o semelhante (forma e conteúdo do
conhecimento), que fora durante muito tempo categoria fundamental do saber e
que caracterizava um mundo interconexo, será dissociado numa análise feita em termos de identidade e de diferença
(FOUCAULT, 2000, p.73).
O que chamamos hoje de pensamento hegemônico ocidental é apenas uma vertente
desta racionalidade, iniciada em Sócrates, Platão e depois Aristóteles, que não era única e nem a
mais complexa, eleita na Renascença, para inventar um tipo de pensamento abstrato, descontextualizado, que afasta o sujeito do mundo e que se contrapunha ao pensamento medieval, conexo e interconexo, baseado nas
chamadas similitudes (FOUCAULT, 2000), que era opressivo, por um lado, mas guardava
relação entre o que existia.