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ECOS DE ESPAOS: uma abordagem fenomenolgica da
dramaturgia de Joaquim Cardozo
ECHOES OF SPACES: a phenomenological approach to the
dramaturgy of Joaquim Cardozo
Ana Carolina Paiva
UNIRIO
Resumo
Este artigo aborda os espaos nas peas do autor pernambucano Joaquim Cardozo sob um ponto de vista fenomenolgico, que transcende a noo de espao fsico e se prope a investigar o carter e o esprito destes espaos. Coube aplicar investigao o antigo conceito de genius loci, haja visto que a percepo de espao vai muito alm de sua materialidade. Em sntese, entendemos que no grafismo das palavras inscritas no texto dramatrgico deste autor encontram-se pulsantes e vivos os espaos das praas, das ruas e das feiras.
Palavras-chave | espao | genius loci | fenomenologia | oralidade | escrita teatral.
Abstract
This article approaches the spaces in the plays of Pernambuco author Joaquim Cardozo under a phenomenological point of view that transcends the notion of physical space and aims to investigate the character and spirit of these spaces. The ancient concept of genius loci was used in the investigation considering that the perception of space goes far beyond its materiality. In summary, we believe that the spaces of squares, streets and fairs are beating and alive in the graphic representation of the words forming the dramaturgic text of this author.
Keywords | space | genius loci | phenomenology | orality | play writing.
ISSN 2176-7017
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Volume 01- Fascculo 01 janeiro-junho/2009
ECOS DE ESPAOS: uma abordagem fenomenolgica da
dramaturgia de Joaquim Cardozo
Ana Carolina Paiva
UNIRIO
Na leitura e anlise dos dilogos criados pelo autor pernambucano Joaquim Cardozo
verifica-se que a ideia de espao cnico relaciona-se de modo patente com o espao circular
da praa, ambiente prprio do espetculo popular, onde a palavra, tornada voz, se
movimenta pelos mais variados espaos fsicos e alegricos que so descritos nas seis peas
do autor.
Neste sentido, somos levados a discutir a ideia de espao partindo do desenvolvimento
do discurso dramatrgico das peas. Assim, recolhemos os trs conceitos norteadores de
espao teatral descritos por Patrice Pavis:
Espao Cnico: Espao real do palco onde evoluem os atores, quer eles se
restrinjam ao espao propriamente dito da rea cnica, quer evoluam no meio do
pblico.;
Espao Dramtico: Espao dramatrgico do qual o texto fala, espao
abstrato e que o leitor ou o espectador deve construir pela imaginao;
Espao Textual: Espao considerado em sua materialidade grfica, fnica ou
retrica. (PAVIS, 1999: p. 132-133)
Verificamos que h nas peas uma ntima interligao entre os trs conceitos descritos
acima: a palavra enunciada aglutina em si o espao cnico, o espao dramtico e o espao
textual, j que nos prprios dilogos se instalam o ritmo, a fluidez, o improviso e o
movimento itinerante encontrados nos espaos pblicos das praas, das ruas e das feiras e
atravs destes espaos, que emergem dos dilogos, que so descritos tanto os
acontecimentos do presente quanto aqueles oriundos de outros tempos e de outros lugares
que se presentificam no anncio do texto.
A raiz deste pensamento se traduz na noo de que a palavra dialogada pelos
personagens nas seis peas de Cardozo capaz de trazer superfcie da escrita o ambiente
destes espaos pblicos. Os dilogos so pontuados pelas mais variadas convenes
estabelecidas no espao social pblico como forma de espetacularizao, ou seja, o texto
evoca as cenas realizadas nos espaos pblicos das cidades. Dentre tais convenes
destacamos: a linguagem de cordel, o coro de Cantadeiras com a interveno de orquestra
musical, a concepo dos personagens com base em tipos caractersticos que se fizeram
conhecer ao longo dos sculos pelo pblico, a movimentao especfica com correrias,
bailados, cortejos e a invaso do espao da recepo.
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Entendemos que esta matria-prima espetacular, formada por significaes simblicas
ancestrais e universais, foi apropriada e transformada nas representaes pblicas - teatrais
ou parateatrais - dentro do contexto nacional e sua essncia, que alm de simbolismos
ainda composta de convenes estticas, se revela nos textos teatrais do autor brasileiro.
Em verdade, o autor cria camadas em seus dilogos onde possvel para o leitor-
espectador sentir a pulso fsica dos personagens, seus gestos, sua movimentao pelos
espaos, sua ao no mundo, concentrando o foco das cenas no anncio dos dilogos,
fazendo com que as imagens do significante se projetem na leitura. Ainda que silenciosa, a
leitura desperta sensaes de espacialidade e sonoridade somente encontradas quando a
palavra se descola da perspectiva grfica e adquire o estatuto de voz, assim como na
literatura oral, que tem sua origem no suporte da escrita grfica, contudo j construda
com fortes influncias do movimento espacial dos espaos pblicos.
A palavra ganha destaque nos textos teatrais de Cardozo na medida em que as aes
propostas nas rubricas confluem para o momento do seu anncio, que se distende em
dilogos grandiosos que parecem se perpertuar no momento de sua enunciao. O
contedo do discurso debatido atravs de uma palavra que construda para o espao da
cena, no para o espao do texto. Contudo, no prprio texto que so percebidas camadas
extra-literrias, de onde se deduz que no grafismo das palavras construdas no teatro deste
autor, encontra-se ainda vivo e pulsante o alvoroo da praa pblica.
O processo da escrita teatral de Cardozo apresenta-se como presentificao das
reminiscncias de alguns espaos pblicos das cidades por intermdio da escrita. Num certo
sentido, seus textos so tecidos de maneira que os dilogos conduzam a movimentos como
se estivessem nos limites e em direo aos espaos pblicos. Alm das convenes que j
foram destacadas, o autor trabalha primordialmente com duas convenes de espao
pertencentes esfera pblica: o movimento circular e o movimento de cortejo ou procisso.
A forte marca de oralidade seguramente o elemento que favorece a projeo destes
espaos pblicos para o interior dos textos do autor pernambucano, fomentando o carter
adormecido desses espaos de uso comunitrio. O eco das vozes dos personagens criados
pelo autor recupera algumas formas de utilizao dos espaos pblicos citados, revelando
essencialmente a relao desses espaos com os modos de espetacularizao pblica. Em
face disto, o pesquisador Ricardo Brgger afirma que a arte como entidade separada da
realidade uma criao recente e o teatro de incio o das ruas antes de se constituir
numa construo especfica. (BRGGER, 2008: p.65)
No que toca prtica mental de pensar a transferncia de alguns espaos pblicos
para dentro dos dilogos teatrais de Cardozo nos deparamos com as teorias relativas
fenomenologia do lugar. O fenomenlogo Christian Norberg-Schulz introduz nos seus
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debates sobre arquitetura a antiga noo romana do genius loci, que se resume no
argumento de que cada lugar possui um esprito prprio que guarda relaes com o
sagrado. O autor destaca que na Roma Antiga acreditava-se que todo o ser independente
possua um esprito guardio - conhecido como genius - que dava vida s pessoas e aos
lugares, acompanhando-os do nascimento morte e determinando ainda seu carter e
essncia. Norberg-Schulz acrescenta que os antigos prezavam a prtica de entrar em
acordo com o genius da localidade onde viviam, pois a sua sobrevivncia dependia de uma
boa relao com o lugar, no sentido fsico e psquico. (NORBERG-SCHULZ. In: NESBITT,
(org), 2006: p. 454).
Isto posto, destacamos ainda nas teorizaes de Norberg-Schulz que h uma
ideia de carter associada ideia de espao: Espao indica a organizao
tridimensional dos elementos que formam um lugar. Carter denota a atmosfera
geral que a propriedade mais abrangente de um lugar (NORBERG-SCHULZ,
2006: p. 449)
Neste sentido, dentro da noo ampla de espao encontra-se intrnseca a sua
organizao tridimensional e a sua atmosfera. A atmosfera de um lugar, que de nenhum
modo marcada pela concretude deste lugar, mas principalmente por sua essncia, pode se
perpetuar por um processo mnemnico e vir a habitar as mentalidades, de onde se funda o
pensamento de que o lugar pblico no se define apenas como um lugar material e esttico,
mesmo porque a noo de deslocamento j se encontra na raiz do esprito do lugar. Dentro
do espao urbano este esprito capaz de se deslocar em determinadas ocasies, gerando
uma magia especfica que se apropria de certas reas da cidade, segundo estudo da
pesquisadora Evelyn Furquim Werneck Lima. (LIMA, 2000: p. 21).
Deste modo, o prprio espao escolhido para abrigar uma construo arquitetnica
no reconhecido apenas como ambiente urbano ou espao geogrfico fixo e
despersonalizado, mas como um local habitado por uma entidade que lhe d personalidade
e significao. Desse delineamento inicial, emerge a possibilidade de propor o
devassamento da noo de espao e pens-la de maneira mais abrangente, num processo
de observao atento de suas nuances.
A ideia de pensar a migrao dos espaos e das cenas pblicas para o ambiente do
texto incide mais uma vez sobre as pesquisas de Brgger, que revelam importantes
fundamentos metodolgicos neste sentido: A noo da cidade como signo e texto estava
presente no discurso da arquitetura e urbanismo dos anos 1970 e 1980. Foi o momento de
maior ligao da arquitetura com a semiologia, a retrica e os cdigos que margeavam o
debate sobre a cidade ps-moderna. (BRGGER, 2008: p.55)
Neste ponto, entendemos que possvel captar a atmosfera de um lugar pblico, o
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seu carter essencial, atravs da investigao sobre o suporte do texto, cuja escrita
especfica capaz de revelar as mais diversas significaes e funes sociais dos lugares
pblicos e suas manifestaes espetaculares: folguedos, celebraes, rituais, que revelam
sua pulso fsica no discurso lingustico.
No que diz respeito ao universo brasileiro, as apresentaes urbanas de rua
especificamente teatrais ou apenas possuidoras de um carter espetacular - so
normalmente realizadas em pequenas cidades e meios rurais. Atualmente, pelo menos em
datas especficas, estas pequenas cidades funcionam como verdadeiros palcos ao ar livre,
cujas apresentaes de rua acabam por dar a estes lugares um certo carter espetacular.
Destacamos dois trechos da pea Marechal, Boi de Carro de Joaquim Cardozo, onde os
personagens se encontram na estrada que leva cidade de Muribeca esto ambientados
portanto num espao intermedirio, num espao-devir entre a pequena cidade e a cidade
grande.
Por meio das palavras dos personagens da pea so evocados os aspectos scio-
culturais especficos deste lugar, que de antiga sesmaria ocupada por usineiros, atualmente
possui construes miserveis sob mangues e conhecida como o lugar do aterro sanitrio
de Recife, o lixo de Muribeca, cujo material decomposto jogado no meio ambiente.
Muribeca uma cidade real, atual distrito do municpio de Jaboato dos Guararapes em
Pernambuco.
No primeiro trecho, Cardozo discute as transformaes passadas pela cidade por
causa dos interesses de grupos econmicos que exploraram a pobreza, o misticismo e a
ignorncia do povo, trazendo uma falsa ideia de progresso. A esttica da pea se baseia no
cortejo do Bumba-meu-boi.
O som das rodas e o canto se perdem na distncia. Trs homens iniciam uma
conversa
1 Homem
Os macobebas, quem sabe
De onde vieram tantos seres nunca vistos
No se sabe bem quem eram
De onde surgiram assim
Com seus costumes estranhos
Pois cangaceiros no eram
Nem tampouco eram bandidos
Ou salteadores de estrada
2 Homem
Bem armados que estavam
De punhal e mosqueto
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E levaram Muribeca
A uma grande danao
Suponho que eram demnios
Pelos seus crimes de ento:
Pelas misrias que aqui cometeram
3 Homem
Logo quando na cidade se instalaram
Depois de tantas pessoas
Terem ferido ou matado
nossa matriz rumaram
nossa grande matriz
E dela a santa tiraram:
Nossa Senhora das Dores
E em seu lugar colocaram
Uma mula sem cabea
Por isso penso que so
Gente do inferno enviada
Por satans. (CARDOZO, 1975: pp. 161-162)
No segundo trecho que destacamos, alguns aspectos culturais como costumes, modo
de falar, hbitos e comidas tpicas da cidade se presentificam na cena das Cantadeiras.
Cantadeiras
Vendedor de mel de engenho
Vem voltando, vem com cinco
Canequinhos pendurados
Nos grandes bules de zinco
Vendendo vem mel de engenho
Que se come com farinha
Que se bebe dissolvido
Nas guas da fontainha
Ao seu lado caminhando
Tambm vem o farinheiro
Que fugiu de Muribeca
Sem recurso, sem dinheiro
farinha de mandioca
Da mais branca, da mais limpa
Que misturada com mel
D gosto mesmo supimpa
E os dois vm juntos, bem juntos
E todo o cuidado tm
Pois se no h precauo
No h mel para ningum. (CARDOZO, 1975: pp. 178-179)
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Para fomentar esta reflexo sobre os modos de espetacularizao pblica revelados no
texto de Cardozo, consideramos as principais noes sobre o espao da praa, smbolo do
carter pblico e ambiente ideal de espetculos e manifestaes, que servem de modelo
para a escrita dramatrgica que analisamos.
Segundo observao de Michael Darin: A praa uma forma urbana prestigiada na
histria morfolgica das cidades. Cada vez que a narrativa sobre a cidade atinge um clmax,
o narrador detm-se sobre o estudo de alguma praa, segundo sua prpria preferncia.
(DARIN. apud: LIMA, 2000: p. 22).
Deslindando o conceito de Darin, Werneck Lima acrescenta que a praa uma forma
urbana que ultrapassa o mbito morfolgico. Ainda que em seu texto fique claro a
importncia da praa como uma forma urbana tridimensional e sobre sua condio de
objeto arquitetnico, a autora acrescenta que pelo fato dos fenmenos fsicos no agirem
sozinhos torna-se necessrio conceber uma relao constantemente renovada entre a
morfologia da praa, a morfologia social e as representaes.
Em linhas gerais Werneck Lima trabalha com trs categorias de espao: espao
urbano, espao arquitetural e espao social de acordo com alguns argumentos defendidos
por Michel de Certeau que permitem discutir as representaes que as prticas imprimem
ao espao sob mltiplas interpretaes.(LIMA, 2000: p. 22).
A reside o princpio do fio condutor de nosso exerccio mental: o espao como um
lugar praticado e no estritamente um espao esttico concebido sob o solo geogrfico. A
autora segue identificando que as transformaes materiais do espao pblico se
desenvolvem de acordo com as transformaes socioculturais e que tanto nas mutaes
espontneas quanto nas ditadas pelo poder, existe sempre um contedo simblico
imbricado na formao dos espaos urbanos.
Voltando ao estudo da pesquisadora Werneck Lima, esta faz um levantamento
histrico da evoluo do espao de algumas praas pblicas no Rio de Janeiro de acordo
com a evoluo da sociedade e detecta que aps a dcada de 1950 houve uma reviravolta,
devida uma nova cultura capitalista urbana que criou signos de uma vida pblica muito
individualizada e vazia, o que resultou na morte destes espaos, que acabaram por perder a
sua significao. Assim, constata-se que algumas praas e ruas, que eram centros de
vivncia e integrao, transformaram-se em zonas de passagem. (LIMA, 2000: p. 309).
Por outro lado, a autora esclarece ao longo de seu estudo que o esprito do lugar
pblico presente nas praas focalizadas em sua pesquisa no se dissipa completamente
diante da ausente efemeridade do evento pblico que era, digamos, o que dava vida
queles espaos pblicos.
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Entendemos, pois, que a essncia simblica da praa e igualmente das ruas e feiras
permanece at os dias atuais, mesmo que atualmente estes espaos estejam relegados a
lugares de passagem. Deste modo, ainda apresentam resqucios de um genius loci da
espetacularidade pblica que costumava se revelar por meio dos gestos e das palavras de
uma variedade de personagens pblicos que passavam por estes lugares, se apresentavam
para uma plateia e cumpriam um ritual de espetacularizao dentro destes espaos que
estava completamente fora das regras e das convenes do espao teatral oficial. No
obstante, torna-se necessrio lembrar que esta relao entre o espao pblico e a
espetacularizao no se extinguiu completamente, a exemplo das diversas celebraes e
espetculos populares existentes em todo o Brasil.
No sentido de pensar a continuidade destes espaos simblicos na
contemporaneidade, mesmo que tenham sido de certa forma descaracterizados com o
advento da cultura capitalista urbana, buscou-se refletir sobre at que ponto os valores
culturais predominantes podem influenciar a fora simblica das tradies populares. Assim,
encontramos em um captulo de Da Dispora, do pesquisador dos estudos culturais Stuart
Hall uma reflexo terica que nos convida a aprofundar esta questo. Hall reflete, valendo-
se dos conceitos contidos no texto de dois estudiosos contemporneos: Peter Stallybras e
Allon White, sobre como as foras carnavalescas foram aos poucos suprimidas pelas elites
burguesas e acabaram ressurgindo de forma deslocada e distorcida como objetos de
averso fbica e desejo reprimido tanto na literatura quanto na psicopatologia. (HALL,
2003: p.211).
A noo de Stallybras e White de transgresso se funda nas teorias de Bakhtin, que
considera a existncia do popular como um domnio e uma esttica totalmente alternativos,
capazes de subverter os modelos de decncia e os ideais clssicos e que o sentido de
transbordamento da energia libidinal associado ao momento do carnaval o transforma numa
metfora poderosa de transformao social e simblica. (HALL, 2003: p. 225).
Hall sintetiza que o carnaval de Bakhtin possui a imagem da cosmologia medieval do
mundo, que tanto ordenada em pice e base, como em alto e baixo ao longo de um
carter vertical que projeta tudo para cima e para fora do movimento do tempo. Revela
ainda que este carter vertical confrontado pelo impulso para baixo do popular que
apresenta um outro tempo e um outro espao e relativiza tudo aquilo que se representava a
si mesmo como absoluto e completo. (HALL, 2003: p. 233).
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Fig. 1 e 1 Xilogravuras de Poty para a edio da pea O Coronel de Macambira de 1963.
Empregamos novamente em nosso estudo as teorias de Bakhtin, desta vez atravs da
interveno de mais trs pensadores, para entender melhor a capacidade de transmutao
do espao simblico pblico. A discusso sobre a permanncia de alguns espaos pblicos,
ainda que no plano do simblico, como espaos de trangresso e resistncia histrica d
sustentculo nossa teorizao sobre a migrao destes espaos e todo o seu contedo
esttico e ideolgico para os dilogos do autor Joaquim Cardozo, que trabalha contedos
ideolgicos contemporneos dentro do suporte de uma palavra que integra os espaos
simblicos relacionados precipuamente ao universo cosmolgico medieval, cujos reflexos
esto nas representaes espetaculares pblicas no Brasil.
O teatro sempre esteve intimamente ligado aos avanos e recuos da sociedade e a
relao entre a espetacularizao nos espaos pblicos e a sociedade fundamental e
constante. De onde se deduz que o teatro oferece subsdios para alimentar a sociedade e
vice-versa. Acrescentamos a isso a discusso do conceito de espao para Gropius que revela
as teorizaes sobre espao, teatro e sociedade da pesquisadora Werneck Lima:
O espao para Gropius no nada em si: uma extenso ilimitada, sem
definio. Comea a existir, a delimitar-se, a tomar forma quando vem considerado
como dimenso virtual da ao ordinria, projetada, formativa de um grupo social.
E por social no se entende a sociedade estratificada, mas poucas ou muitas
pessoas que vivem em conjunto uma experincia formativa, seja a que trate dos
membros de uma famlia, dos alunos de uma escola, dos operrios de uma fbrica,
dos espectadores de um teatro ou dos habitantes de um bairro. (LIMA, 1999: p.
59).
Ao observar o pensamento de Gropius a pesquisadora sugere que o espao teatral
encontra-se substancialmente comprometido com as transformaes da sociedade, razo
pela qual ele ultrapassa a dimenso material para alcanar uma dimenso ideolgica,
podendo se refletir na tessitura de um discurso social que capaz de projetar uma
trajetria espacial e temporal.
No intuito de enriquecer este debate, recolhemos algumas observaes do filsofo-
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fenomenlogo Maurice Merleau-Ponty. Seus estudos introduzem a ideia do espao concebido
a partir da experincia humana e suas possibilidades de conhecimentos referentes ao
espao, se propondo a investigar a experincia originria do espao para aqum da
distino entre forma e contedo. O filsofo explica a necessidade de um espao que no
escorregue nas aparncias, ou melhor, que se ancore nelas e se faa solidrio a elas.
Porm, no deve ser dado com as aparncias maneira realista, de modo que assim possa
sobreviver subverso destas aparncias. (MERLEAU-PONTY, 2006: p. 334).
O princpio proposto por Merleau-Ponty denota que o espao no nem um objeto,
nem um ato de ligao do sujeito, pois est suposto em toda a observao e lhe essencial
e assim que magicamente ele pode dar paisagem as suas determinaes espaciais,
sem nunca aparecer ele mesmo. (MERLEAU-PONTY, 2006: p. 342-343). Deste modo, o
espao e a percepo indicam no interior do sujeito o fato de seu nascimento e de sua
perptua contribuio corprea, numa comunicao com o mundo mais velha que o
pensamento. (MERLEAU-PONTY, 2006: p. 342).
O filsofo explica que a percepo d ao sujeito um campo amplo que se estende
atravs de duas dimenses: a dimenso aqui-ali e a dimenso passado-presente-futuro.
(MERLEAU-PONTY, 2006: p. 357). Para ilustrar as potencialidades inerentes percepo de
espao, Merleau-Ponty contrape dois exemplos: a noo de espao para o homem
primitivo e a noo de espao para o homem esquizofrnico, que se revelam como
exemplos concretos de espao virtual criado pelo homem em determinadas condies por
ele vividas. Ainda segundo o filsofo os primitivos vivem no mito e no ultrapassam esse
espao existencial, como se houvesse uma conscincia no homem primitivo gil e livre em
relao a todos os contedos que tem a capacidade de os desdobrar no espao, por isso
que para eles os sonhos contam tanto quanto as percepes. [...] H um espao mtico em
que as direes e as posies so determinadas pela residncia de grandes entidades
afetivas. (MERLEAU-PONTY, 2006: p. 383).
Por outro lado, no distrbio da esquizofrenia h um segundo espao que se dissocia do
mundo objetivo e se transforma num projeto perptuo do esquizofrnico. O esquizofrnico
no vive mais no mundo comum, mas em um mundo privado, ele no vai mais at o espao
geogrfico: ele permanece no espao da paisagem. No entendimento do filsofo, este
espao da paisagem recortado pelo esquizofrnico do mundo comum e se torna
consideravelmente empobrecido. (MERLEAU-PONTY, 2006: p. 385-386).
Toda esta reflexo crtica nos permite entender que h um constante intercmbio
entre os espaos fsicos e os espaos simblicos e que os espaos especficos que
destacamos, como a praa, as ruas e as feiras, habitam numa matria esttico-espetacular
que se perpetua no pensamento atvico, na relao profunda do homem com suas
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tradies, inscrevendo-se na histria contempornea. Tal proposio leva-nos a confirmar a
hiptese de que so reveladas nos textos de Joaquim Cardozo formas espaciais,
provenientes de espaos geogrficos dos tempos presentes e dos tempos passados, que se
substanciam atravs da expresso verbal refletida nos dilogos criados pelo autor. Dito isto,
a pesquisa se vale novamente das reflexes de Bakhtin no que se refere incorporao,
dentro dos mitos, dos recantos geogrficos:
Nesse sentido, era muito caracterstico o uso dos mitos locais em solo antigo
por Pndaro. Atravs de um entrelaamento complexo e hbil dos mitos locais com
os mitos universais do helenismo, ele incorporou cada recanto da Grcia, com a
manuteno de toda a sua riqueza local, unidade do mundo grego. Cada
nascente, colina, mata ou meandro da faixa litornea tinha a sua lenda, a sua
memria, o seu acontecimento, o seu heri. (BAKHTIN, 1992: p. 257).
Todas estas perspectivas e discusses tericas sobre a compreenso do espao para
alm de sua compleio geogrfica ou material nos levam a um entendimento mais
abrangente da prtica de pensar o renascimento de determinados espaos pblicos no
espao da palavra. As afirmaes abordadas no decorrer desta anlise se vinculam ideia
da existncia de um espao retrico das palavras, capaz de envolver tanto a linguagem
falada quanto a linguagem escrita. Este tal espao retrico das palavras as torna repletas de
mobilidade, como um espao tropolgico na acepo de Michel Foucault, onde podem
encontrar o seu local de origem, deslocar-se, voltar-se sobre si mesmas e desenvolver
lentamente toda uma curva. (FOUCAULT, 1999: p. 162)
A observao em torno da linguagem nos revela, partindo do aprofundamento terico
de Foucault, que dentre todos os signos, a linguagem possui a propriedade de se estender
em sonoridades sucessivas opondo-se simultaneidade da representao, mesmo que se
apresente como sonoridade latente atravs da escrita. (FOUCAULT, 1999: p. 162).
Num certo sentido, a linguagem sempre vem depois da representao e acrescenta
algo novo atravs da extenso sonora, algo que lhe inerente, enriquecendo desta forma o
objeto de representao que lhe apresentado.
Nossa reflexo sobre a possibilidade dos espaos pblicos serem evocados pela
linguagem - oral ou escrita - encontra nas observaes de Foucault uma lgica interna que
permite associar as teorias sobre espao com as teorias sobre a linguagem.
O espao torna-se objeto de representao da linguagem e se dinamiza na medida em
que se faz presente pela linguagem num processo onde a recepo, no caso a recepo de
um texto de teatro que pode ser lido ou encenado, tambm co-autora neste processo.
No que diz respeito a este aspecto do processo criativo de Cardozo, consideramos
vlido para as nossas reflexes aplicar aqui o pensamento do autor como engenheiro
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calculista, j que buscamos elementos que devam ser acrescidos ideia norteadora de que
existe numa escrita teatral a evocao de espaos especficos.
Cardozo entendia a arquitetura como uma arte de criar lugares que favorecessem a
existncia humana e se opunha definitivamente ideia da arquitetura apenas como a
projeo de espaos funcionais, apesar de ser esta uma das tnicas do Movimento Moderno
e de Cardozo ser um Modernista. Em trechos transcritos numa aula aberta dos cursos de
1939 da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco, faz observaes sobre a sua
experincia na DAU (Diretoria de Arquitetura e Urbanismo, chefiada pelo arquiteto Luiz
Nunes, de 1934 a 1937 no Recife) e revela alguns aspectos de sua ampla viso sobre
arquitetura e espao de onde se podem extrair alguns reflexos desse pensamento terico no
campo da forma arquitetnica para o campo da forma potica, levando sempre em conta
que estamos lidando com as relaes do espao com a linguagem.
Referindo-se relevncia da harmonizao dos espaos das paisagens com as
construes arquitetnicas, a primeira observao que o autor destaca a seguinte:
Poderei dizer, sem exagero, que eles (os arquitetos da DAU) chegaram a aliar
instintivamente a conscincia perfeita do meio fsico ao esprito tradicional,
conseguindo ao mesmo tempo, os melhores efeitos plsticos do concreto
armado.[...] E se procurou integrar os edifcios na paisagem, esta magnfica
paisagem do nordeste brasileiro com cercas nativas de mulungus e dendezeiros,
com mangueira, jaqueiras e cajueiros. (CARDOZO, 1997: p. 13).
Em sua teorizao sobre a experincia vivenciada com a equipe da DAU, Cardozo faz
referncia importncia de aliar o meio fsico ao meio tradicional, isto ocorre na sua escrita
teatral onde as referncias tradio dos espetculos pblicos presentificam e valorizam os
espaos pblicos referidos dentro das peas.
O pensamento de Cardozo promove um intercmbio entre as linguagens artsticas por
onde perpassa e entende profundamente as potencialidades de nossas tradies e de como
elas se inserem de maneira definitiva na histria da humanidade. O autor trabalha com suas
significaes de modo abrangente, sem impor limites s relaes entre as linguagens com
que trabalha.
Em outro texto, escrito em 1965, o autor afirma sua crena numa arquitetura capaz
de concretizar o esprito e a viso de mundo de uma poca, destacando a transcendente
condio das formas arquitetnicas e dos espaos onde so construdos. Fica clara a
observao do autor de que essas formas so reveladoras da essncia e dos feitos humanos
e que so capazes de evocar e presentificar o esprito e a ideologia que ficaram perdidos no
tempo. Cardozo afirma que:
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Na arquitetura esto inscritas as vontades mais puras e duradouras do
corao dos homens. A histria da cultura e da sociedade repousa em grande parte
nas formas arquitetnicas, pois a vontade de um povo se manifesta na forma dos
templos de seus deuses, dos palcios de seus reis. Quando uma civilizao
desaparece, no imenso decorrer dos tempos, somente nas pedras dos edifcios
desmantelados que se vo encontrar os marcos dessas culturas e, nas
diferenciaes dessas pedras, na maneira de ergu-las ou agrup-las, que esto
as diferenas das raas, dos povos e das culturas. por isso que podemos dizer
que a primeira histria, a primeira literatura, foram escritas na pedra, nos muros e
nas colunas, nas arquitraves e nas abbadas. Desde a Antiguidade os muros das
construes foram os primeiros rgos de informao, resumos da vida social dos
povos, o primeiro papel onde se inscreveram as pginas da histria, o papel onde
ainda se inscrevem as mensagens para o futuro. (CARDOZO, 1997: p. 16).
Deduzimos que o pensamento do autor como calculista acrescente observaes
importantes a este aspecto especfico presente em sua dramaturgia, pois no h como
pensar a concepo de espaos pblicos virtuais que se dinamizam na linguagem articulada
sem considerar as suas reflexes sobre a arte da arquitetura, onde o autor preconiza dentro
desta arte os valores da tradio e a atmosfera presente nas construes arquitetnicas,
que est longe de uma concepo estritamente tcnica e se ergue em comunho com o
esprito presente na paisagem e com as ideologias, mitologias e hbitos que so inscritos
pela humanidade nestas construes.
Cardozo apropiou-se das possibilidades formais encontradas nas manifestaes
espetaculares populares e recriou em suas peas um modo de dilogo que na esfera popular
adquiriu a capacidade de se revelar para o pblico fora do suporte grfico ou da fixidez da
escrita, tornando-se monumento atravs de um outro suporte: o ator. A palavra em seu
teatro , antes de mais, voz espetacular, reflexo de uma voz praticamente independente da
escrita que fora monumentalizada atravs do corpo e da voz dos performers das ruas e das
praas na Idade Mdia e no Renascimento e que apresenta reflexos nos dias atuais.
Tomemos como exemplo a figura do curandeiro, personagem que povoa os tempos
desde, pelo menos, a Idade Mdia. Em lugares especficos l estava este performer
vendedor de drogas medicinais, o nosso Doutor do bumba, fazendo uso de uma linguagem
espetacular para vender suas ervas e derivados. Sua ao nas trs peas de Cardozo, O
Coronel de Macambira, Marechal, Boi-de-Carro e De uma Noite de Festa, surge de sua
prpria apresentao e falao, na medida em que o pblico j subentende quais
desdobramentos de ao e de deslocamento espacial a sua presena na cena ir gerar. Por
conhecer intimamente este personagem no do interesse dos espectadores o seu percurso
antes de sua entrada em cena e depois de sua sada de cena, importando efetivamente o
poder de ao revelado no momento do anncio de suas palavras, quando o personagem
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faz uso de todos os recursos corporais e vocais possveis para descrever a sua
propaganda. Aqui conclui-se que se instaura uma instncia metateatral onde pode-se
conviver paralelamente neste ambiente ambguo que o espao pblico momentos de
teatro e de realidade dentro da representao teatral.
Fig. 3 O Coronel de Macambira. Direo: Leandro Mariz. Foto de Tiago Higa (2009)
Ocupar-nos-emos de novo trecho de Marechal, Boi-de-Carro onde o curandeiro ou
ervanrio identificado como Rezador e numa fala cheia de ironia distente o poder gerado
por suas palavras que adquirem os mesmos contornos formais identificados no curandeiro
pblico. Este personagem no precisa de apresentao para a audincia e sua fala j
encontra-se atrelada a signos de ao e de espacialidade j estabelecidos tradicionalmente.
Neste sentido, possvel identificar a partir da fala os outros signos da cena j que esta
sintetiza o circuito de ao desenvolvido por este personagem.
Rezador:
Meu capito, costume
Em momentos como este
Se procurar um doutor
Em medicina legal;
Ou um grande operador
Que a mesa de operao
Pe no centro da platia
De algum teatro de arena
Como se fosse um toureiro
Mas no sei se isso convm! (CARDOZO, 1975: pp. 254- 255)
Aliando a ao e a multiplicidade de assuntos dos espetculos populares com o
pragmatismo e a funcionalidade da poesia oral e associando estas convenes prprias da
tradio do uso do espao pblico aos seus prprios experimentos dramatrgicos e
temtica escolhida, o autor coloca o foco da ateno de suas peas nas ideias geradas nos
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dilogos, valorizando os desdobramentos formais que so revelados dentro do principal
veculo destas ideias: a palavra. Tais desdobramentos se refletem no modo de composio
de seus dilogos que so independentes do contexto da fbula contada, ainda que estejam
inseridos nela, pois revelam um modo de pensar e agir contextualizado num tempo e num
espao que se perpetuam na tradio, onde tanto as apresentaes teatrais quanto as
manifestaes espetaculares - das parateatrais at as teatrais-, estavam intimamente
relacionadas com mitos e arqutipos do homem pblico.
As mitologias presentes nas manifestaes da esfera pblica so incorporadas s
peas de Cardozo que acaba por forjar dilogos com grande variedade formal: o uso do
verso, da repetio, a aplicao de palavras sem sentido, ditas como improprio, como
escrnio, enfim, a construo dialgica prositadamente artificial estimula na palavra uma
dimenso que revela ao mesmo tempo o pensamento e o movimento das ruas e das praas.
O efeito gerado na unio dos aspectos ideolgicos debatidos nas falas dos atores de
rua com os elementos espetaculares das ruas no mbito do universo popular pode ser
percebido atravs de alguns espetculos populares que viajaram no tempo e no espao. Por
exemplo, o Bumba-meu-boi apresenta muitos personagens que so tpicos representantes
do espao pblico, com caractersticas e funes atinentes a este espao, onde a noo de
espetacularidade vem quase sempre contgua noo de utilidade, propaganda, debate ou
enfrentamentos pblicos. Inserida neste universo, a palavra empregada nos dilogos de
Joaquim Cardozo torna-se concomitantemente o elemento gerador da cena e da ao social.
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ANA CAROLINA PAIVA atriz, doutora em Artes Cnicas pela UNIRIO (Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro) e professora de prtica, histria e teoria de teatro.
ANA CAROLINA PAIVA is a play-actress with a PHD degree in Dramatic Arts at UNIRIO
(Federal University of Rio de Janeiro) and is a teacher of practice, history and theory of
theatre.