Post on 20-Oct-2015
FATECE
FACULDADE DE TECNOLOGIA, CINCIAS E EDUCAO
DARCI TEREZINHA DE LUCA SCAVONE
O ATENDIMENTO CRIANA PAULISTANA: ENTRE O
CONVNIO E O PER CAPITA (1995- 2005)
PIRASSUNUNGA
2014
ii
DARCI TEREZINHA DE LUCA SCAVONE
O ATENDIMENTO CRIANA PAULISTANA: ENTRE O
CONVNIO E O PER CAPITA (1995- 2005)
Monografia apresentada para a conclu-so do Curso de Ps Graduao em Direito Aplicado Educao para a ob-teno do Certificado de Especialista
PIRASSUNUNGA
2014
iii
AGRADECIMENTOS
A realizao deste estudo foi uma atividade construda em vrias partes
que foi sendo costurada aos poucos. Muitas perguntas suscitaram e provoca-
ram dvidas antes da tomada de deciso sobre a escolha do tema. Entre idas e
vindas as informaes sobre a demanda e a falta de vagas foram importantes
na tomada da deciso.
Depois da definio do estudo foi o momento de checar os dados, levan-
tar informaes e buscar documentos. Uma meno especial precisa ser feita:
o apoio da bibliotecria da biblioteca da Secretaria Municipal de Assistncia e
Desenvolvimento da Prefeitura de So Paulo. Atenciosa e prestativa, ajudou a
localizar e a copiar portarias antigas que foram fundamentais para que este
trabalho se efetivasse.
Alm disso, a reviso bibliogrfica levou um tempo considervel e no
foi muito fcil localizar estudos especficos que apontavam para o ponto central
da poltica desenvolvida pelo governo municipal por meio de convnio. Agrade-
o a muitos amigos e colegas de curso que sugeriram o estudo de textos sobre
convnios nas bibliotecas pblicas. A todos os que, direta ou indiretamente,
contriburam para que este trabalho se realizasse, muito obrigada.
iv
A todas as crianas que esperam que o
seu direito educao infantil seja reco-
nhecido e, que num dia, no muito longe,
todas elas possam frequentar uma creche
de boa qualidade na cidade de So Paulo.
v
RESUMO
Este estudo tem por finalidade investigar e lanar luz sobre como se de-
senvolveu a consolidao da poltica de creche na cidade de So Paulo, no
perodo de 1995 at o ano de 2005, a partir do estudo e anlise dos documen-
tos tcnicos e atos normativos. Para compreender como se definiu a poltica de
atendimento primeira etapa da infncia, por meio da creche, foi necessrio
estudar a concepo de infncia e de criana que ancorou a posio da prefei-
tura municipal de So Paulo. O estudo no tem a pretenso de abranger todas
as dimenses que envolvem a poltica pblica para a infncia, mas ao levantar
as proposies dos governantes, que foram postas em prtica, foi possvel en-
tender que o atendimento criana muito pequena na cidade de So Paulo foi,
efetivamente, realizado por meio de convnio. A transferncia da responsabili-
dade para entidades privadas sem fins lucrativos foi uma marca que, em maior
ou menor grau, percorreu todas as gestes desde que a creche penetrou na
prefeitura municipal de So Paulo.
Palavras-chave: creche, convnio, criana, so Paulo
vi
LISTA DE ABREVIATURAS
CEB - Comunidade Eclesial de Base
CEI - Centro de Educao Infantil
CEI - Comisso Especial de Inqurito
CLT - Consolidao das Leis de Trabalho
COBES - Coordenadoria do Bem Estar Social
EUA - Estados Unidos da Amrica
FABES - Secretaria da Famlia e do Bem Estar Social
FUNDEB - Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao Bsica e de
Valorizao dos Profissionais da Educao
LDB - Lei de Diretrizes e Bases
MCC - Movimento de Creche Conveniada
MDB - Movimento Democrtico Brasileiro
MEC - Ministrio da Educao
MLC - Movimento de Luta por Creche
ONU - Organizao das Naes Unidas
SAS - Secretaria de Assistncia Social
SEBES - Secretaria de Bem Estar Social
SMADS - Secretaria Municipal de Assistncia e Desenvolvimento
SME Secretaria Municipal de Educao
UNICEF Fundo das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura
vii
SUMRIO
INTRODUO ....................................................................................... 1
CAPTULO I - ESTAMOS AQUI.............................................................. 8
CAPTULO II - A CRECHE EM SO PAULO........................................ 17
CAPTULO III - O LUGAR DA CRIANA NA CIDADE .......................... 29
CONSIDERAES FINAIS .................................................................. 42
REFERENCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................... 45
1
INTRODUO
Este estudo pretende refletir sobre como se consolidou a poltica de a-
tendimento criana muito pequena, na cidade de So Paulo, de responsabili-
dade do governo municipal. De que modo se instaurou a poltica para a criana
pequena na cidade? Desde quando a prefeitura penetrou na creche, este aten-
dimento ficava a cargo da Secretaria Municipal de Assistncia e Desenvolvi-
mento Social e, em 2001, foi transferido para a Secretaria Municipal de Educa-
o. Com a passagem do comando das creches da assistncia social para a
rea educacional ocorreu alguma ruptura significativa na poltica de atendimen-
to criana pequena? O perodo estudado vai de 1995, quando o MEC publi-
cou o documento Critrios para um Atendimento em Creches que Respeite os
Direitos Fundamentais das Crianas, que se tornou referencia para o trabalho
com a criana muito pequena at 2005, quando a Secretaria Municipal de Edu-
cao de So Paulo publicou as primeiras normas municipais para a operacio-
nalizao da poltica de creche depois da passagem da creche da ento SAS
para a SME.
A Constituio Federal, aprovada em 1988, puxa para o captulo da edu-
cao o atendimento criana pequena. Somente oito anos depois era apro-
vada a Lei n 9.394/96 definindo as normas nacionais para a educao brasilei-
ra. O artigo 11, inciso V da LDB, afirma que a educao infantil de responsa-
bilidade dos governos municipais. Em So Paulo, a primeira lei orgnica da
cidade, aprovada em 1989, diz no art. 200, que a educao municipal, inspira-
da nos sentimentos da igualdade, liberdade e solidariedade, tem por responsa-
bilidade a universalizao do ensino fundamental e da educao infantil. Mere-
ce destaque o pargrafo 3, artigo 202, onde se l: 3 - O Municpio dever
apresentar as metas anuais de sua rede escolar em relao universalizao
do ensino fundamental e da educao infantil (LEI ORGNICA DO
MUNICIPIO, 1989, p. 62). Para alm das metas anuais, que nem sempre so
definidas e cumpridas, 24 (vinte e quatro) anos depois, em face da falta de va-
gas perguntamos: qual foi a poltica para a criana pequena que, efetivamente,
o governo municipal ofereceu e realizou na cidade de So Paulo?
Diante do nmero expressivo de crianas pequenas sem acesso edu-
cao infantil, em especial na faixa etria de zero a trs anos, procurei enten-
2
der, como ao longo do tempo, se concretizou a poltica municipal para a educa-
o infantil na faixa etria mencionada. Segundo dados oficiais da SME, em
dezembro de 2013, havia 1.605 Centros de Educao Infantil (CEI) antes de-
nominado de creches, sendo 1.246 administrados por entidades privadas sem
fins lucrativos, por meio de convnios e apenas 359 CEIs se encontravam sob
a gesto direta da secretaria. Os nmeros mostram indcios concretos que a
formulao da poltica de creche ancorou-se em uma concepo de servio
terceirizado, por meio de convnios, com entidades privadas sem fins lucrati-
vos. O acesso e a anlise dos dados foram decisivos para definir o estudo da
poltica de atendimento infncia, por meio dos convnios e, de que modo os
convnios foram estabelecidos. Assim, algumas questes so postas em cena.
A criana pequena conta para a sociedade paulistana? Conta para o governo
municipal, responsvel pela educao bsica? Como se expressa essa poltica
pblica do atendimento? Para responder a estas indagaes, procuramos en-
tender qual a concepo de criana ancorou as propostas da prefeitura e esco-
lhemos estudar as normas especficas por serem os documentos utilizados pa-
ra formalizar as diretrizes e a execuo das polticas de creche. As normas,
cujo instrumento denominado de portaria, so publicadas em dirio oficial
pelo rgo executor a que a creche est vinculada. Na voz corrente, a educa-
o um direito humano e todas as pessoas, desde o nascimento devem ter
este direito respeitado. Em 2004, na primeira Orientao Normativa publicada
pela Secretaria Municipal de Educao, apresentava a concepo de criana,
que iria embasar a poltica de educao infantil a ser executada pelo rgo. L-
se na Orientao Normativa n 1/2004:
(...) a criana desde o nascimento, produtora de conhecimento e de
cultura, a partir das mltiplas interaes sociais e das relaes que es-
tabelece com o mundo, influenciando e sendo influenciada por ele,
construindo significados a partir dele. Coloca-se a necessidade de re-
conhecer a especificidade da infncia, vendo a criana, como sujeito de
direitos, ativa e competente, com poder de criao, imaginao e fanta-
sia. Com direito a voz, deve ser levada a srio, tendo as suas ideias e
teorias ouvidas, questionadas e desafiadas (ORIENTAO
NORMATIVA 01/04, SME, 2004).
3
Quando analisamos documentos anteriores, que datam de 1979, expe-
didos pela rea da assistncia social, percebemos que naquele tempo distante
tambm se desenhava uma concepo de criana e se reconheciam direitos.
No documento Creches: Programao Bsica, publicado pela primeira vez no
ano de 1979, a equipe de COBES, descrevia o contexto social, apontando de
forma detalhada as condies desiguais em que as crianas viviam. Para dimi-
nuir as desigualdades e combater a vulnerabilidade social delas, os tcnicos
defendiam o direito do acesso de todas as crianas pequenas creche. A posi-
o da equipe tcnica de COBES se ancorava na concepo dos direitos hu-
manos ressaltando os direitos sociais. Deixavam claro, a importncia de se
respeitar os direitos universais da criana e ao Estado caberia atender s suas
necessidades bsicas. Alm da defesa do direito creche, a equipe apontava
uma concepo de infncia e de criana. No documento se l:
(...) as crianas so agentes incessantes da sua prpria aprendizagem,
tanto em relao ao meio que as cercam como em relao ao seu mun-
do interior. A natureza dinmica de suas atividades e a energia absorvi-
da pela sua dedicao ao que fazem mostra que as suas relaes com
objetos ou pessoas constituem um momento importante de descoberta
(COBES, 1981, 3 ed., p. 10).
Todos os rgos da prefeitura que, em algum perodo, respondeu pela
poltica de creche, indicavam o direito da criana muito pequena educao
infantil. Tanto o setor da assistncia quanto o educacional elaboraram docu-
mentos tcnicos, que dariam sustentao s normas legais, expressas por
meio das portarias. Na portaria n 10/1995, publicada pela assistncia social,
denominada ento de FABES, as diretrizes pautadas no documento Diretrizes
Pedaggicas Bsicas para as Creches do Municpio de So Paulo, definiam
em detalhe os eixos pedaggicos, sociais e de sade a serem cumpridos pelas
entidades no governamentais. Assim, extramos da portaria citada, o fragmen-
to:
As diretrizes sociais que nortearo a atuao da Rede de Creches Con-
veniadas apresentam, como premissa, criar condies para que os di-
reitos fundamentais da criana (...) sejam assegurados, garantindo seu
desenvolvimento como pessoa (Portaria n10/95, DOM 14/04/1995).
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Em 2005, a Secretaria Municipal de Educao, por meio da n
4.023/2005, se pronunciava sobre a celebrao de convnios, entre o poder
pblico e as entidades no governamentais, que deveria considerar as premis-
sas indicadas em resolues nacionais, decretos municipais, deliberaes do
Conselho Municipal de Educao e normas especficas. Apontava que a sua
aprovao estaria condicionada ao cumprimento das normas gerais para a
celebrao de convnios - CEIs/Creches, parte integrante da portaria. No inci-
so II, item 1, um dos requisitos para o estabelecimento de convnio exigia que
a proposta da entidade deveria estar consoante com as diretrizes da Secreta-
ria Municipal de Educao, em que pese no localizarmos na referida portaria
quais seriam essas diretrizes. Apesar de muitos estudos j terem sido desen-
volvidos alguns aspectos permanecem obscuros. Com esta investigao pre-
tendemos lanar luz e contribuir para esclarecer o compromisso poltico e p-
blico que o governo municipal e a sociedade paulistana traaram para as crian-
as muito pequenas nesse percurso.
Para ajudar na compreenso de como esta poltica pblica se consolidou
e, no incorrer em aspectos pontuais ou generalizaes vagas, neste estudo
desenvolvemos uma investigao de natureza histrica com a reviso da litera-
tura, documentos tcnicos e atos normativos que prescrevem o modo como
foram propostas e executadas as polticas de creche pela prefeitura de So
Paulo. Segundo Kuhlmann (...) a histria, embora se tratando do passado, do
que j aconteceu, dinmica e exige a ampla pesquisa e a crtica das fontes
(KUHLMANN, 2007, p. 7). A nossa histria, a histria dos homens se constri a
partir de lugares, contextos e da memoria coletiva. A memoria no a recorda-
o daquilo que passou. Trs, junto das ideias, os sentimentos e as emoes
relacionando presente e passado e o pertencimento de um tempo em um lugar
determinado. O estudo da histria nos possibilita tornar mais claro a poltica
pblica de educao infantil no perodo mais recente e para a sua realizao
nos sustentamos em autores como Ginzburg (1987), Paoli (1992) e Hobsbawm
(1998). Paoli aponta a importncia de se reconhecer o direito da identidade na
construo da cidadania e necessidade de entender o sentido de pertenci-
mento de um lugar. Em que pese ter havido mudana da denominao de cre-
che municipal para centro de educao infantil, levando em conta o sentido
de identidade e de pertencimento apontado pela autora, para fins deste estudo,
5
se optou por manter a denominao de creche para identificar os servios de
educao infantil da prefeitura. Segundo a autora o reconhecimento deve se
orientar pela cultura. Diz ela:
(...) produo de uma cultura que no repudie sua prpria historicidade,
mas que possa dar-se conta dela pela participao de valores simbli-
cos da cidade, como o sentimento de fazer parte, da sua feitura mlti-
pla (PAOLI, 1997, p. 27).
Ao nos debruarmos sobre as razes da creche na cidade de So Paulo,
observamos que a creche aparece na pauta da prefeitura no ano de 1965 e
desde o seu inicio foi associada necessidade de combater a pobreza fincada
na poltica de convnios com entidades sem fins lucrativos e na sua maioria
confessionais. Este lugar, a creche, em So Paulo, espao da criana muito
pequena, j teve muitas adjetivaes. Lugar de assistencialismo, proteo, cui-
dado, educao. s vezes um pouco de tudo misturado. De Ginzburg apren-
demos que os eventos no podem ser generalizados e que no se pode confiar
nas aparncias das informaes. preciso ir alm daquilo que est no centro
da questo. Dar visibilidade ao que no bvio, abrir as frestas das portas fe-
chadas e deixar entrar a luz. Segundo o autor
Por milnios o homem foi caador. Durante inmeras perseguies, ele
aprendeu a reconstruir as formas e movimentos das presas invisveis
pelas pegadas da lama, ramos quebrados (...), plumas emaranhadas
(...). Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinite-
simais como fios de barba (...). (GINSBURG, 2009, p. 151).
O autor ensina a importncia de puxar os fios que tecem as informaes
desenrolando os emaranhados do novelo. Refazer os caminhos vasculhando
as folhas e as pedras farejando as pistas para alm daquilo que est mostra.
Hobsbawm mostra o cuidado que se deve adotar no estudo e anlise dos tex-
tos e documentos. Com ele aprendemos duas questes importantes que aju-
dam a ancorar nosso estudo. A primeira o sentido da histria na busca de
evidencias para desvelar o passado e a segunda questo, trazida do autor, tra-
ta da responsabilidade pblica dos historiadores na investigao dos aconteci-
mentos. Segundo o autor:
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Insistir na supremacia da evidncia e na importncia central da distino
entre o fato histrico verificvel e fico apenas uma das maneiras de
exercer a responsabilidade do historiador e, como a atual fabricao
histrica no o que era antigamente, talvez no seja a mais importan-
te (...). A crtica ctica do anacronismo histrico provavelmente hoje a
principal maneira pela qual os historiadores podem demonstrar a sua
responsabilidade pblica (HOBSBAWM, 1998, p. 288).
Abrindo o caminho no estudo da histria o autor instiga-nos a fazer no-
vas perguntas, a refletir sobre o sentido das evidncias e estabelecer relaes
que avancem para alm delas. Na anlise documental, uma das fontes de pes-
quisa dos homens, o autor aponta a importncia do compromisso pblico do
historiador, que no pode ser como antigamente. Orienta sobre o cuidado e
tratamento com as fontes e as informaes, pois o seu resultado fruto das
escolhas e posies daqueles que escrevem a histria. No percurso deste es-
tudo se lanou mo da reviso bibliogrfica, anlise documental e atos norma-
tivos. Depois de definir o tema da investigao foram realizados levantamentos
e estudo dos referenciais bibliogrficos, dos documentos oficiais e atos norma-
tivos. Como uma coisa puxa a outra, diante da quantidade de portarias publica-
das, foi necessrio selecionar atos normativos e, assim, o texto foi tomando
corpo. Para a localizao de portarias mais antigas foi feito levantamento do-
cumental na biblioteca da SMADS. Alguns documentos foram localizados por
meio eletrnico, o que possibilitou o enriquecimento do trabalho. Depois disso,
foram selecionadas duas portarias, sendo que a Portaria n 010/95 foi expedida
pela ento FABES no ano de 1995 e a Portaria n 4.023/2005, expedida pela
Secretaria Municipal de Educao, no ano de 2005. Alm delas tambm foram
analisadas portarias expedidas nos anos de 1993, 1994, 2004, 2007 e 2011.
O desenvolvimento do trabalho est composto em trs captulos. No
primeiro captulo abordamos a concepo de criana e de infncia para ajudar
a desvelar que entendimento de criana e de infncia sustenta a poltica de
creche oferecida pela prefeitura de So Paulo s crianas paulistanas. O com-
promisso de oferecer um lugar para a criana pequena se ancora na compre-
enso do que ser criana e uma ideia determinada de infncia. O segundo
captulo abrange aspectos significativos da histria da creche na cidade de So
Paulo. O atendimento da criana pequena comea por meio da creche, pelas
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mos das entidades e, em que pese implantao da rede de creches diretas
pela prefeitura, o atendimento s crianas se ancora na creche conveniada. No
captulo terceiro o estudo se debrua e procura destrinchar os documentos,
que apontam o fortalecimento da terceirizao do atendimento da criana pe-
quena por meio da realizao de convnios.
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CAPTULO I - ESTAMOS AQUI
Crianas muito pequenas, por muito tempo, no contavam. Antigamente,
esta era a viso, que a sociedade tinha da criana muito pequena. Quem nos
contou isso foi Molire mostrando o sentimento de criana, que alcanava o
sculo XVII. Os ndices de mortalidade infantil eram elevados e a criana pe-
quenina era muito frgil. Por isso, no contava e, quando ela ultrapassava o
perodo de risco de mortalidade, era inserida, diretamente, no mundo dos adul-
tos. O sentimento expressado por Molire mostra como os conceitos de criana
e de infncia so construes sociais e inventadas refletindo a cultura da soci-
edade em tempos e espaos determinados e aponta para a necessidade de se
estudar o sentido de ser criana e de infncia no presente e em especial na
cidade de So Paulo.
No Brasil, os ndices de mortalidade tambm eram alarmantes. Civiletti,
em seu estudo sobre as crianas negras no Brasil escravista, apontou que:
(...) a mentalidade no Brasil, durante o perodo escravista, em muito se
aproxima da descrio feita por Aris (1879) e Badinter (1985), da situ-
ao da criana no Antigo Regime. Logo aps um perodo de extrema
fragilidade, marcado pelos altos ndices de mortalidade e pouco inves-
timento afetivo, a criana incorporada ao mundo adulto. (...) A conota-
o angelical da criana era vlida tanto para brancos quanto para os
negros. Se a mortalidade era alta entre as crianas brancas, o que dizer
das condies de sobrevivncia das negras? (CIVILETTI, 1991, p. 32 e
35).
Para a autora, o sentimento de infncia no Brasil, durante o perodo es-
cravista, se aproximava dos sentimentos de infncia demonstrados por Aris,
em seus estudos realizados na Frana. O autor defendeu que o conceito de
infncia, enquanto categoria social, como se conhece nos tempos recentes, foi
uma inveno da modernidade. A partir do sec. XVII o retrato da criana sozi-
nha se torna comum dando visibilidade criana e a emergncia de novos sen-
timentos de infncia. Antes, as crianas no eram retratadas sozinhas e no
havia nenhuma diferenciao entre gente grande e gente pequena. Alm dos
trajes usados que eram iguais aos dos adultos, da iniciao ao mundo do tra-
balho, as crianas participavam das mesmas atividades sociais como festas,
9
jogos, enforcamentos, orgias e os atos sexuais eram por elas assistidos. Eram
consideradas gente grande em miniatura. Aos sete anos as crianas eram
apresentadas ao mundo dos adultos e as crianas das classes populares inici-
avam o desempenho de tarefas simples. Elas participavam da vida da famlia
que era pblica.
Aris identificou e descreveu dois sentimentos de infncia que teriam
surgido na idade moderna. O da paparicao e o da exasperao. Sobre o sen-
timento da paparicao escreveu: Um novo sentimento da infncia havia sur-
gido, em que a criana, em sua ingenuidade, gentileza e graa se tornavam
uma fonte de distrao e de relaxamento para o adulto, um sentimento que po-
deramos chamar de Paparicao (ARIS, 1981, p. 158). Expe trechos so-
bre o modo como a criana se transformava em fonte de distrao para o adul-
to. Em depoimento escrito que ele encontrou, Mme de Svigne confessava
que:
(...) H uma hora que me distraio com vossa filha, ela encantadora
(...). Sua tez, seu colo e seu corpinho so admirveis. Ela faz cem gra-
cinhas, fala, faz carinho, faz o sinal da cruz, pede desculpas, faz reve-
rencia, beija a mo, sacode os ombros, dana, agrada, segura o queixo:
ela linda em tudo que faz (IDEM, p. 159).
O sentimento da paparicao provocava a irritao daqueles que no
admitiam a ideia de que as crianas fossem vistas como um brinquedo. Em
contraposio cresce o sentimento da exasperao. O apego infncia no
poderia se limitar mais s brincadeiras e as gracinhas que as crianas faziam.
Ela no poderia mais ser vista como um enfeite, um bibel ou um brinquedo de
distrao. Era preciso penetrar no mundo da criana para corrigir os seus maus
hbitos para fazer delas homens cristos e racionais. O autor cita a fala de
Montaigne, como smbolo desse descontentamento:
No posso conceber essa paixo que faz com que as pessoas beijem
as crianas recm-nascidas, que no tm ainda nem movimento na al-
ma, nem forma reconhecveis no corpo pela qual se possam tornar a-
mveis, e nunca permiti de boa vontade que elas fossem alimentadas
na minha frente (IDEM, p. 159).
10
Segundo Aris, Montaigne no admitia que as crianas servissem de
passatempo dos adultos e achava que os adultos se ocupavam demais com as
crianas o que as tornava mimadas e mal educadas. O sentimento da caricia
surgia no interior do espao coletivo da famlia, em que se confundiam as rela-
es publicas e privadas e, durante os momentos de descanso, o adulto se
entretinha com a criana como se fora um brinquedo. O sentimento da exaspe-
rao, que via a criana inocente e considerava a necessidade de separ-las
dos adultos, se tornava cada vez mais forte no mundo exterior famlia. Os
homens da lei e da igreja, moralistas no sculo XVII, viam nas crianas frgeis
criaturas de Deus que era preciso ao mesmo tempo preservar e disciplinar, por
isso elas precisavam ser orientadas e mais bem educadas. No era mais dese-
jvel que as crianas transitassem de forma livre entre os adultos, pois eram
semelhantes aos anjos. A organizao da famlia pblica e sem censura era
posta em xeque e se fortalecia a necessidade de separar as crianas inocentes
da vida cotidiana dos adultos. Os raios do iluminismo se aproximavam: era
chegada a hora de novas formas de educar um novo homem (IDEM, p. 164). O
autor conclua em seus estudos que a infncia seria o perodo da tenra idade,
aquele que planta os dentes indo at os sete anos. Uma fase cujas caracters-
ticas seriam a ausncia da fala e de manifestaes desprovidas de racionalida-
de. A idade da infncia seria assim um ciclo, uma passagem (IDEM, 1981).
Mas, o que ser criana? Uma folha em branco para se despejar conhecimen-
tos? Um inocente mimo dos adultos? Um pequeno enfeite ou uma demonizada
criancinha? E infncia seria um estgio de preparao para o mundo dos adul-
tos?
Nem todos os estudiosos concordam com as afirmaes de Aris. H
outras vises que criticam suas posies. Kuhlmann, diz que o autor apresen-
tou uma viso linear do desenvolvimento histrico, que se torna mais abstrata
quando transportada para outros contextos e lugares. Critica a interpretao
que supe um sentido unidirecional com relao ao sentimento da infncia.
Aponta ainda para a dificuldade de testemunhos escritos da vida privada da
criana das classes populares esclarecendo que, no mbito da vida pblica h
muitos documentos que fornecem pistas para se compreender como o senti-
mento de infncia se expressava. Segundo Kuhlmann:
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Mesmo em abordagens que tomam a infncia em sua referencia etimo-
lgica, como os sem-voz, sugerindo uma certa identidade com as pers-
pectivas da histria vista de baixo, a histria dos vencidos, essa viso
monoltica permanece e mantm um preconceito em relao s classes
subalternas, desconsiderando a sua presena no interior das relaes
sociais (KUHLMANN, 1998, p. 23).
Para ele, persistem o preconceito e uma viso de classe, que tornam
muitos estudos opacos. O sentimento de infncia no seria inexistente em
tempos anteriores. O autor menciona as fontes como os registros paroquiais,
as cartas, a literatura romanesca, os tratados de educao, entre outras, que
no silenciaram e apontam indcios sobre a concepo de criana e de infncia
na idade mdia, quando apontam como eram essas relaes sociais. Lembra
que as fontes so produzidas pelos adultos e no nos podemos esquecer que
somos adultos investigando crianas. O que se escreve so historias sobre as
crianas. Diz ele:
Pensar a criana na histria significa consider-la como sujeito histrico,
e isso requer compreender o que se entende por sujeito histrico. Para
tanto, importante perceber que as crianas concretas, na sua materia-
lidade, no seu nascer, no seu viver ou morrer, expressam a inevitabili-
dade da histria e nela se fazem presentes, nos seus mais diferentes
momentos (IDEM, p. 31).
A criana desde sempre existe e h laos entre elas e os adultos. Se-
gundo o autor, importa conhecer o lugar que a criana ocupa na sociedade. Na
idade moderna a criana colocada em cena. O que ser criana passa a ser
objeto de estudos de vrias reas do conhecimento. Os discursos da psicologi-
a, da medicina da pedagogia enquadram o conceito de infncia e lhe do um
sentido atemporal. Assim, quem vive na infncia precisa ser lapidado, formata-
do, protegido. Vestgios de documentos, amplamente j estudados, falam de
crianas e da infncia mostrando o retrato de uma criana abstrata e genrica.
Nos anos do iluminismo, Rousseau (1712 1772) lanou luzes sobre a
importncia de se entender o que ser criana. Ele afirmou que no se conhe-
cia a criana. Os sbios no encontrariam o homem na criana, que possua
sentimentos, desejos e interesses, que lhes so prprios. Segundo Rousseau:
12
Ao nascer, uma criana grita; sua primeira infncia passa chorando. Ora
a sacodem e a mimam para acalm-la, ora a ameaam e lhe batem pa-
ra que fique quieta. Ou lhe fazemos o que lhe agrada, ou exigimos dela
o que nos agrada; ou nos submetemos s suas fantasias, ou a subme-
temos s nossas: no h meio termo, ela deve dar ordens ou receb-
las. Assim, suas primeiras idias so as de domnio e de servido. An-
tes de saber falar ela d ordens, antes de poder agir ela obedece e, s
vezes, castigam-na antes que possa conhecer seus erros, ou melhor,
comet-los. assim que cedo vertemos em seu jovem corao as pai-
xes que depois imputamos natureza, e aps nos termos esforado
para torn-la m, queixamo-nos de v-la assim. (ROUSSEAU, 1995, p.
24).
Sua contribuio foi um marco fundamental para a compreenso do que
ser criana e a construo social de infncia como a conhecemos nos dias
atuais. O autor apontou a necessidade de desenvolver estudos e adentrar no
mundo infantil desconhecido do adulto. Muito se afirmava sobre a criana e
pouco se conhecia sobre o que era ser criana. Seus desejos e seus interes-
ses. E foi colocada em pauta a pergunta: afinal, o que ser criana? A criana
possui desejos? Tem sonhos?
Em seu estudo, Charlot ajudou a lanar luz sobre a concepo de crian-
a e de infncia, nos tempos mais recentes, ao avanar na reflexo sobre qual
a posio da sociedade com relao criana. Para ele, a criana j foi com-
parada a uma tbua rasa, vazia de tudo e sem nenhum sentido. Por isso, o
molde, como aprouvesse o adulto, poderia ser despejado sobre ela. Tambm j
foi vista como um anjo inocente, que precisava ser separada do adulto, pois era
necessrio proteg-la de todo o mal e o mantra da igreja catlica era repetido:
vinde a mim as criancinhas. Como toda flor que murcha, a criana tambm foi
vista como um ser possudo, que provocava inveja, fazia o adulto desperdiar o
seu tempo, uma coisinha mimada e demonizada, que seduzia com o seu per-
fume inebriante e por isso, precisa ser punida e segregada. O autor aponta de
forma clara, como o adulto inventa conceitos e preconceitos a partir do lugar de
onde fala. As reflexes do autor provocam a necessidade de procurar novas
respostas e suscitam novas perguntas. Sendo o adulto que escreve sobre a
criana, replicamos a pergunta: o que ser criana? O que ser uma criana
13
negra? Uma criana indgena? Uma criana da comunidade? Como o con-
texto que ela, a criana, vive e o que pensam sobre ser criana os adultos que
com ela convivem? Para Charlot no h criana abstrata, atemporal e retirada
do contexto social. Sobre a infncia, escreve ele:
A infncia no a espera passiva da idade adulta, mas a construo
da idade adulta pelo jogo e pela imitao (Claparde), ou pela absoro
do meio (Montessori). A infncia no mais uma etapa infelizmente i-
nevitvel, mas um perodo necessrio que produz resultados felizes
(CHARLOT, 1979, p. 127).
E, sobre a criana, diz: (...) socialmente a criana , antes de tudo, um
ser dependente do adulto; a cuja autoridade constantemente submetida (...).
A dependncia da criana um fato social que no se pode anular, com uma
vara de condo pedaggica (IDEM, p. 132). O autor desnuda a mitificao da
imagem que se faz da criana, critica a sua idealizao, que localiza no campo
da pedagogia estabelecendo relao direta com uma determinada concepo
de sociedade. A escola seria um meio fechado para proteger a criana, mas
no fechado para o adulto nem pode ser proibido aos pais. Para ele (...) a
igualdade abstrata est combinada desigualdade social (IDEM, p. 148) e a
concepo poltica que norteia a ao pedaggica e define o futuro que se quer
para a criana (...) inevitavelmente, como j dissemos, uma escolha de clas-
se (IDEM, p. 276). No debate que se instaurou sobre o que ser criana, Ku-
hlmann diz que a condio de ser criana est marcada pela idade cronolgica,
que vem desde quando se definiu como primeira infncia o perodo que vai do
nascimento aos sete anos. Em que pese a necessidade de pistas para a defini-
o instituda, que foi estabelecida pela cronologia (faixas etrias), o mais im-
portante, para ele considerar o lugar onde essa criana est e localizar as
suas relaes sociais. Na sua viso, a infncia tem:
(...) um significado genrico e, como qualquer outra face da vida, esse
significado funo das transformaes sociais: toda sociedade tem
seus sistemas de classes de idade e a cada uma delas associado um
sistema de status e de papel (KUHLMANN, 2007, p. 16).
Os desencontros e contradies sobre o sentido de criana e de infncia
se localizam desde a origem da palavra. Do latim a fase da infncia significa
14
infant (criana) que quer dizer aquele que no fala. Assim, a infncia era carac-
terizada pela ausncia da fala, de comportamentos e atitudes no esperadas.
Havia o entendimento de que a criana no poderia agir para alterar o mundo e
como decorrncia a infncia era tratada como um ciclo, uma passagem para a
vida adulta. Kramer, em seu estudo sobre a poltica pr-escolar no Brasil, des-
vela os desencontros sobre o sentido de ser criana e da infncia, que circun-
dam os conceitos e os preconceitos, que ainda ancoram os estudos da infncia
no Brasil. A autora aponta duas contradies e polemiza com a ideia da ideali-
zao sobre a imagem de criana. Uma delas a ideia de se adotar uma con-
cepo atemporal e abstrata da criana e da infncia, e a outra a interpreta-
o de caracterizar a infncia pelo critrio da idade e identificar as regularida-
des comportamentais, que caracterizariam uma criana. Segundo ela so as-
pectos do avesso do sentido de ser criana, que pelo senso comum se entende
ser criana como em oposio ao adulto. Kramer afirma que:
O sentimento moderno de infncia corresponde a duas atitudes contra-
ditrias que caracterizam o comportamento dos adultos de hoje: uma
considera a criana ingnua, inocente graciosa pela paparicao dos
adultos, e outra surge simultaneamente primeira, mas se contrape a
ela tomando a criana como um ser imperfeito e incompleto, que ne-
cessita de moralizao e da educao feita pelos adultos (...). Tratar a
criana em abstrato, sem levar em considerao as diferentes condi-
es de vida dissimular a significao social da infncia (KRAMER,
1987, p. 18,23).
A autora mostra que a ideia de criana que no fala e atravessa um pe-
rodo de silencio, desprovida de racionalidade, ainda perdura na sociedade
contempornea. Na mesma toada Kuhlmann refora a proposio de que
preciso no esquecer que a realidade da criana diferente do adulto e que ela
no escreve a sua histria. Quem continua escrevendo sobre a criana o a-
dulto. Diz ele que
preciso considerar a infncia como uma condio da criana. O con-
junto das experincias vividas por elas em diferentes lugares histricos,
geogrficos e sociais muito mais do que uma representao dos adul-
tos sobre esta fase da vida. preciso conhecer as representaes da
infncia e considerar as crianas concretas, localiz-las nas relaes
15
sociais, etc, reconhec-las como produtoras da histria (KUHLMANN,
2007, p. 30).
Da decorre a dificuldade de se afirmar se a criana teve ou no uma in-
fncia e penetrar no mundo infantil. Ele afirma que em geral se associa o (...)
no ter infncia a uma caracterstica das crianas pobres (IDEM, p. 30). O e-
lemento apontado pelo autor mostra que o sentido de criana e o sentimento
de infncia so carregados de uma viso ideolgica, que exclui o reconheci-
mento dos direitos bsicos da pessoa, culpabiliza a criana pela sua vida dura
e sofrida e no a considera um sujeito histrico. A infncia no um estgio de
preparao para a vida adulta e a criana no pode ser apenas cantada em
prosa e verso. A criana antes de tudo um sujeito histrico com necessida-
des, interesses, expectativas e desejos. Kramer defende uma concepo de
criana que:
(...) reconhece o que especfico da infncia - seu poder de imagina-
o, fantasia, criao - e entende as crianas como cidads, pessoas
que produzem cultura e nela so produzidas, que possuem olhar critico
que vira pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo essa ordem
(KRAMER E BAZLIO, 2003, p. 91).
As caractersticas e singularidades das crianas precisam ser conheci-
das e consideradas. No h uma criana ou uma infncia indeterminada. Para
Dahlberg, Moss & Pence h muitas infncias e muitas crianas e a sociologia
da infncia tem ajudado a quebrar mitos e paradigmas sobre a infncia reco-
nhecendo-a (...) como um importante estgio do curso da vida, nem mais nem
menos importante do que outros estgios (DAHLBERG, MOSS & PENCE,
2003, p. 37). A imagem da criana inocente e idealizada que precisa ser prote-
gida e separada do mundo que a cerca pode levar a um desrespeito aos direi-
tos da criana. Segundo eles, esta imagem de criana gera nos adultos:
(...) um desejo de proteg-la do mundo corrupto que as cerca - violento,
opressivo, comercializado e explorador - construindo um tipo de ambi-
ente em que a criana pequena receba proteo, coeso e segurana.
De acordo com nossa experincia, no entanto, ns nos tornamos cada
vez mais cientes de que, se escondermos as crianas de um mundo do
qual elas fazem parte, no apenas nos iludimos, mas no levamos as
crianas a srio nem as respeitamos. (IDEM, p.66).
16
Entender que a criana sujeito ativo e de direitos implica, segundo os
autores, na necessidade de romper com os paradigmas da criana dcil, coita-
dinha e incapaz, substituindo-os por uma ideia de que as crianas so compe-
tentes, aprendem e constroem o seu conhecimento nas interaes sociais.
Compreender essa apropriao significa reconhecer que a infncia uma
construo social mediada por relaes sociais e culturais contextualizada em
um tempo e lugar variando segundo a classe social, o gnero e outras condi-
es. Para os autores as crianas so atores sociais, participam e constroem
suas vidas e influenciam a vida daqueles que as cercam e da sociedade. As
crianas tem voz prpria e devem ser ouvidas. Alertam ainda que os relacio-
namentos entre adultos e as crianas envolvem relaes de poder sendo im-
portante considerar como esse poder exercido e a elasticidade e resistncia
das crianas a esse poder (IDEM, p. 71).
Entremeando a teoria e a realidade, a Secretaria Municipal de Educao
apresenta sociedade a concepo, que ancora a sua proposta de poltica p-
blica para a criana pequena. L-se no documento exposto no portal:
Concepo de criana contextualizada em sua concretude de existncia
social, cultural e histrica, participante da sociedade e da cultura de seu
tempo e espao modificando e sendo pro ela modificado. Sujeito de di-
reitos, socialmente competente com direito voz e a participao (SME,
educao infantil, acesso em 27/12/2013).
A intencionalidade no discurso aponta para a ideia de que a creche ou o
Centro de Educao Infantil, como o espao da criana pequena denominado
no municpio de So Paulo, pretende ser o lugar onde se garante o direito
infncia e o direito a melhor condio de vida para todas as crianas.
17
CAPTULO II - A CRECHE EM SO PAULO
No portal da Secretaria Municipal de Educao do municpio de So
Paulo se localiza o documento intitulado Proposta de poltica pblica para os
prximos anos (2013 a 2016). No interior do texto uma pergunta chama aten-
o suscitando em ns a necessidade de aprofundar como foi esse lugar da
criana pequena no passado na cidade de So Paulo. A indagao no Portal
Qual o lugar que a criana pequena ocupa na cidade? nos remete ao estu-
do de Kuhlmann, que apontou sobre a importncia de conhecer o passado para
entender o presente que se escreve e indica rumos para o futuro. O autor ex-
plicita um posicionamento de quem tem lado a defesa radical do direito das
crianas aos bens e servios ofertados pela sociedade. Segundo o autor
(...) o estudo do passado pode, sim, suscitar reflexes que sirvam para
aqueles que trabalham com a infncia e a sua educao nos dias de
hoje, contribuindo para a sua formao e aprimoramento profissional.
mostrar que as propostas de agora (...) precisam envolver uma profun-
da reflexo ancorada tanto na prtica quanto nos resultados das pes-
quisas e na produo terica (KUHLMANN, 2007, p. 13).
As mudanas no ocorrem por um passe de magia acionada por uma
varinha de condo. No senso comum se ignora o passado e se inaugura uma
era nova. Tudo agora ser diferente. Essa ligeireza, que nega a histria, mutila
uma reflexo aprofundada e impede a possibilidade de avanos consequentes
no processo de ateno criana pequena no reconhecimento de seus direi-
tos. Para buscar respostas pergunta feita pela equipe de educadores da SME
retomamos, por meio do estudo de documentos e referncias bibliogrficas,
como se escreveu a histria da creche na cidade de So Paulo.
Corria o ano de 1965, um ano aps o golpe civil-militar e, Helena Jun-
queira, intelectual, poltica, militante da assistncia social, havia participado de
evento sobre a infncia, promovido pelo UNICEF, pouco antes na Itlia. No en-
contro se pautou a questo do menor, da industrializao acelerada e da ne-
cessidade de creches para que as mulheres pudessem trabalhar fora de casa,
com a finalidade de auxiliar na proviso da famlia. Ela trouxe essas ideias para
So Paulo e estimulou o prefeito Faria Lima para que a prefeitura se envolves-
se com a questo da creche. O ponto de partida ou de chegada da prefeitura
18
s creches ocorreu em meados de 1965, conforme se constata nos aponta-
mentos da reunio organizada por Junqueira entre o prefeito e as Entidades
sociais e, em 1967, efetivamente a prefeitura cria o seu vnculo com a creche e
as crianas da cidade, quando se compromete com a construo e inaugura a
primeira creche da cidade, conforme contamos em estudo efetuado anterior-
mente:
Foi Helena Junqueira quem preparou a lista dos convidados para uma
reunio com o prefeito Faria Lima em setembro de 1965. No cardpio
da festa lia-se creches, conforme consta nas anotaes sobre a reuni-
o realizada no gabinete do Sr. Prefeito, em 17 de setembro de 1965,
para tratar do assunto CRECHES. Das anotaes constam os nomes
dos participantes, resumo das questes debatidas e as primeiras medi-
das a serem adotadas. Participaram 17 entidades, em sua maioria, reli-
giosas (...). As diretrizes expostas pelo prefeito continham trs pontos:
convnio com entidades para o funcionamento de creches; instalao
de creches em casas alugadas e construo de creches e instalao de
equipamentos, em princpio, junto aos parques infantis (SCAVONE,
2011, p. 90).
O documento foi localizado na biblioteca da SMADS e junto havia um re-
latrio denominado Anotaes sobre creche que Junqueira apresentou na
reunio. Tratava-se de uma enquete realizada com doze creches mantidas, em
sua maioria por entidades filantrpicas e de carter confessional. No resultado
exposto, todas elas estariam dispostas a estreitar relaes com a prefeitura, a
ampliar sua oferta de vagas e definiam quais eram os seus interesses: algumas
delas queriam recursos financeiros com valor nominal (per capita) mensal e
outras desejavam construo ou ampliao das suas instalaes fsicas. Junto
ao relatrio o documento Plano para ampliao da rede de creches na cidade
de So Paulo, de 25 de agosto de 1965, mostra a capacidade de articulao
poltica de Junqueira, indicando que a reunio havia sido organizada para a-
provao da instalao da rede de creches pela prefeitura. O plano, de duas
pginas, entre outros aspectos, abordava a responsabilidade do poder munici-
pal, a disponibilidade de recursos e a cooperao do governo com a iniciativa
particular. Dizia que a creche era uma medida importante para prevenir o a-
bandono do menor sendo auxiliar da famlia para a me trabalhar fora, se re-
19
vestia de carter educacional e atenderia crianas de zero a seis anos
(SCAVONE, 2011, p. 91).
Para Haddad e Oliveira, o I Seminrio Sobre Creches, ocorrido em 1966,
que procurou envolver vrios setores da sociedade civil, teria sido um marco da
entrada do Estado na questo da creche:
Essa preocupao em sensibilizar a sociedade civil para a qualidade do
atendimento oferecido pelas creches era to evidente que poderamos
caracterizar esse seminrio como a entrada em cena do Estado, pela
ao municipal, definindo as suas competncias em relao ao atendi-
mento criana (HADDAD; OLIVEIRA, 1990, p. 110).
O seminrio produziu efeitos no muito positivos para a prefeitura, que
desenhava a poltica pblica para as crianas pequenas por meio de convnio,
com as entidades privadas e filantrpicas. A proposta da prefeitura era repas-
sar as creches construdas e equipadas pelo governo s entidades. Elas se
mostravam descontentes com as propostas definidas pelo poder municipal e foi
ento organizada uma reunio em novembro do mesmo ano quando se definiu
novos acordos. Constaram da pauta: os padres de convnio, apresentao da
planta e mobilirio das creches, entrosamento de creches e parques infantis e
a programao da continuidade da construo de mais 24 creches. Em 1967 a
SEBES entregava as primeiras creches s entidades particulares e, em 1969,
dava incio sistematizao da assessoria tcnica junto a elas.
Um pouco antes, em 1962, a prefeitura havia aprovado uma lei que so-
mente aps a reunio com as entidades, em 1965, comeava a ser posta em
prtica. A populao no sabia que se desenhava, por meio de contratos e con-
vnios, a distribuio do bolo, de modo a que cada convidado mesa fosse con-
templado. Definia normas para arrecadar os recursos para atender a infncia e
indicava que parte da fatura seria financiada pelos usurios das creches. De
preferncia seriam beneficirias da creche as mes no registradas na previdn-
cia social e o repasse de recursos per capita seriam de 70%, sendo que o restan-
te seria coberto pela instituio e pela prpria me, normas que seriam modifica-
das somente no governo de Mario Covas. As verbas foram definidas na seguinte
forma: as despesas de custeio das creches seriam cobertas com verbas munici-
pais. A construo e os equipamentos seriam com verbas oriundas do MEC e a
20
execuo seria por meio da Secretaria Municipal de Educao. No entanto, a sua
execuo ficaria a cargo da assistncia social. Data dessa poca a polmica so-
bre a proporo adulto/crianas. A creche seria dividida por setor. O setor 1 aten-
deria crianas de zero a um ano ( berrio); o setor 2 atenderia crianas de um a
dois anos (berrio) e o setor 3 atenderia crianas de trs a seis anos. A propor-
o seria uma pajem para 10 crianas de zero a dois anos, uma para cada 20
crianas de trs a seis anos e uma professora jardineira para cada 30 crianas de
trs a seis anos. Entre outros profissionais, sugeria-se mdico pediatra, assisten-
te social, enfermeira supervisora e uma auxiliar de enfermagem para o lactrio.
Os governos que sucederam Faria Lima mantiveram a poltica de creche por
meio de convnios e no adotaram nenhuma medida de relevncia com relao
a uma poltica para a infncia.
Em 1970 a rede municipal de creche possua 29 creches, em regime de
convnio, sendo 16 construdas pela prefeitura e repassadas s entidades.
poca, baseando-se nas informaes repassadas pela prefeitura, a imprensa
vaticinava que a situao das creches era um assunto explosivo, pois a popu-
lao crescia exponencialmente e o governo no atendia demanda. A pres-
so popular ainda era pequena, mas j se sentia o arrocho salarial com a ma-
nipulao da inflao pelo governo federal. Assim, em abril do mesmo ano, a
equipe de tcnicos de SEBES, organizou um Grupo de Estudos, com a finalida-
de de elaborar proposta para o problema da creche na cidade. Os estudos fica-
ram conhecidos como Dossi Rosa Krausz e indicavam trs fatores a serem
enfrentados: as creches eram distantes dos locais de moradia e as mes deixa-
vam de levar as crianas, acarretando grande ociosidade; havia o abandono por
falta de pagamento, pois o governo se responsabilizava por 70% do valor per ca-
pita e o restante a entidade cobrava taxa da famlia, que nem sempre podia arcar
com os custos e as entidades; por outro lado, no cumpriam as regras de matri-
cular crianas de zero a trs anos encontrando-se nas creches crianas de at
doze anos.
Teixeira, em seu estudo Creche: organizao popular, conta que a pri-
meira creche comunitria na zona leste, anotada nos relatos a que teve aces-
so, comeou por volta de 1972 (TEIXEIRA, 1979). Em nosso estudo sobre as
marcas da historia da creche em So Paulo apontamos que as mulheres da
periferia no podiam esperar e faziam um pouco de tudo ao mesmo tempo:
21
campanhas para financiar e fazer funcionar uma creche, enquanto continuavam
lutando para a prefeitura abrir uma escolinha, um parque infantil, pois era assim
que identificavam o lugar para se educar crianas pequenas. Elas tambm de-
finiam alguns critrios distintos: ser gratuita, atender desde beb e em tempo
integral (SCAVONE, 2011, p. 108).
Como nem tudo eram flores, o convnio da regio de Guaianazes apre-
sentava problemas no uso das verbas pblicas e foi denunciado. Com o rom-
pimento do convnio da creche de Guaianazes, constitua-se a primeira creche
sob ao comando direto da secretaria. Os tcnicos da prefeitura criaram as con-
dies para administrar a creche alegando junto aos rgos superiores, que
seria interessante ter uma creche dirigida pela administrao pblica, pois ela
seria um parmetro para orientar, acompanhar e avaliar as creches dirigidas
pelas entidades, por meio de convnio. Em continuidade a esta posio a cre-
che de So Miguel Paulista tambm foi excluda do convnio. Dava-se o incio
proposta de administrar a creche, diretamente, pela prefeitura para que pu-
dessem realizar experincias com a justificativa de melhor orientar as demais.
Os profissionais da secretaria da assistncia social mudavam de viso e pas-
savam a defender a creche direta. Pressionavam as entidades para o cumpri-
mento das normas por melhoria na qualidade do atendimento e as entidades
devolviam as creches construdas pelo poder pblico. No ano de 1974 eram
contabilizadas quatro creches diretas. Foi nessa marcha, com a exigncia da
melhora do padro de qualidade nas creches administradas pelo governo, que
as mulheres e mes da periferia agora tinham elementos de comparao e
possibilidade de escolha sobre que tipo de creche desejavam para os seus fi-
lhos.
No perodo mencionado, no Brasil vigorava a lei de exceo, a ditadura
civil-militar dirigia o pas com mo de ferro. O governo federal arrochava os sa-
lrios e silenciava os trabalhadores. O cinto apertava e, como no tinham mais
nada a perder, as mes e mulheres da periferia se organizavam em pequenos
grupos independentes, nos clubes de mes ou com o apoio das comunidades
eclesiais de base saiam s ruas para reivindicar por meios de consumo coletivo
como moradia, luz, gua, contra a alta do custo de vida e creche. Um trao u-
nia as polticas de governo, dos tcnicos em nvel local e os grupos que apoia-
vam as organizaes das mes e mulheres da periferia. Era a concepo do
22
desenvolvimento da comunidade, que se consolidava durante o perodo da di-
tadura, orientado por agncias internacionais e se vinculava rea de assis-
tncia social. Barucci, em seu estudo sobre as polticas de atendimento in-
fncia na cidade de So Paulo, aponta o sentido do assistencialismo vigente.
Para ela o assistencialismo :
(...) um conceito construdo a partir da distino das formas que toma-
ram os servios de assistncia em nosso pas. Assim, a palavra assis-
tencialismo carrega o sentido de favor, contrapondo-se a direito, colo-
cando aquele que assistido em posio de dbito e dependncia em
relao ao que assiste (BARUCCI, 2007, p. 14).
Em So Paulo, o governo e a igreja disputavam posies e aplicavam na
sua relao com os movimentos sociais a propositura do desenvolvimento da
comunidade. O interesse da igreja era manter os fieis sob a sua tutela e o go-
verno que vislumbrava votos e um colgio eleitoral cativo. Amann lana luz so-
bre o sentido da poltica pblica pautada no desenvolvimento da comunidade,
mostrando os enganos cometidos, quando se apregoava uma participao, que
era apenas para dividir os custos de um servio de baixa qualidade ofertado pelo
governo. Ela estudou o papel dos intelectuais, a proposta de participao e o in-
centivo s comunidades para executar responsabilidades do Estado, apontando
como essa poltica se desenvolveu no Brasil, sob a orientao dos EUA, da ONU,
da Igreja Catlica e dos setores dominantes (AMMANN, 1980, p. 15). A ideia de
idolatria da participao, assumida inclusive por setores progressistas no Brasil,
tambm foi estudada por Viezzer. Em seu estudo a autora desvela que as mulhe-
res nos clubes e nas CEBs no chegaram a ter autonomia de pensamento. A
igreja teria trazido para a organizao das mulheres um efeito negativo na luta
por seus direitos, pois na periferia pregava a estabilidade da famlia tradicional, a
base da sociedade patriarcal, o papel da mulher apenas como me e defendia a
estabilidade na relao patro e empregado. As mulheres que discordavam dos
ideais religiosos se afastavam e procuravam outros rumos, pois a igreja s con-
seguia ir at certo ponto (VIEZZER, 1989, p. 65, 66, 67). Como Ammann j havia
identificado, a respeito dos intelectuais, as lideranas expressam antagonismo de
classe, interesses e projetos distintos.
23
A luta das mes e mulheres da periferia no era mais exigir reajuste sa-
larial ou manuteno do emprego, mas sim tentar viver em uma cidade que
discriminava e exclua os que a construam. Elas saam s ruas em passeatas,
escreviam cartas aos governantes, protocolizavam pedidos de servios de con-
sumo coletivo na prefeitura e colocavam a creche em cena. Perdiam o medo e
viravam o jogo. Queriam creche e de boa qualidade, como as da prefeitura.
Mas, como no podiam esperar, criavam entidades comunitrias, faziam puxa-
dinhos e atendiam as crianas. Em 1979, os tcnicos da prefeitura, pressiona-
dos pela opresso salarial, se juntam aos demais servidores e entraram em gre-
ve. Foram reprimidos pelo governo e se aliaram aos movimentos sociais e popu-
lares. As mes e mulheres da periferia aprimoravam as suas manifestaes e
abaixo assinados, indo e vindo ao gabinete do prefeito, exigindo creches iguais
s da prefeitura, e criaram o Movimento de Luta por Creches (MLC). Obtiveram
o apoio das feministas e, principalmente, dos trabalhadores da rede municipal
da assistncia, que, aps uma greve de longa durao, em que foram violen-
tamente reprimidos e perseguidos, radicalizaram nas suas posies e abriram
as portas e as propostas de creche para a populao empobrecida. Na fragili-
dade eles mostravam a sua fora. O governo do ento prefeito Reynaldo de Bar-
ros, pressionado pelas manifestaes das mes da periferia, de forma ligeira,
construiu e inaugurou a rede de creche direta no municpio, alm a ampliar a libe-
rao de convnios.
Enquanto a populao da periferia lutava por creche direta, as entida-
des, que no queriam perder os convnios, tambm se organizavam. No estu-
do sobre a rede de creches de So Paulo, Rosemberg, Campos e Haddad i-
dentificaram dois aspectos relacionados aos convnios. Havia muitas entidades
guarda-chuva, como a Critas Diocesana, entidades vinculadas a outras igre-
jas ou a polticos que detinham poder e fora junto ao poder publico e o discur-
so da eficincia e a necessidade de baixar os custos com o argumento de se
valorizar a participao comunitria. Escrevem as autoras:
O Encontro Nacional de creches realizado em 1981, pela Fundao
Carlos Chagas documentou o calvrio que muitas associaes peque-
nas percorrem para conseguir receber verbas insuficientes, descontinu-
as e que exigem uma prestao de contas difcil de ser providenciada
24
por grupos de bairro sem infraestrutura e apoio tcnico (ROSEMBERG,
CAMPOS E HADDAD, 1991, p. 79).
Havia grande estmulo para que as entidades assumissem creches por
meio de convnio, mas as normas eram aplicadas igualmente para todas as
entidades, que viviam situaes e condies desiguais. O governo entendia
que a creche era um investimento caro e, ainda em 1981, em paralelo s cre-
ches diretas, buscou alternativas de atendimento s crianas pequenas. Pau-
tado nas orientaes do Ministrio da Previdncia Social, tentou implantar na
cidade as creches domiciliares de emergncia. A proposta consistia em organi-
zar pequenos grupos de crianas, que ficava sob os cuidados de uma morado-
ra no bairro. As crianas seriam atendidas na casa da moradora. Rosemberg
explicou que as creches domiciliares funcionavam da seguinte maneira: Uma
mulher toma conta em sua prpria casa, mediante pagamento, de filhos de ou-
tras famlias enquanto os pais trabalham fora (ROSEMBERG, 1986, p. 73).
Observa-se que no caso da criana pobre a propositura era buscar alternativas
de baixo custo bastando que tivesse algum que cuidasse dela. No ano de
1982, no Colgio Boni Consilli, foi realizado o I Encontro na cidade de So
Paulo e um dos temas tratados foi creche. Representantes da equipe da Fun-
dao Carlos Chagas participaram do evento. Em decorrncia do encontro as
entidades criaram o Movimento de Creche Conveniada (MCC), que estabelece-
ria relaes estreitas com a equipe de governo de Mrio Covas. Este movimen-
to se manteve articulado e atuante.
O intervalo da iniciativa de instituir a rede direta de creches se esvaiu no
governo de Mario Covas. Aps longo tempo de luta a ditadura findava. Ocorria
a primeira eleio para governadores e Montoro foi eleito pelo ento MDB para
o governo do Estado de So Paulo, derrotando o candidato governista. Elegeu-
se prometendo liberdade de organizao aos trabalhadores e a abertura de
cerca de 3.000 creches na cidade de So Paulo. Como ainda no havia eleio
para prefeitos, uma das suas primeiras medidas foi indicar Mrio Covas para
prefeito da cidade. Depois de tanta represso e de creches conveniadas, da falta
de treinamentos, as mes da periferia e os trabalhadores acumulavam expectati-
vas. Havia ainda muitas denncias de que as creches teriam sido construdas
com material de pssima qualidade, problemas com contratos e com a alimenta-
o das crianas. A populao exigia respostas e soluo para os problemas.
25
Logo depois de tomar posse na prefeitura Mario Covas repassou as creches
prontas deixadas por Reynaldo de Barros para entidades conveniadas o que foi
a gota que faltava para explodir a revolta dos movimentos populares. Em estu-
do anterior cito que (...) Depois de tantos depois, o efeito seria a instalao da
Comisso Especial de Inqurito (CEI) na Cmara Municipal de So Paulo para
investigar a questo do repasse das creches da prefeitura por meio de convnios
(...) (SCAVONE, 2011, p. 49). A Comisso instalada em outubro de 1983 vai
mudando de foco e as posies se clareiam no transcorrer da CEI. O Movimento
de Luta por Creche no conseguiu reverter os 68 convnios existentes e nem
impedir a entrega das creches prontas s entidades.. Entre o ano de 1979 a 1984
o nmero de creches diretas foi de 04 para 196; das creches conveniadas foi de
95 para 172 e em 1983/84 foram repassadas 42 creches indiretas1. O governo de
Mario Covas mostrou na CEI o nmero das creches na cidade e a posio do
governo no sentido de consolidar a definio de que a poltica pblica para a cri-
ana pequena, por meio de convnios.
Em 1984 j eram 214 convnios consolidando-se a poltica pblica de
atendimento criana pequena, por meio da terceirizao. Marta Godinho,
responsvel pela rea da assistncia social do governo, afirmou em seu depo-
imento na comisso especial de inqurito que era responsabilidade do Estado
cuidar do menor, mas se o atendimento deveria ser operado diretamente ou
entregue aos outros para operar (no caso as entidades) isso era apenas um
detalhe. J o prefeito Mario Covas, em seu depoimento, defendeu que o equi-
pamento creche havia sido supervalorizado, o quadro de pessoal era superdi-
mensionado e era preciso considerar os limites dos recursos. A questo central
para ele era atender a criana no importando se era pela prefeitura ou por
meio de convnio. Como consequncia da CEI foi alterada a norma, que possi-
bilitava a cobrana de taxas por parte das entidades. A cobrana passa a ser
proibida e em contrapartida o valor do convnio per capita passou a ser de
100% do repasse com a garantia de 100% de gratuidade. Ao garantir a gratui-
1 Modalidades de servios - creche na rede municipal de So Paulo: a creche direta a creche construda,
equipada e administrada, diretamente, pela prefeitura, por meio da secretaria municipal de educao. A
creche indireta a creche construda, equipada e mantida pela prefeitura, mas entregue para uma entidade
administrar por meio de convenio. A creche particular aquela em que o prdio pertence entidade, que
faz a sua manuteno e a prefeitura repassa recursos, por meio de convenio. A entidade tambm pode
locar o prdio que a prefeitura repassa os recursos para o aluguel, bem como repassa recursos para peque-
nas adequaes da edificao.
26
dade em 100% ao final da CEI o governo de Mario Covas retoma a poltica de
Faria Lima e instaura, de forma inequvoca, que o atendimento criana pe-
quena se realiza por meio de convnios, com a entrega do comando da creche
s Entidades. Covas chegou a propor o conveniamento de todas as creches.
No entanto, a Comisso no aceitou a execuo das suas ideias (SCAVONE,
2011, p 138 141). Na sequncia de seu governo assumia Jnio Quadros no
agregou nenhum valor a proposta de uma poltica para a infncia e repassou a
gesto das creches para a Secretaria Municipal de Educao. Depois do baixo
investimento do governo que saia, segundo Barucci, Luiza Erundina marcou
sua gesto com a melhora na qualificao dos profissionais, instituiu a demo-
cracia participativa e recolocou a gesto das creches na rea da assistncia
criando os fruns de creche. Para a autora, o governo de Erundina inverteu a
lgica da poltica de favores para uma poltica de reconhecimento de direitos e
defendeu o sentido da igualdade social, com acesso prioritrio creche das
crianas de famlias de baixa renda. Diz a autora:
(...) Quando a creche se torna frum traz para o seu cotidiano a vida
social que era impedida de adentrar seus muros e que garantia o seu
suposto isolamento e neutralidade de ao. Passa a fazer poltica para
as pessoas de verdade, com desejos, divergncia, histria e cultura a
serem considerados e respeitados (BARUCCI, 2007, p. 66).
Apesar de a creche ter sido posta em cena e ter aberto um nmero con-
sidervel de vagas e da defesa das creches administradas de forma direta, em
seu governo no houve a retomada das creches entregues e tambm assinou
convnios com entidades. No vai e vem das polticas pblicas, Maluf e Pitta
no priorizaram a poltica para a infncia acelerando a entrega de creches p-
blicas gesto privada. A aprovao da LDB e as novas exigncias no trata-
mento a ser dado pelo poder pblico s creches impediu Pitta de continuar o
processo de sucateamento. Nesse novo intervalo na disputa entre sucatear e
reconhecer os direitos da infncia, Marta Suplicy assume o governo em So
Paulo. Na sua gesto priorizou a poltica de educao infantil com a construo
de 44 creches de rua e 21 creches com 300 vagas em cada uma delas. Trans-
feriu ainda o comando das creches de SAS para SME e aprovou a criao da
carreira para os trabalhadores da educao infantil. No entanto, a implantao
27
da carreira e o reconhecimento dos direitos dos trabalhadores de educao
infantil foram realizados apenas em parte, tendo em vista as restries impos-
tas pelo sindicato dos professores. Em paralelo, continuou com a poltica de
convnios. De acordo com o Portal Politikei, que divulga artigos publicados por
rgos de imprensa, na gesto dos prefeitos, Serra e Kassab, ocorreu um re-
torno aos convnios, encolhendo sobremaneira a gesto das creches diretas.
Mostra ainda o debate instaurado por ocasio da Conferncia Municipal de E-
ducao de So Paulo sobre os convnios com destaque para o artigo Cre-
ches conveniadas perto do fim em So Paulo? (PORTAL POLITIKEI, acesso
em 03/01/2014). Um debate difcil, com confronto de posies, colocando de
um lado os trabalhadores da educao defendendo as creches diretas e, de
outro, o comando do gabinete da secretaria e as entidades privadas defenden-
do a poltica de educao infantil por meio de convnios. Diante das posies
deflagradas buscamos os dados estatsticos no portal da secretaria municipal
de educao, cone educao em nmeros, para auxiliar no esclarecimento
das propostas que sustentam a poltica para a criana muito pequena na cida-
de de So Paulo. No quadro anexado ao estudo se localiza as informaes
sobre a distribuio das creches, por Diretoria Regional de Educao de acor-
do com a modalidade de servio.
DISTRIBUIO DAS CRECHES: DREs E MODALIDADES DE SERVIO
N OR
DRE
Direta
Indireta
Particular
Total Convnio
Total Geral
01 Butant 17 19 34 53 70
02 Campo Limpo 49 30 71 101 150
03 Capela Socorro 29 19 61 80 109
04 Freg./Brasilndia 16 24 107 131 147
05 Guaianases 28 19 169 188 216
06 Ipiranga 21 44 71 115 136
07 Itaquera 24 32 86 118 142
08 Jaan/Trememb 24 23 23 46 70
09 Penha 33 32 51 83 116
10 Pirituba 27 27 81 108 135
11 Santo Amaro 18 23 46 69 87
12 So Mateus 33 34 25 59 92
13 So Miguel 40 29 66 95 135
TOTAL _ 359 355 891 1246 1605 FONTE: SME EM NUMEROS 27 de dezembro de 2013.
Os nmeros coletados, disponveis no portal da Secretaria Municipal de Edu-
cao, apontam a existncia de 1.605 creches e 1.246 so conveniadas, perfa-
28
zendo 77,64% creches administradas por entidades (SME, acesso 06/01/2014).
Assim, ao se analisar os dados atuais, observa-se a consolidao irreversvel
da opo pblica, por uma poltica de educao infantil realizada por meio dos
convnios.
29
CAPTULO III - O LUGAR DA CRIANA NA CIDADE
A pergunta: Qual o lugar que a criana pequena ocupa na cidade?,
que j citamos localizada no site da Secretaria Municipal de Educao que ins-
pira a reflexo sobre o atendimento oferecido criana pequena, pelo munic-
pio de So Paulo. O trajeto da histria e os dados levantados apontam a defini-
o de uma poltica pblica pautada na logica da iniciativa privada com a contra-
tualizao de servios, por meio de convnios. Desde os primeiros tempos,
quando a creche penetra na prefeitura de So Paulo, no governo de Faria Lima, a
poltica para a pequena infncia era traada com a rgua do convnio. Em 1966,
por ocasio da criao da Secretaria do Bem-Estar Social, por meio da Lei n
6.882/1966, tambm se estabelecia as condies para a formalizao de conv-
nios com as entidades privadas sem fins lucrativos. O convnio deveria vigorar o
ano inteiro e a sua gesto seria terceirizada. Mais recentemente, nos anos de
1990, SEBES divulgou o documento Poltica para convnios onde apontava de
forma clara a posio do governo municipal, que conjugava a articulao do Es-
tado com as entidades sociais. Na abertura do texto se l que as intenes do
governo (...) objetivam operar a construo efetiva de uma nova poltica de traba-
lho com entidades sociais que, atravs de convnios com SEBES, prestam servi-
os populao trabalhadora do municpio de So Paulo (Poltica de Convnios,
SEBES, 1990, p. 3). O servio ofertado deveria ser gratuito, as condies de in-
fraestrutura deveriam ser cumpridas com um ambiente seguro e proporcionar o
desenvolvimento de aes pedaggicas s crianas pequenas. Tambm definiam
claramente o conceito de convnio e as responsabilidades entre as partes:
O convnio um acordo firmado entre SEBES e entidade tendo ambas
um mesmo objetivo: prestar servio. A caracterstica principal desse a-
cordo a interdependncia (...). O convnio pressupe conhecimento e
aceitao, por ambas as partes, das condies e padres estabelecidos
para os servios a serem conveniados (IDEM, p. 3).
Citava a proporo adulto/criana, jornada da criana e dos trabalhado-
res, forma de repasse das verbas, alimentao, dentre outras normas. Somen-
te aps o cumprimento de todas as exigncias comprovando a idoneidade da
entidade e a sua capacidade de prestar o atendimento s crianas, o convnio
era assinado. Deixava evidenciado que ao Estado caberia controlar a qualidade
30
do servio e fiscalizar o uso das verbas pblicas. No portal de SME se localiza
um documento que trata de convnios, postado pela equipe de educao infan-
til, intitulado creches conveniadas. O texto expe as concepes e as exign-
cias normativas para o estabelecimento de convnios atuais possibilitando ob-
servar que ocorreram poucas alteraes na sua proposio ao longo dos anos.
L- se no texto:
Os convnios firmados entre a prefeitura do Municpio de So Paulo e as
entidades/associaes e organizaes que mantm Centros de Educa-
o Infantil/Creches so destinadas ao atendimento preferencial de cri-
anas de zero a trs anos (...) (Creches Conveniadas, Portal SME, a-
cesso em 07/01/2014).
As orientaes informativas dizem que as creches so espaos coletivos
privilegiados de vivncia da infncia e apresenta uma lista os documentos que
devem as entidades devem apresentar para assinar convnio com a prefeitura.
Tambm nos dias atuais, as entidades se inscrevem e, aps a aprovao do
credenciamento, esto aptas para o conveniamento. Ramos, em seu estudo,
sobre parcerias entre Estado e entidades para a administrao de creches, es-
clarece que no ano de 2000, no anexo nico da Portaria 15 publicada em
12/04/2000, a prefeitura de So Paulo definia que convnio:
um acordo sem fins lucrativos para assumir compromisso e respon-
sabilidade no enfrentamento das questes da assistncia social no mu-
nicpio de So Paulo, para a populao situada na faixa de renda famili-
ar de zero a quatro salrios munimos (RAMOS, 2003, p. 54).
Para a autora parceria significa compromisso compartilhado com base
em relaes substantivas entre o poder publico e as entidades e, segundo ela,
no o que ocorre no caso das creches na cidade de So Paulo. Na sua inves-
tigao observou que as relaes por meio do convnio no h convergncia
para a prtica de parceria, visto que as entidades no participam da elaborao
das polticas pblicas de atendimento criana pequena e h distintas vises e
descompasso entre as concepes das entidades e do poder publico. Diz ela
que a (...) pesquisa demonstrou que h falta de dilogos, ausncia de canais
de participao, disputa entre os chamados parceiros, confuso de papeis e
31
de competncias, desequilbrio de foras e tenses nas relaes (...) (IDEM, p.
145).
O poder pblico, em decorrncia de uma viso mais geral da sociedade,
apresenta proposies de ao educativa e as entidades se pautam pela lgica
de seus interesses que so privados. As relaes entre a prefeitura e as enti-
dades so marcadas pela oscilao entremeando aproximao e distanciamen-
to entre as partes envolvidas. Para ela tanto os servios diretos quanto os ser-
vios prestados pela entidade poderiam oferecer atendimento de boa qualida-
de. No entanto, as evidncias das disputas e interesses distintos entre os entes
impedem a oferta de uma prestao de servio que possibilitem o acesso da
criana educao e ao cuidado de boa qualidade. Em 2011, um grupo de au-
tores realizou o estudo com a apresentao de proposta intitulada Acelerao
de oferta de vagas visando atender a expressiva demanda sem acesso cre-
che na cidade de So Paulo. Para a elaborao da proposta analisaram as
modalidades de creches existentes em vrias localidades do pas. Analisaram
creches administradas diretamente pelo poder pblico, convnios, creches do-
miciliares e parcerias publico-privadas, entre vrias alternativas. Tambm estu-
daram formas de construo e locao de prdios, bem como custos de obras
e manuteno das creches. Segundo os autores:
Se, eventualmente, podem ser enunciados consensos mnimos, eles
passam, ento, pelo entendimento da pertinncia da consolidao de
estruturas multivariadas de interveno, que levem em conta a sensibi-
lidade de todos os atores envolvidos - o pacto, a negociao, o agir co-
municativo na esfera pblica - processos que confiram maior legitimida-
de, eficcia, valor e efetividade poltica de creches do municpio de
So Paulo. (SOARES, ARAJO, MONTEIRO E REIS, 2011, p. 75).
Na descrio das vantagens e desvantagens das diferentes formas de
gesto de creche observaram que h pontos em comum entre todas as alterna-
tivas que se distinguem da modalidade do atendimento por meio da creche di-
reta, quais sejam: facilidade de contratao de professores, pois no exige
concurso pblico de acesso ao emprego; facilidade de bens e de servios, pois
no exige licitao e baixo custo. Diante da complexidade da questo do aten-
dimento criana pequena e das dificuldades do acesso da criana pequena
creche, os autores mostram que no se pode dispensar nenhuma modalidade
32
de gesto. As normas publicadas ao longo do perodo, que vai desde quando a
creche penetra na prefeitura at o tempo presente, indicam a permanncia e a
continuidade de uma poltica de convnios, consolidada, independente de o
comando da educao infantil se situar na rea da assistncia social ou da e-
ducao. Segundo Pinheiro, a poltica de convnios firmada pela prefeitura de
So Paulo evidencia uma concepo de Estado, que repassa para a populao
pobre parte dos custos de reproduo da fora de trabalho. Diz ele:
Esta transferncia de responsabilidade sobre os custos de reproduo
da fora de trabalho ocorre, basicamente, por trs vias que se comple-
mentam: 1) reduo do montante despendido pela Prefeitura Municipal
de So Paulo (PMSP) para o fornecimento de algum servio, o que po-
de se efetivar atravs de algum convnio; 2) criao de mecanismos de
captao de recursos junto comunidade; 3) reduo de custos por in-
termdio do rebaixamento da qualidade do atendimento oferecido
(PINHEIRO, 1995, p. 2, acesso em 03/11/2013).
O autor aponta a persistncia e a opo do governo municipal pela pol-
tica de convnios, que consiste no repasse mensal de verba com base em va-
lor per capita com a finalidade de baratear os custos do atendimento criana
pequena e discorda do argumento do carter de parceria entre os entes pblico
(governo) e privado (entidades). Identificou as relaes de entidades sociais
com grupos organizados possuidores de comando e fora poltica como a igre-
ja e polticos, que so possuidores de grande capacidade contributiva e as en-
tidades sociais de vis comunitrio, que se situam na periferia e no possuem
lastro para cobertura dos custos de uma creche. A verba do convnio, segundo
ele, por vezes a nica fonte regular de recursos levando essas entidades a
criar mecanismos diversos para completar os custos do atendimento, junto
populao, pois lhe faltariam relacionamentos com os meios polticos e empre-
sariais. O autor analisou ainda as distines entre as creches diretas e conve-
niadas, no que se refere a) a jornada de trabalho e salrios dos profissionais; b)
custos da creche segundo o porte da entidade; c) presso da prefeitura para
manter os gastos num padro mnimo. Estes aspectos somados reduziriam a
boa qualidade do trabalho dispensado criana pequena.
A poltica pblica de creche na prefeitura de So Paulo se realiza, priori-
tariamente, por meio de convnios e as portarias so os instrumentos utilizados
33
pelo governo para estabelecer as normas e as exigncias a serem cumpridas
pelas entidades. Por prescreverem as relaes e os procedimentos, as portarias
fornecem pistas para entender o compromisso do governo com a criana e que
lugar ela ocupa na cidade. Duas portarias foram selecionadas com vistas a anali-
sar a transferncia do comando da gesto das creches para as entidades. Para a
escolha das portarias adotamos como critrio selecionar uma portaria expedida
pela rea de assistncia social e uma portaria expedida pela rea educacional
com o intervalo de dez anos entre elas. A portaria n 10/FABES/GAB/95 foi publi-
cada pela ento Secretaria da Famlia e Bem Estar Social (FABES) em 12 de
abril de 1995, responsvel pela poltica de creche na cidade e a Portaria n
4.023/2005, publicada pela Secretaria Municipal de Educao (SME). Em 1995 j
estava em vigor o Estatuto da Criana e do Adolescente que no artigo 54, item IV,
inscreve a responsabilidade do Estado com o atendimento criana pequena por
meio da creche e da pr-escola. Com base no Estatuto, FABES definia por meio
da Portaria n10/95, a creche como uma:
(...) unidade de assistncia e educao, que visa atender e compromis-
sos da Nao e do Estado, assegurados na Constituio e no estatuto
da Criana e do Adolescente, proporcionando criana: proteo, edu-
cao e sade e favorecendo seu desenvolvimento fsico, intelectual,
emocional e social (FABES, 1995).
Duas diretrizes fundamentavam os convnios devendo ser aceitos pelas
entidades mantenedoras. Elas deveriam conhecer e aceitar os padres defini-
dos pelo governo e as normas para a prestao de contas; garantir 100% de
gratuidade desde que a famlia comprovasse a inexistncia de recursos para
pagar as taxas. Deveriam aceitar o acompanhamento, superviso e a fiscaliza-
o dos tcnicos da secretaria, inclusive quanto aplicao do dinheiro pblico
destinado a prestao do servio; permitir acesso aos documentos e s infor-
maes e acesso populao usuria dos equipamentos, plano de trabalho e
uso do recurso financeiro. As condies prediais deveriam oferecer segurana
e fcil higienizao, com paredes lavveis, sanitrios adequados e suficientes,
espao aberto e fechado, possibilitando aes educativas que propiciassem o
desenvolvimento da criana e s poderia iniciar as atividades aps a vistoria de
34
tcnicos de FABES. Em 2005, por meio da Portaria n 4.023/05, a SME definia
creche/CEI como:
(...) espao coletivo e privilegiado de vivncia da infncia (0a 6 anos),
que contribui para a construo da identidade social e cultural das cri-
anas, fortalecendo o trabalho integrado do cuidar e do educar, numa
ao complementar s da famlia e da comunidade, objetivando propor-
cionar condies adequadas para promover proteo, segurana, ali-
mentao, cultura, sade e lazer, com vistas insero, preveno,
promoo, e proteo infncia (SME, 2005).
Nas diretrizes de 2005 as entidades tambm deveriam aceitar as condi-
es contidas na norma estabelecida pelo governo sem que houvesse qualquer
discusso e consulta s entidades para a sua elaborao. Entre as principais
diretrizes se destacam o cumprimento dos padres prediais exigidos; a garantia
de 100% de gratuidade com proibio de cobrana de taxas de qualquer natu-
reza; aceitar ao supervisora fiscalizatria; permitir acesso aos documentos e
informaes, prestar contas de acordo com os procedimentos definidos em ins-
trumento especfico. Ao analisarmos as Portarias de 1995 e de 2005, compro-
vamos exigncias iguais para a celebrao dos convnios com as entidades
privadas sem fins lucrativos. Os principais requisitos observados so: aprova-
o de credenciamento da entidade e a entrega de documentos, entre eles,
estatutos, ata de eleio e posse, registros de cadastro geral nos rgos pbli-
cos (CGC/CNPJ; CCM). Os passos seguintes a serem cumpridos para a cele-
brao do convnio eram: a entrega formal da solicitao com a entrega de
novos documentos, plano de trabalho includo a o projeto pedaggico e termo
de responsabilidade pela execuo do convnio. A modalidade de financiamen-
to permaneceu ao longo do perodo da mesma maneira, que ficou popularmen-
te conhecido como o repasse do per capita, um valor definido pelo governo
para cada criana atendida. Nos dois documentos observamos as mesmas e-
xigncias: o compromisso da entidade com a proviso dos recursos, a organi-
zao do fundo de reserva, a responsabilizao pelos encargos sociais e a
prestao de contas dos gastos que deveria ser mensal. As entidades tambm
recebiam verba de implantao das creches, as instalaes prediais deveriam
ser vistoriadas por tcnicos da prefeitura e atender as condies exigidas. S
depois disso, seriam consideradas aptas e iniciar as suas atividades. A exign-
35
cia de ambiente com condies adequadas de espao para brincar, salubre e
seguro, j estavam presentes nas normas desde 1981, como se comprovou no
documento publicado por COBES, que orientava sobre a necessidade de uma
(...) unidade fsica de atendimento que assegure condies mnimas de
espao, funcionalidade, salubridade e segurana, exigidas para a per-
manncia da criana, segundo requisitos tcnicos da legislao de a-
provao e instalao desse servio, a saber: cdigo de obras e lei de
zoneamento, cdigo sanitrio e legislao do corpo de bombeiros
(COBES, p. 17, 1981).
Com relao ao atendimento observa-se que nas duas portarias o aten-
dimento s crianas deveria ser oferecido em onze meses seguidos, de segun-
da a sexta feira, com funcionamento de 10 horas dirias e a alimentao seria
oferecida pela prefeitura. Definiam a proporo do nmero de crianas por a-
dulto, a escolaridade dos profissionais, as competncias dos trabalhadores, o
vnculo trabalhista pela CLT, o ingresso de pessoal sem concurso, salrios iso-
lados, jornada de 40 horas semanais e frias coletivas. Deveriam ainda apre-
sentar um Plano de Trabalho contendo identificao, justificativa, objetivos, me-
tas, croqui do espao fsico, rotinas, programao, previso de gastos (recur-
sos financeiros), projeto pedaggico, recursos fsicos, materiais e humanos,
alm do calendrio anual de atividades aprovado pelo rgo competente. A
elaborao do Plano de Trabalho no era uma novidade nos anos de 1995,
pois no documento de COBES, de 1979, a obrigatoriedade de entregar o Plano
j se fazia presente. Para a implantao de uma creche, alguns procedimentos
bsicos deveriam ser observados, de acordo com as diferentes etapas do tra-
balho. L-se no documento na descrio das etapas Elaborao do Plano de
Trabalho, que deveria contemplar:
Identificao de prioridades em funo da faixa etria da criana, situa-
o social e expectativa da populao a ser atendida; definio do local
de implantao da creche, de acordo com a convenincia dos usurios;
definio da capacidade de atendimento, perodo e horrio de funcio-
namento da creche, tendo em vista: recursos humanos, materiais, fi-
nanceiros e instalaes fsicas disponveis; estabelecimento da progra-
mao geral da creche (IDEM, p. 15).
36
As normatizaes do incio da dcada de 80 do sculo XX traavam os
critrios e procedimentos necessrios para o funcionamento da uma creche. Ao
longo do tempo alteraes foram sendo efetivadas de modo lento e pouco sig-
nificativo, com o aparecimento de muitos detalhes, por vezes secundrios e,
outros prejudiciais ao atendimento de qualidade, como se pode comprovar. As
salas de atividades eram entendidas como salas para brincar com muitos brin-
quedos e deveria proporcionar um ambiente seguro, espao adequado ao n-
mero de crianas. Na norma atual a metragem para cada criana, foi delimitada
de forma precisa, onde se mede os milmetros de cada espao, como se dez
centmetros fizessem a diferena na garantia da qualidade para um bom aten-
dimento. Sobre