Post on 09-Aug-2015
Depois de Hegel: “o mais original diálogo entre Filosofia analítica e
dialética”
Mais do que um estudioso dos ensinamentos de Hegel, Cirne-Lima criou
um pensamento filosófico próprio de extrema importância para a Filosofia
brasileira, considera Ernildo Stein
Por: Márcia Junges e Patricia Fachin
“Avaliar a presença do professor Cirne-Lima no contexto da Filosofia nacional
significa contar a história dos momentos mais importantes que atravessou um
certo debate filosófico a partir dos anos 1960, nascido no Rio Grande do Sul, e
que teria, ao longo dos anos, levado a um diálogo de grande profundidade
entre filósofos brasileiros.” A constatação é de Ernildo Stein, professor da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em entrevista concedida
à IHU On-Line por e-mail, o pesquisador avalia a trajetória intelectual de Cirne-
Lima e afirma que sua última produção, intitulada Depois de Hegel, representa
“uma admirável capacidade de abrangência das diversas tendências filosóficas
atuais”. E acrescenta: “Com esta obra, o professor abriu sua visão filosófica
extremamente sofisticada e ampla para o diálogo com as ciências, sobretudo a
Biologia e as ciências evolucionárias”.
Stein é graduado em Filosofia e Direito, pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Cursou doutorado na mesma universidade, em
Filosofia e pós-doutorado pela Universität Erlangen-Nürnberg. Atualmente, é
docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e
membro do corpo editorial das publicações Reflexão, Problemata, Natureza
Humana e Ágora.
IHU On-Line - Como o senhor percebe a importância de Cirne-Lima dentro
da Filosofia gaúcha e brasileira?
Ernildo Stein - Avaliar a presença do professor Cirne-Lima no contexto da
Filosofia nacional significa contar a história dos momentos mais importantes
que atravessou um certo debate filosófico a partir dos anos 1960, nascido no
Rio Grande do Sul, e que teria, ao longo dos anos, levado a um diálogo de
grande profundidade entre filósofos brasileiros, no seu contexto acadêmico,
trazendo contribuições importantes da Filosofia clássica alemã. Quem vinha de
um tomismo bastante ortodoxo encontraria as tentativas de leitura
transcendental, provenientes de centros de debate, sobretudo, da Alemanha.
Certamente, esses debates levaram a uma libertação do excesso de ortodoxia,
quando Cirne-Lima trouxe ao sul do Brasil um foco de irradiação que iria se
encontrar depois com os estudos de Lima Vaz. Logo, a presença de Cirne-
Lima seria reforçada pela presença de outros filósofos que vinham discutindo
Hegel e as conseqüências de uma tal filosofia para o pensamento filosófico
reinante e a teologia. É nesse período que também se iniciaria um debate da
relação entre cristianismo e marxismo, o que naturalmente conduzia à busca
de questões centrais que podiam ser encontradas em Hegel.
IHU On-Line - Quais são as maiores contribuições desse filósofo para o
avanço nos estudos sobre Hegel?
Ernildo Stein - Cirne-Lima já me era conhecido pela sua obra A fé pessoal
(Der personale Glaube), que eu vinha traduzindo para o professor Ernani Fiori
como auxílio para a sua tese de professor titular, Reflexão metafísica e
experiência transcendental (Ernani Fiori lamentavelmente não chegou a
apresentar a sua tese de cátedra, cuja defesa estava iminente, por causa da
sua exclusão da universidade). Nessa época, a leitura da Metafísica, de E.
Coreth, me revelava, pelas notas referidas a Cirne-Lima, no texto, o quanto ele
tinha sido importante no diálogo com Coreth. Quando estávamos escrevendo,
em diálogo constante, as teses de livre docência para a Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), Cirne-Lima escrevia uma primeira
interpretação, profundamente hegeliana, intitulada A analogia como dialética do
realismo, que revelava uma muito original interpretação de elementos
fundamentais de Hegel, postos já num novo contexto. Mas isto seria apenas o
começo de um longo empenho nas discussões hegelianas que o filósofo
travava, sobretudo com colegas brasileiros e que terminaram progressivamente
a chamar a atenção para especialistas em Hegel na Alemanha. Formou-se
assim um grupo notável de debates, no qual Cirne-Lima não apenas revelava
um conhecimento atualizado das pesquisas de ponta de Hegel, mas era
procurado como um intérprete cuja criatividade era cada vez mais visível.
Juntamente com Lima Vaz, Manfredo Oliveira, Marcelo Aquino e vários
conhecedores de Hegel do exterior, Cirne-Lima terminou liderando o grande
aprofundamento do estudo de Hegel no Brasil.
IHU On-Line - Qual é a importância de Cirne-Lima na consolidação e
disseminação da Filosofia na década de 1980? Qual é a sua influência na
formação dos filósofos das gerações futuras, considerando que ele foi
professor de muitos intelectuais que hoje atuam nas academias
brasileiras?
Ernildo Stein - Quando se iniciaram os cursos de Pós-Graduação no Brasil, o
professor Carlos Roberto Cirne-Lima iniciou uma atividade de irradiação
através da formação de novos pesquisadores e professores. Naturalmente, há
todo um clima de ambiente universitário que foi sustentado por Cirne-Lima
através de suas interpretações de Hegel e de seus avanços no
desenvolvimento de uma análise de caráter pessoal que o levaria a
desenvolver um pensamento próprio. Muitos eventos de Filosofia contaram
com a presença desse professor, expandindo-se cada vez mais o estudo de
Hegel e a interpretação nova de Cirne-Lima, que iniciava um pensamento
próprio que o levaria a refazer todo o caminho platônico, sobretudo desde
Plotino.
IHU On-Line – Quais são suas lembranças da época do exílio? Como
vocês passaram por esse momento?
Ernildo Stein - Não sei se a diáspora dos filósofos na época da ditadura pode
ser considerada um exílio. Certamente, o ter que abandonar o seu trabalho
universitário representava uma mudança brusca para quem fazia da Filosofia o
seu foco central de atividade. Quero lembrar apenas o gesto do professor
Cirne-Lima que foi cassado por ter-se solidarizado com a primeira turma da
Filosofia da UFRGS, expurgada em 1969. Eu já estava com minha mulher e
minhas filhas no exterior quando soube da atitude do Cirne-Lima e de colegas,
com relação aos atingidos pelo expurgo. Só quem viveu a situação pode avaliar
a generosidade e a coragem de um tal gesto.
IHU On-Line - Como você entende o projeto do CD-Rom Dialética para
todos, no qual a linguagem acessível faz com que a Filosofia seja
interpretada com maior facilidade pelo público leigo?
Ernildo Stein – Certamente, a iniciativa desse projeto foi absolutamente
original em nosso meio e levou a uma difusão na época, inusitada, não apenas
das idéias de Hegel, mas do próprio pensamento de Carlos Roberto Cirne-
Lima, também publicado no seu livro, já em várias edições, Dialética para
principiantes. Não é simples dar a idéia da penetração do debate de Hegel
entre as pessoas cultas e não apenas no mundo universitário através dessa
iniciativa.
IHU On-Line - A obra mais recente de Cirne-Lima chama-se Depois de
Hegel, na qual ele se alicerça nos erros e acertos do pensador e
desenvolve um pensamento bastante ousado e sólido. Como essa
coragem e inovação intelectual de Cirne-Lima servem de inspiração para
a comunidade filosófica?
Ernildo Stein - O livro Depois de Hegel coloca o filósofo Carlos Roberto Cirne-
Lima em lugar muito particular na interpretação de Hegel. Mas a obra não pode
ser considerada apenas uma releitura de um filósofo da tradição. Nela, aparece
o verdadeiro pensamento de Cirne-Lima, mostrando uma admirável capacidade
de abrangência das diversas tendências filosóficas atuais, através das quais
ele faz passar o projeto hegeliano, dando-lhe uma novidade inesperada. Mas
isso seria dizer pouco, porque, com esta obra, o professor abriu sua visão
filosófica extremamente sofisticada e ampla para o diálogo com as ciências,
sobretudo a Biologia e as ciências evolucionárias. Os encontros periódicos com
filósofos de várias tendências vindos do Brasil e do exterior fizeram surgir na
Unisinos um marco da interdisciplinaridade inspirada no pensamento dialético
em seu sentido mais amplo. Depois de Hegel representa também o esforço de
um pensamento que está em busca de se articular como sistema, no contexto
de uma profunda novidade. Mas, para levar Hegel a um diálogo como Cirne-
Lima o pretende, era necessário corrigir, sob vários aspectos, questões
fundamentais em Hegel. É para isso que ele submeteu a Lógica de Hegel a
uma severa formalização, utilizando os mais finos recursos da lógica
contemporânea. O que emociona, na leitura desse livro, é a percepção de uma
busca de totalidade, que harmonicamente se articula, também, com a
totalidade do conhecimento científico.
Seria quase redundante afirmar que o conhecimento da filosofia analítica e de
seus recursos é levado para além dela mesma numa ampliação em que resulta
o mais original diálogo entre filosofia analítica e dialética.
IHU On-Line - Em entrevista à edição 217 da IHU On-Line, Cirne-Lima diz
que, hoje, os filósofos estão fazendo História da Filosofia, e quem está
fazendo Filosofia, verdadeiramente, são físicos ou biólogos, que têm uma
visão de conjunto hoje inexistente na Filosofia. Como o senhor interpreta
essa visão de Cirne-Lima em contraposição ao pensamento
heideggeriano e à fragmentarização anti-sistema característica da pós-
modernidade?
Ernildo Stein - O que tem sido produzido no diálogo com o campo das
ciências físicas e evolucionárias nos debates periódicos da Unisinos representa
realmente uma novidade surpreendente, mas trata-se de uma experiência que
acompanha certos movimentos do pensamento científico. Isto não significa que
se possa considerar um tal debate encerrado e mesmo possivelmente
substituído por outras propostas. Sobre a questão da “visão de conjunto”, tenho
minhas dúvidas com relação às ciências. Pois as ciências desenvolvem um
pensamento discursivo do qual a totalidade está excluída por força da própria
lógica das ciências. Elas certamente desenvolvem, na linguagem de Putnam,
uma racionalidade 2, que de modo algum é possível sem a pressuposição de
uma racionalidade 1, pela qual se garante a totalidade. Em primeiro lugar, é
importante dizer que a fenomenologia não persegue uma espécie de
pensamento fragmentário. Ela simplesmente se delimita um campo no qual ela
explora as condições finitas dentro das quais se pode fazer Filosofia. Ao
contrário da pós-modernidade, a fenomenologia hermenêutica, sobretudo na
virada hermenêutica contemporânea, busca uma unidade, contra o dualismo, e
contra um inaceitável relativismo como o da pós-modernidade. Esta é nada
mais do que resultado de múltiplos eventos da cultura contemporânea, e, na
Filosofia, pode ser entendida como o resultado de uma leitura equívoca do
pensamento de Heidegger. Deve-se, no entanto, reconhecer que as
interpretações que se revelam em certas questões de Heidegger não se
caracterizam como anti-sistemáticas, mas simplesmente se movem num nível
que precede qualquer pretensão de sistema, e, nesse nível, a discussão entre
Hegel e Heidegger, por exemplo, resulta em produtividade especulativa. Isso
quer dizer que, para além da questão do ser em Heidegger, que é uma questão
fenomenológica, é possível colocar uma questão do ser que avança para além
da fenomenologia, e nela, sem dúvida, se realizam movimentos que nada têm
a ver com a dimensão da compreensão do ser da fenomenologia. Em Filosofia,
não faz nenhum sentido jogar filósofos com suas teorias em trincheiras
opostas. Não é por nada que costumo dizer que Heidegger convida a
metafísica ocidental para um ecumenismo, na medida em que recusa qualquer
ortodoxia no pensamento filosófico.
IHU On-Line - Que aspectos você destacaria na convivência pessoal e
intelectual com Cirne-Lima?
Ernildo Stein - Sempre admirei as grandes figuras de pessoas e de
pensamento. Certamente, a primeira impressão que tive, quando ouvi Cirne-
Lima falar da dialética do senhor e do servo, num momento muito especial, foi
a de uma mente brilhante e extraordinariamente lúcida e arrojada. A
convivência com o colega me traz sempre a vivência de uma generosidade
rara. Mesmo que em muitos momentos nos movíamos em posições diferentes,
filosoficamente, a fineza e a cortesia de Cirne-Lima suscitavam vontade de
encontrar na conversa clareza para as questões da Filosofia. A tarefa filosófica
pode ter sua grandeza. Mais importante que ela, no entanto, é a certeza da
solidariedade e da lealdade, no convívio humano.
O abismo entre a ética da psicanálise e o discurso ético universal
Ética universal e ética da psicanálise são inconciliáveis, afirma o filósofo
Ernildo Stein. Além disso, a ética da psicanálise não é a mesma ética do
psicanalista. Não cedas do teu desejo é convite para “reconhecer as duas
margens de um abismo atravessado pela fala”
Por: Márcia Junges
“Em nossos dias, como em qualquer época, o falar que vem da outra margem
atravessa o abismo e nos surpreende na margem de cá”. A afirmação é do
filósofo Ernildo Stein, na entrevista, exclusiva, que concedeu por e-mail à IHU
On-Line. Para ele, a ética da psicanálise e a universalidade do discurso ético
não são conciliáveis. “A ética da psicanálise não é a ética do psicanalista. Ele
que se avenha com os problemas que lhe causa seu ofício. A ética da
psicanálise refere-se àquele sujeito que não deve ceder de seu desejo”. E
complementa: “O outro sujeito não deve ceder daquilo que aparece na
estrutura de sua linguagem, que se constitui do desejo”.
Stein é graduado em Filosofia e Direito, pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Cursou doutorado na mesma universidade, em
Filosofia e pós-doutorado na Universität Erlangen-Nürnberg. Atualmente, é
docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e
membro do corpo editorial das publicações Reflexão, Problemata, Natureza
Humana e Ágora. Publicou dezenas de livros, entre eles Seminário sobre a
verdade: lições introdutórias para a leitura do parágrafo 44 de Ser e
Tempo (Petrópolis: Vozes, 1993); A caminho de uma fundamentação pós-
metafísica (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997), Diferença e metafísica (Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2000); Compreensão e finitude (Ijuí: Unijuí,
2001); Introdução ao pensamento de Martin Heidegger (Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2002); Mundo Vivido: Das vicissitudes e dos usos de um conceito
da fenomenologia (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004) e Seis estudos sobre Ser e
Tempo (3. ed. Petrópolis: Vozes, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que Lacan quer dizer exatamente com “não cedas de teu
desejo”?
Ernildo Stein- Na conferência Lugar, origem e fim do meu ensino, Lacan
afirma: “Se é no campo do Outro que se constitui o desejo, se ‘o desejo do
homem é o desejo do Outro’, pode fazer-se necessário que seu desejo, o do
homem, seja o seu próprio”.
Se a frase que aparece na pergunta se referir a esse campo do Outro, então,
ceder de seu desejo seria abandonar esse campo e perder o que é próprio. O
difícil é definir o que significa que o desejo seja próprio, pois, na medida em
que o sujeito em Lacan é sempre um sujeito cindido, não sabemos a que lado
da “divisão do sujeito” (Lacan) se refere esta espécie de comando. Essa é
justamente a questão na qual se funda a própria idéia da psicanálise. “Digo que
o sujeito, ao mesmo tempo em que é o sujeito, funciona como dividido. Aí
reside, inclusive, todo o alcance do que instauro. Devo dizer-lhe que esta
divisão do sujeito eu a consagro, denuncio, demonstro por outras vias que não
esta, reduzida, de que me sirvo aqui, e que, aliás, não dá conta absolutamente
da divisão em si. Eu precisaria ter feito algo cuja referência me proibi
taxativamente de trazer esta noite, porque não se deve pensar que falei daquilo
que, se me permitem, eu chamaria, para ir mais rápido, não apenas meu
ensino, mas minha doutrina, e do que daí resultasse” (Lacan).
Depois dessa afirmação, Lacan acrescenta: “nessa divisão há um elemento
causal que é o que chamo de objeto pequeno a. (...) Isso tem uma relação mais
estreita com a estrutura do desejo” (Lacan). E o autor continua mais adiante:
“Então, para dizer que esse sujeito era dividido, simplesmente indiquei suas
duas posições em relação à função da linguagem. Nosso sujeito como tal é, o
sujeito que fala, se quiser, pode muito bem reivindicar a primazia, mas nunca
será possível considerá-lo pura e simplesmente livre iniciador de seu discurso,
na medida em que, sendo dividido, está ligado a esse outro sujeito, que é o do
inconsciente, e que se verifica ser dependente de uma outra estrutura
linguageira. A descoberta do inconsciente é isso”.
Nisso que escutamos está resumida a questão implícita no comando “não
cedas do teu desejo”. Poderia muito bem falar o primeiro sujeito e reivindicar a
primazia. Entretanto, como ele está ligado a outro sujeito, o do inconsciente,
ele está dependente da estrutura desse sujeito que se estrutura como
linguagem. É a esse sujeito que se dirige o comando da frase acima. É ele que
não deve ceder de seu desejo. A frase, portanto, quer dizer que o outro sujeito
não deve ceder daquilo que aparece na estrutura de sua linguagem, que se
constitui do desejo.
IHU On-Line - Por que esse enigma norteia o nome do Colóquio A Ética da
Psicanálise? Qual é o objetivo dos debates que se seguirão?
Ernildo Stein- A ética da psicanálise não é a ética do psicanalista. Ele que se
avenha com os problemas que lhe causa seu ofício. A ética da psicanálise
refere-se àquele sujeito que não deve ceder de seu desejo. Talvez o
psicanalista, sabendo dessa outra ética que se liga ao desejo, e que por isso é
associada ao inconsciente estruturado como linguagem, deva apenas
reconhecer e, digamos, respeitar essa ética do outro sujeito. Tem, portanto,
importância saber que o psicanalista não desaparece do cotidiano de uma ética
que não é a ética do desejo. O analista, portanto, se confronta com duas éticas.
IHU On-Line - Em que sentido esse é um enunciado bifronte?
Ernildo Stein- “Não cedas de teu desejo” ainda que se dirija a outro sujeito -
aquele do desejo, como movimento do inconsciente, sempre está em luta com
o primeiro sujeito, aquele que “pode muito bem reivindicar a primazia”, mas
nunca é livre iniciador de seu discurso, porque está ligado ao outro sujeito.
Disso nasce a condição ambivalente do enunciado. Como nele se esconde “o
quando falas” desde o lugar do inconsciente, é aí que está a iniciativa que o
primeiro discurso quer desconhecer.
IHU On-Line - Como o desejo se expressa na fala de nós, pós-modernos?
Ernildo Stein- O desejo que atravessa o outro sujeito estará sempre na fala do
homem, pois o inconsciente não tem tempo. Quando o desejo fala, podem
mudar as condições em que o primeiro sujeito fala - como o antigo, o moderno,
o pós-moderno. O desejo, no entanto, movimenta-se sempre no presente, no
atual, no seu tempo. Ele não se transforma naquilo que é o seu comando. Ele é
sempre do outro sujeito, sempre atual. Suas modulações não seguem a
conjugação de qualquer verbo.
IHU On-Line - Conseguimos, efetivamente, “falar” em nossos dias? Por
quê? E em que aspectos nossa fala é um sintoma do tipo de sociedade
em que vivemos?
Ernildo Stein- Em nossos dias, como em qualquer época, o falar que vem da
outra margem atravessa o abismo e nos surpreende na margem de cá. Como o
desejo do outro se manifesta numa outra estrutura “linguageira”, que é a
estrutura do inconsciente, ele é sempre novo, ele não passa, porque ele repete,
“re-pede”, não cessa de ser sempre novo. Portanto, “falar” é sempre em nossos
dias. E ele não tem motivo, porque nele retorna o recalcado, pelo qual somos
sempre visitados no sintoma. Portanto, o falar que vem da outra margem não
se amarra a nenhum tipo de sociedade. Ele nunca é sintoma de. É apenas
sintoma. Nós inventamos coisas como o sintoma social, ou o sintoma de uma
sociedade em que vivemos. Entretanto, o movimento, na linguagem do
comando do desejo, é apenas e sempre a repetição - um “re-pedir”, pedir de
novo que não cessa.
IHU On-Line - Atualmente, como é possível sustentar essa nossa fala, e
não abrirmos mão de nosso desejo?
Ernildo Stein- Eu deveria ter dito em algum momento que nós nunca cedemos
de nosso desejo, aliás, a iniciativa é sempre dele. Não falaríamos se ele não
tomasse a iniciativa, porque somente falamos quando fala o desejo da outra
margem, o desejo do outro. Somos divididos por um acontecimento que nunca
será recuperado em sua plenitude. Sempre estaremos em falta, e por isso
falamos e o desejo fala, para que possamos falar. E agora.
IHU On-Line - No cenário pós-moderno, como podemos compreender a
responsabilidade do sujeito ante sua fala, e a falta de sustentação que
muitas vezes se configura no discurso?
Ernildo Stein- Lacan nos disse acima algumas coisas sobre um sujeito
cindido, sobre dois sujeitos. Portanto, o sujeito não tem responsabilidade
neutra dentro de algo, nem da fala. Ele sempre deve ser flagrado desde o lado
de onde se fala. A psicanálise deveria aprender ela mesma que pode ser vítima
de muitas armadilhas, inclusive aquela de mudar a sociedade. A sociedade
será mudada, ou não, quando o sujeito cindido sai do “duplo monólogo”
(Lacan) e não cede de seu desejo, o que quer dizer, que reconheça o
enunciado de um comando. O desejo que, desde a outra margem, toma a
iniciativa, como iniciador de um discurso que fala pelo retorno do recalcado no
sintoma, escutado pelo “sujeito - suposto-saber”. Portanto, temos de
reconhecer que muitas vezes o outro sujeito, que é o do inconsciente, pode ser
passado por alto no discurso do primeiro sujeito que se pensa livre iniciador.
Talvez aí tivéssemos uma falta de sustentação do discurso desse sujeito que
fala, reivindicando uma primazia que é usurpada. Teríamos assim um discurso
que não concorda com aquilo que Lacan cita de Heidegger : “O homem habita
a linguagem”. E Lacan continua: “Isso quer dizer que a linguagem está aí antes
do homem, o que é evidente. Não apenas o homem nasce na linguagem
exatamente como nasce no mundo, como também nasce pela linguagem”.
IHU On-Line - Como é possível conciliar a subjetividade da psicanálise
com a universalidade de um discurso ético?
Ernildo Stein- Todo o desenvolvimento de minhas respostas mostra o caráter
inconciliável entre a ética da psicanálise, isto é, a fala do outro sujeito, com
qualquer universalidade de discurso ético, no qual se movimenta qualquer ser
humano, mesmo o psicanalista. “Não cedas de teu desejo” nos convida,
portanto, a reconhecer as duas margens de um abismo atravessado pela fala.
É inegável que no enunciado “não cedas de teu desejo”, este que nasce na
outra margem remete ao desejo que vem do Outro, do sujeito que tem a
iniciativa e, por isso, esconde o enunciado de um comando. Não se pode
confundir esse comando com uma vontade geral, ou com um imperativo, que
estaria ligado a um discurso ético. Ainda que não possamos falar de uma
subjetividade da psicanálise, o não ceder quando fala o desejo nasce da
singularidade, portanto, de algo que está situado além de minha vontade. Esta
recebe o enunciado de um comando, enquanto a ética (de ethos, com eta, e
não de ethos com epsilon) daquele que fala se refere ao lugar em que algo caiu
e retorna, onde se situa morada do desejo. Não precisamos insistir que o
desejo sempre fala, mesmo quando não é escutado. Por isso falo que o “não
cedas” e o “de teu desejo” se separam pelo abismo da fala. A metáfora que
exprime isso pode ser encontrada na seguinte afirmação: “São vizinhos, mas
habitam em montanhas separadas”.
Leia mais...
>> Confira outras entrevistas concedidas por Ernildo Stein ao IHU
• A superação da metafísica e o fim das verdades eternas. IHU On-
Line número 185, de 19-06-2006;
• Depois de Hegel: “o mais original diálogo entre Filosofia analítica e
dialética”. IHU On-Line número 261, de 08-06-2008.
O biologismo radical de Nietzsche não pode ser minimizado
A vida não é distinguida entre bios e zoe pelo filósofo alemão, reduzindo
o ser humano à pura zoologia, analisa Ernildo Stein. Heidegger mostra
que o biologismo nietzscheano não é apenas uma veleidade, mas
pretende atingir o princípio ou axioma da não-contradição
Por: Márcia Junges
“Heidegger mostra que o biologismo nietzscheano não é apenas uma
veleidade, mas pretende atingir o princípio ou axioma da não-contradição pela
qual o ser humano se orienta em todas as manifestações. Se esse axioma é
biológico, então, todo o manifestar-se do ser humano é apenas biológico.
Nietzsche atingiu assim o coração mesmo da essência da razão, reduzindo-a a
uma simples função da vida”. A constatação é do filósofo Ernildo Stein, em
entrevista exclusiva, concedida, por e-mail, à IHU On-Line. De acordo com ele,
Nietzsche não distingue a vida entre bios e zoe, já que pretende é “reduzir o
ser humano à pura zoologia, através da eliminação da diferença que é
garantida na definição aristotélica do zoón lógon echón. Justamente o lógos só
é possível mediante o axioma da não-contradição, que já foi biologizado em
Nietzsche, melhor diríamos, zoologizado”. As ideias serão debatidas na
conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questão da
biopolítica, parte integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da diferença -
Pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico
da vida humana. Stein aponta o biologismo radical de Nietzsche, que não
deve ser minimizado. Ao analisar os conceitos grande saúde, de Nietzsche, e
biopoder, de Foucault, afirma que não devemos esperar “demais de uma
aplicação desses dois conceitos no mundo contemporâneo nas áreas da
psicologia, pedagogia, ou mesmo, da crítica do poder. Eles são panoramas
muito amplos, um, tendo por base a realidade, e o outro, fazendo da literatura o
pedestal para um grande sonho”.
Stein é graduado em Filosofia e Direito pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Cursou doutorado na mesma universidade, em
Filosofia e pós-doutorado na Universität Erlangen-Nürnberg, Alemanha.
Atualmente, é docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS) e membro do corpo editorial das publicações Reflexão,
Problemata, Natureza Humana e Ágora. Publicou dezenas de livros, entre
eles Seminário sobre a verdade: lições introdutórias para a leitura do parágrafo
44 de Ser e Tempo (Petrópolis: Vozes, 1993); A caminho de uma
fundamentação pós-metafísica (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997); Diferença e
metafísica (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000); Compreensão e finitude (Ijuí:
Unijuí, 2001); Introdução ao pensamento de Martin Heidegger (Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2002); Mundo Vivido: Das vicissitudes e dos usos de um conceito
da fenomenologia (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004) e Seis estudos sobre Ser e
Tempo (3. ed. Petrópolis: Vozes, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são os principais aspectos da crítica de Heidegger
ao biologismo de Nietzsche?
Ernildo Stein - Como ponto de partida para responder a esta questão,
comecemos por uma afirmação de Heidegger, comentando o seguinte aforismo
de Nietzsche: “As categorias são ‘verdades’ que condicionam a vida para nós:
exatamente como o espaço euclidiano é uma tal ‘verdade’ condicionante”.
“Dito de maneira grosseira: as categorias, o pensar com categorias, assim
como a regulação e a articulação desse pensamento: a lógica – a vida arranja
tudo isso para si, a fim de se conservar. Essa doutrina da proveniência do
pensamento e das categorias não deve ser chamada de biologismo? Não
queremos fechar os olhos para o fato de Nietzsche pensar aqui de maneira
palpavelmente biológica e falar mesmo dessa maneira sem qualquer
constrangimento” (HEIDEGGER).
O filósofo, continuando a análise de Nietzsche, que afirma que “ninguém
sustentará a necessidade de que haja homens, a razão é uma mera
idiossincrasia de determinadas espécies animais”, conclui: “Nietzsche constata:
‘A espécie animal particular homem, assim, é algo puramente subsistente’”.
Depois desse apanhado geral do flagrante biologismo nietzscheano, Heidegger
apresenta o seu veredicto, citando Nietzsche: “A compulsão subjetiva, para não
contradizer, aqui é uma compulsão biológica.” e comenta: “Essa sentença é
formulada uma vez mais de maneira tão concisa, que poderia permanecer
despercebida, se não tivéssemos aprendido com as manifestações anteriores”.
Heidegger, portanto, mostra que o biologismo nietzscheano não é apenas uma
veleidade, mas pretende atingir o princípio ou axioma da não-contradição pela
qual o ser humano se orienta em todas as manifestações. Se esse axioma é
biológico, então, todo o manifestar-se do ser humano é apenas biológico.
Nietzsche atingiu assim o coração da essência da razão, reduzindo-a a uma
simples função da vida.
Não temos nessa manifestação do filósofo uma simples crítica de Heidegger. O
que vem sintetizado é simplesmente a absoluta redução do homem ao bios, ao
biológico, e talvez mesmo, à zoe, o raso do acontecer zoológico. Tem
importância a discussão entre bios e zoe porque, como diz Heidegger, o bios é
a zoe com “currículo” (elementos sucessivos que revelam um progresso para
além do biológico), enquanto a zoe é o mero dar-se como coisa. “Vida”, em
Nietzsche, não distingue entre bios e zoe, porque efetivamente o que o autor
pretende é reduzir o ser humano à pura zoologia, através da eliminação da
diferença que é garantida na definição aristotélica do zoón lógon echón.
Justamente o lógos só é possível mediante o axioma da não-contradição, que
já foi biologizado em Nietzsche, melhor diríamos, zoologizado.
Além de o autor de Assim falou Zaratustra dizer que a não-contradição não é
uma necessidade, mas uma incapacidade do animal, ele termina sentenciando
o fim (a destruição) da verdade: “Verdade, esse tipo de erro que um certo tipo
de animal precisa para sobreviver”. Não é preciso ler mais de Nietzsche para
nos convencermos de seu biologismo radical, introduzido estrategicamente
para desenvolver toda a sua visão do ser humano. Quem se arrisca a
minimizar esse biologismo, recusando-o como núcleo central do pensamento
de Nietzsche, se desvia da intenção básica desse filósofo e está livre para
qualquer interpretação que melhor lhe parecer.
IHU On-Line - Por que Heidegger fala num “pretenso biologismo” desse
autor?
Ernildo Stein - Não encontrei nenhuma passagem em Heidegger que falasse,
a propósito de Nietzsche, em “pretenso biologismo”. O atenuante que se
esconderia na palavra “pretenso” certamente não pode ser encontrado no que
foi dito acima. É claro que a multidão de intérpretes de Nietzsche, que se
servem à vontade de seu biologismo, gostaria que fosse um biologismo
especial, que permitisse focar Nietzsche como um filósofo protegido contra as
consequências de seu próprio pensamento. Tal estratégia está presente em
todas as interpretações que pretendem se guiar positivamente em Nietzsche
para a construção de qualquer pensamento filosófico.
IHU On-Line - Qual é a interpretação de Foucault sobre o biologismo
nietzscheano?
Ernildo Stein - Foucault não é, em primeiro lugar, um intérprete de Nietzsche.
Há, certamente, passagens em sua obra em que encontramos algum aspecto
que poderia parecer indicar uma proximidade com Nietzsche. Foucault
ultrapassou qualquer possibilidade de identificá-lo com o biologismo
nietzscheano. É verdade que em Nietzsche, o biologismo tem uma função:
subverter a metafísica da transcendência. Mas ele acabou se tornando o último
grande metafísico, no sentido de que, com seu biologismo, instala um princípio
epocal que realiza a tarefa de encobrir a questão do ser e do ente, que é aquilo
que salva a diferença desde os pré-socráticos. É por isso que Nietzsche tem
algo que jamais pode ser localizado em Foucault. Este é um além-
nietzscheano: Nele não é negado o princípio da não-contradição, a questão da
verdade, e a questão da diferença. Há uma secreta distinção que sustenta o
edifício foucaultiano: a diferença entre bios e zoe. É isso que lhe permite
desenvolver um tipo de filosofia que supera o essencialismo nietzscheano de
maneira definitiva e o coloca entre os grandes filósofos da narrativa. A visão
que esse filósofo nos apresenta com as análises que o levam até a biopolítica é
uma caminhada através de sucessivas histórias que compõem a cultura
ocidental, através de uma perspectiva arqueológica.
IHU On-Line - Em que sentido a biopolítica tem ressonâncias da grande
saúde nietzscheana?
Ernildo Stein - Tentemos primeiro compreender algo da biopolítica de
Foucault. O filósofo afirmou, no fim de sua vida, que o objetivo de suas
investigações era aquilo que encontrara nas suas últimas grandes preleções: o
novo modo de pensar o eu e a hermenêutica do sujeito. Desse modo, podemos
dizer que só se compreende a biopolítica desde o ponto de vista da
arqueologia do saber e dos diversos saberes que percorrem os livros que
desenvolveu nas obras que cercam Vigiar e punir e sua Microfísica do poder.
Não há dúvida que a leitura da introdução à biopolítica nos dá uma minuciosa
ideia de que toda a evolução do liberalismo representou, basicamente, uma
moldura para uma outra política, a política dos corpos, a biopolítica. Trata-se,
portanto, em primeiro lugar, da descrição detalhada de como se constitui a
administração do vivente humano em todas as suas formas de manifestação.
Para tal foram desenvolvidos três níveis de análise em Foucault.
O primeiro nível trata propriamente da gestão da população, do ponto de vista
demográfico e censitário mais amplo possível. Nesse nível, temos as múltiplas
estratégias sobre os movimentos das populações da espécie humana, como
nascimento e morte, grupos divididos por diversos critérios, migrações, todos
os aspectos que entram em jogo para o capitalismo nascente ter uma visão
global das questões coletivas que surgem em torno da distribuição da
população.
O segundo nível aborda particularmente a questão das formas de confinamento
e reclusão, como estabelecimentos penais, instituições de internamento
psiquiátrico, outras formas de internação como institutos educacionais e outros,
onde se desenvolve um tipo de segregação e vigilância sobre indivíduos já
separados por critérios específicos.
Se, no primeiro nível, os critérios de distribuição eram os processos biológicos,
como o controle dos nascimentos e da mortalidade, a saúde da população, a
duração da vida - a longevidade, nesse segundo nível, se esboça um processo
de defesa da sociedade que leva a mecanismos de criação de populações
segregadas em instituições de punição ou de educação. Podemos dizer que,
no segundo nível, começam a aparecer as tecnologias disciplinares em que os
indivíduos são submetidos a controles dos diversos processos biológicos.
No terceiro nível, temos o surgimento das diversas formas de disciplina para a
formação do mundo interior ou das consciências. É aí que se constituem os
discursos que fazem o ser humano catalogar diversas formas de considerar
uma parte de sua vida privada.
A breve referência a esses três níveis nos permite ver uma forma de
administrar a vida humana através de disciplina, regulamento e autocontrole.
Do orgânico ao biológico até o espiritual, a vida é construída para que alguém
tenha sobre ela uma espécie de possibilidade de controle do homem espécie.
Foucault fala, muitas vezes, em todos esses aparelhamentos como em
instituições que servem ao controle geral ou dos corpos pela anatomo-política e
do homem espécie pela biopolítica.
Biopolítica e grande saúde
Há um ponto central a acentuar em tudo isto, e que aparece, sobretudo, em
sua obra de introdução à biopolítica, que se refere a duas lógicas. De um lado,
a lógica da soberania, que consiste no “fazer morrer” e no “deixar morrer”. De
outro lado, a lógica da biopolítica, que faz viver e deixa morrer. Podemos dizer
que a biopolítica se refere a um poder que gere a vida.
Foi necessária essa pequena digressão para que se tornasse flagrante a
diferença entre a biopolítica e a “grande saúde” nietzscheana. Temos a
magistral passagem de A Gaia Ciência descrevendo a “grande saúde”:
“Nós, os novos, os sem-nome, os difíceis de entender, nós, os nascidos cedo
de um futuro ainda indemonstrado - nós precisamos, para um novo fim,
também de um novo meio, ou seja, de uma nova saúde, de uma saúde mais
forte, mais engenhosa, mais tenaz, mais temerária, mais alegre do que todas
as saúdes que houve até agora. Aquele cuja alma tem sede de viver o âmbito
inteiro dos valores e anseios que prevaleceram até agora e de circunavegar
todas as costas desse ‘mar mediterrâneo’ ideal, aquele que quer saber, pelas
aventuras de sua experiência mais própria, o que se passa na alma de um
conquistador e explorador do ideal, assim como de um artista, de um santo, de
um sábio, de um legislador, de um erudito, de um devoto, de um adivinho, de
um apóstata no velho estilo: este precisa, para isso, primeiro que tudo, de uma
coisa, da grande saúde - de uma saúde tal, que não somente se tem, mas que
também constantemente se conquista ainda, e se tem que conquistar, porque
se abre mão ela outra vez, e se tem de abrir mão!...”
Vemos que a biopolítica representa um projeto inacabado que Foucault
desenvolvera para realizar uma história profunda da modernidade enquanto
moldura da administração da vida humana. O autor não faz nenhum tipo de
avaliação positiva ou negativa da biopolítica. Importa-lhe um registro o mais
detalhado possível daquilo que constitui não apenas a microfísica do poder,
mas também a infiltração capilar de ideias e mentalidades no desenvolvimento
da espécie na modernidade.
Nietzsche, ao contrário, desenha um quadro transfigurado para o homem que
assumiu o niilismo radical e admitiu o desaparecimento do mundo
suprassensível. Para isso, o autor recorre aos seus grandes princípios
interpretativos da “vontade de poder”, do “eterno retorno”, do niilismo definitivo,
da “morte de Deus” e do “super-homem”. Assim elabora a base para a
transvaloração de todos os valores e o surgimento de uma nova espécie de
homem, que é figurado na “grande saúde”.
IHU On-Line - Qual é a atualidade desses dois conceitos?
Ernildo Stein - Quando se pergunta pela atualidade de um conceito, tem-se
quase sempre em mente uma espécie de função prática, quando não,
ideológica. É claro que a biopolítica descreve uma história humana da
modernidade nada positiva. Ela revela, no fundo, um olhar soturno de Foucault
sobre a existência no planeta. Mas isso tudo deve ser visto como um genial
registro, mas não como uma espécie de fórmula, ou com vocação para
mudanças. O mundo para Foucault é assim, e a história será certamente o
palco de um movimento em que irá se radicalizar a biopolítica.
Agamben chama atenção para o fato notório de Foucault passar da biopolítica
para uma hermenêutica do sujeito, baseada numa interpretação dos clássicos,
do estoicismo e dos antigos ascetismos. E como que recrimina o autor por não
ter estendido a sua biopolítica à política totalitária dos campos de extermínio,
de segregação do estrangeiro e da vida nua. Nietzsche, com seu conceito de
grande saúde, nos traça um vasto panorama do homem feliz, num mundo ideal
com que talvez sonhava.
Não esperemos demais de uma aplicação desses dois conceitos no mundo
contemporâneo nas áreas da psicologia, pedagogia, ou mesmo, da crítica do
poder. Eles são panoramas muito amplos, um, tendo por base a realidade, e o
outro, fazendo da literatura o pedestal para um grande sonho.
Se quisermos situar a biopolítica e a grande saúde num quadro de avaliação
filosófica, temos de reconhecer que ambos são constituídos por uma grande
ausência. Em Foucault, toda a transcendência é absorvida no panopticum com
que observa o grande campo da humanidade fechada sobre si mesma. A
grande saúde de Nietzsche não é nada mais do que o registro do que o filósofo
pensa que o ser humano poderia ser sem a influência do mundo
suprassensível. Certamente, adivinhamos, nesses dois quadros geniais de
filósofos, a desolação, ou então, uma expectativa irrealizável que se implantou
numa história que pergunta pelo seu próprio sentido.
Leia mais...
Ernildo Stein já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira:
• A superação da metafísica e o fim das verdades eternas. Revista IHU On-
Line, número 185, de 19-06-2006;
• Depois de Hegel: “o mais original diálogo entre Filosofia analítica e dialética”.
Revista IHU On-Line, número 261, de 08-06-2008;
• O abismo entre a ética da psicanálise e o discurso ético universal.
Revista IHU On-Line, número 303, de 10-08-2009.