Post on 06-Jul-2020
O PROFESSOR PDE E OS DESAFIOSDA ESCOLA PÚBLICA PARANAENSE
2009
Produção Didático-Pedagógica
Versão Online ISBN 978-85-8015-053-7Cadernos PDE
VOLU
ME I
I
PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL – PDE
SEQUÊNCIA DIDÁTICA DE LÍNGUA PORTUGUESA
LENDO, OUVINDO E APRECIANDO CONTOS: ESTRATÉGIAS
PARA DESPERTAR O GOSTO PELA LEITURA LITERÁRIA
Série Indicada: 2ª Série do Ensino Médio
Professora: Diones Salete Rossetti
IES: UNIOESTE – Cascavel
Orientadora: Prof.ª Elisabete Arcalá Sibin
Concepção Teórico-Metodológica : Estética da Recepção Tema: Alternativas Metodológicas para o Ensino da Literatura no Ensino Médio
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A LITERATURA E O LEITOR
“A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada. É mais do que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade”. Rildo Cosson
Apesar de haver muitas definições para o que é Literatura, segundo COSSON
(COSSON, 2006) é uma experiência que nos permite saber, experimentar e ver a vida
pelos olhos de outrem. “A Literatura é plena de saberes sobre o homem e o mundo”.
Através da Literatura somos levados a “conhecer” outros tempos, lugares a nos
imaginarmos personagens de outras, e de nossa própria história.
É esse poder tão supremo da Literatura que nos faz repensar seu papel na escola, e
consequentemente, nossa função como propagadores de uma arte que, há um consenso
entre a maioria dos professores, deve ser ensinada na escola. Em especial no Ensino
Médio, de obras e autores famosos, principalmente obras definidas como “clássicas”. Mas
afinal, o que é um “Clássico” e por que lê-lo?
Para Calvino ( CALVINO, 2005), não há a menor dúvida quanto ao valor dessas
obras e da necessidade da escola resgatar sua leitura. E, que de uma maneira ou outra,
cabe a escola fazer com que o aluno conheça o maior número de obras para que, quem sabe
um dia, o aluno possa escolher “o seu clássico”, e, então poder dizer “Estou relendo”.
Entre as várias definições apresentadas pelo autor, usarei a seguinte, pois creio estar mais
próxima do meu objetivo de trabalho, “Um clássico é um livro que vem antes de outros
clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na
genealogia”. Baseando-se na definição apresentada por Calvino, é que pretende-se iniciar
esta Sequência Didática com o gênero literário Conto, espera-se conseguir através da
leitura desse gênero, fazer com que os alunos possam ampliar seus Horizontes de
Expectativas, tanto no que diz respeito ao tema quanto ao gênero.
Percebe-se nas escolas brasileiras uma distância muito grande entre os jovens e a
Literatura clássica. Muitos chegam até a afirmar que não veem “utilidade” em seu ensino.
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Além do mais, a linguagem literária, distante da linguagem utilizada por nossos alunos,
talvez seja mais um dos fatores que os distanciam da leitura literária. Além, é claro da
cobrança de obras consideradas “difíceis”para os exames vestibulares.
Diante dessa questão, o conto vem a ser uma alternativa de aproximação dos
estudantes com a Literatura clássica. E de acordo com (CALVINO, 2005), muito mais
importante que ler a crítica ou os comentários e as interpretações que fizeram do clássico, é
dedicar-se à leitura do clássico em si, pois só ele pode nos oferecer alguma surpresa em
relação à imagem que dele tínhamos.
Ao pensar o conto como um elo aproximador entre aluno e Literatura é preciso ter
em mente um método que valorize o aluno como sujeito/leitor, que ele possa ter uma
“opção de escolha” sobre o que vai ler. Portanto, optou-se pelo método chamado
Recepcional proposto por Maria da Glória Bordini e Vera Teixeira de Aguiar que tem sua
origem em estudos de Hans Robert Jauss, que cria um modo de estudar literatura chamado
Estética da Recepção. O método enfatiza o que chamamos de "obra difícil", "uma vez que
nela reside o poder de transformação de esquemas ideológicos passíveis e crítica" (Bordini
e Aguiar, 1993: 85). É um método cujo foco está centrado no leitor e no seu horizonte de
percepções. Portanto, faz-se necessário ter clareza das seguintes etapas:
1. Determinação do horizonte de expectativas: fazer um levantamento diagnóstico sobre a
temática preferida pelos alunos em relação à leitura (através de observações,
questionamentos escritos, conversas com alunos e professores, visita à Biblioteca da escola).
2. Atendimento do horizonte de expectativas: após conhecer a temática preferida pelos
alunos, trabalhar com livros, filmes, textos com os temas sugeridos.
3. Ruptura do horizonte de expectativas: depois de realizada as leituras com a temática
sugerida pelos alunos, serão propostas novas leituras com o mesmo tema, mas com
exigências maiores, ou seja, uma leitura mais “apurada”.
4. Questionamento do horizonte de expectativas: Serão realizadas discussões sobre as
leituras realizadas, solicitando comparações entre a segunda e terceira etapas, avaliando o
que foi alcançado e o que resta fazer.
5. Ampliação do horizonte de expectativas: Aqui serão propostas novas leituras que atendam
as expectativas ampliadas.
Em seguida será feita uma discussão para que se possa avaliar o trabalho realizado.
Quais as contribuições que essa metodologia trouxe se é válida ou não, em que contribuiu
para aprimorar o gosto pela leitura literária.
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Uma vez determinado o tipo de produção didático/pedagógica, o método a ser
usado e o gênero, é necessário se ter clareza sobre cada um deles para então poder elaborar
o material a ser utilizado.
Optou-se pelo trabalho através da SEQUÊNCIA DIDÁTICA, por entender que:
As sequências didáticas, ou sequências de atividades de ensino/aprendizagem são:
Por que a opção pelo CONTO?
Conto é uma narrativa curta. Ao contrário do romance que é mais longo e posse outras
características, o conto tem uma história breve, cujo tempo e espaço são reduzidos, e as
poucas personagens existem em função de um núcleo. É o relato de uma situação ocorrida
na vida dos personagens. O tempo pode ser cronológico ou psicológico e o caráter real ou
fantástico.
http://tp.wikipedia.org/wiki/Conto
Entre tantos gêneros existentes optou-se pelo CONTO, por ser uma narrativa curta,
breve, com poucos personagens, apresenta apenas um drama, tem espaço e tempo restrito e
pode ser lido de uma só vez, portanto, vem a ser uma boa tentativa de aproximação dos
estudantes com a literatura clássica. Ao invés de tratá-la pelo viés histórico, ou ler obras
adaptadas, ou resumos dos textos clássicos, melhor é ler os clássicos em sala de aula
originalmente escritos, mas que respeitem o perfil de seu público assim, o conto literário
vem ao encontro perfeito dessas expectativas.
Uma “Sequência Didática” é um conjunto de atividades escolares organizadas, de
maneira sistemática, em torno de um gênero textual (oral ou escrito) e tem a finalidade
de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever
ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação. O
trabalho será realizado sobre gêneros que o aluno não domina ou o faz de maneira
insuficiente; sobre aqueles dificilmente acessíveis, espontaneamente, para a maioria dos
alunos; e sobre gêneros públicos e não privados (DOLZ, NOVERRAZ, SCHNEUWLY,
2004, p. 97)
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Mas afinal o que é um GÊNERO TEXTUAL?
Os gêneros apresentam algumas características que nos permitem reconhecê-los e
classificá-los. Essas características são definidas em três dimensões: conteúdo temático,
estilo e construção composicional.
PROPONDO ATIVIDADES:
1. Determinação do Horizonte de Expectativas (1 aula):
Para determinar o horizonte de expectativas dos alunos em relação à leitura
literária, será feito um questionamento escrito sobre seu conhecimento e gosto
literário:
1) Você gosta de ler?
2) O que você leu ultimamente?
3) Você tem preferência por algum assunto, Tema, (não somente livros;
músicas, filmes, etc), Qual?
4) Você lembra-se de algo que você leu e achou interessante? O que foi?
5) Você gosta de contar ou ouvir histórias? Você lembra de alguma que lhe
chamou à atenção?
6) Você sabe o que é um conto? Lembra de algum?
7) Ler para você é... (defina)..........................................
Toda vez que produzimos textos orais ou escritos, verbais e não verbais utilizamo-nos
dos mais diferentes gêneros, depende da situação e da finalidade para o qual o
produzimos, como por exemplo, uma receita de bolo, uma carta a um amigo, um artigo
de opinião. Estes textos apresentam uma estrutura que se repete, têm quase sempre a
mesma forma, a isso se dá o nome de gêneros textuais.
...a comunicação verbal só é possível por algum gênero textual. (Marcuschi. P.22)
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2. Atendimento do Horizonte de Expectativas ( 5 aulas):
1º MOMENTO:
Após analisar o conhecimento que os alunos têm sobre leitura e suas
expectativas quanto ao tema e gênero CONTO, será proposto a eles a leitura
integral do conto “O Gato Preto” de Edgar Allan Poe. A escolha deste conto
justifica-se por ser uma narrativa fantástica, desperta a curiosidade e a fantasia no
aluno sem perder o contato com o mundo real. Deparando-se com situações ora
naturais ora sobrenaturais. Ao mesmo tempo em que prende o leitor abre espaço
para trabalhar a Literatura Clássica e contemporânea.
O GATO PRETO
Não espero nem peço o crédito do leitor para tão estranha, e ainda assim simples
narrativa que estou prestes a escrever. Seria realmente louco se esperasse, neste caso em
que meus sentidos rejeitaram a própria evidência. Entretanto, não sou louco – e com
certeza não sonhei aquilo que pretendo narrar. Mas amanhã eu morrerei, e hoje desejo
aliviar meu espírito. Meu propósito imediato é o de colocar diante do mundo,
simplesmente, sucintamente e sem comentários, uma série de eventos meramente
domésticos. Através de suas consequências, esses acontecimentos me terrificaram,
torturaram e destruíram. Todavia não tentarei esclarecê-los. Para mim representaram
apenas horror, para muitos parecerão menos terríveis do que góticos. Mais tarde, talvez,
algum intelecto surgirá para reduzir minha fantasia a lugar-comum – alguma inteligência
mais calma, mais lógica, e muito menos excitável que a minha; e esta perceberá, nas
circunstâncias que detalho com espanto, nada mais que uma sequência comum de causas e
efeitos muito naturais.
Já na minha infância notaram a docilidade e humanidade de meu caráter. A ternura
de meu coração era de fato tão nobre que eu acabava por me tornar alvo de piadas de meus
companheiros. Possuía especial afeição por animais e, assim, meus pais permitiam que eu
1 Tradução de Diones Salete Rossetti..
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felicidade era alimentá-los e acariciá-los. Essa característica de meu caráter me tivesse uma
variedade deles. Passava a maior parte do meu tempo com eles e minha acompanhou e, ao
tornar-me homem, encontrava nela uma de minhas principais fontes de prazer. Para
aqueles que já tiveram uma relação de afeto com um cão sagaz e fiel, não preciso dar
explicações da natureza ou da intensidade da gratificação que daí advém. Há alguma coisa
no amor desinteressado de um animal, no sacrifício próprio, que vai diretamente ao
coração de quem teve diversas ocasiões de testar a amizade mesquinha e a vulnerável
fragilidade humana.
Casei-me jovem e tive a felicidade de encontrar em minha esposa uma tendência
que não era diferente da minha. Vendo como gostava de animais domésticos, ela não
perdia a oportunidade de me trazer exemplares das espécies mais agradáveis. Tínhamos
pássaros, peixes de aquário, um belo cão, coelhos, um macaquinho e um gato.
Este último era notavelmente um animal grande e belo, completamente preto e
admiravelmente sagaz. Quando falávamos de sua inteligência, minha esposa, que não era
de todo livre de superstição, fazia frequentes alusões à crença popular de que todos os
gatos pretos eram bruxas disfarçadas. Não que ela sempre se referisse a esse assunto a sério
– e se menciono isso agora não é por qualquer razão especial, apenas porque me lembrei
do fato.
Pluto – esse era seu nome – era meu animal favorito e companheiro de brincadeiras.
Só eu o alimentava e ele me seguia por toda parte da casa. Difícil mesmo era impedir que
ele me seguisse nas ruas.
Nossa amizade durou, desse modo, por vários anos, durante os quais meu
temperamento e meu caráter – devido ao demônio da Intemperança – tinham (envergonho-
me de o confessar) sofrido uma piora radical. Dia após dia, eu me tornava mais
melancólico, mais irritável, mais indiferente aos sentimentos alheios. Permitia-me usar de
uma linguagem grosseira com minha esposa. Com o tempo, cheguei até a usar de violência
contra ela. Naturalmente, meus animaizinhos de estimação sentiram a mudança de meu
caráter. Não só os negligenciava como os tratava mal. Por Pluto, contudo, eu ainda
conservava suficiente estima que não me deixava maltratá-lo, ao passo que não tinha
escrúpulos em maltratar os coelhos, o macaco e até o cão, quando por acaso, ou por afeição
atravessavam meu caminho. Porém, minha doença tomou conta de mim – pois que doença
é pior que o álcool? – e, por fim, até Pluto, que agora estava ficando velho e,
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consequentemente, um tanto impertinente, até Pluto começou a sentir os efeitos de meu
temperamento perverso.
Uma noite, ao voltar para casa, bastante embriagado, de uma de minhas andanças
pela cidade, tive a impressão de que o gato evitava a minha presença. Apanhei-o, quando,
assustado com a violência de meu gesto, feriu-me levemente a mão com os dentes. Uma
fúria demoníaca, instantaneamente, se apossou de mim. Eu não me reconhecia. Foi como
se minha alma original tivesse fugido de meu corpo e uma ruindade mais do que
demoníaca, alimentada pelo gim, fizesse vibrar cada fibra do meu corpo. Tirei um canivete
do bolso do colete, abri-o, agarrei o pobre animal pela garganta e, deliberadamente,
arranquei-lhe um olho da órbita. Encho-me de rubor e estremeço todo ao escrever essa
abominável atrocidade.
Quando, com a manhã, voltei à razão, depois que o sono apagara a maior parte do
excesso da noite – experimentei um sentimento misto de horror e de remorso pelo crime
que tinha cometido. Mas era um sentimento débil e equívoco, e a minha alma permanecia
insensível. Novamente mergulhei nos excessos, e depressa afoguei na bebida toda
lembrança do meu ato.
Nesse meio tempo, o gato se recuperou lentamente. A órbita do olho perdido
apresentava, na verdade, um aspecto assustador, mas ele não aparentava qualquer
sofrimento. Andava pela casa, como de costume, mas, como era de esperar, fugia
aterrorizado cada vez que me aproximava dele. Restava-me ainda o suficiente de meu
velho coração para lamentar a evidente aversão por parte de uma criatura que antes me
amara tanto. Mas esse sentimento logo deu lugar à irritação. E, então, para minha queda
irrevogável, surgiu o espírito da Perversidade. Desse espírito a filosofia não cura. Agora
não estou mais certo da existência da minha alma que do fato que a perversidade é um dos
impulsos primitivos do coração humano – uma dessas indivisíveis faculdades primárias, ou
sentimentos, que dão direção ao caráter do Homem. Quem já não se surpreendeu, uma
centena de vezes, cometendo uma ação tola ou vil, por nenhuma outra razão a não ser a de
saber que a não deveria cometer? Nós temos em nós uma inclinação perpétua, mesmo
quando estamos no melhor do nosso juízo, para violar aquilo que é Lei, simplesmente
porque sabemos que é lei. Esse espírito de perversidade, eu digo, veio para minha queda
final. Foi esse anseio insondável da alma por se atormentar – de violentar sua própria
natureza – por praticar o mal só pelo mal - que me levou a continuar e finalmente
consumar o suplício que infligira ao inofensivo animal. Uma manhã, a sangue frio, passei-
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lhe um nó corredio em torno do pescoço e o pendurei no galho de uma árvore; - enforquei-
o com os olhos cheios de lágrimas, e com o mais amargo remorso em meu coração; -
enforquei-o porque sabia que ele me amava, e porque reconhecia que não me tinha dado
razão para a maldade; - enforquei-o porque sabia que estava cometendo um pecado – um
pecado mortal que iria manchar minha alma imortal a ponto de a colocar – se isso fosse
possível – até mesmo fora do alcance da infinita misericórdia do Deus mais Misericordioso
e mais Severo.
Na noite do dia em que cometi esse ato cruel, fui despertado do sono por gritos de
fogo. As cortinas da minha cama estavam em chamas. Toda a casa ardia. Foi com grande
dificuldade que minha esposa, uma criada e eu conseguimos escapar do incêndio. A
destruição foi completa.Todos os meus bens materiais foram consumidos, e a partir desse
momento mergulhei no desespero.
Estou acima da fraqueza de tentar estabelecer uma relação de causa e efeito entre o
desastre e a atrocidade. Mas estou detalhando um encadeamento de fatos – e não quero
deixar um elo sequer incompleto. No dia seguinte ao incêndio, visitei as ruínas. Todas as
paredes, com exceção de uma, tinham desmoronado. Essa exceção era constituída por um
fino tabique interior, não muito espesso, que estava no meio da casa, junto ao qual se
achava a cabeceira de minha cama. O reboco tinha, ali, resistido em grande parte à ação do
fogo – coisa que atribuí ao fato de ter sido recentemente restaurado. Em torno dessa parede
juntara-se uma densa multidão, e muitas pessoas pareciam estar examinando um pedaço
especial dela, com minúcia e grande atenção. As palavras ”estranho”, ”singular” e outras
expressões semelhantes despertaram-me a curiosidade. Aproximei-me e vi, como se tivesse
sido gravado em baixo-relevo sobre a superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A
imagem estava desenhada com uma exatidão verdadeiramente maravilhosa. Ao redor do
pescoço do animal havia uma corda.
Da primeira vez que observei tal aparição – porque não podia considerar aquilo
como sendo outra coisa - meu assombro e meu terror foram extremos. Mas, por fim, a
reflexão veio em meu auxílio. O gato, lembrei-me, fora enforcado em um jardim junto a
casa. Após o alarme de incêndio, o jardim fora imediatamente invadido pela multidão –
alguém deve ter tirado o animal da árvore, lançando-o, pela janela aberta, para dentro de
meu quarto. Isso foi feito, provavelmente, no intuito de me acordar. A queda das outras
paredes havia comprimido a vítima da minha crueldade na substância do reboco recém-
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aplicado; a cal, combinada com as chamas e o amoníaco do cadáver, produzira a imagem
tal como eu a via.
Embora satisfizesse prontamente minha razão, não totalmente minha consciência,
sobre o fato surpreendente descrito, este não deixou de causar profunda impressão em
minha imaginação. Durante meses não consegui me livrar do fantasma do gato; e, durante
esse período, voltou ao meu espírito um sentimento que quase se assemelhava a remorso,
mas não era. Cheguei a ponto de lamentar a perda do animal, e a procurar, nos lugares que
então costumava frequentar, por outro animal da mesma espécie e de aparência semelhante
, que preenchesse seu lugar.
Uma noite, estava eu sentado, meio aturdido, num antro mais do que infame,
quando minha atenção foi subitamente despertada por um objeto preto que jazia no topo de
um dos enormes tonéis de gim ou de rum que constituíam o principal mobiliário do recinto.
Havia vários minutos que eu olhava fixamente para a parte superior do tonel e o que me
surpreendeu foi o fato de não ter percebido logo o objeto que se encontrava sobre a peça.
Aproximei-me e toquei-o. Era um gato preto – um gato enorme – tão grande quanto Pluto,
e semelhante a ele em todos os aspectos, exceto em um. Pluto não tinha um único pelo
branco em todo o seu corpo; mas esse gato tinha uma mancha larga e branca, ainda que de
forma indefinida, que lhe cobria toda a região do peito. Assim que o toquei, ergueu-se
imediatamente, ronronou bem alto, esfregou-se em minha mão, e parecia feliz por eu tê-lo
notado. Era esta, pois, a criatura que eu procurava. Imediatamente, ofereci-me para
comprar o animal, mas o dono do lugar disse que o animal não lhe pertencia – não o
conhecia – nunca o tinha visto antes.
Continuei a acariciá-lo, e quando me preparava para ir para casa, o animal
demonstrou disposição em me acompanhar. Permiti que o fizesse, parando de vez em
quando, no caminho, para acariciá-lo. Ao chegar em casa, adaptou-se e logo se tornou o
animal preferido de minha esposa.
Da minha parte, logo passei a sentir aversão por ele. Era exatamente o contrário do
que eu esperava, mas – não sei como nem por quê – seu evidente afeto por mim me
desgostava e aborrecia. Lenta e gradativamente, esses sentimentos de desgosto e de
aborrecimento transformaram-se na amargura do ódio. Evitava o animal; uma sensação de
vergonha e a lembrança do ato de crueldade que praticara impediam-me de maltratá-lo
fisicamente. Durante algumas semanas, não bati nem o maltratei violentamente; mas,
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gradualmente – muito gradualmente – passei a encará-lo com uma indescritível aversão, e
fugir silenciosamente de sua odiosa presença, como se fugisse do hálito de uma peste.
Sem dúvida, o que aumentou minha aversão pelo animal foi descobrir, na manhã
seguinte ao dia em que o trouxe para casa, que, como Pluto, ele também havia sido privado
de um de seus olhos. Tal circunstância, entretanto, apenas fez aumentar a estima de minha
mulher pelo animal, pois, como já disse, ela possuía em alto grau aquela humanidade de
sentimentos que, em outros tempos, tinha sido minha principal característica, bem como a
fonte de muitos dos meus prazeres mais simples e mais puros.
A minha aversão pelo gato, porém, parecia aumentar sua predileção por mim.
Seguia meus passos com uma pertinácia que seria difícil fazer com que o leitor
compreendesse. Sempre que me sentava, enrodilhava-se embaixo de minha cadeira, ou
saltava sobre meus joelhos, cobrindo-me com suas carícias repugnantes. Se me levantava
para caminhar, metia-se entre meus pés e quase me fazia cair, ou então, fincava suas unhas
compridas e aguçadas em minha roupa, e assim, subia até meu peito. Nesses momentos,
embora tivesse vontade de matá-lo com um golpe, era impedido de o fazer, em parte pela
lembrança de meu crime anterior, mas, especialmente – devo confessá-lo de imediato –
pelo absoluto pavor que tinha do animal.
Esse pavor não era exatamente o pavor de um mal físico – no entanto, não saberia
como defini-lo de outra forma. Quase me envergonho de admitir – sim, mesmo nesta cela
de criminoso, eu quase me envergonho de confessar – que o terror e a repugnância que
aquele animal me inspirava tinham sido intensificados por uma das mais puras fantasias
que é possível conceber. Minha esposa, mais de uma vez, tinha chamado minha atenção
para o aspecto da mancha de pelo branco que já mencionei, e que constituía a única
diferença entre o estranho animal e aquele que eu enforcara. O leitor deve se lembrar dessa
marca que, embora grande, era, originalmente, bastante indefinida; mas, lentamente – de
forma quase imperceptível, e que durante muito tempo a minha Razão lutou por rejeitar
como fantasiosa – assumira, por fim, uma rigorosa nitidez de contornos. Era, agora, a
representação de um objeto, cujo nome me faz tremer – e por isso eu o desprezava e temia
acima de tudo e teria me livrado dele se tivesse coragem – era agora, eu digo, a imagem de
uma coisa medonha – uma coisa horrenda – de uma FORCA! – oh, deplorável e terrível
instrumento de Horror e de Crime – de Agonia e de Morte!
E agora eu era realmente um miserável, que estava além da miséria da
Humanidade. E um animal bruto – cujo amigo eu destruíra com desprezo – um bruto
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animal a dominar-me – homem feito à imagem do Deus Altíssimo – tanta angústia
insuportável! Ai, nem de dia nem de noite, nunca mais conheci a bênção do Descanso!
Durante o dia, a criatura não me deixava sozinho por um momento; e, à noite, despertava,
de hora em hora, de sonhos indescritivelmente pavorosos, para sentir o hálito quente da
coisa sobre meu rosto, e seu peso enorme – encarnação de um Pesadelo que eu não podia
apartar de mim – pesando eternamente sobre meu coração!
Sob a pressão de tais tormentos, os débeis vestígios do que havia de bom em mim
sucumbiram. Os maus pensamentos tornaram-se meus companheiros – os mais sombrios e
os mais infames dos pensamentos. O mau humor habitual de meu temperamento
transformou-se em ódio por todas as coisas e por toda a humanidade; enquanto eu me
entregava cegamente aos súbitos, frequentes e incontroláveis acessos de fúria, minha dócil
esposa, ai de mim! era a mais paciente das sofredoras.
Um dia, acompanhou-me ao porão do velho edifício, no qual nossa pobreza nos
obrigava a morar, para executar alguma tarefa doméstica. O gato seguiu-me nas escadas 6
íngremes e quase me fez cair, o que me exasperou a ponto de perder o juízo. Erguendo um
machado, e esquecendo, em minha cólera, o medo infantil que até então contivera minha
mão, desferi contra o animal um golpe que, naturalmente, teria sido fatal se tivesse
atingido onde eu queria. Mas esse golpe foi impedido pela mão de minha esposa a segurar-
me o braço. Essa interferência me levou a uma raiva mais do que demoníaca, arranquei
meu braço de seu aperto e enterrei o machado em seu cérebro. Ela caiu morta, sem um
gemido.
Tendo executado esse terrível assassinato, entreguei-me, resoluto, ao trabalho de
esconder o corpo. Eu sabia que não podia removê-lo da casa, nem de dia nem de noite, sem
o risco de ser flagrado pelos vizinhos. Muitos planos surgiram em minha mente. Por um
instante, pensei em cortar o corpo em pequenos pedaços e destruí-los no fogo. Noutro,
resolvi cavar-lhe uma cova no chão do porão. Em seguida, pensei em atirá-lo ao poço que
ficava no pátio – ou colocá-lo num caixote, como se fosse mercadoria, com todos os
cuidados que essa prática exige, e contratando um carregador para retirá-lo da casa.
Finalmente, tive uma ideia que me pareceu melhor que as outras. Resolvi emparedar o
corpo no porão – como os monges da Idade Média costumavam fazer com suas vítimas.
O porão estava perfeitamente adaptado para esse propósito. Suas paredes tinham
sido mal construídas e, recentemente, haviam sido cobertas com uma argamassa grossa,
que a umidade do ambiente impedira de endurecer. Além do mais, em uma das paredes
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havia uma projeção, produzida por uma falsa chaminé ou lareira, que tinha sido preenchida
para se assemelhar ao resto do porão. Não tive dúvidas de que seria fácil, nesse ponto,
introduzir o cadáver e depois restaurar a parede, de tal modo que não fosse possível
descobrir qualquer sinal que despertasse suspeita. E não me enganei nesses cálculos. Com
o auxílio de um pé de cabra, desloquei facilmente os tijolos e, depois de depositar
cuidadosamente o corpo contra a parede interna, amparei-o nessa posição, enquanto, com
certo esforço, recoloquei os tijolos tal como estavam anteriormente. Procurei argamassa,
areia e pelo, e com toda a precaução possível, preparei um reboco que não se distinguia do
antigo, e com o maior cuidado, reboquei os tijolos. Quando terminei, eu me senti satisfeito
com a perfeição do trabalho. A parede não apresentava o menor sinal de ter sido
modificada. Recolhi os resíduos do chão com o cuidado mais minucioso. Olhei em volta,
triunfante, e disse a mim mesmo: ‘Pelo menos aqui meu trabalho não foi em vão’.
Meu próximo passo foi procurar o animal que tinha sido a causa de tamanha
desgraça; pois tinha, finalmente, a firme decisão de matá-lo. Se o tivesse encontrado
naquele momento, não haveria dúvidas quanto ao seu destino; mas parecia que o esperto
animal se amedrontara com a violência da minha cólera anterior, evitando aparecer diante
de mim enquanto me encontrasse naquele estado de espírito. Impossível descrever ou
imaginar a profunda sensação de alívio que a ausência da detestável criatura provocou em
meu peito. Não apareceu durante a noite – e assim, ao menos por uma noite, desde que
entrara em casa, dormi profunda e tranquilamente; sim, dormi mesmo com o peso do
assassinato em minha alma.
Passou-se o segundo e depois o terceiro dia, e ainda meu algoz não aparecera.
Novamente respirei como um homem livre. O monstro, aterrorizado, tinha fugido para
sempre! Nunca mais tornaria a vê-lo! Minha felicidade era suprema! A culpa de minha
ação tão negra pouco me perturbava. Algumas indagações foram feitas, porém estas foram
prontamente respondidas. Até mesmo havia sido feita uma busca – mas naturalmente nada
foi descoberto. Eu considerava como certa a minha felicidade futura.
No quarto dia após o assassinato, um grupo da polícia retornou, muito
inesperadamente, em minha casa, e procedeu a uma rigorosa investigação do prédio.
Estava seguro, no entanto, quanto à impenetrabilidade do lugar em que escondera o corpo.
Não senti qualquer perturbação. Os policiais ordenaram-me que os acompanhasse em sua
busca. Não deixaram um só canto sem explorar. Por fim, pela terceira ou quarta vez,
desceram ao porão. Não me perturbei. Meu coração batia calmamente como o de um
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inocente. Percorri o porão de ponta a ponta. Com os braços cruzados sobre o peito, andava,
calmamente, de um lado para outro. Os policiais estavam completamente satisfeitos e
prontos para partir. A alegria em meu coração era tão grande que não consegui me conter.
Ansiava para dizer ao menos uma palavra, à guisa de triunfo, e também para garantir
duplamente a minha inocência.
“Cavalheiros”, disse, por fim, enquanto o grupo subia as escadas, “Estou satisfeito
por ter desfeito todas as suspeitas. Desejo a todos vocês ótima saúde e um pouco mais de
cortesia. A propósito, senhores, esta – esta é uma casa muito bem construída”. (No meu
violento desejo de dizer qualquer coisa, mal sabia o que dizia.) – “Posso até dizer que esta
casa é muito bem construída. Estas paredes... já estão indo, senhores? – estas paredes são
solidamente ligadas”; nesse ponto, por simples fanfarrice, bati com força, com a bengala
que tinha na mão, na parede atrás da qual jazia o cadáver de minha amada esposa.
Que Deus me proteja e me salve das garras do Demônio! Tão logo o som dos
golpes mergulhou no silêncio, uma voz respondeu de dentro do túmulo! – um choro
abafado e entrecortado, como o soluço de uma criança, e de repente se transformou num
grito prolongado, sonoro, estridente, completamente anormal e inumano – um lamento
agudo, meio de horror e meio de triunfo, tal como só poderia vir das profundezas do
inferno, provindo das gargantas dos condenados, em sua agonia, e dos demônios que
exultam na condenação.
É um disparate tentar descrever meus pensamentos. Sentindo-me desfalecer,
cambaleei até a outra parede. Por um instante, o grupo de policiais que subia as escadas
permaneceu imóvel, tomado por extremo espanto e terror. Em seguida, doze braços
vigorosos avançaram contra a parede. Esta desabou. O cadáver, já bastante decomposto, e
coberto de sangue coagulado, estava ereto diante dos olhos dos espectadores. Sobre sua
cabeça, com a boca vermelha completamente aberta e uma chispa de fogo no único olho,
estava o horrendo animal, cuja astúcia me levou a cometer o assassinato e cuja voz delatora
agora me entregava ao carrasco. Eu tinha emparedado o monstro dentro do túmulo.
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ENTENDENDO O TEXTO:
1- No conto, O Gato Preto, o narrador relata fatos que aconteceram em sua vida. Em
que local o narrador se encontra e qual a razão de estar ali?
2- O narrador é também personagem, ou seja, é o seu ponto de vista que está sendo
apresentado. Podemos confiar em tudo que ele diz? Releia o primeiro parágrafo do
texto e explicite sua resposta.
3- O narrador, explica que desde criança sempre teve um grande afeto por animais.
Entre as várias espécies de animais de estimação existia um especial, “um gato
preto”. Por que você acha que o autor escolheu um gato preto ao invés de outro
animal qualquer?
4- Vamos voltar ao texto e reler a seguinte parte: “Quando falávamos de sua
inteligência, minha esposa, que não era de todo livre de superstição, fazia
frequentes alusões à crença popular de que todos os gatos pretos eram bruxas
disfarçadas. Não que ela sempre se referisse a esse assunto a sério – e se menciono
isso agora não é por qualquer razão especial, apenas porque me lembrei do fato”.
Por que você acha que o autor mencionou esse fato? E para você, o que é
superstição?
5- No decorrer da narrativa vários fatos extraordinários ocorrem. Encontre um desses
fatos, fora do comum, e explique porque ele não pode ser considerado como um
acontecimento natural, comum.
6- A preferência por fatos misteriosos, grotescos, sobrenaturais, macabros fazem parte
do gênero fantástico da literatura que surgiu entre os séculos XVIII e XIX. O conto
lido é caracterizado como fantástico. Identifique dentro do conto elementos que
confirmem o enunciado.
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7- Há muito tempo, mesmo antes do surgimento da escrita, as pessoas já tinham o
hábito de contar histórias. Muitas dessas histórias eram contadas à noite, ao redor
de uma fogueira. Algumas pessoas até hoje cultivam esse hábito, reunir-se para
ouvir e contar histórias, algumas pavorosas, outras nem tanto. Quando você era
criança, provavelmente deve ter ouvido alguém contar alguma história que te
despertou o medo. Vamos recordar dessas histórias, mesmo que de maneira vaga, e
relatar primeiro oralmente, depois por escrito o que recordamos e os sentimentos
que essas histórias nos despertaram.
2º MOMENTO
Propomos agora a leitura de mais um conto com o mesmo tema.
Aqui três alunos serão convidados a fazer a leitura dramatizada do conto nos
papéis de Raquel, Ricardo e narrador. Esse tipo de leitura é importante, pois faz com que
ouvinte/leitor incorporem-se aos personagens e a trama.
TEXTO PUXA TEXTO
Quando adentramos no mundo da Literatura nos deparamos com um processo
contínuo de texto puxa texto, isso porque um tema aparece muitas vezes em vários textos
e em muitos gêneros. Como nosso gênero escolhido foi o CONTO, vamos mergulhar mais
uma vez nesse mundo de mistério, suspense e terror percorrendo as alamedas de um
cemitério abandonado.
Observe o fragmento abaixo, do conto “Venha ver o pôr-do-sol”, de Lygia
Fagundes Telles:
“Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando,
modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem
calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda.
A débil cantiga era a única nota viva na quietude da tarde.
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[...]
– Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz. – E que é isso aí? Um
cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro,
carcomido pela ferrugem.”
[...]
O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter-se alastrado furioso pelos canteiros,
subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as
alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida
cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando pela longa alameda
banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita
do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se
deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra
sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados”.
TELLES, Lygia Fagundes. Antologia: Meus contos preferidos. Rio de Janeiro: Rocco,
2004
DISCUTINDO O TEXTO
1- O título “Venha ver o pôr- do- sol” soa como um convite, mas no conto ele tem
um sentido polissêmico, ou seja, podemos entendê-lo no sentido literal que é o final
da tarde, ou sentido figurativo, o período que antecede o fim de algo. Qual dos dois
é o sentido mais adequado para o texto? Justifique.
2- Embora apresente um final surpreendente podemos perceber durante a narrativa
indícios do irá acontecer. Cite alguns desses indícios.
3- Qual foi a intenção de Ricardo ao convidar Raquel para esse passeio? Você acha
que ele já havia premeditado o que iria fazer? Comprove sua resposta com
passagens do texto.
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4- Vamos observar o espaço em que ocorre a narrativa. Como o narrador caracteriza:
a ladeira; as casas; os terrenos; a rua; o mato; a cantiga; o muro do cemitério. Você
acha que esse tipo de espaço contribui para uma narrativa fantástica? Por quê?
5 - Como você percebeu a autora não deixa claro o que aconteceu no final do conto,
ou seja, existe várias possibilidades de desfecho. O que você acha que aconteceu?
Levante hipóteses para um possível final.
6 - E se você fosse o autor do texto qual seria o seu final? Escreva um final que você
daria ao conto, caso ele fosse de sua autoria.
3º MOMENTO
Você conhece algo sobre a escritora do conto? Para saber mais acesse:
http://www.releituras.com/lftelles_bio.asp
(...) "Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando
sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi
a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago
até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto".
(Verde lagarto amarelo Lygia Fagundes Telles)
Professor, antes de encerrar essa atividade seria interessante fazer um comentário oral
sobre a vida dos dois escritores lidos, o período literário, os góticos. Mostrar ao aluno que
ao mesmo tempo em que posso trabalhar um escritor do século XVIII também posso falar
sobre o contemporâneo, ou seja, abordar a diacronia e a sincronia da Literatura
estabelecendo um diálogo entre o que é contemporâneo no momento de produção e a
contemporaneidade no momento de recepção. Mostrar que textos do passado podem ser
atualizados à medida que o leitor reconhece neles aspectos de sua realidade contemporânea
sem, contudo, desconsiderar o contexto de produção da obra, pois tanto o contexto de
produção quanto o de recepção são igualmente importantes na análise de uma obra.
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3. Ruptura do horizonte de expectativas (Aproximadamente cinco aulas):
Para essa etapa do método recepcional, vamos manter o gênero conto, antes de
fazermos a leitura da obra “A Cartomante de Machado de Assis”, vamos assistir a um
pequeno vídeo do youtube para introduzir o assunto. disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=yuChPo2dzuA&feature=related, Enquanto veem o
vídeo observe a reação deles, pois trata-se de uma adaptação da obra para a televisão,
datada de 1974. Depois de assistirem o vídeo vamos discutir o assunto, selecione pontos
que introduzam a discussão. Por exemplo:
- título: “A Cartomante”, o que é uma cartomante;
- teatro: quem frequenta hoje, e na época passada;
- tipo de música que o personagem está ouvindo;
- tipo de vestes, cabelos e outros que surgirem durante a discussão.
Depois de feita a discussão faça a apresentação do conto “A Cartomante”. Antes,
porém, de iniciar a leitura, seria interessante fazer um pequeno resumo, oral, da história
sem contar o final. Depois fazer a leitura silenciosa e compartilhada do conto, parando
sempre que necessário para discutir, pois devido à época e linguagem em que foi escrito,
caracteriza-se como uma leitura um tanto “difícil”para o aluno.
A Cartomante
Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa
filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira
de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma
cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela
adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas
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começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que
sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu
tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você
sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que
os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor
cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por
essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na Rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu
não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas cousas? Perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita
cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é
que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e
satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele,
em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a
mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa
vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe
ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total.
Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só
argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não
formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi
andando. Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada;
Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes,
e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do
encontro era na antiga Rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta
desceu pela Rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela
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da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante. Vilela, Camilo e Rita,
três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois
primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou
no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e
Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No
princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta;
abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para
os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é
seu amigo, falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram
amigos deveras.
Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do
marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa.
Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo
vinte e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher,
enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do
tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os
anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo,
e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do
enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o
faria melhor. Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que
gostava de passar as horas ao lado dela, era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas
principalmente era mulher e bonita. Odor di feminina: eis o que ele aspirava nela, e em
volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e
passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele,
para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os
olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o
fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de
Vilela uma rica bengala de presente e de Rita apenas um cartão com um vulgar
cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração, não conseguia
arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo
menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a
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mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as
cousas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se
acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o
veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo
sentiu de mistura, mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não
tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados,
pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que
algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela
continuavam a ser as mesmas. Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe
chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e,
para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as
ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz.
Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente.
Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir
os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato. Foi por esse tempo que
Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa
do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o
rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo
recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser
advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que,
por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e
avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a
catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com as das cartas que lá
aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando
pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram.
A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que
lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de
tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se,
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sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em
caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já,
à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua,
advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo
indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele
combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no
papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela
indignado, pegando da pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-
o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso
repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia
achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém.
Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era
natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que
Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente,
apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto. Camilo ia andando inquieto e
nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas, ou
então, — o que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de
Vilela. "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas assim, pela voz do
outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora
da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que
chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado,
considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois
rejeitava a idéia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do Largo da
Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
"Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim..." Mas o mesmo trote do cavalo
veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo.
Quase no fim da Rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar, a rua estava atravancada
com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim
de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da
cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das
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cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de
curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande,
extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo,
as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa,
e ir por outro caminho: ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a
casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao
longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-
se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros
concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
— Anda! Agora! Empurra! Vá! Vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras
cousas: mas a voz do marido sussurrava-lhe a orelhas as palavras da carta: "Vem, já, já..."
E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam
descer e entrar. Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no
inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos
extraordinários: e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais
cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia... " Que perdia ele, se... ? Deu por si na
calçada, ao pé da porta: disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e
subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele
não, viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer;
mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a
bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia
consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a
primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que
dava para o telhado dos fundos. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que
antes aumentava do que destruía o prestígio. A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e
sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora
batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas
compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de
rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e
magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
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Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma cousa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e
baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os
maços, uma, duas. Três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela.
Curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não
tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava
tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe
do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante
acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e
apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse a
mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual
estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las,
mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a
mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava
o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O
preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá,
tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve
sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a
cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou
o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. Tudo lhe parecia agora
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melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais.
Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e
reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça?
Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser
algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou
também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com
os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o
objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o
resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas
crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de
ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as
palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao
longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que
formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz. A verdade é que o coração ia alegre e
impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela
Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão
um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável. Daí a
pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A
casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta
abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma
saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror:
— ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola,
e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.
Esse texto você pode encontrar em: http://www.dominiopublico.gov.br
1º MOMENTO:
27
Após a leitura, vamos fazer uma discussão sobre o texto, as atividades tanto
podem ser orais quanto escritas.
1- O título do texto está coerente com o assunto apresentado? Justifique.
2- A cartomante no conto tem mesmo o poder de adivinhação do futuro, ou ela é
esperta e faz as personagens dizerem aquilo que ela precisa saber para fazer suas
deduções?
3- Qual é o tema desenvolvido pelo autor nesse conto? Comprove sua resposta com
elementos do texto.
4- Identifique:
a) os personagens:
b) os espaços em que os fatos ocorrem:
c) o tempo:
d) o foco narrativo:
5- Os contos de mistério têm um desfecho aberto, para o leitor imaginar o final. Como
você imagina que poderia ter sido esse final? Dê um final diferente do ocorrido no
texto.
2º MOMENTO
SITUANDO AUTOR E OBRA
1 - Quanto ao autor, você conhece alguma obra de Machado de Assis? Vamos recordar
o que já lemos ou ouvimos sobre esse autor.
2 - Vamos relembrar de outros contos, filmes, poesias, músicas, romances que tratem
sobre o mesmo tema que o conto lido.
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3 – O que você acha que esse conto tem em comum com o primeiro conto lido, O Gato
Preto, explique.
4- Para dar um ar de mistério ao conto como o narrador descreve o espaço em que
Camilo se encontra com a Cartomante?
5– Encontre no texto passagens em que possa confirmar que tanto Rita quanto Camilo
eram pessoas supersticiosas.
6- Em certo momento o narrador compara Rita à serpente de Eva (passagem bíblica),
que atrai e seduz Camilo, como é feita essa descrição?
7- O triângulo amoroso ocorrido nesse conto, dois homens e uma mulher, acontece
também em outra obra do mesmo autor. Você sabe qual é? Caso não saiba vamos
procurar descobrir.
8- Vamos pesquisar outros contos ou romances que tratem sobre o mesmo tema.
3º MOMENTO
AMPLIANDO CONHECIMENTOS
Para esse momento vamos fazer uma pesquisa bibliográfica (livros, internet),
dividir os grupos em três alunos, sobre alguns contistas e seus contos, entre eles, os três
autores estudados Edgar Alan Põe, Lygia Fagundes Telles, Machado de Assis, além de Eça
de Queirós, Rubem Braga, Álvares de Azevedo, Clarice Lispector, entre outros. Os temas
agora poderão ser os mais variados, pois para Jauss, o valor de uma obra literária decorre
da percepção estética que a obra desperta no leitor, ao mesmo tempo em que contraria a
expectativa do leitor.
Atividades Práticas:
- Divisão dos grupos;
- Escolha dos autores a serem pesquisados;
- Cada grupo irá apresentar para os demais a pesquisa realizada e ao menos um conto
escolhido pelo grupo;
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- Montagem de um painel sobre a pesquisa e um comentário sobre o conto selecionado.
4. Questionamento do horizonte de expectativas (três aulas):
Após o trabalho realizado com os três contos e a pesquisa, teremos que levar os
alunos a questionarem seus horizontes de expectativas, o que pode ser feito através de um
debate. Aquilo que entendiam por conto realmente é? O que eles esperavam ao iniciar o
trabalho com cada texto se concretizou? É possível estimular o gosto pela leitura literária
através do conto? Embora o gênero fosse o mesmo os temas ou assuntos abordados são os
mesmos? Quanto à linguagem o “mito”de que linguagem literária é difícil se concretizou?
Quais as maiores dificuldades para entender os contos? E os temas, dos contos estudados
são contemporâneos, ou já não fazem mais parte do contexto atual?
Atividade prática:
1- Agora que você já sabe os elementos essenciais de um conto, deixe sua imaginação
solta, e, vamos produzir um conto de mistério, terror, suspense ou outro que você achar
melhor. Depois vamos socializar com nossos colegas e expô-los no mural do Colégio.
5. Ampliação do horizonte de expectativas: ( cinco aulas)
A ampliação do horizonte de expectativas, é um recomeço. Nessa etapa parte-se em
busca de novos desafios, de uma literatura mais complexa, pois a Estética da Recepção
privilegia a obra “mais difícil”. Partindo desse princípio, será proposta a leitura do conto
“O Defunto”de Eça de Queirós. Após a leitura, que será realizada em sala de aula,
faremos uma análise oral da obra.
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O DEFUNTO
No ano de 1474, que foi por toda a Cristandade tão abundante em mercês divinas,
reinando em Castela el-rei Henrique IV, veio habitar na cidade de Segóvia, onde herdara
moradias e uma horta, um cavaleiro moço, de muito limpa linhagem e gentil parecer, que
se chamava D. Rui de Cardenas.
Essa casa, que lhe legara seu tio, arcediago e mestre em cânones, ficava ao lado e
na sombra silenciosa da igreja de Nossa Senhora do Pilar; e, em frente, para além do adro,
onde cantavam as três bicas de um chafariz antigo, era o escuro e gradeado palácio de D.
Alonso de Lara, fidalgo de grande riqueza e maneiras sombrias, que já na madureza da sua
idade, todo grisalho, desposara uma menina falada em Castela pela sua alvura, cabelos cor
de sol claro, e colo de garça real.D. Rui tivera justamente por madrinha, ao nascer, Nossa
Senhora do Pilar, de quem sempre se conservou devoto e fiel servidor; ainda que, sendo de
sangue bravo e alegre, amava as armas, a caça, os saraus bem galanteados, e mesmo por
vezes uma noite ruidosa de taverna com dados e pichéis de vinho.Por amor, e pelas
facilidades desta santa vizinhança, tomaraele o piedoso costume, desde a sua chegada a
Segóvia, de visitar todas as manhãs, à hora de Prima, a sua divina madrinha e de lhe pedir,
em três Ave-Marias, a bênção e a graça.
Ao escurecer, mesmo depois de alguma rija correria por campo e monte com
lebréus ou falcão, ainda voltava para, à saudação de Vésperas, murmurar docemente uma
Salve- Rainha.
E todos os domingos comprava no adro, a uma ramalheteira mourisca, algum ramo
de junquilhos, ou cravos, ou rosas singelas, que espalhava, com ternura e cuidado galante,
em frente ao altar da Senhora.
A esta venerada igreja do Pilar vinha também cada domingo D. Leonor, a tão falada
e formosa mulher do senhor de Lara, acompanhada por uma aia carrancuda, de olhos mais
abertos e duros que os de uma coruja, e por dois possantes lacaios que a ladeavam e
guardavam como torres. Tão ciumento era o senhor D. Alonso que, só por lho haver
severamente ordenado o seu confessor, e com medo de ofender a Senhora, sua vizinha,
permitia esta visita fugitiva, a que ele ficava espreitando sofregamente, de entre as rexas de
uma gelosia, os passos e a demora. Todos os lentos dias da lenta semana os passava a
senhora D. Leonor no encerro do gradeado solar de granito negro, não tendo, para se
recrear e respirar, mesmo nas calmas do Estio, mais que um fundo de jardim verde-negro,
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cercado de tão altos muros, que apenas se avistava, emergindo deles, aqui, além, alguma
ponta de triste cipreste. Mas essa curta visita a Nossa Senhora do Pilar bastou para que D.
Rui se enamorasse dela tresloucadamente, na manhã de Maio em que a viu de joelhos ante
o altar, numa réstia de sol, aureolada pelos seus cabelos de ouro, com as compridas
pestanas pendidas sobre o livro de Horas, o rosário caindo de entre os dedos finos, fina
toda ela e macia, e branca, de uma brancura de lírio aberto na sombra, mais branca entre as
rendas negras e os negros cetins que à volta do seu corpo cheio de graças se quebravam,
em pregas duras, sobre as lajes da capela, velhas lajes de sepulturas. Quando depois dum
momento de enleio e de delicioso pasmo se ajoelhou, foi menos para a Virgem do Pilar,
sua divina Madrinha, do que para aquela aparição mortal, de quem não sabia o nome nem a
vida, e só que por ela daria vida e nome, se ela se rendesse por tão incerto preço.
Balbuciando, com uma prece ingrata, as três Ave-Marias com que cada manhã saudava
Maria, apanhou o seu sombreiro, desceu levemente a nave sonora e no portal se quebrou,
esperando por ela entre os mendigos lazarentos que se catavam ao sol. Mas, quando ao
cabo de um tempo, em que D. Rui sentiu no coração um desusado bater de ansiedade e
medo, a senhora D. Leonor passou e se deteve, molhando os dedos na pia de mármore de
água benta, os seus olhos, sob o
véu descido, não se ergueram para ele, ou tímidos ou desatentos. Com a aia de olhos muito
abertos colada aos vestidos, entre os dois lacaios, como entre duas torres, atravessou
vagarosamente a adro, pedra por pedra, gozando decerto, como encarcerada, o desafogado
ar e o livre sol que o inundavam. E foi espanto para D. Rui quando ela penetrou na sombria
arcada, de grossos pilares, sobre que assentava o palácio, e desapareceu por uma esguia
porta recoberta de ferragens. Era, pois, essa a tão falada D. Leonor, a linda e nobre senhora
de Lara...
Então começaram sete arrastados dias, que ele gastou sentado a um poial da sua
janela, considerando aquela negra porta recoberta de ferragens como se fosse a do Paraíso,
e por ela devesse sair um anjo para lhe anunciar a Bem-Aventurança. Até que chegou o
vagaroso domingo: e passando ele no adro, à hora de Prima, ao repicar dos sinos, com um
molho de cravos amarelos para a sua divina Madrinha, cruzou D. Leonor, que saía de entre
os pilares da escura arcada, branca, doce e pensativa, como uma lua de entre nuvens. Os
cravos quase lhe caíram naquele gostoso alvoroço em que o peito lhe arfou mais que um
mar, e a alma toda lhe fugiu em tumulto através do olhar com que a devorava. E ela ergueu
também os olhos para D. Rui, mas uns olhos repousados, uns olhos serenos, em que não
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luzia curiosidade, nem mesmo consciência de se estarem trocando com outros, tão acesos e
enegrecidos pelo desejo. O moço cavaleiro não entrou na igreja, com piedoso receio de não
prestar à sua Madrinha
divina a atenção, que decerto lhe roubaria toda aquela que era só humana, mas dona já do
seu coração, e nele divinizada.
Esperou sofregamente à porta, entre os mendigos, secando os cravos com o ardor
das mãos trêmulas, pensando quanto era demorado o rosário que ela rezava. Ainda D.
Leonor descia a nave, já ele sentia dentro de alma o doce rugir das sedas fortes que ela
arrastava nas lajes. A branca senhora passou – e o mesmo distraído olhar, desatento e
calmo, que espalhou pelos mendigos e pelo adro, o deixou escorregar sobre ele, ou porque
não compreendesse aquele moço que de repente se tornara tão pálido, ou porque não o
diferenciava ainda das coisas e das formas indiferentes.
D. Rui abalou, com um fundo suspiro; e, no seu quarto, pôs devotamente ante a
imagem da Virgem as flores que não oferecera, na igreja, ao seu altar. Toda a sua vida se
tornou então um longo queixume por sentir tão fria e desumana aquela mulher, única entre
as mulheres, que prendera e tornara sério o seu coração ligeiro e errante. Numa esperança,
a que antevia bem o desengano, começou a rondar os muros altos do jardim – ou
embuçado numa capa, com o ombro contra uma esquina, lentas horas se quedava
contemplando as grades das gelosias, negras e grossas como as dum cárcere. Os muros não
se fendiam, das grades não saía sequer um rasto de luz prometedora. Toda o solar era como
um jazigo onde jazia uma insensível, e por trás das frias pedras havia ainda um frio peito.
Para se desafogar compôs, com piedoso cuidado, em noites veladas sobre o pergaminho,
trovas gementes que o não desafogavam. Diante do altar da Senhora do Pilar, sobre as
mesmas lajes onde a vira ajoelhada, pousava ele os joelhos, e ficava, sem palavras de
oração, num cismar amargo e doce, esperando que o seu coração serenasse e se consolasse,
sob a influência d'Aquela que tudo consola e serena. Mas sempre se erguia mais desditoso
e tendo apenas a sensação de quanto eram frias e rígidas as pedras sobre que ajoelhara. O
mundo todo só lhe parecia conter rigidez e frieza.
Outras claras manhãs de domingo encontrou D. Leonor: e sempre os olhos dela
permaneciam descuidados e como esquecidos, ou quando se cruzavam com os seus era tão
singelamente, tão limpos de toda a emoção, que D. Rui os preferiria ofendidos e faiscando
de ira, ou soberbamente desviados com soberbo desdém. Decerto D. Leonor já conhecia: –
mas, assim, conhecia também a ramalheteira mourisca agachada diante do seu cesto ä beira
33
da fonte; ou os pobres que se catavam ao sol diante do portal da Senhora. Nem D. Rui já
podia pensar que ela fosse desumana e fria. Era apenas soberanamente remota, como uma
estrela que nas alturas gira e refulge, sem saber que, em baixo, num mundo que ela não
distingue, olhos que ela não suspeita a contemplam, a adoram e lhe entregam o governo da
sua ventura e sorte.
Então D. Rui pensou:
– Ela não quer, eu não posso: foi um sonho que findou, e Nossa Senhora a ambos nos tenha
na sua graça!
E como era cavaleiro muito discreto, desde que a reconheceu assim inabalável na
sua indiferença, não procurou, nem sequer ergueu mais os olhos para as grades das suas
janelas, e até nem penetrava na igreja de Nossa Senhora quando casualmente, do portal, a
avistava ajoelhada, com a sua cabeça tão cheia de graça e de ouro, pendida sobre o Livro
de Horas.
A velha aia, de olhos mais abertos e duros que os de uma coruja, não tardara em
contar ao senhor de Lara que um moço audaz, de gentil parecer, novo morador nas velhas
casas do arcediago, constantemente se atravessava no adro, se postava diante da igreja para
atirar o coração pelos olhos à senhora D. Leonor. Bem amargamente o sabia já o ciumento
fidalgo, porque quando da sua janela espreitava, como um falcão, a airosa senhora a
caminho da igreja, observara os giros, as esperas, os olhares dardejados daquele moço
galante – e puxara as barbas de furor. Desde então, na verdade, a sua mais intensa
ocupação era odiar D. Rui, o impudente sobrinho do cônego, que ousava erguer o seu
baixo desejo até à alta senhora de Lara. Constantemente agora o trazia vigiado por um
serviçal – e conhecia todos os seus passos e pousos, e os amigos com quem caçava ou
folgava, e até quem lhe talhava os gibões, e até quem lhe polia a espada, e cada hora do seu
viver. E mais ansiosamente ainda vigiava D. Leonor – cada um dos seus movimentos, os
mais fugitivos modos, os silêncios e o conversar com as aias, as distrações sobre o
bordado, o jeito de cismar sob as árvores do jardim, e o ar e a cor com que recolhia da
igreja... Mas tão inalteradamente serena, no seu sossego de coração, se mostrava a senhora
D. Leonor, que nem o ciúme mais imaginador de culpas poderia achar manchas naquela
pura neve. Redobradamente áspero então se voltava o rancor de D. Alonso contra o
sobrinho do cônego por ter apetecido aquela pureza, e aqueles cabelos cor de sol claro, e
aquele colo de garça real, que eram só seus, para esplêndido gosto da sua vida. E quando
passeava na sombria galeria do solar, sonora e toda de abóbada, embrulhado na sua
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samarra orlada de peles, com o bico de barba grisalha espetado para diante, a grenha crespa
eriçada para trás e os punhos cerrados, era sempre remoendo o mesmo fel:
– Tentou contra a virtude dela, tentou contra a minha honra... É culpado por duas
culpas e merece duas mortes!
Mas o seu furor quase se misturou um terror, quando soube que D. Rui já não
esperava no adro a senhora D. Leonor, nem rondava amorosamente os muros do palacete,
nem penetrava na igreja quando ela lá rezava, aos domingos; e que tão inteiramente se
alheava dela que uma manhã, estando rente da arcada, e sentindo bem ranger e abrir a porta
por onde a senhora ia aparecer, permanecera de costas voltadas, sem se mover, rindo com
um cavaleiro gordo, que lhe lia um pergaminho. Tão bem afetada indiferença só servia
decerto (pensou D. Alonso) a esconder alguma bem danada tenção! Que tramava ele, o
destro enganador? Tudo no desabrido fidalgo se exacerbou – ciúme, rancor, vigilância,
pesar da sua idade grisalha e feia. No sossego de D. Leonor suspeitou manha e fingimento;
– e imediatamente lhe vedou as visitas à Senhora do Pilar.
Nas manhãs costumadas corria ele à igreja para rezar o rosário, a levar as desculpas
de D. Leonor – "que no puede venir (murmurava curvado diante do altar) por lo que sabeis,
virgem purissima!" Cuidadosamente visitou e reforçou todos os negros ferrolhos das portas
do seu solar.
De noite soltava dois mastins nas sombras do jardim murado.
À cabeceira do vasto leito, junto da mesa onde ficava a lâmpada, um relicário e o
copo de vinho quente com canela e cravo para lhe retemperar as forças – luzia sempre uma
grande espada nua. Mas, com tantas seguranças, mal dormia – e a cada instante se solevava
em sobressalto de entre as fundas almofadas, agarrando a senhora D. Leonor com mão
bruta e sôfrega, que lhe pisava o colo, para rugir muito baixo, numa ânsia: "Diz que me
queres só a mim!..." Depois, com a alvorada, lá se empoleirava, a espreitar, como um
falcão, as janelas de D. Rui. Nunca o avistava, agora, nem à porta da igreja às horas de
missa, nem recolhendo do campo, a cavalo, ao toque de Ave-Marias.
E por o sentir assim sumido dos sítios e giros costumados – é que mais o suspeitava
dentro do coração de D. Leonor.
Enfim, uma noite, depois de muito trilhar o lajedo da galeria, remoendo surdamente
desconfianças e ódios, gritou pelo intendente e ordenou que se preparassem trouxas e
cavalgaduras. Cedo, de madrugada, partiria, com a senhora D. Leonor, para a sua herdade
de Cabril, a duas léguas de Segóvia! A partida não foi de madrugada, como uma fuga de
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avarento que vai esconder longe o seu tesouro: – mas, realizada com aparato e demora,
ficando a liteira diante da arcada, a esperar longas horas, de cortinas abertas, enquanto um
cavalariço passeava pelo adro a mula branca do fidalgo, enxairelada à mourisca, e do lado
do jardim a récua de machos, carregados de baús, presos às argolas, sob o sol e a mosca,
aturdiam a viela com o tilintar dos guizos. Assim D. Rui soube a jornada do senhor de
Lara: – e assim a soube toda a cidade.
Fora um grande contentamento para D. Leonor, que gostava de Cabril, dos seus
viçosos pomares, dos jardins, para onde abriam, rasgadamente e sem grades, as janelas dos
seus aposentos claros: aí ao menos tinha largo ar, pleno sol, e alegretes a regar, um viveiro
de pássaros, e tão compridas ruas de loureiro ou teixo, que eram quase a liberdade. E
depois esperava que no campo se aligeirassem aqueles cuidados que traziam, nos
derradeiros tempos, tão enrugado e taciturno seu marido e senhor. Mas não logrou esta
esperança, porque ao cabo de uma semana ainda se não desanuviara a face de D. Alonso –
nem decerto havia frescura de arvoredos, sussurros de águas correntes, ou aromas esparsos
nos rosais em flor, que calmassem agitação tão amarga e funda. Como em Segóvia, na
galeria sonora de grande abóbada, sem descanso passeava, enterrado na sua samarra, com o
bico da barba espetado para diante, a grenha basta eriçada para trás, e um jeito de
arreganhar silenciosamente o beiço, como se meditasse maldades a que gozava de antemão
o sabor acre. E todo o interesse da sua vida de concentrava num serviçal, que
constantemente galopava entre Segóvia e Cabril, e que ele por vezes esperava no começo
da aldeia, junto ao Cruzeiro, ficando a escutar o homem que desmontava, ofegante, e logo
lhe dava novas apressadas.
Uma noite em que D. Leonor, no seu quarto, rezava o terço com as aias, à luz duma
tocha de cera, o senhor de Lara entrou muito vagarosamente, trazendo na mão uma folha
de pergaminho e uma penha mergulhada no seu tinteiro de osso. Com um rude aceno
despediu as aias, que o temiam como a um lobo. E, empurrando um escabelo para junto da
mesa, volvendo para D. Leonor a face a que impusera tranqüilidade e
agrado, como se apenas viesse pôr coisas naturais e fáceis:
– Senhora – disse – quero que me escrevais aqui uma carta que muito convém
escrever...
Tão costumada era nela a submissão, que, sem outro reparo ou curiosidade, indo
apenas pendurar na barra do leito o rosário em que rezara, se acomodou sobre o escabelo, e
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os seus dedos finos, com muita aplicação, para que a letra fosse esmerada e clara, traçaram
a primeira linha curta que o Senhor de Lara ditara e era: "Meu cavaleiro..." Mas quando ele
ditou a outra, mais longa, e dum modo amargo, D. Leonor arrojou a pena, como se a pena a
escaldasse, e, recuando da mesa, gritou, numa aflição:
– Senhor, para que convém que eu escreva tais coisas e tão falsas?...
Num brusco furor, o senhor de Lara arrancou do cinto um punhal, que lhe agitou
junto à face, rugindo surdamente:
– Ou escreveis o que vos mando e que a mim me convém, ou, por Deus, que vos
vara o coração!...
Mais branca que a cera da tocha que os alumiava, com a carne arrepiada ante aquele
ferro que luzia, num tremor supremo e que tudo aceitava, D. Leonor murmurou:
– Pela Virgem Maria, não me façais mal!... Nem vos agasteis, senhor, que eu vivo
para vos obedecer e servir... Agora, mandai, que eu escreverei.
Então, com os punhos cerrados nas bordas da mesa, onde pousara o punhal,
esmagando a frágil e desditosa mulher sob o olhar duro que fuzilava, o senhor de Lara
ditou, atirou roucamente, aos pedaços, aos repelões, uma carta que dizia, quando finda e
traçada em letra bem incerta e trêmula: – "Meu cavaleiro: Muito mal haveis compreendido,
ou muito mal pagais o amor que vos tenho, e que não vos pude nunca, em Segóvia, mostrar
claramente... Agora aqui estou em Cabril, ardendo por vos ver; e se o vosso desejo
corresponde ao meu, bem facilmente o podeis realizar, pois que meu marido se acha
ausente noutra herdade, e esta de Cabril é toda fácil e aberta. Vinde esta noite, entrai pela
porta do jardim, do lado da azinhaga, passando o tanque, até o terraço. Aí avistareis uma
escada encostada a uma janela da casa, que é a janela do meu quarto, onde sereis bem
docemente agasalhado pôr quem ansiosamente vos espera...."
– Agora, senhora, assinai por baixo o vosso nome, que isso sobretudo convém!
D. Leonor traçou vagarosamente o seu nome, tão vermelha como se a despissem
diante de uma multidão.
– E agora – ordenou o marido mais surdamente, através dos dentes cerrados –
endereçai a D. Rui de Cardenas!
Ela ousou erguer os olhos, na surpresa daquele nome desconhecido.
– Andai!... A D. Rui de Cardenas! – gritou o homem sombrio.
E ela endereçou a sua desonesta carta a D. Rui de Cardenas.
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D. Alonso meteu o pergaminho no cinto, junto ao punhal que embainhara, e saiu
em silêncio com a barba espetada, abafando o rumor dos passos nas lajes do corredor.
Ela ficara sobre o escabelo, as mãos cansadas e caídas no regaço, num infinito
espanto, o olhar perdido na escuridão da noite silente. Menos escura lhe parecia a morte
que essa escura aventura em que se sentia envolvida e levada! Quem era esse D. Rui de
Cardenas, de quem nunca ouvira falar, que nunca atravessara a sua vida, tão quieta, tão
pouco povoada de memórias e de homens? E ele decerto a conhecia, a encontrara, a
seguira, ao menos com os olhos, pois que era coisa natural e bem ligada receber dela carta
de tanta paixão e promessa...
Assim, um homem, e moço decerto bem nascido, talvez gentil, penetrava no seu
destino bruscamente, trazido pela mão de seu marido? Tão intimamente mesmo se
entranhara esse homem na sua vida, sem que ela se apercebesse, que já para ele se abria de
noite a porta do seu jardim, e contra a sua janela, para ele subir, se arrumava de noite uma
escada!... E era seu marido que muito secretamente escancarava a porta, e muito
secretamente levantava a escada... Para quê?...
Então, num relance, D. Leonor compreendeu a verdade, a vergonhosa verdade, que
lhe arrancou um grito ansiado e mal sufocado. Era uma cilada! O senhor de Lara atraía a
Cabril esse D. Rui com uma promessa magnífica, para dele se apoderar, e decerto o matar,
indefeso e solitário! E ela, o seu amor, o seu corpo, eram as promessas que se faziam
rebrilhar ante os olhos seduzidos do moço desventuroso. Assim seu marido usava a sua
beleza, o seu leito, como a rede de ouro em que devia cair aquela presa estouvada! Onde
haveria maior ofensa? E também quanta imprudência! Bem poderia esse D. Rui de
Cardenas desconfiar, não aceder a convite tão abertamente amoroso, e depois mostrar por
toda a Segóvia, rindo e triunfando, aquela carta em que lhe fazia oferta do seu leito e do
seu corpo a mulher de Alonso de Lara! Mas não! O desventurado correria a Cabril – e para
morrer, miseravelmente morrer no negro silêncio da noite, sem padre, nem sacramentos,
com a alma encharcada em pecado de amor! Para morrer, decerto – porque nunca o senhor
de Lara permitiria que vivesse o homem que recebera tal carta. Assim, aquele moço morria
por amor dela, e por um amor que, sem lhe valer nunca um gosto, lhe valia logo a morte!
Decerto por amor dela – pois que tal ódio do senhor de Lara, ódio que, com tanta
deslealdade e vilania, se cevava, só podia nascer de ciúmes, que lhe escureciam todo o
dever de cavaleiro e de cristão. Sem dúvida ele surpreendera olhares, passos, tenções deste
senhor D. Rui, mal acautelado por bem namorado.
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Mas como? quando? Confusamente se lembrava ela de um moço que um domingo
a cruzara no adro, a esperara ao portal da igreja, com um molho de cravos na mão... Seria
esse? Era de nobre parecer, muito pálido, com grandes olhos negros e quentes. Ela passara
– indiferente.... Os cravos que segurava na mão eram vermelhos e amarelos... A quem os
levava?... Ah! se o pudesse avisar, bem cedo, de madrugada!
Como, se não havia em Cabril serviçal ou aia de quem se fiasse? Mas deixar que
uma bruta espada varasse traiçoeiramente aquele coração, que vinha cheio dela, palpitando
por ela, todo na esperança dela!...
Oh! A desabrida e ardente correria de D. Rui, desde Segóvia a Cabril, com a
promessa de encantador jardim aberto, da escada posta contra a janela, sob a mudez e
proteção da noite! Mandaria realmente o senhor de Lara encostar uma escada à janela?
Decerto, para com mais facilidade o poderem matar, ao pobre, e doce, e inocente moço,
quando ele subisse, mal seguro sobre um frágil degrau, as mãos embaraçadas, a espada a
dormir na bainha.... E assim, na outra noite, em face ao seu leito, a sua janela estaria
aberta, e uma escada estaria erguida contra a sua janela à espera de um homem!
Emboscado na sombra do quarto, seu marido seguramente mataria esse homem...
Mas se o senhor de Lara esperasse fora dos muros da quinta, assaltasse brutalmente,
nalguma azinhaga, aquele D. Rui de Cardenas, e, ou por menos destro, ou por menos forte,
num terçar de armas, caísse ele traspassado, sem que o outro conhecesse a quem matara? E
ela, no seu quarto, sem saber, e todas as portas abertas, e a escada erguida, e aquele homem
assomado à janela na sombra macia da noite tépida, e o marido que a devia defender morto
no fundo duma azinhaga... Que faria ela, Virgem Mãe? Oh! Decerto repeliria,
soberbamente, o moço temerário. Mas o espanto dele e a
cólera do seu desejo enganado! "Por Vós é que eu vim chamado, senhora!" E ali trazia,
sobre o coração, a carta dela, com seu nome, que a sua mão traçara. Como lhe poderia
contar a emboscada e o dolo? Era tão longo de contar, naquele silêncio e solidão da noite,
enquanto os olhos dele, úmidos e negros, a estivessem suplicando e trespassando...
Desgraçada dela se o senhor de Lara morresse, a deixasse solitária, sem
defesa, naquela vasta casa aberta! Mas quanto desgraçada também se aquele moço,
chamado por ela, e que a amava, e que por esse amor vinha correndo deslumbrante,
encontrasse a morte no sítio da sua esperança, que era o sítio do seu pecado, e, morto em
pleno pecado, rolasse para a eterna desesperança... Vinte e cinco anos, ele – se era o
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mesmo de quem se lembrava, pálido, e tão airoso, com um gibão de veludo roxo e um
ramo de cravos na mão, à porta da igreja, em Segóvia....
Duas lágrimas saltaram dos cansados olhos de D. Leonor. E dobrando os joelhos,
levantando a alma toda para o céu, onde a Lua se começava a levantar, murmurou, numa
infinita mágoa e fé:
– Oh! Santa Virgem do Pilar, Senhora minha, vela por nós ambos, vela por todos
nós!....
D. Rui entrava, pela hora da calma, no fresco pátio da sua casa, quando de um
banco de pedra, na sombra, se ergueu um moço de campo, que tirou de dentro do surrão
uma carta, lhe entregou, murmurando:
– Senhor, dai-vos pressa em ler, que tenho de voltar a Cabril, a quem me mandou...
D. Rui abriu o pergaminho; e, no deslumbramento que o tomou, bateu com ele
contra o peito, como para o enterrar no coração...
O moço do campo insistia, inquieto:
– Aviai, senhor, aviai! Nem precisais responder. Basta que me deis um sinal de vos
ter vindo o recado...
Muito pálido, D. Rui arrancou uma das luvas bordadas a retrós, que o moço enrolou
e sumiu no surrão. E já abalava na ponta das alpercatas leves, quando, com um aceno, D.
Rui ainda o deteve:
– Escuta. Que caminho tomas tu para Cabril?
– O mais curto e sozinho para gente afoita, que é pelo Cerro dos Enforcados.
– Bem.
D. Rui galgou as escadas de pedra, e no seu aposento, sem mesmo tirar o
sombreiro, de novo leu junto da gelosia aquele pergaminho divino, em que D. Leonor o
chamava de noite ao seu quarto, à posse inteira do seu ser. E não o maravilhava esta oferta
– depois de uma tão constante, imperturbada indiferença. Antes nela logo percebeu um
amor muito astuto, por ser muito forte que, com grande paciência, se esconde ante os
estorvos e os perigos, e mudamente prepara a sua hora de contentamento, melhor e mais
deliciosa por tão preparada. Sempre ela o amara, pois, desde a manhã bendita em que os
seus olhos se tinham cruzado no portal de Nossa Senhora. E enquanto ele rondava aqueles
muros do jardim, maldizendo uma frieza que lhe parecia mais fria que a dos frios muros,
já ela lhe dera a sua alma, e cheia de constância, com amorosa sagacidade, recalcando o
40
menor suspiro, adormecendo desconfianças, preparava a noite radiante em que lhe daria
também o seu corpo.
Tanta firmeza, tão fino engenho nas coisas do amor, ainda lha tornavam mais bela e
mais apetecida!
Com que impaciência olhava então o Sol, tão desapressado nessa tarde em descer
para os montes! Sem repouso, no seu quarto, com a gelosias cerradas para melhor
concentrar a sua felicidade, tudo aprontava amorosamente para a triunfal jornada: as finas
roupas, as finas rendas, um gibão de veludo negro e as essências perfumadas. Duas vezes
desceu à cavalariça a verificar se o seu cavalo estava bem ferrado e bem pensado. Sobre o
soalho, vergou e revergou, para a experimentar, a folha da espada que levaria à cinta... Mas
o seu maior cuidado era o caminho para Cabril, apesar de bem o conhecer, e a aldeia
apinhada em torno ao mosteiro franciscano, e a velha ponte romana com o seu Calvário, e
a azinhaga funda que levava à herdade do senhor de Lara. Ainda nesse Inverno pôr lá
passara, indo montear com dois amigos de Astorga, e avistara a torre dos de Lara, e
pensara: – "Eis a torre da minha ingrata!" Como se enganava! As noites agora eram de
Lua, e ele sairia de Segóvia caladamente, pela porta de S. Mauros. Um galope curto o
punha no Cerro dos Enforcados... Bem o conhecia também, esse sítio de tristeza e pavor,
com os seus quatro pilares de pedra, onde se enforcavam os criminosos, e onde os seus
corpos ficavam, baloiçados da ventania, ressequidos do sol, até que as cordas
apodrecessem e as ossadas caíssem, brancas e limpas da carne pelo bico dos corvos. Por
trás do cerro era a lagoa das Donas.
A derradeira vez que por lá andara, fora em dia do apóstolo S. Matias, quando o corregedor
e as confrarias de caridade e paz, em procissão, iam dar sepultura sagrada às ossadas caídas
no chão negro, esburgadas pelas aves. Daí o caminho, depois, corria liso e direito a Cabril.
Assim D. Rui meditava a sua jornada venturosa, enquanto a tarde ia caindo. Mas,
quando escureceu, e em torno às torres da igreja começaram a girar os morcegos, e nas
esquinas do adro se acenderam os nichos das Almas, o valente moço sentiu um medo
estranho, o medo daquela felicidade que se acercava e que lhe parecia sobrenatural. Era,
pois, certo, que essa mulher de divina formosura, famosa em Castela, e mais inacessível
que um astro, seria sua, toda sua, no silêncio e segurança duma alcova, dentro em breves
instantes, quando ainda se não tivessem apagado diante dos retábulos das Almas aqueles
lumes devotos? E o que fizera ele para lograr tão grande bem? Pisara as lajes de um adro,
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esperara no portal de uma igreja, procurando com os olhos outros dois olhos, que não se
erguiam, indiferentes ou desatentos. Então, sem dor,
abandonara a sua esperança... E eis que de repente aqueles olhos distraídos o procuram, e
aqueles braços fechados se lhe abrem, largos e nus, e com o corpo e com a alma aquela
mulher lhe grita: – "Oh! mal-avisado, que não me entendeste! Vem! Quem te desanimou já
te pertence!" Houvera jamais igual ventura? Tão alta, tão rara era, que decerto atrás dela, se
não erra a lei humana, já devia caminhar a desventura! Já na verdade caminhava; – pois
quanta desventura em saber que depois de tal ventura, quando de madrugada, saindo dos
divinos braços, ele recolhesse a Segóvia, a sua Leonor, o bem sublime da sua vida, tão
inesperadamente adquirido por um instante, recairia logo sob o poder de outro amo!
Que importava! Viessem depois dores e zelos! Aquela noite era esplendidamente
sua, o mundo todo uma aparência vã e a única realidade esse quarto de Cabril, mal
alumiado, onde ela o esperaria, com os cabelos soltos! Foi com sofreguidão que desceu a
escada, se arremessou sobre o seu cavalo. Depois, por prudência, atravessou o adro muito
lentamente, com o sombreiro bem levantado da face, como um passeio natural, a
procurar fora dos muros a frescura da noite. Nenhum encontro o inquietou até à porta de S.
Mauros. Aí, um mendigo, agachado na escuridão dum arco, e que tocava monotonamente a
sua sanfona, pediu, em lamúria, à virgem e a todos os santos, que levassem aquele gentil
cavaleiro na sua doce e santa guarda. D. Rui parara para lhe atirar uma esmola, quando se
lembrou que nessa tarde não fora à igreja, à hora de vésperas, rezar e pedir a bênção à sua
divina madrinha. Com um salto, desceu logo do cavalo, porque, justamente, rente ao velho
arco, tremeluzia uma lâmpada alumiando um
retábulo. Era uma imagem da Virgem com o peito traspassado pôr sete espadas. D. Rui
ajoelhou, pousou o sombreiro nas lajes e com as mãos erguidas, muito zelosamente, rezou
uma Salve-Rainha. O clarão amarelo da luz envolvia o rosto da Senhora, que, sem sentir as
dores dos sete ferros, ou como se eles só dessem inefáveis gozos, sorria com os lábios
muito vermelhos. Enquanto ele rezava, no convento de São Domingos, ao lado, a sinete
começou a tocar a agonia. De entre a sombra negra do arco, cessando a sanfona, o mendigo
murmurou: – "Lá está um frade a morrer!" D. Rui disse uma Ave-Maria pelo frade que
morria. A Virgem das sete espadas sorria docemente – o toque de agonia não era, pois, de
mau presságio! D. Rui cavalgou alegremente e partiu.
Para além da porta de S. Mauros, depois de alguns casebres de oleiros, o caminho
seguia, esguio e negro, entre altas piteiras. Por trás das colinas, ao fundo da planície escura,
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subia o primeiro clarão amarelo e lânguido, da Lua-cheia, ainda escondida. E D. Rui
marchava a passo, receando chegar a Cabril muito cedo, antes que as aias e os moços
findassem o serão e o rosário. Por que não lhe marcara D. Leonor a hora, naquela carta tão
clara e tão pensada?... Então a sua imaginação corria adiante, rompia pelo jardim de Cabril,
galgava aladamente a escada prometida – e ele largava também atrás, numa carreira
sôfrega, que arrancava as pedras do caminho mal junto. Depois sofreava o cavalo ofegante.
Era cedo, era cedo! E retomava o passo penoso, sentindo o coração contra o peito, como
ave presa que bate às grades.
Assim chegou ao Cruzeiro, onde a estrada se fendia em duas, mais juntas que as
pontas de uma forquilha, ambas cortando através de pinheiral. Descoberto diante da
imagem crucificada, D. Rui teve um instante de angústia, pois não se recordava qual delas
levava ao Cerro dos Enforcados. Já se embrenhara na mais cerrada, quando, de entre os
pinheiros calados, uma luz surgiu, dançando no escuro. Era uma velha em farrapos, com as
longas melenas soltas, vergada sobre um bordão e levando uma candeia.
– Para onde vai este caminho? – gritou Rui.
A velha balançou mais alto a candeia, para mirar o cavaleiro.
– Para Xarama
E luz e velha imediatamente se sumiram, fundidas na sombra, como se ali tivessem
surgido somente para avisar o cavaleiro do seu caminho errado.... Já ele virara
arrebatadamente; e, rodeando o Calvário, galopou pela outra estrada mais larga, até avistar,
sobre claridade do céu os pilares negros, os madeiros negros do Cerro dos Enforcados.
Então estacou, direito nos estribos. Num cômoro alto, seco, sem erva ou urze, ligados por
um muro baixo, todo esbrechado, lá se erguiam, negros, enormes, sobre a amarelidão do
luar, os quatro pilares de granito semelhantes aos quatro cunhais duma casa desfeita. Sobre
os pilares pousavam quatro grossas traves. Das traves pendiam quatro enforcados negros e
rígidos, no ar parado e mudo. Tudo em torno parecia morto como eles.
Gordas aves de rapina dormiam empoleiradas sobre os madeiros. Para além,
rebrilhava lividamente a água morta da lagoa das Donas. E, no céu, a Lua ia grande e
cheia.
D. Rui murmurou o Padre-Nosso devido por todo o cristão àquelas almas culpadas.
Depois impeliu o cavalo, e passava – quando, no imenso silêncio e na imensa solidão, se
ergueu, ressoou uma voz, uma voz que o chamava, suplicante e lenta:
– Cavaleiro, detende-vos, vinde cá!....
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D. Rui colheu bruscamente as rédeas e, erguido sobre os estribos, atirou os olhos
espantados por todo o sinistro ermo. Só avistou o cerro áspero, a água rebrilhante e muda,
os madeiros, os mortos. Pensou que fora ilusão da noite ou ousadia de algum demônio
errante. E, serenamente, picou o cavalo, sem sobressalto ou pressa, como numa rua de
Segóvia. Mas, por trás, a voz tornou, mais urgentemente o chamou, ansiosa quase aflita:
– Cavaleiro, esperai, não vos vades, voltai, chegai aqui!...
De novo D. Rui estacou e, virado sobre a sela, encarou afoitamente os quatro
corpos pendurados das travas. Do lado deles soava a voz, que, sendo humana, só podia sair
de forma humana! Um desses enforcados, pois, o chamara, com tanta pressa e ânsia.
Restaria nalguns, por maravilhosa mercê de Deus, alento e vida? Ou seria que, por
maior maravilha, uma dessa carcaças meio apodrecidas o detinha para lhe transmitir avisos
de Além da-Campa?... Mas que a voz rompesse dum peito vivo ou dum peito morto,
grande covardia era abalar, espavoridamente, sem a atender e a ouvir.
Atirou logo para dentro do cerro o cavalo, que tremia; e, parando, direito e calmo,
com a mão na ilharga, depois de fitar, um por um, os quatro corpos suspensos, gritou:
– Qual de vós, homens enforcados, ousou chamar pôr D.Rui de Cardenas?
Então aquele que voltava as costas à Lua-cheia, respondeu, do alto da corda, muito
quieta e naturalmente, como um homem que conversa da sua janela para a rua:
– Senhor, fui eu.
D. Rui fez avançar para diante dele o cavalo. Não lhe distinguia a face, enterrada no
peito, escondida pelas longas e negras melenas pendentes. Só percebeu que tinha as mãos
soltas e desamarradas, e também soltos os pés nus, já ressequidos e da cor do betume.
– Que me queres?
O enforcado, suspirando, murmurou:
– Senhor, fazei-me a grande mercê de me cortar esta corda em que estou
pendurado.
D. Rui arrancou a espada e de um golpe certo, cortou a corda meio apodrecida.
Com um sinistro som de ossos entrechocados o corpo caiu no chão, onde jazeu um
momento, estirado. Mas, imediatamente, se endireitou sobre os pés mal seguros e ainda
dormentes – e ergueu para D. Rui uma face morta, que era uma caveira com a pele muito
colada, e mais amarela que a Lua que nela batia. Os olhos não tinham movimento nem
brilho. Ambos os beiços se lhe arreganhavam num sorriso empedernido. De entre os
dentes, muito brancos, surdia uma ponta de língua muito negra.
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D. Rui não mostrou terror, nem asco. E embainhando serenamente a espada:
– Tu estás morto ou vivo? – perguntou.
O homem encolheu os ombros com lentidão:
– Senhor, não sei... Quem sabe o que é a vida? Quem sabe o que é a morte?
– Mas que queres de mim?
O enforcado, com os longos dedos descarnados, alargou o nó da corda que ainda
lhe laçava o pescoço e declarou muito serena e firmemente:
– Senhor, eu tenho de ir convosco a Cabril, onde vós ides.
O cavaleiro estremeceu num tão forte assombro, repuxando as rédeas, que o seu
bom cavalo se empinou como assombrado também.
– Comigo a Cabril?!...
O homem curvou o espinhaço, a que se viam os ossos todos, mais agudos que os
dentes de uma serra, através de um longo rasgão da camisa de estamenha:
– Senhor – suplicou – não mo negueis. Que eu tenho a receber grande salário se vos
fizer grande serviço!
Então D. Rui pensou de repente que bem podia ser aquela uma traça formidável do
Demónio. E, cravando os olhos muito brilhantes na face morta que para ele se erguia,
ansiosa, à espera do seu consentimento – fez um lento e largo Sinal-da-Cruz.
O enforcado vergou os joelhos com assustada reverência:
– Senhor, para que me experimentais com esse sinal? Só por ele alcançamos
remissão, e eu só dele espero misericórdia.
Então D. Rui pensou que, se esse homem não era mandado pelo Demônio, bem
podia ser mandado por Deus! E logo devotamente, com um gesto submisso em que tudo
entregava ao Céu, consentiu, aceitou o pavoroso companheiro: – Vem comigo, pois, a
Cabril, se Deus te manda! Mas eu nada te pergunto e tu nada me perguntes.
Desceu logo o cavalo à estrada, toda alumiada da Lua. O enforcado seguia ao seu
lado, com passos tão ligeiros, que mesmo quando D. Rui galopava ele se conservava rente
ao estribo, como levado por um vento mudo. Por vezes, para respirar mais livremente,
repuxava o nó da corda que lhe enroscava o pescoço. E, quando passavam entre sebes onde
errasse o aroma de flores silvestres, o homem murmurava com infinito alívio e delicia:
– Como é bom correr!
D. Rui ia num assombro, num tormentoso cuidado. Bem compreendia agora que era
aquele um cadáver reanimado por Deus, para um estranho e encoberto serviço. Mas para
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que lhe dava Deus tão medonho companheiro? Para o proteger? Para impedir que D.
Leonor, amada do Céu pela sua piedade, caísse em culpa mortal? E, para tão divina
incumbência de tão alta mercê, já não tinha o Senhor anjos no Céu, que necessitasse
empregar um supliciado?... Ah! como ele voltaria alegremente a rédea para Segóvia, se não
fora a galante lealdade de cavaleiro, o orgulho de nunca recuar, e a submissão às ordens de
Deus, que sentia sobre si pesarem...
Dum alto da estrada, de repente, avistaram Cabril, as torres do convento
franciscano alvejando ao luar, os casais adormecidos entre as hortas. Muito
silenciosamente, sem que um cão ladrasse detrás das cancelas ou de cima dos muros,
desceram a velha ponte romana. Diante do Calvário, o enforcado caiu de joelhos nas lajes,
ergueu os lívidos ossos da mãos, ficou longamente rezando, entre longos suspiros. Depois
ao entrar na azinhaga, bebeu muito tempo, e consoladamente, de uma fonte que corria e
cantava sob as frondes de um salgueiro. Como a azinhaga era muito estreita, ele caminhava
adiante do cavaleiro, todo encurvado, os braços cruzados fortemente sobre o peito, sem um
rumor.
A Lua ia alta no céu. D. Rui considerava com amargura aquele disco, cheio e
lustroso, que espargia tanta claridade, e tão indiscreta, sobre o seu segredo. Ah! como se
estragava a noite que devia ser divina! Uma enorme Lua surdia de entre os montes para
tudo alumiar. Um enforcado descia da forca para o seguir e tudo saber. Deus assim o
ordenara. Mas que tristeza chegar à doce porta, docemente prometida, com tal intruso ao
seu lado, sob aquele céu todo claro!
Bruscamente, o enforcado estacou, erguendo o braço, de onde a manga pendia em
farrapos. Era o fim da azinhaga que desembocava em caminho mais largo e mais batido: –
e diante deles alvejava o comprido muro da Quinta do senhor de Lara, tendo aí um mirante,
com varandins de pedra, e todo revestido de hera.
– Senhor – murmurou o enforcado, segurando com respeito o estribo de D. Rui –
logo a poucos passos deste mirante é a porta por onde deveis penetrar no jardim. Convém
que aqui deixeis o cavalo, amarrado a uma árvore, se o tendes por seguro e fiel. Que na
empresa em que vamos, já é de mais o rumor dos nossos pés!...
Silenciosamente D. Rui apeou, prendeu o cavalo, que sabia
fiel e seguro, ao tronco dum álamo seco.
E tão submisso se tornara àquele companheiro imposto por Deus, que sem outro
reparo o foi seguindo rente do muro que o luar batia.
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Com vagarosa cautela, e na ponta dos pés nus, avançava agora o enforcado,
vigiando o alto do muro, sondando a negrura da sebe, parando a escutar rumores que só
para ele eram percebíveis – porque nunca D. Rui conhecera noite mais fundamente
adormecida e muda.
E tal susto, em quem devia ser indiferente a perigos humanos, foi lentamente
enchendo também o valoroso cavaleiro de tão viva desconfiança, que tirava o punhal da
bainha, enrodilhava a capa no braço, e marchava em defesa, com o olhar faiscando, como
num caminho de emboscada e briga. Assim chegaram a uma porta baixa, que o enforcado
empurrou, e que se abriu sem gemer nos gonzos. Penetraram numa rua ladeada de espessos
teixos até a um tanque cheio de água, onde boiavam folhas de nenúfares, e que toscos
bancos de pedra circundavam, cobertos pela rama de arbustos em flor.
– Por ali! – murmurou o enforcado, estendendo o braço mirrado.
Era, além do tanque, uma avenida que densas e velhas árvores abobadavam e
escureciam. Por ela se meteram, como sombras na sombra, o enforcado adiante, D. Rui
seguindo muito subtilmente, sem roçar um ramo, mal pisando a areia. Um leve fio de água
sussurrava entre relvas. Pelos troncos subiam rosas trepadeiras, que cheiravam docemente.
O coração de D. Rui recomeçou a bater numa esperança de amor.
– Chuta! – fez o enforcado.
E D. Rui quase tropeçou no sinistro homem que estacava, com os braços abertos
como as traves de uma cancela. Diante deles quatro degraus de pedra subiam a um terraço,
onde a claridade era larga e livre. Agachados, treparam os degraus – e ao fundo dum
jardim sem árvores, todo em canteiros de flores bem recortados, orlados de buxo curto,
avistaram um lado da casa batido pela Lua-cheia. Ao meio, entre as janelas de peitoril
fechadas, um balcão de pedra, com manjericões aos cantos, conservava as vidraças abertas,
largamente. O quarto, dentro, apagado, era como um buraco de treva na claridade da
fachada que o luar banhava. E, arrimada contra o balcão, estava uma escada com degraus
de corda.
Então o enforcado empurrou D. Rui vivamente dos degraus para a escuridão da
avenida. E aí, com um modo urgente, dominando o cavaleiro, exclamou:
– Senhor! Convém agora que me deis o vosso sombreiro e a capa! Vós quedais aqui
na escuridão destas árvores. Eu vou trepar àquela escada e espreitar para aquele quarto... E
se for como desejais, aqui voltarei, e com Deus sede feliz...
D. Rui recuou no horror de que tal criatura subisse a tal janela!
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E bateu o pé, gritou surdamente:
– Não, por Deus!
Mas a mão do enforcado, lívida na escuridão, bruscamente lhe arrancou o
sombreiro da cabeça, lhe puxou a capa do braço. E já se cobria, já se embuçava,
murmurando agora, numa súplica ansiosa:
– Não mo negueis, senhor, que se vos fizer grande serviço, ganharei grande mercê!
E galgou os degraus: – estava no alumiado e largo terraço.
D. Rui subiu, atontado, e espreitou. E – oh maravilha! – era ele, D. Rui, todo ele, na
figura e no modo, aquele homem que, por entre os canteiros e o buxo curto, avançava,
airoso e leve, com a mão na cintura, a face erguida risonhamente para a janela, a longa
pluma escarlate do chapéu balançando em triunfo. O homem avançava no luar esplêndido.
O quarto amoroso lá estava esperando, aberto e negro. E D. Rui olhava, com olhos que
faiscavam, tremendo de pasmo e cólera. O homem chegara à escada: destraçou a capa,
assentou o pé no degrau de corda! – "Oh! lá sobe, o maldito!" – rugiu D. Rui. O enforcado
subia. Já a alta figura, que era dele, D. Rui, estava a meio da escada, toda negra contra a
parede branca. Parou!...Não! não parara: subia, chegava, – já sobre o rebordo da varanda
pousara o joelho cauteloso. D. Rui olhava, desesperadamente, com os olho, com a alma,
com todo o seu ser... E eis que, de repente, do quarto negro surge um negro vulto, uma
furiosa voz brada: – "vilão, vilão!" – e uma lâmina de adaga faisca, e cai, e outra vez se
ergue, e rebrilha, e se abate, e ainda refulge, e ainda se embebe!... Como um fardo, do alto
da escada, pesadamente, o enforcado cai sobre a terra mole. Vidraças, portadas do balcão
logo se fecham com fragor, E não houve mais senão o silêncio, a serenidade macia, a Lua
muito alta e redonda no céu de Verão.
Num relance D. Rui compreendera a traição, arrancara a espada, recuando para a
escuridão da avenida – quando – oh milagre! correndo através do terraço, aparece o
enforcado, que lhe agarra a manga e lhe grita:
– A cavalo, senhor, e abalar, que o encontro não era de amor, mas de morte!....
Ambos descem arrebatadamente a avenida, costeiam o tanque sob o refúgio dos
arbustos em flor, metem pela rua estreita orlada de teixos, varam a porta – e um momento
param, ofegantes, na estrada, onde a Lua, mais refulgente, mais cheia, fazia como um puro
dia.
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E então, só então, D. Rui descobriu que o enforcado conservava cravada no peito,
até aos copos, a adaga, cuja ponta lhe saia pelas costas, luzidia e limpa!... Mas já o
pavoroso homem o empurrava, o apressava:
– A cavalo, senhor, e abalar, que ainda está sobre nós a traição!
Arrepiado, numa ânsia de findar aventura tão cheia de milagre e de horror, D. Rui
colheu as rédeas, cavalgou sofregamente. E logo, em grande pressa, o enforcado saltou
também para a garupa do cavalo fiel. Todo se arrepiou o bom cavaleiro, ao sentir nas suas
costas o roçar daquele corpo morto, dependurado de uma forca, atravessado por uma
adaga. Com que desespero galopou então pela estrada infindável! Em carreira tão violenta
o enforcado nem oscilava, rígido sobre a garupa, como um bronze num pedestal. E D. Rui
cada momento sentia um frio mais regelado que lhe regelava os ombros, como se levasse
sobre eles um saco cheio de gelo. Ao passar no cruzeiro murmurou: – "Senhor, valei-me!"
– Para além do cruzeiro, de repente, estremeceu com o quimérico medo de que tão fúnebre
companheiro, para sempre, o ficasse acompanhando, e se tornasse seu destino galopar
através do mundo, numa noite eterna, levando um morto à garupa... E não se conteve,
gritou para trás, no vento da carreira que os vergastava:
– Para onde quereis que vos leve?
O enforcado, encostando tanto o corpo a D. Rui que o magoou com os copos da
adaga, segredou:
– Senhor, convém que me deixeis no Cerro! Doce e infinito alívio para o bom
cavaleiro – pois o Cerro estava perto, e já lhe avistava, na claridade desmaiada, os pilares e
as traves negras... Em breve estacou o cavalo, que tremia, branqueando de espuma.
Logo o enforcado, sem rumor, escorregou da garupa, segurou, como bom serviçal,
o estribo de D. Rui. E com a caveira erguida, a língua negra mais saída de entre os dentes
brancos, murmurou em respeitosa súplica:
– Senhor, fazei-me agora a grande mercê de me pendurar outra vez da minha trave.
D. Rui estremeceu de horror:
– Por Deus! Que vos enforque, eu?....
O homem suspirou, abrindo os braços compridos:
– Senhor, por vontade de Deus é, e por vontade d`Aquela que é mais cara a Deus!
Então, resignado, submisso aos mandados do Alto, D. Rui apeou – e começou a
seguir o homem, que subia para o Cerro pensativamente, vergando o dorso, de onde saía,
espetada e luzidia, a ponta da adaga. Pararam ambos sob a trave vazia. Em torno das outras
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traves pendiam as outras carcaças. O silêncio era mais triste e fundo que os outros silêncios
da terra. A água da lagoa enegrecera. A Lua descia e desfalecia.
D. Rui considerou a trave onde restava, curto no ar, o pedaço de corda que ele
cortara com a espada.
– Como quereis que vos pendure? – exclamou. – Àquele pedaço de corda não posso
chegar com a mão: nem eu só basto para lá vos içar.
– Senhor – respondeu o homem – aí a um canto deve haver um longo rolo de corda.
Uma ponta dela ma atareis a este nó que trago no pescoço: a outra ponta a arremessareis
por cima da trave, e puxando depois, forte como sois, bem me podereis reenforcar.
Ambos curvados, com passos lentos, procuraram o rolo de corda. E foi o enforcado
que o encontrou, o desenrolou... Então D. Rui descalçou as luvas. E ensinado por ele (que
tão bem o aprendera do carrasco) atou uma ponta da corda ao laço que o homem
conservava no pescoço, e arremessou fortemente a outra ponta, que ondeou no ar, passou
sobre a trave, ficou pendurada rente ao chão. E o rijo cavaleiro, fincando os pés, retesando
os braços, puxou, içou o homem, até ele se quedar, suspenso, negro no ar, como um
enforcado natural entre os outros enforcados.
– Estais bem assim?
Lenta e sumida, veio a voz do morto:
– Senhor, estou como devo.
Então D. Rui, para o fixar, enrolou a corda em voltas grossa ao pilar de pedra. E
tirando o sombreiro, limpando com as costas da mão o suor que o alagava, contemplou o
seu sinistro e miraculoso companheiro. Estava já rígido como antes, com a face pendida
sob as melenas caídas, os pés inteiriçados, todo puído e carcomido como uma velha
carcaça. No peito conservava a adaga cravada. Por cima, dois corvos dormiam quietos.
– E agora que mais quereis? – perguntou D. Rui, começando a calçar as luvas.
Sumidamente, do alto, o enforcado murmurou:
– Senhor, muito vos rogo agora que, ao chegar a Segóvia, tudo conteis fielmente a
Nossa Senhora do Pilar, vossa madrinha, que dela espero grande mercê para a minha alma,
por este serviço que, a seu mandado, vos fez o meu corpo!
Então, D. Rui de Cardenas tudo compreendeu – e, ajoelhando devotamente sobre o
chão de dor e morte, rezou uma longa oração por aquele bom enforcado.
Depois galopou para Segóvia. A manhã clareava, quando ele transpôs a porta de S.
Mauros. No ar fino os sinos claros tocavam a matinas. E entrando na igreja de Nossa
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Senhora do Pilar, ainda no desalinho da sua terrível jornada, D. Rui, de rojo ante o altar,
narrou ã sua Divina Madrinha a ruim tenção que levara a Cabril, o socorro que do Céu
recebera, e, com quentes lágrimas de arrependimento e gratidão, lhe jurou que nunca mais
poria desejo onde houvesse pecado, nem no seu coração daria entrada a pensamento que
viesse do Mundo e do Mal. A essa hora, em Cabril, D. Alonso de Lara, com olhos
esbugalhados de pasmo e terror, esquadrinhava todas as ruas e recantos e sombras do seu
jardim.
Quando ao alvorecer, depois de escutar ã porta da câmara onde nessa noite
encerrara D. Leonor, ele descera subtilmente ao jardim e não encontrara, debaixo do
balcão, rente à escada, como deliciosamente esperava, o corpo de D. Rui de Cardenas, teve
por certo que o homem odioso, ao tombar, ainda com um resto débil de vida, se arrastara
sangrando e arquejando, na tentativa de alcançar o cavalo e abalar de Cabril... mas, com
aquela rija adaga que ele três vezes lhe enterrara no peito, e que no peito lhe deixara, não
se arrastaria o vilão por muitas jardas, e nalgum canto devia jazer frio e inteiriçado.
Rebuscou então cada rua, cada sombra, cada maciço de arbustos. E – maravilhoso caso! –
não descobria o corpo, nem pegadas, nem terra que houvesse sido remexida, nem sequer
rasto de sangue sobre a terra! E todavia, com mão certeira e faminta de vingança, três
vezes ele lhe embebera a adaga no peito, e no peito lha deixara!
E era Rui de Cardenas o homem que ele matara – que muito bem o conhecera logo,
do fundo apagado do quarto de onde espreitava, quando ele, à claridade da Lua, veio
através do terraço, confiado, ligeiro, com a mão na cintura, a face risonhamente erguida e a
pluma do sombreiro meneando em triunfo! Como podia ser coisa tão rara – um corpo
mortal sobrevivendo a um ferro, que três vezes lhe vara o coração e no coração lhe fica
cravado? E a maior raridade era que nem no chão, debaixo da varanda, onde corria ao
longo do muro uma tira de goivos e cecéns, deixara um vestígio aquele corpo forte, caindo
de tão alto pesadamente, inertemente, como um fardo! Nem uma flor machucada – todas
direitas, viçosas, como novas, com gotas leves de orvalho! Imóvel de espanto, quase de
terror, D. Alonso de Lara ali parava, considerando o balcão, medindo a altura da escada,
olhando esgazeadamente os goivos direitos, frescos, sem uma haste ou folha vergada.
Depois recomeçava a correr loucamente o terraço, a avenida, a rua de teixos, na esperança
ainda duma pegada, dum galho partido, de uma nódoa de sangue na areia fina.
Nada! Todo o jardim oferecia um desusado arranjo e limpeza nova, como se sobre
ele nunca houvesse passado nem o vento que desfolha, nem o sol que murcha.
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Então, ao entardecer, devorado pela incerteza e mistério, tomou um cavalo, e sem
escudeiro ou cavalariço, partiu para Segóvia. Curvado e escondidamente, como um
foragido, penetrou no seu palácio pela porta do pomar: e o seu primeiro cuidado foi correr
à galeria de abóbada, destrancar as portas da janela e espreitar avidamente a casa de D. Rui
de Cardenas. Todas as gelosias da velha morada do arcediago estavam escuras, abertas,
respirando a fresquidão da noite: – e à porta, sentado num banco de pedra, um moço de
cavalariça afinava preguiçosamente a bandurra.
D. Alonso de Lara desceu à sua câmara, lívido, pensando que não houvera
certamente desgraça em casa onde todas as janelas se abrem para refrescar, e no portão da
rua os moços folgam. Então bateu as palmas, pediu furiosamente a ceia. E, apenas sentado,
ao topo da mesa, na sua alta sede de couro lavrado, mandou chamar o intendente, a quem
ofereceu logo, com estranha familiaridade, um copo de vinho velho. Enquanto o homem,
de pé, bebia respeitosamente, D. Alonso, metendo os dedos pelas barbas e forçando a sua
sombria face a sorrir, perguntava pelas novas e rumores de Segóvia. Nesses dias da sua
estada em Cabril, nenhum caso criara pela cidade espanto
e murmuração?... O intendente limpou os beiços, para afirmar que nada ocorrera em
Segóvia de que andasse murmuração, a não ser que a filha do senhor D. Gutierres, tão
moça e tão rica herdeira, tomara o véu no convento das Carmelitas Descalças. D. Alonso
insistia, fitando vorazmente o intendente. E não se travara uma grande briga?... não se
encontrara ferido, na estrada de Cabril, um cavaleiro moço, muito falado?... O intendente
encolhia os ombros: nada ouvira, pela cidade, de brigas ou de cavaleiros feridos.Com um
aceno desabrido D. Alonso despediu o intendente.
Apenas ceara, parcamente, logo voltou à galeria a espreitar as janelas de D. Rui.
Estavam agora cerradas; na última, da esquina, tremeluzia uma claridade. Toda a noite D.
Alonso velou, remoendo incansavelmente o mesmo espanto. Como pudera escapar aquele
homem, com uma adaga atravessada no coração? Como pudera?... Ao luzir da manhã,
tomou uma capa, um largo sombreiro, desceu ao adro, todo embuçado e encoberto, e ficou
rondando por diante da casa de D. Rui. Os sinos tocaram a matinas. Os mercadores, com os
gibões mal abotoados, saíam a erguer as portadas das lojas, a
pendurar as tabuletas. Já os hortelões, picando os burros carregados de seiras, atiravam os
pregões da hortaliça fresca, e frades descalços, com o alforge aos ombros, pediam esmola,
benziam as moças.
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Beatas embiocadas, com grossos rosários negros, enfiavam gulosamente para a
igreja. Depois o pregoeiro da cidade, parando a um canto do adro, tocou uma buzina, e
numa voz tremenda começou a ler um edital.
O senhor de Lara, parava junto do chafariz, pasmado, como embebido no cantar das
três bicas de água. De repente pensou que aquele edital, lido pelo pregoeiro da cidade, se
referia talvez a D. Rui, ao seu desaparecimento... Correu à esquina do adro – mas já o
homem enrolara o papel, se afastava majestosamente, batendo nas lajes com a sua vara
branca. E, quando se voltava para espiar de novo a casa, eis que os seus olhos atônitos
encontram D. Rui, D. Rui que ele matara – e que vinha caminhando para a igreja de Nossa
Senhora, ligeiro, airoso, a face risonha e erguida no fresco ar da manhã, de gibão claro, de
plumas claras, com uma das mãos pousando na cinta, a outra meneando distraidamente um
bastão com borlas de torçal de ouro!
D. Alonso recolheu então a casa com passos arrastados e envelhecidos. No alto da
escadaria de pedra, achou o seu velho capelão, que o viera saudar, e que, penetrando com
ele na antecâmara, depois de pedir, com reverência, novas da senhora D. Leonor, lhe
contou logo dum prodigioso caso, que causava pela cidade grave murmuração e espanto.
Na véspera, de tarde, indo o corregedor visitar o cerro das forcas, pois se acercava a festa
dos Santos Apóstolos, descobrira, com muito pasmo e muito escândalo, que um dos
enforcados tinha uma adaga cravada no peito! Fora gracejo de um pícaro sinistro?
Vingança que nem a morte saciara?... E para maior prodígio ainda, o corpo fora
despendurado da forca, arrastado em horta ou jardim (pois que presas aos velhos farrapos
se encontravam folhas tenras) e depois novamente enforcado e com nova!... E
assim ia a turbulência dos tempos, que nem os mortos se furtavam a ultrajes!
D. Alonso escutava com as mãos a tremer, os pêlos arrepiados. E imediatamente,
numa ansiosa agitação, bradando, tropeçando contra as portas, quis partir, e por seus olhos
verificar a fúnebre profanação. Em duas mulas ajaezadas à pressa, ambos abalaram para o
Cerro dos Enforcados, ele e o capelão arastado e aturdido. Numeroso povo de Segóvia se
juntara já no Cerro, pasmando para o maravilhoso horror – o morto que fora morto!...
Todos se arredaram ante o nobre senhor de Lara, que arremessando-se pelo cabeço acima,
estacara o olhar, esgazeado e lívido, para o enforcado e para a adaga que lhe varava o
peito. Era a sua adaga: – fora ele que matara o morto!
Galopou espavoridamente para Cabril. E aí se encerrou com o seu segredo,
começando logo a amarelecer, a definhar, sempre arredado da senhora D. Leonor,
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escondido pelas ruas sombrias do jardim, murmurando palavras ao vento, até que na
madrugada de S. João uma serva, que voltava da fonte com a sua bilha, o encontrou morto,
por baixo do balcão de pedra, todo estirado no chão, com os dedos encravados no canteiro
de goivos, onde parecia ter longamente esgaravatado a terra, a procurar...
Para fugir a tão lamentáveis memórias, a senhora D. Leonor, herdeira de todos os
bens da casa da Lara, recolheu ao seu palácio de Segóvia. Mas como agora sabia que o
senhor D. Rui de Cardenas escapara miraculosamente à emboscada de Cabril, e como cada
manhã, espreitando de entre as gelosias, meio cerradas, o seguia, com olhos que se não
fartavam e se umedeciam, quando ele cruzava o adro para entrar na igreja, não quis ela,
com receio das pressas e impaciências do seu coração, visitar a Senhora do Pilar enquanto
durasse o seu luto. Depois, uma manhã de Domingo, quando, em vez de crepes negros, se
pôde cobrir de sedas roxas, desceu a escadaria do seu palácio, pálida de uma emoção nova
e divina, pisou as lajes do adro, transpôs as portas da igreja. D. Rui de Cardenas estava
ajoelhado diante do altar, onde depusera o seu ramo votivo de cravos amarelos e brancos.
Ao rumor das sedas finas, ergueu os olhos com uma esperança muito pura e toda feita de
graça celeste, como se um anjo o chamasse. D. Leonor ajoelhou, com o peito a arfar, tão
pálida e tão feliz que a cera das tochas não era mais pálida, nem mais felizes as andorinhas
que batiam as asas livres pelas ogivas da velha igreja.
Ante esse altar, e de joelhos nessas lajes, foram eles casados pelo bispo de Segóvia,
D. Martinho, no Outono do ano da Graça de 1475, sendo já reis de Castela Isabel e
Fernando, muito fortes e muito católicos, por quem Deus operou grandes feitos sobre a
terra e sobre o mar.
PONTOS SUGERIDOS PARA INTERPRETAÇÃO DO CONTO:
- Qual o tema do conto lido? Em que ele se assemelha aos contos lidos até aqui;
- O conto pode ser considerado um Conto Fantástico;
- Em que época ocorre o fato;
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- Como é descrito o caminho percorrido por D. Rui até Cabril;
- Em que passagem(s) você percebe o sobrenatural no conto;
- O enforcado e o Defunto são o mesmo personagem;
- Como é descrita a mulher no conto;
- Quem é o responsável pelo final feliz do conto.
Depois da discussão sobre o texto, seria interessante fazer comparações entre as
personagens femininas dos contos lidos. Aproveitar para falar da mulher da época do
Romantismo/Realismo e contemporânea. Em que elas diferem, tanto físico quanto
psicológico. Pedir para que os alunos descrevam as quatro mulheres e falem sobre elas.
SOCIALIZANDO O TRABALHO
Para encerrar esta etapa realizaremos “O Dia do Conto na Biblioteca”. Os alunos
escolherão os contos que mais lhe agradaram, ou chamaram a atenção, preferência por
Contos Fantásticos, e será feita uma apresentação pública. Serão convidados pais,
professores, alunos de outras turmas, enquanto será servido chã aos convidados,
ouviremos histórias contadas ou dramatizadas pelos alunos participantes do projeto.
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REFERÊNCIAS:
AGUIAR,Vera Teixeira de e BORDINI, Maria da Glória. Literatura e Formação do
leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.
ASSIS, Machado de, A Cartomante. Disponível em: http://www.dominopublico.gov.br
Acesso em: 28.05.2010.
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras,1993.
COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2007.
DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Seqüências Didáticas
para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim,
SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. (Tradução e organização:
Roxane Rojo e Glaís Sales Cordeiro). Campinas, SP: Mercado Aberto de Letras, 2004.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. In: Gêneros textuais
e ensino. Org. DIONISIO, A. P. et al. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.
POE, Edgar Allan. The black cat. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ln00003.pdf>. Acesso em: 23.04.2010.
QUEIRÓS, Eça de. O Defunto. Disponível em:
http://www.virtualbooks.com.br/v2/ebooks/?idioma=Português&id=00748. Acesso em
28.05.2010.
TELLES, Lygia Fagundes. Antologia: Meus contos preferidos. Rio de Janeiro, Rocco,
2004. p. 26-35.
WIKIPÉDIA, A ENCICLOPÉDIA LIVRE. Contos. Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Conto Acesso em 12.04.2010.
http://www.youtube.com/watch?v=yuChPo2dzuA&feature=relatedAcesso em 10.06.2010.
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