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CRISE REPUBLICANA E
PENSAMENTO BRASILEIRO1
Ricardo Vélez Rodríguez Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.
Professor da Faculdade Arthur Thomas, Londrina.
Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Professor Emérito da ECEME.
Rive2001@gmail.com
Vivemos, no Brasil, tempos de perplexidade, diante da crise sistémica em que
afundou o “presidencialismo de coalizão” que, a bem a verdade, deveria ser chamado
de “clientelismo presidencialista”, ou, como afirma César Maia, de “encilhamento
geral” dos poderes. 2 O fato de não ter sido feita, em tempo, a reforma política, que
garantiria uma representação de baixo para cima conduziu, ao longo dos últimos 27
anos, à crise sistémica que agora vivenciamos. O nosso tecido político ficou esgarçado
em 32 partidos, a maior parte deles nanicos e sem que nenhum conseguisse fazer
surgir a almejada maioria sem a interferência do Executivo. Abriu-se, assim, a porta
para alianças de legenda espúrias e para a negociata continuada de benefícios a partir
do orçamento (como as “emendas parlamentares”), provindos das manipulações que o
Executivo passou a fazer para obter a maioria necessária à governança. Mas uma
maioria que, como se observa na história destes anos, notadamente durante o ciclo
lulopetista, converteu-se em vulgar negociata em torno ao orçamento e ao tesouro,
usado e abusado pelos governantes de plantão, sem o menor constrangimento.
Não é de hoje este mal. Já a chamada “política dos governadores”, no início do
ciclo republicano, anunciava, na administração Campos Sales (1898-1902) que o que se
buscava era uma acomodação segundo os interesses das oligarquias estaduais, sem
1 Palestra proferida na abertura do Curso de Pensamento Brasileiro no Clube da Aeronáutica, Rio de
Janeiro, em 4 de Agosto de 2015, sob o título: “O estudo do pensamento brasileiro e a crise republicana”. 2 MAIA, César. “Crise brasileira vira encilhamento geral”. In: Ex-blog do César Maia, 10/07/15.
[http://emkt.frontcrm.com.br/display.php?M=4455858&C=afadd0a3868cb5a6975f1a60a6ec08e8&S=10381&L=514&N=4150] (consultado em 20/07/2015).
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que interessasse um átimo o aperfeiçoamento da representação. Mas o descaso de
décadas é agravado hoje pela urgência que o Brasil experimenta, em época de
turbulências globais, para manter a casa em ordem.
Não se administra um país com 200 milhões de habitantes, da mesma forma
em que se gerencia o quintal de um latifúndio. Ora, infelizmente a mentalidade que
grassou na nossa história republicana foi exatamente essa tacanha praxe que ora
assistimos, alicerçada na falta de visão ampla, de imediatismo, de sem-vergonhice.
Tudo patrocinado legalmente pelo nosso bacharelismo republicano, useiro e vezeiro
na prática legiferante para encobrir a realidade e para “deixar como está para ver
como é que fica”. Viramos uma monstruosa formalidade cartorial que a todos engana
com o consentimento passivo da Nação e a zelosa vigilância dos Poderes Públicos.
Porque nos contentamos com os ritos processuais, esquecendo-nos do que é
substantivo. Sem heroísmos quixotescos, a massa dos brasileiros virou uma grande
pornochanchada sanchopanzesca, que tudo almeja menos a dignidade cidadã e as
mudanças em profundidade.
O noticiário dos últimos meses em torno à amplitude do Segundo Mensalão, ao
ensejo das investigações desenvolvidas pela operação Lava Jato surpreende-nos, a
cada semana, com novas revelações bombásticas em torno ao tamanho do saque
praticado contra a Nação. Se o Mensalão I já tinha deixado perplexa a opinião pública,
o Mensalão II tem características verdadeiramente escatológicas, tal o tamanho do
estrago feito nas contas públicas a partir da má utilização do dinheiro dos brasileiros
pela via da gestão criminosa das estatais e dos bancos oficiais. Não foi apenas a
Petrobrás que afundou no contexto do roubo praticado à luz do dia e com todas as
características de “operação planejada”. Entraram na lista da ocupação pelo cupinzeiro
petista as demais estatais, notadamente a Eletrobrás.
A própria credibilidade do Brasil no cenário internacional mergulhou nas águas
imundas da corrupção desenfreada. Os empréstimos bilionários praticados pela alta
administração petista via BNDES, para favorecer governos estrangeiros compradores
de obras superfaturadas, executadas por empreiteiros corruptos a mando da
Presidência da República, já abalam a imagem do país no exterior e acabaram deitando
por terra a tradição de seriedade da nossa diplomacia.
O PT acabou mergulhando o Brasil na tradição das piores banana republics, de
que teremos dificuldade em sair sem fazermos, antes, um grande esforço de
autocrítica e de reconstrução das instituições. Pelo que se vê das últimas decisões do
governo Dilma, no sentido de mandar o ajuste fiscal às favas para livrar a cara do PT,
de Lula e dela própria na operação “Lava Jato”, estamos no pior dos mundos possíveis.
O Ministro Levy ficou paralisado pela estratégia petralha. E, em que pese o convite
feito pelo Lula ao PSDB para que “desse uma mãozinha” ao governo petista na atual
enrascada, Fernando Henrique teve uma atitude firme e digna de um estadista. O PT
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que arque com o desastre da sua péssima administração! Essa foi a mensagem do ex-
presidente. 3
A roubalheira não é de milhões de reais. A ladroagem já beira a cifra do trilhão.
Quando a caixa de pandora da engenharia da corrupção patrocinada, na última
década, pelo Partido dos Trabalhadores e Associados tiver sido completamente aberta,
poderemos ver o tamanho do desastre, que infelizmente já está sequestrando o bem-
estar dos nossos filhos e netos e engordando as contas bancárias de Lula et caterva no
exterior. A começar, claro, pelos mais pobres, em cujo nome a petralhada organizou a
máquina de desviar dinheiro público para benefício próprio.
Como escrevia Suely Caldas: “Na crise em que o governo do PT mergulhou o
País, a tendência está mais para cancelar o programa (“Minha casa, minha vida”) do
que para recuperar o que foi perdido. Justificativa real: os mais pobres são a faixa de
renda onde o governo mais gasta, pois o subsídio é elevado, e é também onde o
desemprego chega mais forte e a inadimplência passa a ser inevitável. É sempre assim:
por ser a parcela mais vulnerável da população, os pobres são os primeiros a ser
punidos, quando fracassam ações de governos irresponsáveis, que saem por aí
distribuindo ilusões, sonhos para alguns, que logo se transformam em pesadelos para
todos. Foi assim também com o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o Ciência
Sem Fronteiras. E os brasileiros andam perguntando qual será o próximo. O Mais
Médicos? O Bolsa Família?”. 4
Esse é o maior crime que governante algum pode cometer contra o seu povo:
comprometer o bem-estar das futuras gerações! Lula e Companhia ainda vão ser
julgados pela História, pois a barra dos tribunais parece que se afasta cada vez mais do
eixo da criminosa empreitada. Empresários, tesoureiros de partido, mulas, estafetas,
laranjas, vários deles estão sentindo as agruras da prisão. Mas, cabe perguntar: cadê
3 A respeito da possibilidade de conversar com Dilma, Fernando Henrique já tinha dito no início deste
ano que não falaria se se tratasse de um conchavo para eludir responsabilidades. Na época, o ex-presidente falou: “O governo pode vir a recuperar a iniciativa, mas não vai recuperar com ministro enrolando na televisão. A resposta da reforma política não é crível. A saída é ir mais fundo nas investigações e reconhecer: erramos. Quantas vezes não disse que errei por não ter ajustado o câmbio antes de 1998? Tinha mil razões para dizer porque não ajustei, mas não importa. Não se pode fugir da responsabilidade histórica. (...) Sobre se aceitaria um convite da presidente para conversar, o ex-presidente ressaltou que não recusaria, mas que teria que ser em público, pois "não é hora para conchavo'': “Nunca recusei chamado de ninguém para conversar. Nem da Dilma. Agora o momento não é de conchavo. Se a presidente achar que é momento de chamar, deve ser público. Não se pode conversar sem pauta. Não sei se ela tem força convocatória, porque não tem que chamar só a mim. Tem que ampliar. Agora temos que digerir, todos nós, esse processo todo e ver o que vai acontecer nas próximas semanas. Vamos ver se o governo vai pagar o preço de correr mais fundo esse processo de estabelecimento das responsabilidades.” Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/brasil/fernando-henrique-diz-que-nao-crivel-
que-lula-dilma-nao-soubessem-de-esquema-na-petrobras-15620686#ixzz3hCwoYaYV [O Globo, 13/04/2015] (consultado em 28/07/2015). 4 CALDAS, Suely. “Sonhos e pesadelos”. O Estado de S. Paulo, 19-07-2015.
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os mandantes do crime? Parece infinita a camada de teflon que os protege! Lula, Dilma
e alguns dos mais estreitos colaboradores parece que estão se safando...A presidenta
não teve melindre em negociar, no exterior, com o presidente do Supremo, uma forma
de sair de fininho das acusações de improbidade administrativa que a levariam ao
impeachment.
Em recente diálogo entre os mandachuvas da República Petralha, o ex-senador
Sarney, profundo conhecedor dos descaminhos da privatização patrimonialista de
recursos públicos, matou a charada para libertar de vez os donos do poder da
Operação Lava-Jato. O ex-presidente foi curto, grosso e objetivo: o problema real
consistiria em como barrar a tal operação nos Tribunais Superiores. Esse parece ser o
caminho para onde se encaminha a engenharia da corrupção de petistas e associados.5
Solução tipicamente patrimonialista: ninguém ouse atrapalhar a vida dos donos
do poder: na hora “H” eles conseguem se salvar mediante uma aplicação da lei
acomodada aos seus interesses. Não faltará um tribunal superior que declare inválida
toda a Operação Lava-Jato, “ficando tudo como dantes no quartel de Abrantes”... É o
fim da picada, como reza o ditado popular! Tomara que, desta vez, isso não aconteça,
como infelizmente já aconteceu em oportunidades semelhantes nas Operações
“Sundown/Banestado” (2006), “Boi Barrica/Faktor” (2008), “Satiagraha” (2008) e
“Castelo de Areia” (2009). 6
A situação de crise sistémica obriga-nos à coragem de pensar. A filosofia
clássica foi sistematizada na Grécia dos sofistas, quando na altura do século IV AC
Atenas perdia a sua supremacia para os inimigos. Sócrates, Platão e Aristóteles
colocaram a questão da Paideia no contexto da debacle das instituições. “A coruja de
Minerva”, escrevia Hegel, “levanta o voo quando as sombras da noite se aproximam”.
5 Os jornalistas Daniel Pereira e Robson Bonin, da Revista Veja, em longo artigo investigativo sobre os
obstáculos enfrentados pela operação Lava Jato, em que destacam a posição dos ex-presidentes José Sarney e Lula, escreveram a respeito: “(...) Com sessenta anos de vida pública e experiência e lucidez de sobra para traduzir os interlocutores, Sarney disse que o problema verdadeiro era a Lava Jato, que ameaçava o topo da República, de Lula a Dilma, passando pelos presidentes da Câmara e do Senado. E que só o petista, como o maior líder político do país, poderia deter a enxurrada. Como? Pressionando os ministros dos tribunais superiores a anular a investigação do petrolão com base nas supostas irregularidades e arbitrariedades cometidas pelo juiz Sérgio Moro. O Moro sequestrou a Constituição e o país. O Supremo Tribunal Federal não pode se apequenar, declarou Sarney. Lula concordou com o peemedebista. Era o que ele queria mas não tinha coragem de dizer. O petista já viu os companheiros Delúbio Soares, José Dirceu e Vaccari ser presos. A atuação de seu tesoureiro de campanha à reeleição, José de Filippi, está devidamente relatada na delação de Ricardo Pessoa. Há tanta apreensão no PT que deputados e senadores do partido defendem a ideia de que Lula seja nomeado ministro para ter direito a foro privilegiado e fugir das garras de Moro”. (BONIN, Robson e PEREIRA, Daniel. “Cada vez mais perto”, Veja, São Paulo, edição 2434, Ano 48, nº 28, 15 de Julho de 2015, p.43-49). 6 Segundo estudo do procurador Diogo Castor de Mattos, “(...) Os tribunais incorrem em seletividade
penal quando analisam a legalidade de processos que tratam de corruptos poderosos: essas ações penais seriam mais facilmente derrubáveis nessas cortes do que as que lidam com réus com menor poder de influência e acesso a bons advogados”. (ZALIS, Pieter. “O que pode derrubar a Lava-Jato”, Revista Veja, edição 2434, já citada, p. 51-53).
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No caso brasileiro, quando tudo estava bem, quando a exportação das nossas
commodities era bem paga nos mercados internacionais, a classe média só pensava em
gastar o dinheiro fazendo compras em Miami. Um amigo que fez carreira no setor
financeiro, dizia-me há alguns anos, na época das divisas abundantes: “Lula não me
tirou nada, pode falar o que quiser”. Hoje, com as finanças públicas desmanteladas,
com a economia estagnada, com os bolsos vazios pela alta tributação e pela volta da
inflação, esse meu amigo e o resto dos brasileiros nos perguntamos, como o ator Jorge
Dória fazia, diante das falcatruas do filho adultescente: “Onde foi que eu errei?”
Desenvolverei neste artigo três itens para responder à problemática que a atual
conjuntura nos apresenta: 1 – Devemos retomar o estudo da nossa História, para
reconhecermos a origem dos males do presente, como fizeram os Liberais Doutrinários
na França, no século XIX. 2 – Qual é o caminho metodológico para identificar os nossos
valores fundamentais, ao longo da história cultural brasileira? 3 – Quais são as
contribuições mais importantes na identificação do nosso Estado Patrimonial? Da
exposição desses três itens sairá a Conclusão que almejamos neste momento: o que
fazer nas atuais circunstâncias, para potencializar o trabalho de desmonte do
Patrimonialismo no Brasil?
1 – Devemos retomar o estudo da nossa História, para reconhecermos a
origem dos males do presente, como fizeram os Liberais Doutrinários na
França, no século XIX.
Erramos todos numa coisa: não desmantelamos as bases axiológicas sobre as
que se sedimenta o Estado Patrimonial, o verdadeiro leviatã que sequestra as nossas
esperanças. Ora, não se modifica um curso histórico sem prévio conhecimento dele. O
nosso Estado Patrimonial é obra de séculos. Daí que devemos fazer um esforço no
sentido de conhecer as raízes históricas das nossas mazelas como Nação organizada
politicamente. Compreender a gênese do Estado Patrimonial brasileiro, eis a questão.
Uma missão que outros países cumpriram a contento, quando viram a débacle das
instituições.
Isso ocorreu, por exemplo, na França do século XIX, quando o país emergia das
horripilantes cenas da Revolução Francesa e do terror jacobino. Os historiadores
tomaram conta da operação de salvamento, com François Guizot à testa. Retomando
as pegadas do romantismo inglês que, através do romance histórico de Sir Walter Scott
passou a se remontar às origens da Nação, os britânicos conseguiram pavimentar a
estrada para a formatação das novas instituições que, com a democratização do
sufrágio, abriram o caminho para a participação de todos os cidadãos na condução do
Estado, mediante o aperfeiçoamento do governo representativo, na segunda metade
6
do século XIX. Os pródromos iniciais desse processo foram devidamente estudados por
Guizot na História da Revolução na Inglaterra. 7
Compreendido o caminho seguido pelos Ingleses, a intelligentsia francesa
passou, com os liberais doutrinários, Guizot à testa, ao estudo das raízes dos males
que afetaram a França na trilha do absolutismo, solidificado no século XVII com Luís
XIV. Como desmontar o monstro absolutista, o “mal francês” a que se referia John
Locke quando, ainda jovem estudante de medicina, viajou pela França? 8
Tornava-se imperativo, de início, desmontar o novo modelo de absolutismo, o
democratismo rousseauniano, que tinha substituído, no final do século XVIII, o
absolutismo de um homem só do ciclo imediatamente anterior. A Revolução Francesa,
efetivamente, substituiu um despotismo, o do monarca absoluto, por outro, o da
tirania da maioria visado por Rousseau e os Enciclopedistas.
Ora, como frisava Tocqueville em O Antigo Regime e a revolução, 9 a questão
não seria de qual o caminho a tomar para substituir um absolutismo por outro, mas de
como sair do absolutismo na defesa da liberdade. Duas obras ficaram como
testemunho do empenho da intelligentsia francesa nessa empreitada: A História da
civilização européia, desde a queda do Império Romano até a Revolução Francesa de
Guizot, 10 e Princípios de Política, de Benjamin Constant de Rebecque. 11
É, portanto, de capital importância que compreendamos a índole do nosso
Patrimonialismo, bem como a escala de valores em que se alicerça o comportamento
da nossa sociedade em face desse tipo de dominação. Autores vários desenvolveram
trabalhos relacionados a esse tema. As mais recentes contribuições brasileiras situam-
se nos arraiais do pensamento liberal/conservador.
7 GUIZOT, François. Histoire de la révolution d'Anglaterre 1625-1660. (Edição preparada por Laurent
Theis. Introdução biográfica e apresentação da História da Revolução a cargo de Laurent Theis). Paris: Robert Laffont, 1997. 8 Como assessor de Lorde Shaftesbury e membro do Partido Whig, John Locke passou, no exterior, dois
importantes períodos da sua vida: na França, entre 1675 e 1679 e na Holanda, entre 1683 e 1689. No primeiro dos períodos mencionados teve oportunidade de se familiarizar com as linhas mestras do absolutismo que, em opúsculo escrito na época, denominou de “mal francês” (De morbo gallico, 1675), fazendo um irônico trocadilho, pois com essa denominação era conhecida a sífilis na literatura médica da época. Cf. LASLETT, Peter. “Introdução”. In: LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, (Tradução de Júlio Fischer; introdução de Peter Laslett). São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 35-36. 9 TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. (Tradução de Yvonne Jean). Brasília:
Universidade de Brasília, 1989. 10 GUIZOT, François. Histoire de la Civilisation en Europe depuis la chute de l'Empire Romain jusqu'à la
Révolution Française. 8ª edição, Paris: Didier, 1864. 11
CONSTANT de Rebecque, Henry Benjamin. Principes de politique applicables à tous les gouvernements (version de 1806-1810). (Prefácio de Tzvetan Todorov; edição preparada por Etienne Hofmann). Paris: Hachette, 1997.
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2 – Caminho metodológico par identificar os nossos valores
fundamentais, ao longo da história cultural brasileira.
A genealogia dos valores apreende-se, na história da cultura, pelo caminho da
indagação filosófica. Posto que os valores são os elementos existenciais de que somos
portadores para construirmos o mundo da Cultura, não poderá haver caminho mais
adequado na tentativa de identificar a nossa base axiológica, do que perguntarmos
pela forma em que se dá, entre nós, a reflexão filosófica, que se projeta sobre a nossa
estrutura ontognoseológica, explicitando as várias instâncias que a integram. Para isso,
podemos alargar a extensão da “Teoria tridimensional do Direito” de Miguel Reale 12
ao mundo da cultura, em geral, e postularmos que, em face da história da mesma, há
três aspectos a serem levados em consideração: fatos, valores e normas.
Os primeiros sedimentam-se no fluir constante das ações humanas, dando
ensejo ao pano de fundo de que se ocupa a historiografia. Os segundos constituem os
“ideais” que impulsionam os indivíduos a agirem, formando aquilo que Ortega y Gasset 13 denominava de “crenças fundamentais” que estão presentes, como molas
propulsoras, em toda ação humana. As terceiras são as materializações dessa dinâmica
nas obras de Cultura, que foram identificadas, por Hegel, como pertencendo a três
vastos domínios representativos: arte, religião e filosofia, e que, no terreno da
formação das instituições, ensejam os universos da economia, do direito e da política. 14
Ora, sendo a ação humana entendida dentro dessa visão tridimensional, os
valores constituem a variante inspiradora e propulsora. Platão atribuía a “Eros” toda a
dinâmica da presença do homem no mundo. Os valores equivaleriam a esse mundo
arquetípico, tendo sido entendidos, por Max Scheler, como “entidades ideio-afetivas”
que estão na base de toda ação humana. 15
Embora se possa entender a ação humana referida a esse contexto axiológico
de uma forma ampla que abarque, como faz Weber, o papel dos valores religiosos, 16
podemos centrar nossa indagação sobre os valores que inspiram a tipicidade
responsável dos atos humanos, aqueles referidos à moral. No contexto do
neokantismo tal pesquisa abre perspectivas amplas, como no caso da reflexão
12
Cf. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do Direito – Preliminares históricas e sistemáticas. 5ª edição revisada e reestruturada. São Paulo: Saraiva, 1994. 13
Cf. ORTEGA y Gasset, José. Meditaciones del Quijote. (Nota previa de Paulino Garagorri). Madrid: Alianza Editorial, 2005. 14 Cf. HEGEL, W. F. Textos escolhidos. (Seleção e organização de R. Corbusier). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1981. 15 Cf. SCHELER, Max. El Formalismo en la Ética y la Ética Material de los Valores – Tomo I. Madrid:
Revista de Occidente, 1941. 16
Cf. WEBER, Max. “Religião e racionalidade econômica”. In: Sociologia. (Edição organizada por Gabriel Cohn; tradução de G. Cohn e Amélia Cohn). São Paulo: Ática, 1991, p. 142-159.
8
brasileira encarregou-se de mostrar Antônio Paim. 17 À luz desta abordagem,
poderíamos tipificar os “modelos éticos” encontradiços na cultura brasileira. 18
Reale e Paim mostraram que a criação filosófica obedece a uma problemática
da qual emergem os sistemas, presididos por uma ideia-mestra carregada de conteúdo
axiológico como Ideia-Força, que se destaca da perplexidade da meditação sobre o ser
do homem, tendo a força do arquétipo platônico. Tal marco ontognoseológico é
formulado como a chave do problema de que se ocupa a meditação filosófica em
determinado momento da história humana, referida a um “Sitz-im-Leben” que
exprime a concretude histórica da razão. Ora, a questão da originalidade se joga toda
aqui, destacando os aspectos específicos da resposta dada pela razão perante a
problemática assim formulada.
Miguel Reale desenhou a metodologia que permite à meditação filosófica luso-
brasileira e ibero-americana caracterizar a sua originalidade, sem cair no extremo de
uma originalidade total, desvinculada da tradição filosófica ocidental. Essa posição
equilibrada é defendida também por outros pensadores brasileiros e ibero-americanos
como Paim 19, Alcides Bezerra 20, Luis Washington Vita 21, Augusto Salazar Bondy 22,
Alejandro Korn 23, José Vasconcelos 24, José Carlos Mariátegui 25, Francisco Romero 26,
Ernesto Mayz Vallenilla 27, Francisco Miró Quesada 28, Germán Marquínez Argote 29,
Leopoldo Zea 30, etc.
17
Cf. PAIM, Antônio. Modelos éticos: Introdução ao estudo da moral. São Paulo: Ibrasa / Curitiba: Champagnat, 1992. Do mesmo autor, História das idéias filosóficas no Brasil. 5ª edição. Londrina: UEL, 1997. 18
Cf. o nosso trabalho: "Pressupostos éticos na organização do Estado", in: Ensaio, Rio de Janeiro, I, no.
4, (1994), pgs. 43-52. 19 PAIM, A. O estudo do pensamento filosófico brasileiro. 2
a. edição. São Paulo: Convívio, 1986.
20 BEZERRA, A. Achegas à história da filosofia. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1936. 21 VITA, L. W. Escorço da filosofia no Brasil. Coimbra: Atlântida, 1964. 22 SALAZAR Bondy, A. Existe una filosofía de nuestra América? México: Siglo XXI, 1968. 23 KORN, A. Obras. La Plata: Universidad Nacional de La Plata, 1940. 24 VASCONCELOS, J. [1926]. Indología: una interpretación de la cultura iberoamericana. Barcelona:
Ariel, 1926. Do mesmo autor. “El pensamiento iberoamericano”. In: Germán MARQUÍNEZ ARGOTE (org). Qué es eso de filosofía latinoamericana? Bogotá: El Buho, 1986, pgs. 49-59. 25
MARIÁTEGUI, J. C. [1978]. Obras completas. 5a edição. Lima: Amauta, 1978, vol. 12. Do mesmo autor.
“Existe un pensamiento hispanoamericano?” In: G. MARQUÍNEZ ARGOTE (org.). Qué es eso de filosofía latinoamericana? Bogotá: El Buho, 1986, pgs. 60-65. 26 ROMERO, F. [1944]. Filosofía de la persona y otros ensayos de filosofía. Buenos Aires: Losada, 1944.
Do mesmo autor. Sobre la filosofía en América. Buenos Aires: Raigal, 1952, e “Sobre la filosofía en Iberoamérica”, in: G. MARQUÍNEZ ARGOTE (org.), Qué es eso de filosofía latinoamericana? Buenos Aires: El Buho, 1986, pgs. 66-74. 27 MAYZ Vallenilla, E. El problema de América. Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1959. Do
mesmo autor, “Programa de una filosofía original”. In: G. MARQUÍNEZ ARGOTE (org.).Qué es eso de filosofía latinoamericana? Bogotá: El Buho, 1986, pgs. 77-83. 28 MIRÓ Quesada, F. Despertar y proyecto del filosofar latinoamericano. México: Fondo de Cultura
Económica, 1974. Do mesmo autor, “El proyecto latinoamericano de filosofar como decisión de hacer
9
Reale parte do fato de que a criação filosófica contemporânea ocorre
preferencialmente sob a forma de meditação sobre problemas e não como formulação
das grandes perspectivas transcendente e transcendental (que já foram fixadas por
Platão e por Kant, respectivamente), ou como construção de sistemas (modalidade
adotada pela meditação filosófica ocidental até o final do século passado).
A partir daí, Reale formula um método que permite a análise da meditação
filosófica brasileira e latino-americana como discussão de problemas, superando o
vício do engajamento apologético, que condena ou hipervaloriza autores, de acordo
com as preferências axiológicas do estudioso e vencendo, de outro lado, a atitude
puramente analítica, que reduz a filosofia ao estudo dos clássicos sem, contudo,
reconhecer aos pensadores brasileiros e latino-americanos a capacidade de meditar
sobre a própria realidade.
No seu ensaio intitulado “A doutrina de Kant no Brasil” 31 o filósofo paulista já
tinha destacado o fato de o pensamento kantiano ter tido entre nós um
desenvolvimento criativo, em estreita relação com a reflexão dos pensadores sobre as
circunstâncias particulares da história brasileira. O criticismo kantiano, observa Reale
no mencionado ensaio, não entrou no Brasil simplesmente como cópia das idéias do
filósofo de Königsberg (hipótese que Clóvis Bevilacqua 32 tentou provar no seu trabalho
dedicado à saga da doutrina kantiana em terras brasileiras), mas penetrou de forma
viva e criativa.
A respeito, escreve Reale: “A doutrina de Kant, no que ela possui de
perenemente vital, não se presta a essas recepções fáceis nem pode ser convertida em
um conjunto cerrado de princípios. O criticismo é antes um método, uma atitude ou
posição espiritual. É um ponto de partida para a pesquisa criadora; mais uma forma de
inquietação e de crise estimativa do que de plenitude e suficiência. Daí poder-se dizer
que a presença de Kant, ao menos como motivo de filosofar, constitui um sinal de
densidade cultural, como certas roupagens vegetais assinalam as terras ricas de
húmus. A compreensão de Kant não permite, em verdade, uma atitude ou forma
filosofía auténtica”, in: G. MARQUÍNEZ ARGOTE (org.), Qué es eso de filosofía latinoamericana? Bogotá: El Buho, 1986, pgs. 95-115. 29 MARQUÍNEZ Argote, G. (org.). Qué es eso de filosofía latinoamericana? Bogotá: El Buho, 1986. 30 ZEA, L. La filosofía latinoamericana como filosofía sin más. 2
a edição. México: Siglo XXI, 1974. Do
mesmo autor, El pensamiento latinoamericano. Barcelona: Ariel, 1976 e “La historia de la filosofía latinoamericana”, in: G. Marquínez Argote (org.). Qué es eso de filosofía latinoamericana? Bogotá: El Buho, 1986, pgs. 116-128. 31 REALE, M. “A doutrina de Kant no Brasil (notas à margem de um estudo de Clóvis Bevilacqua)”, in:
Revista dos Tribunais, São Paulo, 1949, pgs. 51-96. 32 BEVILACQUA, C. “A doutrina de Kant no Brasil”, in: Revista da Academia Brasileira de Letras, Rio de
Janeiro, no. 93, 1929, pgs. 5-14.
10
cômoda de filosofar sem excessiva filosofia, sem serem empenhadas a fundo as nossas
mais subtis capacidades de inteligência em um trabalho perseverante e metódico”. 33
A filosofia clássica é, portanto, para o pensador paulista, não uma muralha que
impede o voo do espírito, mas antes uma trilha aberta, que nos convida a caminhar
por ela, iluminando, com os seus ensinamentos, a problemática que vivemos. Em
relação a esse posicionamento, Paim escreveu: “A filosofia é certamente um saber
especulativo, que se volta para uma problemática que, embora renovada através do
tempo, se tem revelado perene em contraposição à alternância dos sistemas. Esses
problemas, contudo, têm sempre a ver com a circunstância cultural. De sorte que o
caráter especulativo da filosofia não pode ser arrolado como simples diletantismo,
como se a filosofia não tivesse nenhum compromisso com a temporalidade e as
angústias de determinado momento da cultura de um povo”. 34
Em relação à metodologia formulada por Miguel Reale para possibilitar a
pesquisa da história das idéias filosóficas, Antônio Paim escreveu: “O método sugerido
por Miguel Reale para a investigação da filosofia brasileira compõe-se dos seguintes
elementos: 1) identificar o problema (ou os problemas) que tinha pela frente o
pensador, prescindindo da busca de filiações a correntes que lhes são contemporâneas
no exterior; 2) abandonar o empenho de averiguar se o pensador brasileiro
interpretou adequadamente as idéias de determinado autor estrangeiro, mais
expressamente, renunciar ao confronto de interpretações e, portanto, ao cotejo da
interpretação do pensador brasileiro estudado com outras interpretações possíveis,
para eleger entre uma ou outra; e 3) ocupar-se preferentemente da identificação de
elos e derivações que permitem apreender as linhas de continuidade real de nossa
meditação”. 35
Convém indagar, a esta altura da concisa exposição que desenvolvo acerca do
pensamento de Miguel Reale face à história das idéias, como fundamenta o filósofo
paulista a metodologia apontada. A meu entender, o nosso autor concebe a história
das idéias como um desdobramento da “reflexão crítico-histórica” por ele analisada
em Experiência e Cultura. 36
No contexto da original interpretação que o pensador paulista realiza da
fenomenologia husserliana, à luz da herança transcendental kantiano-hegeliana, ele
destaca a correlação in fieri do subjetivo e do objetivo na subjetividade concreta. “Em
33 REALE, M. “A doutrina de Kant no Brasil (notas à margem de um estudo de Clóvis Bevilacqua)”, in:
Revista dos Tribunais, São Paulo, 1949, pg. 55. 34 PAIM, A [1981]. “Miguel Reale e a filosofia brasileira”, in: J. C. AZEVEDO (org.), Miguel Reale na
Universidade de Brasília. Brasília: Universidade de Brasília, 1981. pg. 92. 35 PAIM, A. “Miguel Reale e a filosofia brasileira”, in: J. C. AZEVEDO (org.), Miguel Reale na Universidade
de Brasília. Brasília: Universidade de Brasília, 1981, pg. 92. 36 REALE, M. Experiência e cultura: para a fundação de uma teoria geral da experiência. 1ª edição, São
Paulo: Grijalbo/Edusp, 1977, p. 126 seg.
11
verdade” - frisa a respeito Reale - “se a consciência intencional se dirige sempre para
algo, visando à conversão de algo em objeto, e se este, enquanto objeto, não se
distingue daquilo que se oferece à consciência, não se pode considerar ‘puramente
subjetivo’ o momento culminante do processo eidético. Parece-me, ao contrário, que a
‘reflexão fenomenológica’ é necessária e intrinsecamente subjetivo-objetiva, isto é,
ontognoseológica, consoante terminologia que julgo mais adequada para indicar o
âmbito em que se dão todos os atos cognoscitivos e as volições do homem em sua
perene e dinâmica relação com a natureza, assim como na trama de seus próprios
conhecimentos e volições e do percebido e querido por ‘um eu’ e ‘outro eu’. Na
subjetividade transcendental já está, por assim dizer, in nuce, a experiência
ontognoseológica, o processo de significações ou ‘intencionalidades objetivadas’ que
são a realidade da ‘cultura’. Consciência intencional ou temporalidade ou
historicidade, longe de serem antitéticas, são, pois, expressões que se exigem e se
complementam (...)”. 37
Ora, se consciência intencional e historicidade são expressões dialéticas e
complementares, a “reflexão crítico-histórica” é, para Miguel Reale, o momento
culminante do processo ontognoseológico, que é, essencialmente, “reflexão
ambivalente”, no seio da qual “quanto mais se desvelam as fontes da subjetividade
mais se capta o sentido da objetividade”. 38 Somente assim, considera o nosso autor, é
possível salvaguardar os dois aspectos básicos destacados pela fenomenologia na
dinâmica do conhecimento: o da subjetividade e o da objetividade (“mundo do viver
comum” e “mundo da originariedade natural”).
É conhecida a forma clara e contundente com que o nosso pensador aplica o
conceito de “reflexão crítico-histórica” ao filosofar, quando reflete sobre a doutrina da
Lebenswelt husserliana. Para Miguel Reale é claro que “nenhum conhecimento ou
nenhuma Filosofia tem sentido fora do diálogo da história, ou sem consciência da
historicidade do homem e de suas idéias, de sorte que o desconhecimento do valor da
História equivale a abdicar da Filosofia, da cultura e do sentido da própria vida” 39. Esta
concepção insurge-se contra a denominada por Husserl “Filosofia da decadência”
(Verfallphilosophie), que pratica a “retirada do mundo” e que “espelha um fenômeno
de massa” ao olvidar o “espírito de responsabilidade pessoal e radical inerente ao
ethos da autêntica Filosofia” 40. O nosso pensador já pressentia, sem dúvida, quando
escrevia estas palavras em Experiência e Cultura, o fenômeno de alienação
protagonizado hodiernamente pela moda analítica que se pratica nas corporações
37 REALE, M. Experiência e cultura: para a fundação de uma teoria geral da experiência. Ob. cit., p. 27. 38
REALE, M. Experiência e cultura: para a fundação de uma teoria geral da experiência. Ob. cit., p.
129. 39 REALE, M. Experiência e cultura: para a fundação de uma teoria geral da experiência. Ob. cit. pgs.
130-131. 40
REALE, M. Experiência e cultura: para a fundação de uma teoria geral da experiência. Ob. cit., p. 131.
12
autistas e pseudo filosofantes, em que infelizmente se converteram não poucos
departamentos de filosofia das Universidades brasileiras.
À luz da “reflexão crítico-histórica” proposta por Miguel Reale, o filosofar
brasileiro teria, basicamente, duas tarefas: identificar os temas-chave da filosofia
ocidental e, em segundo lugar, refletir, à luz desse legado, sobre a própria
problemática histórica. Valeria aqui lembrar rapidamente a forma em que Hegel 41
entendia o estudo da filosofia, pois o nosso autor aproxima-se neste ponto do filósofo
alemão. Para o filósofo alemão se, por um lado, a análise das filosofias nacionais e dos
sistemas devia ser objeto de estudo da história da filosofia, a inquirição, contudo, não
parava aí. Momento fundamental da dialética da razão era constituído, também, pela
busca da identidade dela consigo mesma, ao que só se poderia chegar mediante a
integração das várias filosofias nacionais e dos sistemas numa visão de conjunto que,
revelando as diferenças históricas, explicitasse, também, o fundo comum que as unia,
a força e a lógica do espírito humano na busca da sua identidade.
Ora, Miguel Reale levou a cabo ambas as tarefas com indiscutível originalidade.
Como lembrava com propriedade Roque Spencer Maciel de Barros: “Miguel Reale
desempenhou e desempenha entre nós, e creio que também hoje, em Portugal, um
papel semelhante ao que Ortega y Gasset desempenhou em Espanha e no mundo
ibérico em geral. Diríamos que Reale se põe diante de cada autor estudado
compreendendo que cada um há de ser examinado não segundo padrões abstratos,
mas com as ‘suas circunstâncias’. ‘Tu es tu e a tua circunstância’, parece dizer a cada
um o filósofo brasileiro, disposto a situar-se diante dos problemas que o autor em
exame enfrentou, com as ferramentas de que dispunha e, se critica as suas obras, fá-lo
‘de dentro’, da perspectiva do pensador estudado, com generosa serenidade e
simpatia, que combina com o rigor crítico”. 42
No seu trabalho de diálogo filosófico com os autores, Reale fez da tolerância e
do pluralismo o clima de trabalho que soube comunicar ao Instituto Brasileiro de
Filosofia, criado por ele em 1949 e ao seu órgão, a Revista Brasileira de Filosofia. Os
que “amam a verdade alimentada pelo livre sopro das idéias” - frisa Reale numa das
suas últimas obras - “mister é que fortaleçam a sua posição pela seriedade das
pesquisas, pela meditação serena que é o âmago, a ‘intimidade’ da filosofia (...). É claro
que do diálogo filosófico não se exclui a veemência, nem a paixão pela verdade, mas os
41 HEGEL, W. F. Textos escolhidos. (Seleção e organização de R. Corbusier). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1981, p. 41 seg.
42 BARROS, R. S. Maciel de. “Lições sobre o diálogo filosófico”, in: Jornal da Tarde, São Paulo,
25/06/1994, Caderno Livros.
13
caminhos da filosofia são os das convicções livremente elaboradas e transmitidas, não
se justificando a polêmica convertida em razão do filosofar.” 43
O estudo sistemático do pensamento brasileiro por parte do Clube da
Aeronáutica é uma resposta concreta da atual geração de estudiosos, no sentido de
dar prosseguimento ao trabalho de pesquisa da nossa identidade cultural, efetivado
por Reale. A retomada do rumo nesse contexto teórico deve-se, certamente, aos
herdeiros do Culturalismo sistematizado pelo pensador paulista. Faço referência aqui,
explicitamente, àquele que, pertencendo ao Clube da Aeronáutica, trouxe para dentro
deste espaço de cultura a metodologia de Reale, aplicando-a às pesquisas
desenvolvidas nas várias versões oferecidas, nos últimos anos, do Curso de
Pensamento Brasileiro. Refiro-me ao amigo e colega Francisco Martins de Souza. 44
O caminho trilhado por Reale e pelos seus discípulos na trilha da Escola
Culturalista será, certamente, o norte que guiará com segurança a busca pela nossa
identidade axiológica. Ela deverá ser buscada não na ação autoritária do Estado sobre
os cidadãos, mas na defesa da liberdade de pensamento do indivíduo, num contexto
de tolerância intelectual, como o aberto por Reale no Instituto Brasileiro de Filosofia.
3 - Contribuições mais importantes na identificação do nosso Estado
Patrimonial.
No esforço em prol de traçarmos um rumo alvissareiro para o Brasil
contemporâneo, tão importante quanto a compreensão dos valores da nossa cultura
nacional é a adequada compreensão do fenômeno do Patrimonialismo. Considero
fundamental destacar que a pesquisa nesse ponto tem sido desenvolvida por várias
gerações de estudiosos, a maior parte dos quais se situam no contexto liberal-
conservador. Em estudo publicado pelo Clube da Aeronáutica denominei esse grupo
de “Escola Weberiana Brasileira”, 45 pelo fato de os seus integrantes inspirarem-se na
43 REALE, M. [1994]. Estudos de filosofia brasileira. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1994,
(Coleção Razão Atlântica), p. 23. 44
A contribuição de Francisco Martins de Souza é significativa e tem se desenvolvido fundamentalmente no contexto do estudo da variável do “culturalismo sociológico”, tributário da visão epistemológica aberta por Reale e Paim. Cf., SOUZA, Francisco Martins de. O culturalismo sociológico de Alcides Bezerra. (Apresentação de Antônio Paim). São Paulo: Convívio, 1981. Do mesmo autor: O Integralismo. Brasília: Universidade de Brasília, 1982 (Curso de Introdução ao Pensamento Político Brasileiro). O Estado Nacional e outros ensaios de Francisco Campos. (Organização e introdução de Francisco Martins de Souza). Brasília: Câmara dos Deputados, 1983. Paradigmas teóricos do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1995 (Tese de doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro). Francisco Martins de Souza doou a sua biblioteca pessoal ao acervo da Escola de Formação de Oficiais da Aeronáutica, que funciona em Piratininga, SP. 45
Cf. VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Pensamento politico brasileiro contemporâneo. (Apresentação do Cel. Aviador Araken Hipólito da Costa). Rio de Janeiro: Editora Revista Aeronáutica, 2012. Série Ensaios, nº 5).
14
tipologia do Patrimonialismo proposta por Max Weber em Economia e Sociedade 46 e
completada por Karl Wittfogel na obra intitulada: O Despotismo Oriental. 47
A partir dos anos 70, esses estudiosos recolheram o legado de Raimundo Faoro
que, em 1958, elaborou detalhada análise da formação social brasileira, à luz do
arquétipo weberiano de “patrimonialismo”, na obra intitulada: Os donos do poder 48.
O livro de Faoro teve o mérito de advertir para essa hipótese na formação social
brasileira. O Estado não teria surgido como fruto de um consenso da sociedade, mas
teria se originado a partir da hipertrofia de um poder patriarcal original, que alargou a
sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais,
passando a gerir os negócios públicos como propriedade familiar (ou patrimonial). Essa
hipótese foi retomada por Simon Schwartzman49 na tentativa de apreender o
verdadeiro sentido da história política brasileira, sem preconceitos apriorísticos.
Schwartzman identificou os suportes sociais do patrimonialismo, mas advertiu,
igualmente, para a singularidade de que se revestia: o seu caráter modernizador. Mais
precisamente: em alguns momentos, o patrimonialismo brasileiro teria assumido a
liderança do processo de modernização do país, razão pela qual não poderia exaurir-se
nos limites do patrimonialismo tradicional, cuja análise tinha sido feita por Max
Weber.
Coube a Antônio Paim 50 a tentativa de dar um passo à frente, buscando inserir
a variante modernizadora na tradição que remonta a Pombal (cujo papel foi
inteiramente subestimado na análise de Faoro). Segundo Paim, a proposta weberiana
deve ser entendida à luz do espírito geral da obra do sociólogo alemão, vale dizer,
tomando-a como roteiro para a investigação de uma realidade e não como uma
operação de simples enquadramento. Paim retoma, assim, a idéia de Weber de que os
conceitos sociológicos (como os de Patrimonialismo e Feudalismo) são apenas tipos
ideais para serem referidos à realidade e reformulados à sombra dela. Wanderley
Guilherme dos Santos 51 propôs a categoria de autoritarismo instrumental como
síntese expressiva do patrimonialismo brasileiro. Trata-se da idéia de que o Estado
patrimonial brasileiro, ao assumir a feição modernizadora, pode evoluir no sentido da
46
Cf. WEBER, Max. Economia e sociedade. 1ª edição em espanhol, (tradução de José Medina Echavarría, et alii), México: Fondo de Cultura Económica, 1944, 4 vol. 47
Cf. WITTFOGEL, Karl. Le despotisme oriental: étude comparative du pouvoir total. (Versão francesa a cargo de Micheline Pouteau). Paris: Minuit, 1977. 48
FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 1ª edição. Porto Alegre: Editora Globo, 1958, 2 volumes. 49
SCHWARTZMAN, Simon. São Paulo e o Estado Nacional. São Paulo: Difel, 1975. Cf., do mesmo autor, Bases do autoritarismo brasileiro, 1
a. edição, Rio de Janeiro, Campus, 1982.
50 PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1
a. Edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
51 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades,
1978. Do mesmo autor, Poder e política: crônica do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978.
15
construção das instituições modernas (liberais). Wanderley Guilherme indica como
exemplo dessa proposta a obra de Oliveira Vianna.
Três contribuições caracterizam a evolução mais recente da análise efetivada, à
luz da sociologia weberiana, acerca do Estado Patrimonial no Brasil: em primeiro lugar,
as pesquisas desenvolvidas por José Osvaldo de Meira Penna ao longo das últimas
quatro décadas e centralizadas nas suas obras: Psicologia do subdesenvolvimento 52,
Em berço esplêndido 53, O Brasil na idade da razão 54, A utopia brasileira 55, O
Dinossauro 56, Opção preferencial pela riqueza 57 e Decência já 58. Nessas obras,
Meira Penna analisa, em profundidade, a estrutura cartorial do patrimonialismo
brasileiro, mergulhando nas suas raízes culturais, notadamente no estudo do substrato
de psicologia coletiva que caracteriza à Nação brasileira.
As minhas obras intituladas: Castilhismo, uma filosofia da República 59, O
Castilhismo 60, Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro, 61
Estado, cultura y sociedad en la América Latina, 62 Patrimonialismo e a realidade
latino-americana, 63 A análise do Patrimonialismo através da literatura latino-
americana 64 e O Republicanismo brasileiro 65 foram dedicadas a realizar uma
aproximação entre os tipos ideais weberianos e as categorias propostas por Oliveira
52
PENNA, José Osvaldo de Meira. Psicologia do Subdesenvolvimento. (Prefácio de Roberto Campos). Rio de Janeiro: APEC, 1972. 53
PENNA, José Osvaldo de Meira. Em berço esplêndido – Ensaios de psicologia coletiva brasileira, 1a.
Edição, Rio de Janeiro: José Olympio / INL, 1974. 2a. Edição revista e aumentada, Rio de Janeiro:
Topbooks / Instituto Liberal, 1999. 54
PENNA, José Osvaldo de Meira. O Brasil na idade da razão. Rio de Janeiro: Forense-Universitária / INL, 1980. 55
PENNA, José Osvaldo de Meira. A utopia brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. 56
PENNA, José Osvaldo de Meira. O Dinossauro – Uma pesquisa sobre o Estado, o Patrimonialismo selvagem e a nova casta de intelectuais e burocratas. São Paulo: T. A. Queiroz, 1988. 57
PENNA, José Osvaldo de Meira. Opção preferencial pela riqueza. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1991. 58
PENNA, José Osvaldo de Meira. Decência já. Rio de Janeiro: Instituto Liberal / Nórdica, 1992. 59
VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Castilhismo – Uma Filosofia da República. 1a. Edição, Porto Alegre: EST;
Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1980. Segunda edição corrigida e aumentada, (Prefácio de Antônio Paim); Brasília: Senado Federal, 2000. 60
VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. O Castilhismo. 1ª. Edição, Brasília: Universidade de Brasília, 1982. Segunda edição, Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1994. 61
VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro. (Apresentação de Antônio Paim). Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 1997. 62
VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Estado, cultura y sociedad en la América Latina. Bogotá: Universidad Central, 2000. 63
VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Rio de Janeiro: Documenta Histórica Editora, 2006. 64
VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. A análise do Patrimonialismo através da literatura latino-americana – O Estado gerido como bem familiar. (Apresentação: “O Patrimonialismo como personagem literário”, de Arno Wehling). Rio de Janeiro: Documenta Histórica Editora / Instituto Liberal, 2008. 65
VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. O Republicanismo brasileiro. Edição eletrônica. Juiz de Fora: Portal Defesa UFJF, 2015 [http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/ORB.pdf].
16
Vianna para o estudo da formação do Estado modernizador brasileiro. Mostrei que a
tipologia do patrimonialismo foi a base sobre a qual foram organizados os Estados nas
antigas colônias espanholas e no Brasil, tendo dado ensejo a uma cultura vinculada à
ética contrarreformista, contrária ao progresso e à consolidação da democracia
representativa, em que pese o fato da preexistência, na Península Ibérica, de antiga
tradição contratualista de feição libertária.
Significativa contribuição hodierna da escola weberiana no Brasil é constituída
pelas pesquisas levadas a termo por Antônio Paim, a partir do ano 2000, acerca dos
desdobramentos culturais e políticos do Estado Patrimonial brasileiro, ao ensejo da
ascensão das correntes marxistas no cenário institucional do país. Essa nova vertente
da pesquisa sobre o Patrimonialismo concentrou-se nas seguintes obras: Momentos
decisivos da história do Brasil 66, O relativo atraso brasileiro e sua difícil superação 67,
O Socialismo Brasileiro (1979-1999) 68, A escola cientificista brasileira, 69 Para
entender o PT 70 e Marxismo e descendência. 71
À luz do arcabouço conceitual esboçado pelos estudiosos que configuram a
Escola Weberiana Brasileira, poderíamos resumir assim, o mais recente capítulo do
Patrimonialismo no ciclo lulopetista. Escrevia sir Francis Bacon, um dos ícones do
empirismo inglês, na sua obra intitulada: Novum Scientiarum Organon (1620), que a
experiência humana possui momentos privilegiados, aqueles em que os segredos da
natureza revelam-se, por instantes, perante a lente dos cientistas. Considerava que
alguns fatos constituíam instantiae ostensivae (instâncias reveladoras, ou casos em
que as estruturas da natureza estariam no seu máximo de manifestação). Esses seriam
os momentos de insight das leis que comandam o cosmo.
Os brasileiros estamos assistindo, nos eventos do Petrolão, a uma dessas raras
circunstâncias na evolução do nosso secular Estado Patrimonial. A opinião pública não
vê todas essas instâncias, mas paga a conta. O contribuinte que o diga. Sente já no seu
bolso os desmandos da empresa patrimonialista, montada passo a passo, com
paciência de sindicalista que assiste à assembleia para, esvaziada pelo cansaço,
aprovar a greve almejada. No caso do Petrolão, esta seria a última etapa, a mais visível,
de aparelhamento do sistema produtivo por uma ávida elite preparada para a função
de privatiza-lo tudo em benefício da burocracia estatal presidida pelo Partido.
Demétrio Magnoli sintetizou bem a essência do atual Patrimonialismo lulopetista: “O
66
PAIM, Antônio. Momentos decisivos da história do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 67
PAIM, Antônio. O relativo atraso brasileiro e sua difícil superação. São Paulo: SENAC, 2000. 68
PAIM, Antônio. O Socialismo Brasileiro. Brasília: Instituto Teotônio Vilela / Quick Print Ltda., 2000. 69
PAIM, Antônio. A escola cientificista brasileira – Estudos complementares à História das idéias filosóficas no Brasil, vol. VI. Londrina: CEFIL, 2002. 70
PAIM, Antônio. Para entender o PT. Londrina: Edições Humanidades, 2002. 71
PAIM, Antônio. Marxismo e descendência. 1ª edição. Campinas: Vide Editorial, 2008.
17
Estado lulista é um conglomerado de interesses privados. Nele se acomodam a elite
patrimonialista tradicional, a nova elite do poder petista, grandes empresas associadas
aos fundos de pensão, centrais sindicais chapa-branca e movimentos sociais
financiados pelo governo”. 72
Não é de hoje o projeto dessa empresa patrimonialista, que teve etapas
memoráveis. Em todas elas, a ciência aplicada foi posta serviço da burocracia estatal, a
fim de garantir a eficiência na racionalização da empresa do rei ou do primeiro
mandatário. Foi assim nas reformas pombalinas, na segunda metade do século XVIII,
quando o marquês de Pombal amarrou o sistema produtivo ao redor dos Monopólios
Reais, fora dos quais ninguém conseguiria sobreviver. Assim aconteceu nas reformas
modernizadoras do Império, com o Monarca como centro da atividade econômica,
colocando sob o seu tacape aqueles que quisessem se apresentar como empresários
independentes do Trono. As agruras sofridas pelo visconde de Mauá, um dos nossos
próceres do livre empreendedorismo, estão aí para provar a eficiência do projeto
patrimonialista. Assim aconteceu no ciclo modernizador do getulismo, com as
reformas ensejadas pela elite gaúcha comandada com mão de ferro pelo próprio
Getúlio Vargas, com o auxílio dos jovens intelectuais que integravam a Segunda
Geração Castilhista, com Lindolfo Boeckel Collor à frente, tendo previamente sido
cooptada a jovem elite tenentista no Clube 3 de Outubro. Assim ocorreu no ciclo
militar ao redor da proposta modernizadora em andamento nos terrenos econômico e
social, pensada no petit comité que reunia, ao redor do General Presidente, a elite
tecnocrática e militar, responsável por traçar o andamento da máquina pública rumo
ao Brasil Grande.
O lulopetismo tentou copiar esse esquema de modernidade ao redor do Estado
empresário, racionalizando ao máximo a máquina tributária, centralizando as receitas
em favor da União (com detrimento de Estados e Municípios), utilizando como mão
distribuidora de recursos entre os empresários cooptados o BNDES que partiu,
também, para aliciar fidelidades internacionais no Hemisfério Sul, (na África e na
América Latina), na tentativa de dar vida essa nova diplomacia que está acabando de
desmontar a primorosa máquina construída, na aurora da República, pelo Barrão do
Rio Branco no Itamaraty. O mecanismo foi o mesmo do ângulo econômico: tudo
centralizado ao redor dos Monopólios oficiais, dentre os que se destacam a Petrobrás
e a Eletrobrás. O modelo modernizador lulopetista assemelha-se, assim, ao posto em
prática por Vladimir Putin, no seio do secular patrimonialismo russo, com a hegemonia
das empresas produtoras de gás e petróleo. Proveniente do meio sindical, Lula
caprichou no sentido de dominar completamente os fundos de pensão das estatais.
72
MAGNOLI, Demétrio. “A escolha de Serra”. In: O Estado de S. Paulo, 8/7/2010, pg. A2.
18
Fazem-se sentir hoje os efeitos práticos dessa política patrimonialista: enriquecimento
rápido dos agentes públicos (garantida a sua segurança nas sombras da nossa
complexa legislação, que coloca sobre todos a espada de Democles da insegurança
jurídica, mas que para os amigos do rei constitui garantia de que nada acontecerá com
eles). Vide as penalidades muito diferentes impostas no julgamento do Mensalão:
pesadíssimas para os que foram cooptados no setor privado pelo turbilhão de dólares
na cueca e nas malas gordas de notas, levíssimas para os arquitetos dos malfeitos
(para utilizar a terminologia do agrado da presidente Dilma).
A maciça divulgação dos feitos da ladroagem estão sensibilizando a opinião
pública de que há algo de errado na estrutura do nosso Leviatã. Foi de tal grau a
tsunami da corrupção que inundou o quintal do dia a dia do cidadão comum. Enquanto
itens básicos da saúde pública faltam nas Unidades de Pronto Atendimento, a elite
larápia tem pronto atendimento de primeiro mundo no Hospital Albert Einstein, o mais
caro do país. Enquanto já começa a sobrar calendário e a faltar dinheiro na metade do
mês no bolso dos contribuintes, os dólares desviados sobram nas contas milionárias da
petralhada e dos empresários corruptos. Enquanto a sociedade almeja por
transparência na prestação de contas, a presidência da República é pródiga em
enrolação e em contradições veiculadas pelos porta-vozes oficiais. Enquanto se
esperava que o Ministério da Justiça cumprisse com o seu papel de facilitador para que
a Justiça operasse livre e célere, converteu-se em guiché de reclamos dos larápios e
em janela por onde assomam os feitores dos desmandos, que buscam pressionar
politicamente os magistrados honestos.
Tomara que de todo esse movimento de confusa agitação surja uma análise
aprofundada sobre as causas das nossas mazelas: o Estado Patrimonial e o seu
cérebro, instalado hoje confortavelmente na Presidência da República e nos gabinetes
dos burocratas de Brasília.
Conclusão
Nesta confusa situação de desmonte e realinhamento das instituições
republicanas quais são as perspectivas que se descortinam? O Estado patrimonial
brasileiro entrou em colapso, à sombra do acirramento dos seus vícios potencializados
pelo Partido dos Trabalhadores e o Lulismo. Em meio ao nevoeiro dos fatos, podemos
enxergar, no entanto, duas saídas, à luz das variáveis que tenho analisado nesta
exposição.
Em primeiro lugar, encontramos uma proposta arquitetada pelos estudiosos do
Patrimonialismo. É possível, sim, elaborar uma agenda para superar os entraves de
séculos, decorrentes da feição privatizante do Estado por clãs e patotas. O caminho
19
para acabar com o peso do Estado-faz-tudo potencializado pelo Executivo consiste em
diminuir a sua força de aliciamento, mediante a suspensão das “emendas
parlamentares”, que se tornaram a torneira por onde o Presidente da República
repassa benesses ao Legislativo, com a finalidade de manter a sua dominação corrupta
sobre os demais Poderes e sobre a sociedade.
Trata-se de uma opção que é enxergada por Antônio Paim nas suas mais
recentes abordagens, que visam a enfraquecer a crença popular no Estado como pai
de todos profundamente enraizada na mentalidade popular. 73 Essa providência e
outras (como a discussão concreta acerca das privatizações) vão se encaixando no
sentido de fortalecer o papel dos cidadãos e o seu relacionamento com o Poder
Legislativo, mediante a adoção de mecanismos que aproximem eleitor de eleito e
garantam a adequada representação de interesses (e o voto distrital seria peça-chave
dessa saída, não se descartando, a meu modo de ver, num futuro relativamente
próximo, a saída parlamentarista). Esses fatores, somados, levariam certamente a um
arrefecimento do Patrimonialismo na gestão do Estado.
Ora, na atual quadra de disritmia institucional, fica clara a reação conservadora
de amplos setores do Congresso (de que se tornou porta-voz o presidente da Câmara
dos Deputados), inspirada nas críticas da sociedade à ação deletéria do governo, bem
como nas propostas moralizantes da bancada evangélica. Seja qual for o caminho que
os fatos tomem nos próximos meses, não há dúvida de que se trata de uma reação
proveniente da sociedade civil, que encontra repercussão no senso de sobrevivência
de muitos deputados e senadores. Querendo ou não, significativos setores de ambas
as casas legislativas passaram a se tornar porta-vozes dos desejos da sociedade, no
sentido de ver refreada a maré montante da pretensa hegemonia do PT e coligados.
Dou como exemplo a aprovação, pelo Senado, da adoção do voto distrital proposta
pelo senador José Serra. As reformas em curso que transitam pelo dialético caminho
das várias Comissões Parlamentares de Inquérito vão nesse sentido.
Esta variável poderá desaguar num quadro de reformas significativas, tanto dos
Partidos quanto da gestão do Estado. A operação Lava Jato está a mostrar que amplos
segmentos do Ministério Público e da Magistratura alinham-se no sentido de depurar
as práticas republicanas, indo de encontro à busca de um reforço da Representação
exigida pela sociedade, a que aludi anteriormente. Para que essa ampla tarefa
prospere seria necessário que a intelligentsia brasileira apresentasse propostas
coerentes. Políticos calejados como César Maia vêm a possibilidade concreta de, ao
redor dessa agenda renovadora, se constituir um movimento de “união nacional”, que
73
Cf. PAIM, Antônio (organizador). Revisita ao tema do Patrimonialismo. Rio de Janeiro / São Paulo: Documenta Histórica, 2015 (no prelo).
20
nos tirasse do atual atoleiro. 74 Aqui se abriria espaço para um trabalho construtivo de
grande importância a ser efetivado pelo núcleo de pesquisadores em Pensamento
Brasileiro do Clube da Aeronáutica, haja vista que entre os seus membros contam-se
cientistas políticos, sociólogos, professores e juristas de nomeada.
Em segundo lugar, desponta no horizonte das nossas esperanças uma ideia-
matriz herdada das várias gerações de pensadores liberal-conservadores em que é rica
a nossa tradição política: vale a pena lutar pela Liberdade! Esta não é um ornamento
constitucional de última hora. A luta pela Liberdade confunde-se com as origens da
nacionalidade, tanto em Portugal quanto no Brasil. Ela foi, desde o início dos nossos
tempos como nações organizadas, o fogo que aqueceu os corações dos homens que
lutaram pela dignidade e pela defesa dos direitos inalienáveis à vida, à liberdade, às
posses, tanto por parte de intelectuais de nomeada como Alexandre Herculano, que
trouxe para Portugal a benfazeja influência dos doutrinários franceses, quanto do
ângulo da nossa história, que se confunde, nos seus primórdios, com a tarefa de que se
desincumbiram Dom João VI, Silvestre Pinheiro Ferreira, Dom Pedro I, Dom Pedro II, o
visconde de Uruguai Paulino Soares de Sousa, bem como os demais estadistas que
pensaram os fundamentos da representação no Brasil.
A magna tarefa de pensar o país, efetivada pela Escola Culturalista com Miguel
Reale e Antônio Paim à testa, e continuada hoje pelas jovens gerações que em blogs e
portais aplicam os princípios do humanismo cristão liberal-conservador às atuais
circunstâncias,75 insere-se nesse ideal de luta pela liberdade nas instituições
republicanas, retomando a tarefa de arautos que já se foram como Rui Barbosa, Assis
Brasil, Gaspar da Silveira Martins, Milton Campos, Carlos Lacerda, Miguel Reale,
Roberto Campos, Gilberto Ferreira Paim, Donald Stewart, Og Leme, José Guilherme
Merquior, Roque Spencer, Ubiratan Macedo e tantos outros. Vale, sim, a pena lutar
pela liberdade. Vale, sim, a pena criticar com denodo o estatismo patrimonialista e a
sem-vergonhice descarada que tomou conta do país no longo consulado lulopetista.
Vale, sim, a pena erguer uma voz de indignação em face das tramoias da esquerda
totalitária enraivecida e arrogante, que esvaziou os cofres da nação para se locupletar
às custas dos menos favorecidos que prometia redimir. Vale, sim, a pena trabalhar em
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MAIA, César. “Que desdobramento político-institucional da crise? Superar o presidencialismo de clientela!”. In: Exblog do César Maia, 15/07/2015. 75
Faço rápida referência a sete nomes que se destacam: Olavo de Carvalho (www.olavodecarvalho.org/), Alex Catharino (http://www.cieep.org.br/), Rodrigo Constantino (http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/), os editores dos Portais do Instituto Liberal (http://www.institutoliberal.org.br/), do Centro de Pesquisas Estratégicas da UFJF (www.ecsbdefesa.com.br), da Revista Ibérica (http://www.estudosibericos.com/) e do Instituto Mises (http://www.mises.org.br/). Mas são inúmeros os jovens pensadores que, na net, desenvolvem dia a dia análises valiosas acerca dos problemas brasileiros, na dura trilha de construir as instituições republicanas, preservando a liberdade. Eles estão repassando às novas gerações o valioso legado das duas gerações anteriores que, entre meados do século passado e o presente, pensaram o Brasil liberal-conservador contemporâneo.
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prol de formular as linhas mestras de um desenvolvimento capitalista ordeiro e a
serviço de todos os brasileiros!
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