DELEUZE_do Pensamento Trágico à Nova Imagem Do Pensamento Em Nietzsche
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7/25/2019 DELEUZE_do Pensamento Trgico Nova Imagem Do Pensamento Em Nietzsche
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DELEUZE: DO PENSAMENTO TRGICO NOVAIMAGEM DO PENSAMENTOEM NIETZSCHE
PRICLES PEREIRA DE SOUSA
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CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA EMETODOLOGIA DAS CINCIAS
DELEUZE: DO PENSAMENTO TRGICO NOVAIMAGEM DO PENSAMENTOEM NIETZSCHE
PRICLES PEREIRA DE SOUSAORIENTADOR:
PROF.DR. BENTO PRADO JR.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Filosofia e Metodologia das
Cincias do Centro de Educao e CinciasHumanas da Universidade Federal de So Carloscomo parte dos requisitos para obteno dottulo de mestre em filosofia e metodologia dascincias.
REA DE CONCENTRAO:EPISTEMOLOGIA DA PSICOLOGIA E DA PSICANLISE
SO CARLOS - SO PAULO
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Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT daBiblioteca Comunitria da UFSCar
S725dpSousa, Pricles Pereira de.
Deleuze: do pensamento trgico nova imagem dopensamento em Nietzsche / Pricles Pereira de Sousa. --So Carlos : UFSCar, 2005.
208 p.
Dissertao (Mestrado) -- Universidade Federal de SoCarlos, 2003.
1. Histria da filosofia. 2. Pensamento trgico. 3. Crticakantiana. 4. Caricatura da crtica. 5. Crtica nietzscheana. 6.Nova imagem do pensamento. I. Ttulo.
CDD: 109 (20a)
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Ao amigo Luiz Manoel que sempre estar
anos luz a minha frente no vazio dopensamento!
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AGRADECIMENTOS
A Capes, pelo apoio financeiro importantssimo para o desenvolvimento da pesquisa.
A Tatiana S. Dunajew, pelo longo perodo que viveu comigo em comunho com o
pensamento.
A Adriana de Arajo, por mostrar-se disposta a me acompanhar sempre em tudo.
A Alessandra de Arajo e ao seu marido, por terem sido grandes amigos no momento
em que eu mais precisei.
A Ana Maria Bastos, por me ensinar perceber que possvel contemplar a vida de
maneira simples e sem sofrimento.
A Lea e Alessandro, por todas as nossas conversas, pela presena extremamente forte de
suas vidas na minha.
A Snia Russo, por me receber desde sempre com sorrisos e braos abertos.
A Michel Aires, pelas conversas incansveis sobre filosofia.
A Maria Vilela, por sua amizade que est s comeando.
Ao Prof. Dr. Luiz Orlandi, por sua dedicao ao pensamento de Deleuze, pelas aulas
inesquecveis que tive o privilgio de assistir.
A todos os colegas do programa de ps-graduao em filosofia da UFSCar.A todos os professores do programa de ps-graduao em filosofia da UFSCar.
A Rose (secretaria), por me acolher e colaborar de todas as maneiras para que eu
pudesse terminar este trabalho.
A Cleusinha (secretaria), por se mostrar sempre paciente e generosa comigo.
Aos amigos: Ronei, Paulo e Srgio, pelas conversas sobre filosofia.
A Telminha, por uma nova amizade.
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Ao Kahio e Mrcia, por todas as conversas que tivemos sobre cincia, literatura e
filosofia.
Ao Prof. Bento Prado Jr., pelas aulas maravilhosas, por sua dedicao e amor a
filosofia.
Ao amigo e Prof. Dr. Mark Julian, sem ele nada disso seria possvel.
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RESUMO
Este estudo visa acompanhar as reflexes de Deleuze sobre Nietzsche,
assumindo como objeto de leitura o livro Nietzsche e a filosofia (1962). Desde as
primeiras pginas, Deleuze afirma ser Nietzsche o responsvel por inscrever na Histria
da Filosofia uma nova imagem do pensamento, condizente com uma nova imagem do
filsofo. Sobretudo, no terceiro captulo, essa idia ganha profundidade, pois, Deleuze
no s descobre em Nietzsche um projeto de natureza crtica, como tambm, volta-o
contra Kant. Em poucas palavras, Deleuze acredita encontrar na Genealogia da Moralde Nietzsche, uma espcie de rplica Crtica da Razo Pura, j que Kant no
conseguiu levar o seu empreendimento crtico a bom termo, por no ter considerado os
problemas em termos de valores. Nietzsche o grande responsvel por tal feito. Para
Deleuze, a crtica kantiana no passa de uma caricatura da verdadeira crtica. Embora
essas idias sejam as mais importantes, acompanhou-se Deleuze como um todo,
procurando manter a ateno para o conjunto de suas reflexes nos captulos mais
importantes para este ensaio. Em suma, trata-se de um vo que comea com o
pensamento trgico e termina na crtica.
PALAVRAS-CHAVE:pensamento trgico crtica kantiana caricatura da crtica
crtica nietzscheana nova imagem do pensamento.
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ABSTRACT
This study aims at following Deleuzess reflections about Nietzsche, assuming
as the reading object the book Nietzsche and the Philosophy (1962). From the first
pages, Deleuze asserts that Nietzsche is responsible for inscribing in the History of
Philosophy a new image of thinking, consonant with a new image of the philosopher.
Especially on the third chapter, this idea gains profundity, for Deleuze not only
discovers in Nietzsche a project of critical nature but also turns it against Kant. In a few
words, Deleuze believes to find in Nietzsches Genealogy of Morala sort of answer to
the Critique of Pure Reason, since Kant did not manage to carry out his critical
undertaking fully, for not having considered the problems in terms of values. Nietzsche
is the major responsible for such feat. To Deleuze, the Kantian critique is just a
caricature of the real critique. Although these are the most important ideas, Deleuze was
followed as a whole, trying to keep the attention to the whole of his reflections in the
most important chapters for this essay. In short, it is about a flight which starts with
the tragic thinking and ends in the critique.
KEY WORDS: tragic thinking Kantian critic caricature of critique Nietzschean
critique new image of thinking
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ndice:
Introduo: ................................................................................................................09
1. parte: Filosofia e Genealogia - Pensamento Trgico
a) sentido e valor ........................................................................................20
b) vontade e dialtica .................................................................................26
c) Nietzsche e o trgico ..............................................................................33
d) sentido e existncia ................................................................................38
e) acaso e necessidade - caos e ciclo .........................................................45
f) impresses gerais sobre o 1. captulo de Nietzsche e a filosofia ..........52
2. parte: Tipologia das Foras, Vontade de Poder, Eterno Retorno
a) conscincia e corpo - distino a partir das foras ................................66
b) diferena de quantidade = qualidade da fora? .....................................71
c) o eterno retorno - como pensamento cosmolgico e fsico ...................76
d) a vontade de poder - como princpio para a sntese das foras .............80
e) afirmao e negao - como qualidades da vontade de poder ..............85
f) origem, imagem invertida, hierarquia ....................................................88
g) a vontade de poder - como poder de ser afetado ...................................95
h) devir-reativo como caracterstica do homem ........................................98
i) ambivalncia da interpretao e da avaliao ......................................101
j) o eterno retorno - como pensamento tico e seletivo ...........................104
k) impresses gerais sobre o 2.captulo de Nietzsche e a filosofia .........111
3. parte: Crtica e Nova Imagem do Pensamento
a) sintomatologia, tipologia, genealogia ..................................................133
b) a metafsica e a questo Que ? Nietzsche e as questes O que?
Quem?........................................................................................................136
c) contra-sensos sobre a vontade de poder ..............................................142
d) a criao e a alegria como princpios da vontade de poder ................148
e) o projeto crtico a partir de Nietzsche e Kant .....................................154
f) verdade, conhecimento, moral, religio ..............................................166
g) pensamento, vida, arte ........................................................................173
h) impresses gerais sobre o 3.captulo de Nietzsche e a filosofia ........177
Concluso: ...............................................................................................................195Bibliografia: ............................................................................................................203
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INTRODUO
Em 1962, o filsofo francs Gilles Deleuze publica o livro: Nietzsche e a
filosofia, que como tudo o que foi escrito pelo autor, trouxe tona vrias polmicas.
Evidentemente, que uma boa parte dos estudiosos de Nietzsche considera o trabalho
escrito por Deleuze bastante original. Porm, a mesma proporo que elogios lhe so
feitos, so lhe dirigidos censuras. claro que no possvel reproduzir totalmente a
lista dos autores que se voltou para Deleuze seja para elogi-lo, seja para censur-lo.Mas, nada impede de apresentar pelo menos alguns exemplos que podero ilustrar um
pouco a repercusso criada pelo texto deleuzeano de 1962.
H quem diga que um dos mritos que acompanha a leitura de Deleuze
sobre Nietzsche estaria depositado na relevncia dada pelo filsofo teoria nietzscheana
das foras, pois, sem isso se arriscava a fazer da vontade de poder um princpio
metafsico, ontolgico, ou at mesmo, humaniz-lo1. Nessa direo, Deleuze mostrou-se
atento quando observou que o ser da fora s pode ser dito no plural e no no singular2,
destacando a noo de valor e mostrando a importncia do procedimento genealgico3.
Este filsofo francs foi quem ainda conseguiu descobrir em Nietzsche um projeto
crtico que foi levado s ltimas conseqncias, ao contrrio daquele que foi proposto
por Kant. Nesse sentido, o livro Nietzsche e a filosofiamostrava-se como um programa
cuja realizao traria satisfaes indefinidas. O problema seria descobrir o jogo que o
tornava possvel. 4
1Scarlett Marton,Deleuze e sua sombra. In: Gilles Deleuze: uma vida filosfica; p-241.2
Wolfgang Mller-Lauter,A doutrina da vontade de poder em Nietzsche; p-74.3Scarlett Marton,A terceira margem da interpretao; p-191.4Philippe Raynaud, Nietzsche educador. In:Por que no somos nietzscheanos; p-195.
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Por outro lado, Deleuze acusado de no se preocupar em refazer o
itinerrio intelectual de Nietzsche; de no lanar mo da periodizao dos textos do
autor alemo5; de recorrer temtica das foras para refletir sobre o conjunto da obra de
Nietzsche, incluindo como referncia a obra O Nascimento da Tragdia escrita em
1872, quando este assunto s viria a ser discutido no livro A Gaia Cincia de 1882,
sendo que, somente em 1885, Nietzsche, realmente, elaboraria a teoria das foras6.
Ainda, criticam Deleuze por centrar suas questes no tema dos valores, atribuindo um
peso excessivo s idias de fora ativa e reativa, enquanto, Nietzsche muito raramente
se utiliza destes termos7. Em funo do problema que norteia a sua leitura, Deleuze
negligencia as noes de luta, guerra e rivalidade. Aspectos sem os quais dificilmente se
compreende a perspectiva nietzscheana do mundo como contnua criao e destruio8.
Observa-se tambm, que medida que Deleuze dota as foras de qualidades e distingue-
as como ativas e reativas, se v obrigado a fazer da vontade de poder no s o elemento
diferencial das foras em relao, como igualmente o elemento gentico responsvel por
essas qualidades. Assim, para justificar a sua idia de distino existente entre foras
ativas e reativas, forado a diferenciar foras e vontade de poder e ainda discriminar
duas qualidades primordiais da vontade de poder: uma afirmativa e outra negativa.
Dessa forma, esse filsofo francs diferencia-as ou distingue-as em terreno em que no
est autorizado, pois o prprio Nietzsche de modo algum o faz para no renunciar
coeso interna de seu pensamento9. Logo, Deleuze sistematiza a obra de Nietzsche,
enquanto que este se revela um pensador assistemtico ou anti-sistemtico10. Para
5Scarlett Marton,Deleuze e sua sombra. In: Gilles Deleuze: uma vida filosfica; p-241.6Idem, ibidem.7Idem, ibidem.8Idem, ibidem.9
Idem, ibidem; p-242. Sobretudo: Wolfgang Mller-Lauter,A doutrina da vontade de poder; pp-110-111- nota de n. 123.10Idem, ibidem.
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alguns, Deleuze despreza elementos centrais do pensamento do autor de Zaratustra11na
nsia de tornar Nietzsche seu aliado.
Percebe-se que so muitas as controvrsias que giram em torno do texto
deleuzeano sobre Nietzsche. Basta um pequeno balano para perceber que o livro
Nietzsche e a filosofia tem suscitado as mais diversas opinies. H quem o considere
extremamente original e h quem o considere negligente. H ainda casos em que um
mesmo autor considera o trabalho deleuzeano original em alguns aspectos e negligente
em outros. O que todos esses estudiosos tm em comum a freqente referncia s
reflexes e crticas feitas por Deleuze acerca do filsofo alemo, tornando a sua obra
como obrigatria e fundamental para a compreenso da literatura nietzscheana.
Quanto ao presente trabalho, est fora de cogitao tentar discutir a
relevncia de todas essas interpretaes. O problema em questo bem anterior a tudo
isso. O que realmente relevante, no momento, ler Deleuze, se possvel sem qualquer
interferncia externa. Este o objetivo deste estudo. No entanto, preciso sublinhar que
este trabalho almeja acompanhar as consideraes de Deleuze somente at o terceiro
captulo de seu livro, parte considerada a mais importante. Trata-se de tentar ler
proposio por proposio, de se tornar quase uma sombra do autor francs, de
vislumbrar a maneira como o autor pensou certos temas a partir Nietzsche.
Qualquer leitor poderia levantar a seguinte questo: que importncia teria
acompanhar Deleuze nos trs primeiros captulos de seu livro? Na verdade, haveria
muitas razes que tornariam legtima essa empreitada. Tendo em vista situar um pouco
melhor o leitor, faz-se necessrio lembrar alguns pontos que poderiam mostrar-se
importantes no meio de toda a discusso. preciso observar que Deleuze no terceiro
captulo de seu livro apresenta Nietzsche como responsvel por um projeto de natureza
11Idem, ibidem.
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crtica que levado s ltimas conseqncias. Nesse sentido, Nietzsche, atravs da
Genealogia da Moral, teria pretendido refazer a Crtica da Razo Pura. A idia de uma
nova imagem do pensamento12, que Deleuze descobrira em Nietzsche, encontrava-se
vinculada crtica. Para este filsofo francs, a crtica s tem sentido se tiver por
objetivo atingir um novo modo de sentir, um novo modo de pensar, um novo modo de
avaliar, uma nova forma de vida ou um outro tipo de subjetividade. Isso significa que
ela perde totalmente o seu carter se mantiver os valores intactos, se continuar
justificando as coisas tais como elas so, orientadas pelo princpio da negao e pelas
foras reativas, governadas pelas formas do niilismo. Estes pontos que sero
precisamente destacados no estudo.
Observar-se- que Deleuze no apresenta uma introduo para o seu livro.
De modo que o leitor se v sem um aviso prvio acerca do problema essencial que
direciona a leitura feita sobre a obra de Nietzsche. Entretanto, no devemos crer que
Deleuze no possua uma, ou que esteja desprovido de uma, inteno que justifique a
retomada do filsofo alemo. Na verdade, somente na concluso que Deleuze,
realmente, revela a que veio: afirma que a filosofia moderna embora se mostre vigorosa
e vivaz, nem por isso deixa de apresentar perigos para o pensamento. O que incomoda
Deleuze ter encontrado no cenrio filosfico moderno um misto geral marcado de
ontologia e antropologia, de atesmo e teologia: um pouco de espiritualismo cristo
aqui, de dialtica hegeliana ali, isso sem falar das pitadas de fenomenologia espalhadas
pelo ar. V Nietzsche e Hegel de mos dadas em uma ronda que celebra o
ultrapassamento da metafsica ou a morte da prpria filosofia13. Em poucas palavras, o
que Deleuze pretende, ao retomar a obra de Nietzsche, tentar desfazer alianas que ele
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Orlandi,Marginando a leitura deleuzeana do trgico em Nietzsche; sobretudo a nota de n. 18 da p-15.13Deleuze,Nietzsche e a filosofia; concluso.
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julga perigosas14. Observa que a filosofia de sua poca mistura autores e teorias de
maneira totalmente irresponsvel. Autores e teorias que talvez no possuam
compromisso direto uns com os outros: mistura de nietzscheanismo com hegelianismo e
com husserlianismo.
Todavia, para Deleuze est absolutamente fora de questo criar algum tipo
de compromisso entre Nietzsche e Hegel, pois a filosofia de Nietzsche, medida que
possui um alcance polmico, mostra-se totalmente anti-dialtica. Deleuze acredita que a
filosofia nietzscheana representa a mais radical denuncia das mistificaes que
encontravam na dialtica um ltimo refgio15. E observa que aquilo que Schopenhauer
havia sonhado em realizar, mas no conseguira, em funo de estar profundamente
marcado por Kant e o pessimismo, Nietzsche faz s custas do rompimento com
Schopenhauer.16Para o Deleuze, Nietzsche o responsvel por inscrever na Histria da
Filosofia uma nova imagem do pensamento e por liber-lo dos fardos que o
esmagavam.17
Assim, mostrado na primeira parte do ensaio, intitulada Filosofia e
Genealogia - Pensamento Trgico, que Deleuze no s apresenta a definio do que
seria o pensamento trgico em Nietzsche, mas que esta conceituao exige uma
redefinio completa do conceito de vontade e a exigncia de uma nova perspectiva
para a filosofia, para o pensamento e para o filsofo. Sabe-se que Hegel tambm
esboou uma preocupao com o trgico. Todavia, notar-se- que h uma diferena de
natureza existente entre o trgico nietzscheano e as concepes dialticas do trgico. Na
verdade, Deleuze ir mostrar que no h propriamente falando uma concepo dialtica
do trgico, pois, atravs da dialtica, a viso trgica do mundo morre: uma primeira vez
14Orlandi,Marginando a leitura deleuzeana do trgico em Nietzsche; pp-1-3.15
Deleuze,Nietzsche e a filosofia; concluso.16Idem, ibidem.17Idem, ibidem.
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frente dialtica socrtica, uma segunda vez atravs do cristianismo e, finalmente, via
conjugao dialtica moderna e Wagner em pessoa.
Evidentemente, algum poderia objetar que Nietzsche, sobretudo em suas
primeiras obras, parece ter uma inspirao dialtica, j que no se pode negar a
existncia de categorias dialticas nesses textos. Lembra que em O Nascimento da
Tragdia, as idias de contradio, oposio e reconciliao operam livremente e que
talvez no fosse insensato dizer que o trgico nietzscheano parece acolher muito bem
procedimentos de natureza dialtica. Deleuze no discorda, ou melhor, concorda
parcialmente, pois mostrar que apenas aparentemente isso verdadeiro. Segundo
Deleuze, preciso prestar ateno naqueles que inspiram Nietzsche nesse perodo de
seu pensamento. Na verdade, no propriamente Hegel quem se coloca como o grande
mestre de Nietzsche nesta fase, mas Schopenhauer e Wagner.
Se o pensamento trgico evolui, justamente porque Nietzsche rompe com
ambos. Mas, se atravs de Nietzsche, depara-se com uma outra imagem do pensamento,
assim como com uma outra imagem do filsofo, isso se d em funo do autor alemo
ter inserido na filosofia os temas do sentido e do valor. Nesse sentido, observar como
Deleuze apresenta tais temas, relaciona-os com a pluralidade de foras, e, sobretudo,
questiona a busca pelo sentido e pelo valor da existncia, pressupe relaes entre
foras e vontade que atingem no s uma esfera cosmolgica, mas um domnio tico.
De acordo com Deleuze, a dialtica poderia ser definida basicamente a
partir de trs idias: de um poder do negativo que serviria como princpio terico que se
manifestaria atravs da oposio e da contradio; de uma valorizao do sofrimento, da
tristeza ou das paixes tristes; de uma positividade que seria extrada como produto
terico e prtico da negao. O filsofo sublinha que a filosofia nietzscheana, no sentido
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polmico, justamente uma denncia radical dessas idias18. Nesse sentido, o problema
estaria na maneira como a dialtica reflete a diferena. verdade que no se pode dizer
que a dialtica hegeliana no reflita sobre a diferena, mas a questo saber de que
maneira isso feito. Para Deleuze, a dialtica hegeliana reflete uma falsa imagem da
diferena, assume uma imagem invertida da diferena: acaba substituindo a afirmao
de si pela negao do outro19.
Na primeira parte deste ensaio, h uma tentativa de mostrar como Deleuze
se esfora por marcar uma distncia tica entre o modo como o pensamento trgico
avalia a existncia em detrimento da concepo dialtica. Enquanto, a vontade trgica se
coloca como uma tica afirmativa que afirma o acaso e a necessidade do acaso, o devir
e o ser do devir, o mltiplo e o um do mltiplo20, a dialtica se pe como uma vontade
que por essncia negativa, ou seja, que s consegue justificar a existncia negando-a.
Onde a existncia se mostra plena, a dialtica encontra contradio e sofrimento:
contradio entre sofrimento e vida, entre aquilo que h de finito e de infinito na vida,
entre o destino particular e o esprito universal da idia21. O que leva Deleuze a dizer
que o sujeito de toda dialtica se fundamenta numa conscincia infeliz, que a dialtica
sobre-valoriza as paixes tristes, que seu aspecto positivo depende do valor que ela
atribui ao sofrimento.
Mas, se a dialtica substitui a afirmao da diferena pela negao do que
difere, isso s tem sentido se tiver muito claramente que h foras que possuem um
interesse em faz-lo. Conforme Deleuze, a dialtica manifesta-se atravs das mais
variadas combinaes das foras reativas e do niilismo, sendo a histria e a sua
evoluo a expresso de tais combinaes, pois, se a oposio assume o lugar da
18Idem, ibidem.19
Idem, ibidem.20Idem, ibidem; p-30.21Idem, ibidem; p-09.
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diferena em funo do triunfo das foras reativas, isto , que descobrem na vontade de
nada um princpio sem o qual elas dificilmente sobreviveriam. assim que o niilismo
termina por adquirir uma dimenso universal, dessa forma que ele se fortalece.
Dificilmente, entende-se a completude dessas idias sem um mergulho na
exposio que Deleuze faz sobre a relao existente entre as foras ou sem a apreenso
do envolvimento com a vontade de poder e seus aspectos com o eterno retorno. Isso
ser o objetivo da segunda parte deste ensaio intitulada Tipologia das Foras, Vontade
de Poder, Eterno Retorno. Assim, observar como Deleuze define as noes de corpo e
conscincia do ponto de vista nietzscheano, ou seja, a partir do campo de foras e como
ele descobre no prprio corpo a existncia de uma hierarquia que atinge essas noes.
As foras no se definem apenas quantitativamente, mas qualitativamente.
Deleuze dir que necessrio compreender as foras a partir de dois pontos: da
diferena de quantidade e da qualidade. A tenso existente entre as foras depende
totalmente dessas categorias. O que define a essncia de uma fora sua relao com
outras foras e a distncia apresenta-se como o elemento diferencial compreendido em
cada fora e pelo qual cada uma se relaciona com as outras. Isto quer dizer que a
questo da diferena de uma tenso que envolve as foras de extrema importncia para
a apresentao deleuzeana de Nietzsche. Sem isso, no h como saber quem domina ou
obedece em tal relao ou quais as foras que so ativas ou reativas, aspectos que so
imprescindveis para a compreenso da hierarquia.
Nesse ponto, Deleuze se depara com um problema grave que diz respeito
ao dilogo vivido por Nietzsche com a cincia. Deve-se observar at que ponto
Nietzsche mantm-se complacente com a cincia de sua poca, at que ponto se d suas
censuras e o porqu. O problema da diferena existente entre as foras possui um
destaque importante em toda essa discusso que nos leva necessariamente idia do
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eterno retorno. At que ponto se pode acreditar na existncia de estados de equilbrio no
universo? Ser que h estados de conservao de energia? Haveria algum objetivo ou
estado final prescrito no prprio devir?
preciso sublinhar que Deleuze apresenta dois momentos do eterno
retorno: um que se mostra do ponto de vista cosmolgico e um outro, tico. H quem
minimize a idia do eterno retorno como leitura cosmolgica por acreditar que
Nietzsche valorizasse mais a questo tica. Chegam at a dizer que o eterno retorno,
enquanto aspecto cosmolgico, no passaria de uma metfora, o que parece
inadmissvel para Deleuze. Lembre que Deleuze no mede esforos para definir o
pensamento trgico nietzscheano como afirmativo, pois o trgico o poder de afirmar o
acaso e a necessidade do acaso, o devir e o ser do devir, o mltiplo e o um do mltiplo.
Do mesmo modo, mostra que Nietzsche credita uma grande importncia ao eterno
retorno como pensamento cosmolgico, pois esse pressupe um ser universal afirmado
do devir, assim como o um afirmado do mltiplo e a necessidade afirmada do acaso.
Outro ponto polmico na interpretao deleuzeana de Nietzsche refere-se
ao sentido atribudo vontade de poder, porque faz da vontade de poder o elemento
genealgico das foras, ou seja, diferencial e gentico. A vontade de poder
responsvel pela diferena de quantidade que envolve as foras, mas tambm pelas
qualidades. Nota-se que a vontade de poder indissocivel no s das foras, como dos
dois aspectos do eterno retorno.
Para Deleuze, a dialtica expressa as mais variadas combinaes entre as
foras reativas e o niilismo, sendo a histria e a evoluo a expresso de tais
combinaes. Sem a vontade de nada, as foras reativas dificilmente sobreviveriam.
Ser que o homem est condenado a experimentar ou conhecer somente um devir que
seja reativo? Este filsofo acredita que talvez haja uma sada para essa questo. Nesse
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sentido, preciso observar as consideraes feitas por ele sobre o eterno retorno e a
transmutao ou transvalorao dos valores, pois parece esboar alguma resposta ao
desdobrar esses pontos.
Segundo Deleuze, uma das maiores contribuies de Nietzsche foi ter
sabido isolar o ressentimento e a m conscincia. Para ele, se a filosofia nietzscheana
tivesse s esse aspecto j seria da maior importncia22e afirma que o sentido agressivo
e polmico da obra do autor alemo est ligado a uma instncia ativa e afirmativa. Para
Deleuze, a dialtica resultara da Crtica Kantiana que do ponto de vista deleuzeano
falsa23, porque a verdadeira crtica pressupe uma filosofia que seja capaz de reter do
negativo apenas um modo ser.
Nietzsche dirigia as mais duras crticas aos dialticos por eles serem
incapazes de ultrapassar os sintomas, por no atingirem as foras ou a vontade que do a
esses ao sentido e ao valor. Enquanto, os dialticos perdiam o seu tempo prendendo-se
pergunta O que ? - mtodo que para Deleuze , por excelncia, contraditrio,
Nietzsche inventava o seu prprio mtodo: dramtico, tipolgico, diferencial. De modo
que a filosofia se tornava a arte de interpretar e avaliar. Nietzsche substitui a pergunta O
que ?pela pergunta Quem? ou O qu?, sendo que Quem? ser sempre Dionsio, O
qu?ser a vontade de poder como princpio plstico e genealgico.24
Na terceira parte deste ensaio, Crtica e Nova Imagem do Pensamento, ser
apresentado como Deleuze descobre um projeto crtico a partir da obra de Nietzsche que
se mostra como uma alternativa crtica kantiana. Para Deleuze, Kant no foi capaz de
levar a bom termo uma filosofia de natureza crtica, sendo Nietzsche o grande
responsvel por isso. medida que a verdadeira crtica desenvolvida, esboa-se uma
22
Idem, ibidem; concluso.23Idem, ibidem.24Idem, ibidem.
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nova imagem do pensamento. Como isso se d, quais as conseqncias gerais de todo
esse processo, descobrir-se- durante a anlise. Observar ainda como Deleuze, visando
a apresentar o mtodo nietzscheano, recorre a antigidade clssica e descobre que a
sofstica j possua um mtodo de natureza empirista ou pluralista to eficiente quanto o
mtodo dialtico-socrtico.
Todos aqueles que esto impregnados de platonismo at o ltimo fio de
cabelo, foram educados de modo a tratar os sofistas como se fossem perfeitos idiotas,
tolos ou corruptos. Mas, talvez, tenha que reavaliar todas as consideraes acerca deles,
pois a imagem que muitos foram forados a assumir desses verdadeiros mestres, no vai
alm da caricatura produzida por um outro mestre: Plato. Foi Nietzsche quem parece
ter percebido isso muito antes de todos. A rivalidade que acompanha as discusses entre
a sofistica, Scrates e Plato, no deixa de possuir relaes com a maneira como
Deleuze volta Nietzsche contra os dialticos de um modo geral.
Outro ponto importante que no se entender absolutamente nada do
mtodo de dramatizao nietzscheano, se no se levar em considerao o papel da
vontade. Para Deleuze, a vontade no um ato qualquer. A vontade praticamente possui
um carter metodolgico, pois no h uma ao, um sentimento, um pensamento que
no se mantenha entrelaado com um elemento gentico e crtico. A vontade
precisamente esse elemento. Assim, preciso livr-la de todos os contra-sensos
possveis e imaginveis, isso que Deleuze faz. Alm disso, ele mostra que o sentido
atribudo por Nietzsche vontade de poder possui dois princpios que o distancia seja
de pseudo-discpulos, seja de pseudo-mestres: querer = criar, vontade = alegria.
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PARTE I: FILOSOFIA E GENEALOGIA
PENSAMENTO TRGICO
a) Sentido e Valor:
Qual o projeto mais geral de Nietzsche? Segundo Deleuze, a partir de
Nietzsche, os temas do sentido e do valor so inseridos na filosofia. Alm disso, o
filsofo adquire uma outra imagem: o filsofo o genealogista. Com a introduo na
filosofia dos temas do sentido e do valor, o filsofo no pde simplesmente se satisfazer
em subtrair os valores crtica contentando-se em inventariar valores j existentes ou
em criticar as coisas em nome de valores estabelecidos: os operrios da filosofia, Kant,
Schopenhauer 25e Hegel, menos ainda, em fundamentar a crtica, tornando-a submissa
a ordem dos fatos objetivos, caso dos utilitaristas, dos eruditos. Em ambos, a filosofia
mantm-se totalmente indiferente quilo que pode perder de vista, o que lhe mais
essencial.
Segundo Deleuze, Nietzsche sempre manteve presente em sua obra a idia
de que a filosofia do sentido e do valor deveria ser uma crtica. No foi Kant o autor
que se props fazer a crtica? No foi ele quem se esforou para construir um terreno
slido capaz de fundament-la? Porm, Kant no soube levar a crtica at as ltimas
conseqncias, uma vez que no colocou os problemas em termos de valores. Nietzsche
responsvel pelo feito, pois a filosofia dos valores tal como ele a instaura e a
concebe, a verdadeira realizao da crtica, a nica maneira de realizar a crtica total,
25Deleuze,Nietzsche e a filosofia; p-02.
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isto , de fazer a filosofia a marteladas 26. Da noo de valor, segue necessariamente
uma inverso crtica, sem a qual todo o projeto se perderia.
Para Deleuze, medida que os valores surgem, constituem-se como
princpios. O ato de avaliar supe um conjunto de valores capazes de apreciar os
fenmenos. Contudo, mais profundamente, os prprios valores j supem avaliaes e
pontos de vista, dir Deleuze: pontos de vista de apreciao dos quais deriva seu
prprio valor.27Conceber a crtica ter em vista que o problema crtico pressupe o
valor dos valores, ou seja, que avaliar necessariamente criar: a avaliao se definindo
como o elemento diferencial dos valores correspondentes ao mesmo tempo crtico e
criador.28 As prprias avaliaes, medida que se relacionam com os valores, so
irredutveis aos mesmos e, no sendo valores propriamente falando, so maneiras de
ser: modos segundo os quais julga-se algo, que servem como princpios originais dos
prprios valores. Logo,
(...) temos sempre as crenas, os sentimentos, os pensamentos quemerecemos em funo de nossa maneira de ser ou de nosso estilo de vida.H coisas que s se pode dizer, sentir ou conceber, valores nos quais s sepode crer com a condio de avaliar baixamente, de viver e pensarbaixamente. Eis o essencial: o alto e o baixo, o nobre e o vil no so valores,mas representam o elemento diferencial do qual deriva o valor dos prpriosvalores.29
Dizer que o alto ou o baixo, o nobre ou o vil no so valores, mas o
elemento diferencial do qual deriva o valor dos prprios valores, colocar de frente ao
tema da genealogia. Nietzsche cria a genealogia e, assim, d uma outra imagem
filosofia. Genealogia significa valor da origem e origem dos valores ao mesmo tempo.
A partir desta, so soterrados o carter absoluto, tanto quanto o carter relativo ou
26Idem, ibidem; p-01.27
Idem, ibidem.28Idem, ibidem.29Idem, ibidem; p-02.
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utilitrio dos valores. A genealogia aparece como o elemento diferencial dos valores
das quais estes caracteres decorre. Trata-se da origem, do nascimento, mas a partir da
diferena ou distncia na origem. 30 O filsofo o genealogista, no um juiz de
tribunal maneira de Kant, nem um mecnico maneira utilitarista. 31 Assim, a
avaliao no passa mais pelo princpio da universalidade kantiana, menos ainda pelo
princpio da semelhana dos utilitaristas, mas pela nobreza ou baixeza, nobreza ou
vilania, nobreza ou decadncia na prpria origem. 32
Como conceber que a crtica possa ser baixa, vil ou decadente? Esses so
apenas os caracteres como a metafsica at ento concebeu a crtica. Quem pensa
baixamente so os adversrios de Nietzsche. Segundo Deleuze, h um aspecto positivo
que envolve a crtica nietzscheana, pois o elemento diferencial da crtica do valor dos
valores o elemento positivo criador.33 Para Nietzsche, a crtica no expresso de
uma reao, mas sim fonte de uma ao, de um ataque, uma agresso, no de uma
vingana ou rancor.
Esta maneira de ser a do filsofo porque ele se prope precisamente amanejar o elemento diferencial como crtico e criador, portanto, como ummartelo. Eles pensam baixamente, diz Nietzsche sobre seus adversrios.Nietzsche espera muitas coisas dessa concepo de genealogia: uma novaorganizao das cincias, uma nova organizao da filosofia, umadeterminao dos valores do futuro.34
Criticar necessariamente avaliar, ao mesmo tempo em que avaliar
necessariamente criar. O filsofo criador e a arte da filosofia a de pesar os valores.
Ao dizer que a fora da filosofia encontra-se na arte de pesar os valores, encontra-se
outro tema considerado por Deleuze indispensvel para a compreenso do pensamento
30Idem,ibidem.31Idem, ibidem.32
Idem,ibidem.33Idem, ibidem.34Idem,ibidem.
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de Nietzsche: o da interpretao ou do sentido. Segundo ele, encontrar o sentido de
alguma coisa encontrar a fora que naquele momento foi capaz de se apropriar,
apoderar, ou explor-la. Um fenmeno no simplesmente uma aparncia ou mesmo
uma apario, mas sim a expresso de um signo, um sintoma que encontra seu sentido
numa fora atual qualquer.35 possvel reconhecer contra quem Nietzsche dirige sua
posio: contra a dualidade metafsica da aparncia e da essncia, contra a relao
cientfica da causa e do efeito.
A filosofia inteira uma sintomatologia, uma semiologia. As cincias so umsistema sintomatolgico e semiolgico. A dualidade metafsica da aparncia eda essncia e, tambm, a relao cientfica do efeito e da causa sosubstitudas por Nietzsche pela correlao entre fenmeno e sentido. Todafora apropriao, dominao, explorao de uma quantidade da realidade.36
Isso quer dizer que uma coisa, ao menos a histria dessa coisa, a sucesso
de foras capazes de se apropriar dela. H, portanto, um campo de foras coexistentes
que envolvem os fenmenos. Isso significa que um mesmo fenmeno, um mesmo
objeto, muda de sentido conforme a fora relacionada. Nesse sentido, observa Deleuze,
a histria precisamente a variao dos sentidos. Nietzsche dir: a sucesso dos
fenmenos de dominao mais ou menos violentos, mais ou menos independentes uns
dos outros. 37 Pode-se concluir que o sentido plural, que toda e qualquer coisa ou
fenmeno encontra-se ladeado de um campo de foras complexo. Tanto mais complexo
conforme a multiplicidade de sucesses ou variaes que os cerca, conforme a
coexistncia de foras ali presentes que faz da interpretao uma arte, toda
subjugao, toda dominao, equivale a uma interpretao nova. 38
35Idem, ibidem; p-03.36
Idem, ibidem.37Idem, ibidem.38Idem, ibidem.
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de uma coisa, aquele que lhe d a fora que apresenta mais afinidade comela.40
O tema da interpretao na filosofia mostra toda a sua complexidade,
principalmente quando se percebe que toda nova fora s aparece ou se apropria de um
objeto travestido ou disfarado das foras precedentes que j o ocupavam. 41 Uma
fora no sobreviveria se, inicialmente, no tomasse emprestada a aparncia das foras
precedentes contra as quais luta.42 o caso, por exemplo, do aparecimento do filsofo
e da prpria filosofia. O filsofo s pde nascer e crescer, almejando sobreviver,
mediante a aparncia contemplativa do sacerdote disfarada de homem asctico,
religioso que dominava o mundo antes de seu aparecimento. 43
A imagem ridcula que se tem da filosofia, a imagem do filsofo sbio amigoda sabedoria e da ascese, no o nico testemunho de que tal necessidadepesa sobre ns. Mais ainda, a prpria filosofia no se desfaz de sua mscaraasctica medida que cresce; deve acreditar nela de uma certa maneira, spode conquistar sua mscara dando-lhe um novo sentido no qual, finalmente,
exprimi-se a verdadeira natureza de sua fora anti-religiosa.44
Um outro aspecto deve juntar-se interpretao: interpretar romper as
mscaras. Desse modo, descobre-se quem se mascara e o porqu. Igualmente, descobre-
se o que querem aqueles que se contentam em conservar a mscara apenas
remodelando-a. Para conhecer a filosofia, preciso decifrar qual seria a sua essncia ou
a sua genealogia, para isso necessrio distingui-la de tudo aquilo que, inicialmente,
tinha interesse em confundir. necessrio aguardar que ela amadurea, que alcance
graus superiores. No que o problema no seja o da origem, mas porque a origem
40Idem, ibidem; p-04.41Idem, ibidem.42
Idem, ibidem.43Idem, ibidem.44Idem, ibidem.
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concebida como genealogia s pode ser determinada em relao com os graus
superiores.45
nesse sentido que Nietzsche diz que no se deve perguntar por aquilo que os
gregos devem ao Oriente, pois a filosofia grega, j que na Grcia que ela consegue
alcana uma forma superior, testemunhando uma fora e um objetivo que no se
confundem com o Oriente-sacerdote, ainda quando ela se utiliza a mesma. 46 preciso
marcar uma distncia que talvez seja intransponvel entre o filsofo, tal como ele
aparece na Grcia, do sbio oriental. Philosophos no significa sbio, mas amigo da
sabedoria. Os filsofos, diferentemente dos sbios, almejam a sabedoria, embora no a
possuam formalmente.
O amigo da sabedoria aquele que se vale da sabedoria, mas do modocomo algum se vale de uma mscara dentro da qual no se sobreviveria;aquele que faz a sabedoria servir a novos fins, estranhos e perigosos, muitopouco sbios na verdade. Ele quer que ela se supere e que seja superada. certo que o povo se engana sempre com isto; ele pressente a essncia dofilsofo, sua anti-sabedoria, seu imoralismo, sua concepo de amizade.Humildade, pobreza, castidade, adivinhemos o sentido que tomam essasvirtudes sbias e ascticas quando so retomadas pela filosofia como poruma fora nova.47
b) Vontade e Dialtica:
O filsofo crtico e criador e a filosofia, a arte de pesar os valores e de
decifrar os signos. Sendo dados um objeto, um pensamento, uma proposio, um
fenmeno, pergunta-se: quais so as foras que naquele momento exploram e dominam
e que possibilitam atualizar um sentido? Nesse aspecto, o prprio objeto expresso de
uma fora, um signo a ser decifrado. E por isso que h mais ou menos afinidade
45
Idem, ibidem.46Idem, ibidem.47Idem, ibidem.
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entre o objeto e a fora que dele se apodera.48Segundo Deleuze, toda fora encontra-se
numa relao essencial com uma outra fora; sendo o ser da fora plural, pois seria um
contra-senso pensar a fora no singular, uma fora nada mais sendo que dominao,
mas, ao mesmo tempo, objeto mediante o qual uma dominao se exerce. Eis o
princpio da filosofia de Nietzsche: uma pluralidade de foras agindo e sofrendo
distncia, onde a distncia o elemento diferencial compreendido em cada fora e pelo
qual cada uma se relaciona com as outras."49
A definio de fora em Nietzsche ser a de uma fora em relao com
uma outra fora. Assim, a fora deve ser designada como vontade, sendo o elemento
diferencial da fora. Para Deleuze, uma nova concepo da filosofia da vontade aparece
a partir desse pensar, pois a vontade passa a exerce-se sobre uma outra vontade. O
verdadeiro problema no est na relao do querer com o involuntrio e sim, na relao
de uma vontade que comanda com uma vontade que obedece, e que obedece mais ou
menos.50Algo de complexo exprimi-se na vontade, uma vez que enquanto ela quer,
quer obedincia, mas apenas uma vontade pode obedecer ao que a comanda. Que o ser
da fora possa ser dito como plural, que a vontade expresso da relao existente
entre foras, que a essncia da fora sua relao com outra fora, tudo isso nos coloca
frente a um dos temas mais importantes da filosofia de Nietzsche: a vontadedepoder
48
Idem, ibidem; p-05.49Idem, ibidem.50Idem, ibidem; p-06.
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5 . Alis, justamente aqui que Nietzsche rompe com Schopenhauer, pois se tratava de
conceber se a vontade seria una ou mltipla.
Se Schopenhauer levado a negar a vontade, primeiramente porqueacredita na unidade do querer. porque a vontade, segundo Schopenhauer, una em sua essncia, que compete ao carrasco compreender que ele formauma unidade com sua prpria vtima: a conscincia da identidade davontade em todas as suas manifestaes que leva a vontade a negar-se, asuprimir-se na piedade, na moral e no ascetismo. Nietzsche descobre o quelhe parece a mistificao propriamente schopenhaueriana: a vontade necessariamente negada quando se coloca sua unidade, sua identidade.52
A vontade depoder mltipla? Talvez, ainda seja cedo para responder
essa questo. Todavia, parece que no se pode dizer que ela seja una. Diga,
momentaneamente, que ela plstica, sendo sempre inseparvel de cada caso que
determina. A questo da vontade, como elemento diferencial, est ligada intimamente
com o sentido dado por Nietzsche genealogia: que toda fora se relacione com outra
seja para obedecer, seja para comandar, pe-nos a caminho da origem, pois toda origem
diferena na origem. Toda diferena na origem j hierarquia, ou seja, relao de
uma fora dominante com uma fora dominada, de uma vontade obedecida com uma
vontade obediente. A hierarquia como inseparvel da genealogia, eis o que Nietzsche
51 assim que Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias traduzem a expresso Wille zur Macht.Rubens Rodrigues Torres Filho, no volume Nietzsche - Obras Incompletas da coleo Os Pensadores, atraduz por Vontade de potncia. Paulo Csar de Souza, traduo deAlm do Bem e do Mal(Companhia
das letras), prefere traduzir como Vontade de poder. Oswaldo Giacoia Junior, na traduo do livro ADoutrina da Vontade de Poder em Nietzsche (Annablume ed.), do autor Wolfgang Mller-Lauter, dpreferncia ao termo Vontade de poder. Na nota de n. 2, na apresentao feita por Scarlett Marton,encontra a seguinte observao: Se traduzir Wille zur Macht por vontade de potncia pode induzir oleitor a alguns equvocos, como o de conferir ao termo potncia conotao aristotlica, traduzir aexpresso por vontade de poder corre o risco de lev-lo a outros, como o de tomar o vocbulo poderestritamente no sentido poltico (e, neste caso, contribuir - sem que seja essa a inteno - para reforareventualmente apropriaes indevidas do pensamento nietzscheano). Mesmo correndo o risco de fazer mfilologia, parece-nos ser possvel entender o termo Wille enquanto disposio, tendncia, impulso e ovocbulo Macht, associado ao verbo machen, como fazer, produzir, formar, efetuar, criar. Enquanto foraeficiente, a vontade de potncia fora plstica, criadora. o impulso de toda fora a efetivar-se e, comisso, criar novas configuraes em relao com as demais. Contudo, a principal razo, que nos leva amanter a escolha que fizemos, consiste em oferecer ao leitor, com as duas opes de traduo (vontade de
potncia e vontade de poder), a possibilidade de enriquecer sua compreenso dos sentidos que aconcepo Wille zur Macht abriga em Nietzsche.52Deleuze,Nietzsche e a filosofia; p-06.
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chama nosso problema.53Perguntar pelo sentido de alguma coisa, perguntar pelas
foras em relao, ao mesmo tempo que o valor de alguma coisa ou fenmeno
complexo j expresso de uma hierarquia das foras em presena.54
Um problema surge nesse momento pela maneira como foi apresentado o
campo de foras nietzscheano e o dualismo que acompanha a relao das foras nesse
campo, o campo de foras nietzscheano, parece acolher em seu interior um
procedimento dialtico. Seria Nietzsche dialtico?
Zaratustra ser seguido por seu macaco, por seu bufo, por seu demnio,do comeo ao fim do livro; mas o macaco se distingue de Zaratustra assimcomo a vingana e o ressentimento se distinguem da prpria crtica.Confundir-se com seu macaco o que Zaratustra sente como uma dashorrveis tentaes que lhe so armadas.55
Uma relao entre um e outro elemento no suficiente para constituir
uma dialtica. Para isso, necessrio descobrir como o elemento de negao mantm-se
na relao. Segundo Deleuze, o pluralismo, s vezes, tende a confundir-se com aspectos
dialticos, encontrando o seu inimigo, alis, seu principal e mais profundo inimigo.
Disseram que Nietzsche no conhecia bem Hegel. No sentido em que nose conhece bem o adversrio. Acreditamos, ao contrrio, que o movimentohegeliano, as diferentes correntes hegelianas, eram-lhe familiares; e, comoMarx, nele escolheu seus alvos. O conjunto da filosofia de Nietzschepermanece abstrata e pouco compreensvel se no se descobre contra quem
ela dirigida.Ora, a prpria pergunta contra quem? exige vrias respostas.Mas uma delas, particularmente importante, que o super-homem dirigidocontra a concepo dialtica do homem e a transvalorao contra a dialtica da apropriao ou da supresso da alienao.O anti-hegelianismo atravessaa obra de Nietzsche como o fio condutor da agressividade.56
53Idem, ibidem.54
Idem, ibidem.55Idem, ibidem; p-02.56Idem, ibidem; p-07.
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Dizer que uma fora se relaciona com outra, no afirmar que uma fora
tenha por essncia negar a outra. No campo de foras nietzscheano, o elemento que se
relaciona com as foras no possui por essncia a negao, mas a afirmao ou
diferenciao. preciso deixar claro que na relao com uma outra fora quem obedece
no nega a outra, ou tudo aquilo que ela no , mas afirma sua prpria diferena. 57
Deleuze insiste em mostrar que o elemento negativo no se encontra na essncia da
fora de modo a impulsiona - l, mas que toda agressividade crtica de uma fora ativa
resulta da, vale dizer, de uma negao, de uma destruio como sintoma de pura
afirmao. O negativo um produto da prpria existncia: a agressividade
necessariamente ligada a uma existncia ativa, a agressividade de uma afirmao.58
Para Deleuze, com a substituio do elemento especulativo da negao,
oposio e contradio, pelo elemento prtico e afirmativo da diferena, possvel
encontrar um empirismo propriamente nietzscheano. Quando Nietzsche se pergunta o
que umavontade quer?, o que quer este? eaquele?, no quer dizer que a vontade tenha
um objetivo, uma finalidade, mas que est apenas afirmando a sua diferena.
O que uma vontade quer afirmar sua diferena. Em sua relao essencialcom outra, uma vontade faz de sua diferena um objeto de afirmao.[...] Adiferena o objeto de uma afirmao prtica inseparvel da essncia econstitutiva da existncia. O sim de Nietzsche se ope ao no dialtico.[...]O sentimento emprico da diferena, em suma, a hierarquia o motoressencial do conceito, mais eficaz e mais profundo do que todo pensamentoda contradio. 59
E o que quer o dialtico, pergunta Deleuze. Qual o tipo de vontade
atuante na dialtica? Segundo Deleuze, a vontade dialtica expresso de uma fora
esgotada, fora incapaz de agir e afirmar sua prpria diferena. Trata-se de uma fora
57
Idem, ibidem.58Idem, ibidem.59Idem, ibidem; pp-07-08.
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que, de acordo com o seu poder, apenas reage s foras dominantes. Desse modo,
justifica-se o fato do elemento negativo manter-se em primeiro plano numa relao com
um outro. Ela quer negar e, ao fazer isso, faz da negao o elemento vital de sua
essncia ou o princpio de sua existncia.60Deleuze d o exemplo citando Nietzsche em
A Genealogia da moral61: Enquanto a moral aristocrtica nasce de uma triunfal
afirmao de si mesma, a moral dos escravos , desde o incio, um no ao que no faz
parte dela, ao que diferente dela, ao que seu no-eu; e o no seu ato criador. 6
A dialtica o instrumento especulativo do escravo, o seu modo de
pensar. O dialtico ope o pensamento abstrato da contradio, da reao, da vingana,
do ressentimento ao pensamento da ao, da diferena positiva, da agressividade crtica
do genealogista. Nietzsche mostra que a relao senhor/escravo no seria dialtica em si
mesma. Deleuze pergunta: quem dialetiza a relao? o escravo ou o pensamento
expresso pelo escravo, porque o poder concebido pela perspectiva escrava no a
vontade de poder, tal como concebe Nietzsche, mas, ao contrrio, a representao do
poder. O poder est servindo como o reconhecimento por um da superioridade do
outro.63 Conforme Deleuze, em Hegel ou em Kant, uma vontade apenas quer
reconhecer o poder, quer representar o poder.
Ora, segundo Nietzsche, a reside uma concepo totalmente errnea davontade de poder e de sua natureza. Tal concepo a do escravo, ela a
imagem que o homem do ressentimento faz do poder. o escravo que sconcebe o poder como objeto de uma recognio, matria de umarepresentao, o que est em causa numa competio e, portanto, o faz
60Idem, ibidem.61 Essa a verso que foi adotada pelos tradutores brasileiros de Nietzsche e a filosofia, EdmundoFernandes Dias e Ruth Joffily Dias, ao livro de Nietzsche. Numa traduo que se notabilizou pelo seurigor e que referncia para uma leitura atenta da obra de Nietzsche, a dos Pensadores, feita por RubensRodrigues Torres Filho, o ttulo aparece comoPara a Genealogia da Moral. Numa traduo recente, pelaCompanhia das Letras, feita por Paulo Csar de Souza, o ttulo mostra-se como Genealogia da Moral.Por questes que no valeria a pena mencionar, adotamos a traduo que aparece em Nietzsche e a
filosofia.62Nietzsche,AGenealogia da Moral; I, 10.63Deleuze,Nietzsche e a filosofia; pp-07-08.
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depender no fim do combate, de uma simples atribuio de valoresestabelecidos.64
Pode-se marcar melhor, tendo em vista o caminho at agora percorrido, adistncia de Nietzsche em relao aos seus adversrios ao que se refere concepo da
crtica. O filsofo, segundo Nietzsche, no se contenta em fazer a crtica sem ao mesmo
tempo criar novos valores: avaliar criar. A nica maneira de conduzir a crtica no
permitir que os valores, em curso, escapem a mesma. A crtica tem de ser total, deve
possuir a agressividade necessria, nada podendo escapar-lhe. Nesse sentido, a vontade
de poder, enquanto elemento diferencial das foras em relao, plstica e afirmativa.
A vontade de poder no tem por essncia a negao como elemento indispensvel para
a sua atividade. A negao, ao contrrio, aparece como a atividade crtica dada
filosofia e existncia do filsofo que, para avaliar, precisa criar; mas, para criar,
necessrio negar, destruir, agredir os valores vigentes. A negao, portanto, nada mais
que o sintoma de uma atividade mais profunda, da afirmao de um pensamento que
cria novos valores.
Alguns pensam baixamente, dir Nietzsche e Deleuze, pensador de
Nietzsche. O que exatamente Deleuze e Nietzsche querem dizer com isso? Que a crtica
engendrada por esses pensadores no foi levada s ltimas conseqncias. A crtica j
nasce abortada. A negao como essncia da vontade na forma da oposio, da reao,
da reconciliao, enquanto categorias, os ndices vitais do pensamento escravo e dos
filsofos operrios. Eles s reconhecem os valores em curso, eles s reagem aos valores
dominantes, colocando-os como algo insupervel. nesse sentido que Deleuze afirma
que esses filsofos apenas se contentaram em inventar valores existentes ou j
64Idem, ibidem.
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estabelecidos de uma vez por todas. Dessa forma, a filosofia perde aquilo que mais lhe
interessa, perde a plenitude de sua fora, perde de vista a equao: avaliar criar.
c) Nietzsche e o trgico:
Deleuze insiste que se deve evitar dialetizar o pensamento de Nietzsche,
mas foi visto que h uma linha extremamente perigosa que separa o pensamento de
Nietzsche de seu mais profundo inimigo: a dialtica. O campo de foras nietzscheano
trazia sobre si uma espcie de sombra dialtica. Nietzsche seguido do comeo ao fim
por seu inimigo e confundir-se com ele o que Nietzsche sente como uma das mais
terrveis tentaes. Mais uma vez, a sombra do inimigo se faz presente, dessa vez, ela
sobrevoa a concepo nietzscheana da tragdia. O comentador de Nietzsche deve
evitar principalmente dialetizar o pensamento nietzscheano sob qualquer pretexto.
Entretanto o pretexto claro: o da cultura trgica, do pensamento trgico, da filosofia
trgica que percorrem a obra de Nietzsche.65
Como Nietzsche entende o trgico? Segundo Deleuze, Nietzsche ope o
olhar trgico do mundo basicamente a duas vises: ao olhar dialtico e ao olhar cristo.
A tragdia morre, conforme Nietzsche, pelo menos de trs maneiras: primeiramente,
diante da dialtica socrtica, trata-se da morte euripideana; uma segunda vez, atravs do
cristianismo; e, finalmente, via conjugao dialtica moderna e atravs de Wagner em
pessoa66.
De que maneira a dialtica se apropria do trgico? H pelo menos trs
elementos indissociveis no modo como a tragdia tratada pela dialtica: a negao, a
oposio e a contradio. Contradio do sofrimento e da vida, do finito e do infinito
65Idem, ibidem; pp-08-09.66Idem, ibidem.
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na prpria vida, do destino particular e do esprito universal na idia: movimento da
contradio e tambm de sua soluo.67E o que mais surpreende, que todos estes
aspectos encontram-se distribudos na obra Origem da Tragdia.68Como explicar um
fenmeno desse tipo?
Deleuze nos revela que o texto Origem da Tragdia no essencialmente
dialtico, mas que possui uma inspirao schopenhaueriana, no entanto, parece que esse
dado no modifica muito o quadro. E a pergunta novamente aparece: Nietzsche
dialtico nesse trabalho? Entretanto, neste primeiro livro, o esquema que Nietzsche
nos prope, sob a influncia de Schopenhauer, s se distingue da dialtica pela maneira
a qual a so concebidas a contradio e sua soluo. Isto permite a Nietzsche, mais
tarde, dizer sobre a Origem da Tragdia: -Ela cheira a hegelianismo de uma maneira
bastante escabrosa. 69
Com efeito, parece haver uma distino entre o esquema nietzscheano e o
esquema dialtico de tratar a tragdia. Contudo, essa diferena parece ser de grau e no
de natureza. Deve tentar se acompanhar como isso se d, seguindo a exposio que
Deleuze faz sobre o esquema nietzscheano em Origem da Tragdia:
1. ) A contradio, na Origem da Tragdia, a da unidade primitiva e daindividuao, do querer e da aparncia, da vida e do sofrimento. Estacontradio originria testemunha contra a vida, coloca a vida em acusao,a vida precisa ser justificada, isto , redimida do sofrimento e da
contradio. A Origem da Tragdia se desenvolve sombra destascategorias dialticas crists: justificao, redeno, reconciliao. 2. ) Acontradio se reflete na oposio de Dionsio e de Apolo. Apolo diviniza oprincpio de individuao, constri a aparncia da aparncia, a belaaparncia, o sonho ou a imagem plstica e, assim, se liberta do sofrimento: -Apolo triunfa do sofrimento do indivduo pela glria radiosa com a qual eleenvolve a eternidade da aparncia, ele apaga a dor. Dionsio, ao contrrio,retorna unidade primitiva, destri o indivduo, arrasta-o no grande
67Idem, ibidem.68 Essa a verso que foi adotada pelos tradutores brasileiros de Nietzsche e a filosofia, EdmundoFernandes Dias e Ruth Joffily Dias, ao livro de Nietzsche. Na traduo de Rubens Rodrigues Torres
Filho, o ttulo aparece comoO Nascimento da Tragdia no Esprito da Msica. J a recente traduo dePaulo Csar de Souza, o ttulo mostra-se como O Nascimento da Tragdia ou Helenismo e Pessimismo.69Deleuze,Nietzsche e a filosofia; pp-08-09.
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naufrgio e absorve-o no ser original; assim ele reproduz a contradiocomo dor da individuao, mas resolve-as num prazer superior fazendo-nosparticipar da superabundncia do ser nico ou do querer universal. Dionsioe Apolo no se opem como os termos da contradio, mas antes como duasmaneiras antitticas de resolv-las: Apolo, mediatamente, na contemplaoda imagem plstica; Dionsio, imediatamente, na reproduo, no smbolo
musical da vontade. Dionsio como a tela sobrea qual Apolo borda a belaaparncia; mas, sob Apolo, Dionsio quem ruge. A prpria anttese precisaento ser resolvida, transformada em unidade. 3. ) A tragdia essareconciliao, esta aliana admirvel e precria dominada por Dionsio.Pois, na tragdia, Dionsio o fundo do trgico. O nico personagemtrgico Dionsio: deus sofredor e glorificado; o nico tema trgico so ossofrimentos de Dionsio, sofrimentos da individuao, mas reabsorvidos noprazer do ser original; e o nico espectador trgico o coro, porque ele dionisaco, porque v Dionsio como seu senhor e mestre. Mas, por outrolado, a contribuio apolnea consiste em que na tragdia, Apolo quedesdobra o trgico em drama, que exprime o trgico num drama. A tragdia o coro dionisaco que se distende projetando fora de si um mundo deimagens apolneas... No decorrer de vrias exploses sucessivas, o fundo
primitivo da tragdia produz, por irradiao, esta viso dramtica que essencialmente um sonho... O drama , portanto, a representao de noese de aes dionisacas, a objetivao de Dionsio sob uma forma e nummundo apolneos. 70
Atravs desse quadro esquemtico, apresentado por Deleuze, parece que
no h mais dvida. Nietzsche concebeu a Origem da Tragdiaatravessado pelo seu
mais profundo inimigo e, certamente, Schopenhauer no o grande responsvel porisso. Trata-se de uma obra que no s cheira a hegelianismo, mas que quase
hegeliana. Porm, concluir que Nietzsche em Origem da Tragdia eminentemente
dialtico pode ser excessivo. Alis, essa observao nem a mais fundamental.
Segundo Deleuze, quando Nietzsche se pergunta sobre a Origem da Tragdia descobre
nela inovaes bastante significativas para o conjunto de sua obra. Em primeiro lugar,
vislumbra o carter afirmativo de Dionsio que o deus para o qual a vida deve ser
afirmada e no negada. Em segundo lugar, Nietzsche descobre uma oposio que lhe
parece mais profunda que a oposio dialtica entre Dionsio e Apolo:
Pois desde a Origem da Tragdia a verdadeira oposio no a oposiobem dialtica entre Dionsio e Apolo e sim a oposio mais profunda entre
70Consideramos importante incluir no corpo do texto o quadro esquemtico de interpretao da OrigemdaTragdia, desenvolvido por Deleuze. Conf. Nietzsche e a filosofia; pp-09-10.
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Dionsio e Scrates. No Apolo que se ope ao trgico ou pelo qual otrgico morre, Scrates; e Scrates no mais apolneo do que dionisaco.Scrates definido por uma estranha inverso: Enquanto em todos oshomens produtivos o instinto uma fora afirmativa e criadora e aconscincia uma fora crtica e negativa, em Scrates, o instinto torna-secrtico e a conscincia criadora. Scrates o primeiro gnio da decadncia:
ele ope a idia vida, julga a vida pela idia, coloca a vida como devendoser julgada, justificada, redimida pela idia. O que ele nos pede quecheguemos a sentir que a vida, esmagada sob o peso donegativo, indignade ser desejada por si mesma, experimentada nela mesma: Scrates ohomem terico, o nico verdadeiro contrrio do homem trgico.71
Ser que Scrates a expresso plena do carter essencialmente negativo
da vida? Deleuze afirma que Scrates no s uma figura apolnea, mas tambm,
dionisaca que traz em si um carter extremamente ambguo. Para Nietzsche, essa
ambigidade deve dificultar ainda mais a seqncia de suas idias. Mas, por qu? que
Nietzsche pretende definir muito bem dois aspectos principais na Origem da Tragdia:
o carter afirmativoe o carter negativoda vida, seu verdadeiro sime seu verdadeiro
no. Era preciso, inicialmente, que o elemento afirmativo da existncia fosse destacado,
que se tornasse plenamente livre e liberado de toda subordinao ao negativo.72Nesse
sentido, embora Nietzsche encontre em Dionsio seu verdadeiro sim, Scrates no a
figura que lhe d expresso mxima negao da vida. Ser preciso enfim que a
verdadeira oposio mude, que ela no se contente com Scrates como heri tpico,
pois, Scrates muito grego, um pouco apolneo no incio, por sua clareza, um pouco
dionisaco no fim. Scrates estudando msica. Scrates no d negao da vida toda
sua fora; a negao da vida no encontra ainda nele sua essncia.73
Antes que Nietzsche encontre o seu verdadeiro opositor, uma
complementaridade misteriosa se d: trata-se de Dionsio-Ariana74. Pois uma mulher,
71Idem, ibidem; pp-11-12.72Idem, ibidem.73Idem, ibidem.74
H tradutores que preferem traduzir por Ariadne. o caso, por exemplo, de Paulo Csar de Souza.Esse tema da complementaridade entre Dionsio-Ariana, foi desenvolvido por Deleuze em seu artigo Mistrio de Ariadne segundo Nietzsche.
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uma noiva necessria quando se trata de afirmar a vida. 75 S em seguida, Nietzsche
encontra sua verdadeira oposio: o crucificado. Deleuze nota que Nietzsche em
Origem da Tragdia silenciava completamente sobre o cristianismo, pois este no
nem apolneo nem dionisaco. Segundo Nietzsche, o cristianismo a forma mais
profunda de niilismo e , ainda, reticente em relao aos valores estticos, o nico que a
Origem da Tragdiaera capaz de reconhecer. 76
Qual seria a atitude expressa pelo cristianismo frente a existncia a qual
Nietzsche ope a de Dionsio? Segundo Deleuze, seria possvel encontrar entre a figura
dionisaca e a figura crist, entre Dionsioe Cristo, um mesmo fenmeno, um mesmo
martrio, uma mesma paixo. Entretanto, haveria em cada uma delas uma atitude tica
em relao existncia que as colocaria em radical oposio. Conforme o cristianismo,
o fato de existir sofrimento no interior da vida significa, inicialmente, que uma injustia
original a envolve ou que uma contradio essencial a atravessa; que a existncia, desse
modo, seria essencialmente injusta e que pagaria com sofrimento essa injustia
essencial. A existncia deve ser culpada uma vez que sofre, mas ao mesmo tempo
plenamente justificada por este mesmo sofrimento: a vida sofre desde sempre, porque
desde sempre culpada, mas j que sofre, redime-se, pagando com sofrimento seu
dbito universal.77
Estes dois aspectos do cristianismo formam o que Nietzsche chama a mconscincia ou a interiorizao da dor. Eles definem o niilismopropriamente cristo, ou seja, a maneira pela qual o cristianismo nega avida: por um lado, a mquina de fabricar a culpa, a horrvel equao dor-castigo; por outro lado, a mquina de multiplicar a dor, a justificao pelador, a fbrica imunda.78
75Deleuze,Nietzsche e a filosofia; pp-11-12.76
Idem, ibidem.77Idem, ibidem; pp-12-13.78Idem, ibidem.
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Essa no era exatamente a funo de Dionsio e Apolo na Origem da
Tragdia? No foi visto que a Origem da Tragdia operava a partir de categorias
dialticas crists, vale lembrar, a vida tendo de serjustificada, redimidae reconciliada?
Nietzsche abandona essas categorias que so encontradas por ele em Dionsio o seu
verdadeiro significado: ele o deus para quem a vida no para ser justificada, para
quem a vida essencialmente justa. 79Com Dionsio, a prpria vida que se encarrega
de afirmar os mais duros sofrimentos.
Do ponto de vista de um salvador, a vida deve ser o caminho que leva santidade, do ponto de vista de Dionsio, a existncia parece bastante santapor si mesma para justificar ainda uma imensido de sofrimento. Alacerao dionisaca o smbolo imediato da afirmao; a cruz de Cristo, osinal da cruz, so a imagem da contradio e de sua resoluo, a vidasubmetida ao trabalho do negativo. Contradio desenvolvida, resoluo dacontradio, reconciliao dos contraditrios: todas essas noes setornaram estranhas a Nietzsche.80
A afirmao dionisaca, sendo o elemento diferencial, tem como
contrapartida a negao ou destruio de todas as formas do niilismo.
d) Sentido e Existncia:
A essncia do trgico a afirmao mltipla ou pluralista que a percorre.
Dionsio afirma absolutamente tudo o que aparece, embora haja um momento em que
Nietzsche se questiona se seria tudo passvel de tornar-se objeto de afirmao, isto ,
de alegria?81Lembre as angstias e as repulsas de Zaratustra a propsito do eterno
79
Idem, ibidem.80Idem, ibidem.81Idem, ibidem; pp-14-15.
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retorno.82A definio nitecheana do trgico no se daria numa angstia ou repulsa,
mas na alegria do mltiplo, alegria plural83e esta alegria no seria o produto de uma
sublimao ou de uma purgao, de uma compensao ou de uma resignao, menos
ainda de uma reconciliao. Segundo Deleuze, toda vez que recorre a tais categorias
para definir o que seria o trgico, afasta-se cada vez mais daquilo que lhe mais
essencial. Alis, Nietzsche denunciou todas as teorias sobre o trgico, mostrando que
elas deixavam escapar o mais fundamental, isto , a idia da tragdia como fenmeno
esttico. 84
Trgico designa a forma esttica da alegria, no uma frmula mdica, nemuma soluo moral da dor, medo ou da piedade. O que trgico a alegria.Mas isto quer dizer que a tragdia imediatamente alegre, que ela s suscitao medo e a piedade do espectador obtuso, ouvinte patolgico e moralizante,que conta com ela para assegurar o bom funcionamento de suas sublimaesmorais ou de suas purgaes mdicas.85
Nietzsche sonha com um teatro capaz de dar ao trgico uma lgica da
afirmao mltipla, portadora de uma alegria tica correspondente. O que ele quer
combater o aspecto dialtico e religioso que absorve a tragdia e que coloca o
pensamento trgico a servio das foras niilistas. Nesse sentido, Nietzsche forado a
abandonar o modelo dramtico que apresentava na Origem da Tragdia, pois o drama
ainda era sinnimo depathosdialtico cristo. 86
O trgico no est fundado numa relao entre o negativo e a vida, mas narelao essencial entre a alegria e o mltiplo, o positivo e o mltiplo, aafirmao e o mltiplo. O heri alegre, eis o que escapou at agora aosautores de tragdias. A tragdia, franca alegria dinmica.87
82Idem, ibidem.83Idem, ibidem.84Idem, ibidem.85
Idem, ibidem.86Idem, ibidem.87Idem, ibidem.
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O que se pode dizer da concepo dialtica da tragdia? Que a dialtica no
capaz de expressar, segundo Nietzsche, uma viso trgica do mundo. Atravs da
dialtica, a tragdia completamente sacrificada: inicialmente, com Scrates e sua
concepo terica do mundo e depois, atravs do cristianismo e da concepo dialtica
hegeliana. Diz cristianismo, mas poderia ter dito dialtica moderna, j que ambas se
complementam. A dialtica moderna a ideologia propriamente crist.88 Ela quer
justificar a vida negando-a.
Entre a ideologia crist e o pensamento trgico, h um problema comum que
passa pelo modo como cada uma contempla a existncia: A existncia tem um
sentido?. Segundo Deleuze, essa seria uma das questes mais importantes da filosofia
nietzscheana. Questo de natureza emprica ou experimental, que exige do filsofo e da
filosofia uma interpretao e uma avaliao. 89Bem compreendida, ela significa: Que
a justia? e pode se dizer sem exagero que toda a obra nietzscheana o esforo para
bem compreend-la. Existem maneiras ruins de compreender a questo. 90
Com Hegel, a existncia interpretada e avaliada a partir de uma conscincia
infeliz. J Schopenhauer, coloca o problema de maneira extraordinria, sendo ele,
segundo Nietzsche, o primeiro ateu convicto que se teve na Alemanha. Para
Schopenhauer, o fato de a vida no possuir absolutamente nada de divino um
pressuposto, estando assim eliminada a possibilidade de uma avaliao e interpretao
da existncia em termos puramente cristos91. Conforme Nietzsche:
Desde que rejeitamos assim a interpretao crist, vemos erguer-se diantede ns, terrivelmente, a pergunta de Schopenhauer: a existncia tem entoum sentido? Esta pergunta que requerer sculos antes de poder ser
88Idem, ibidem.89
Idem, ibidem.90Idem, ibidem.91Idem, ibidem.
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simplesmente compreendida de modo exaustivo nas dobras de suasprofundezas. 92
Schopenhauer, no entanto, fez do sofrimento uma maneira de negar aexistncia, ao mesmo tempo, que transformou o sofrimento em algo que a justificasse.
Haveria uma outra maneira de avaliar a questo pela qual a existncia justificaria tudo,
inclusive o sofrimento, sem que a prpria existncia fosse justificada pelo mesmo?93
Para desenvolver essa questo, necessrio recuar no tempo, j que o
problema do sentido da existncia de origem pr-crist. Retornar aos gregos, uma vez
que eles tambm se depararam com o problema. Com os gregos, ocorre um fenmeno
parecido com o que se tem tratado at o momento. A existncia justificada pelo
sofrimento, ao mesmo tempo em que divinizada. A existncia era avaliada e
interpretada como hybrise crime. Do sofrimento, os gregos retiram a premissa de que a
existncia injusta, mas, uma vez que h sofrimento, que atravs deste que a
existncia se torna plenamente justificada pelos deuses.
(Ela culpada visto que sofre; mas porque sofre, ela expia e redimida.) Aexistncia como desmedida, a existncia como hybris e como crime, esta amaneira como j os gregos a interpretavam e avaliavam. A imagem titnica(a necessidade do crime se impe ao indivduo titnico) , historicamente,o primeiro sentido que se atribui existncia.94
Mais uma vez a existncia julgada e a moral serve de juzo como avaliao
e interpretao da existncia. Novamente, a existncia depreciada e curada pelo
sagrado. Segundo Deleuze, Nietzsche descobre em Anaximandro a figura que melhor
92Nietzsche,A Gaia Cincia; 5, 357.93 Qual ento a outra maneira de compreender a pergunta, maneira realmente trgica na qual a
existncia justifica tudo o que afirma, inclusive o sofrimento, em lugar de ela prpria ser justificada pelosofrimento, isto santificada e divinizada? Conf. Nietzsche e a filosofia; p-16.94Idem, ibidem; pp-16-17.
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deu expresso a essa concepo da existncia. 95De acordo com Anaximandro, Os
seres pagam uns aos outros a pena e a reparao de sua injustia, segundo a ordem do
tempo.96Para Deleuze, isso quer dizer:
1.) que o devir uma injustia (adikia) e a pluralidade das coisas que vm existncia uma soma de injustias;2.) que elas lutam entre si e expiam mutuamente sua injustia pela
(phtora);3.) que todas elas derivam de um ser original (Apeiron) que cai num devir,
numa pluralidade, numa gerao de culpados, cuja injustia ele redimeeternamente destruindo-os (Teodicia).97
Deleuze diz que Anaximandro est para a antigidade assim como
Schopenhauer est para a modernidade e questiona o que, exatamente, nesses autores
despertaria tanto a ateno de Nietzsche. A resposta estaria na diferena de ambos em
relao ao cristianismo. Schopenhauer e Anaximandro apreendem a existncia como
um crime, tornam a existncia culpada, mas, ainda assim, no encontram nela algo de
faltoso ou responsvel.98
Os tits ainda no conhecem a incrvel inveno semtica ecrist, a m conscincia, a falta e a responsabilidade.99 Os gregos em relao ao
cristianismo so simplesmente crianas. verdade que eles tambm so depreciadores
da existncia, logo niilistas. Mas seu niilismo ainda no possui o requinte, o
refinamento, encontrados no cristianismo. certo que eles julgam a existncia culpada,
contemplam a existncia como criminosae hybrica, mas no como responsvel. 100
95Idem, ibidem.96A verso que foi dada para essa sentena por Rubens Rodrigues Torres Filho, em Pr-Socrticos, ed. OsPensadores, : De onde as coisas tm seu nascimento, ali tambm devem ir ao fundo, segundo anecessidade; pois tm de pagar penitncia e de ser julgadas por suas injustias, conforme a ordem dotempo. Nietzsche,A filosofia na poca trgica dos gregos; IV.97Deleuze,Nietzsche e a filosofia; pp-16-17.98
Idem, ibidem.99Idem, ibidem.100Idem, ibidem.
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Quando os gregos falam da existncia como criminosa e hybrica, pensamque os deuses tornaram os homens loucos; a existncia culpada, mas soos deuses que assumem a responsabilidade da falta. Esta a grandediferena entre a interpretao grega do crime e a interpretao crist dopecado. Esta a razo pelo qual, na Origem da Tragdia, Nietzsche crainda no carter criminoso da existncia, visto que este crime, pelo menos,
no implica a responsabilidade do criminoso.101
Deleuze observa que, embora haja uma grande diferena entre a forma
niilista grega e a forma niilista crist, essa insuficiente para evitar equvocos, at
porque essa diferena pode diminuir, conforme a reflexo que se faa. necessrio,
portanto, que a questo seja redefinida. O mais importante no descobrir se a
existncia, j culpada de antemo, responsvel ou faltosa, mas, sobretudo, se ela
culpada ou inocente. 102 O problema ser ento procurar descobrir se possvel
contemplar a existncia e o devir que a percorre como inocentes.
Nesse sentido, Nietzsche, atravs de seu pensamento, sempre procurou
denunciar a necessidade que se tem em depreciar a existncia. A depreciao, segundo
ele, a maneira de interpretar e avaliar a existncia. Dessa forma, perde-se,
completamente, a inocncia e o jogo caractersticos da existncia, desse modo, tornam-
se maus jogadores. Para Deleuze, Nietzsche reconhece em Herclito o nico que foi
capaz de apreender a existncia como inocente e justa. Com Herclito, a existncia
interpretada e avaliada a partir de um instinto de jogo primordial ou como fenmeno
esttico. nesse sentido que Nietzsche ope Herclito a Anaximandro, como o prprio
Nietzsche se ope a Schopenhauer. 103
Herclito o primeiro trgico. O problema da justia atravessa sua obra.Herclito aquele para quem a vida radicalmente inocente e justa.Compreende a existncia a partir de um instinto de jogo, faz da existnciaum fenmeno esttico, no um fenmeno moral ou religioso.104
101Idem, ibidem.102
Idem, ibidem.103Idem, ibidem; pp-19-20.104Idem, ibidem.
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Com Herclito, a dualidade dos mundos soterrada ao mesmo tempo que
o ser negado. Ele faz do devir pura afirmao. Isso significa fazer do devir uma
afirmao? Primeiramente, que s h o devir, mas, em seguida, que o devir afirma-se
no ser: o devir e o ser so afirmados num s golpe. Grande parte dos pensadores da
antigidade clssica esforaram-se excessivamente para demonstrar que o ser se opunha
ao devir. Eles queriam dizer que se tudo o que se encontra em devir no pode ser, ento
o ser no pode estar em devir: o ser estaria fora do devir. Nesse sentido, o ser ser
sempre do alto, do alm do mltiplo e do devir, mas jamais do prprio devir. Com o
pensamento de Herclito, um outro sentido dado ao ser. O pensamento heraclitiano
possui dois aspectos que so essenciais para a compreenso do conjunto de suas
reflexes. Segundo Herclito, o ser no , estando tudo em devir; por outro lado, o que
est em devir o prprio ser. O ser seu perptuo devir.
Um pensamento trabalhador que afirma o devir, um pensamento
contemplativo que afirma o ser do devir. Estes dois pensamentos no soseparveis, so o pensamento de um mesmo elemento, como fogo e comoDike, como Phisis e Logos. Pois no h o ser alm do devir, no h o umalm do mltiplo; nem o mltiplo, nem o devir so aparncias ouiluses.[...] O mltiplo a manifestao inseparvel, a metamorfoseessencial, o sintoma constante do nico. O mltiplo a afirmao do um, odevir a afirmao do ser. A afirmao do devir , ela prpria, o ser; aafirmao do mltiplo , ela prpria, o um; a afirmao mltipla a maneirapela qual o um se afirma. O um o mltiplo. 105
Do ponto de vista de Herclito, o um afirma-se tanto na destruio como
na gerao. Ele contemplou a existncia nada encontrando nela que significasse castigo,
expiao ou culpa. No h castigo na multiplicidade, expiao no devir, nem existncia
culpada, mas o ser e seu processo de justificao. Deleuze diz que a inseparabilidade do
mltiplo e do um, do devir e do ser, constituem um jogo, precisamente, os dois tempos
de um jogo que se completa com um terceiro termo, ou seja, com o jogador, o artista ou
105Idem, ibidem.
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a criana. 106Isto quer dizer que ora o jogador renuncia provisoriamente vida, ora fixa
seu olhar nela; que ora o artista coloca-se inteiro na obra, ora acima dela; que ora a
criana joga, ora o renuncia, para em seguida retornar a ele. Trata-se de Ain, o ser do
devir jogando o jogo do devir consigo mesmo. 107
O ser do devir, o eterno retorno, o segundo tempo do jogo, mas tambm oterceiro termo idntico aos dois tempos e que vale para o conjunto. Istoporque o eterno retorno o retorno distinto do ir, a contemplao distinta daao, mas tambm o retorno do prprio ir e o retorno da ao,simultaneamente momento e ciclo do tempo.108
Compreende-se em que sentido Herclito contempla a existncia como
fenmeno esttico. Ele o filsofo que fala de um instinto de jogo que atravessa a
existncia, sentido esse bastante oposto concepo moral e religiosa da hybris, que era
flagrante na maior parte de seus contemporneos. A uma teodicia, ele ope uma
cosmodicia; a uma soma de injustias que se expiam, ele ope a justia enquanto lei
do mundo; hybris, o jogo, a inocncia. 109
e) Acaso e Necessidade - caos e ciclo:
Atravs do pensamento heraclitiano, descobre-se entre os gregos um modo
de conceber a existncia sem depreci-la. Com Herclito, a existncia se mostra
inocente, possuidora de um instinto de jogo primordial ou como fenmeno esttico. O
devir afirma o ser, ao mesmo tempo em que o ser se afirma no devir. O mltiplo afirma
106Idem, ibidem.107Idem, ibidem.108Idem, ibidem.109
Herclito o obscuro porque nos conduz s portas do obscuro: qual o ser do devir? Qual o serinseparvel do que est em devir? Tornar a vir o ser do que devm. Tornar a vir o ser do prprio devir.O eterno retorno como lei do devir, como justia e como ser. Conf.Nietzsche e a filosofia; p-20.
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o um, ao mesmo tempo em que o um se afirma no mltiplo. E esses dois tempos que
compem um jogo completam-se com um terceiro termo, o jogador, o artista ou a
criana. o ser do devir, o um mltiplo, jogando consigo mesmo: Ain.
Esse tema da existncia como fenmeno esttico permitiu a apresentao
de outros dois de igual importncia a Nietzsche: as relaes entre acaso e necessidade-
caos e ciclo. preciso esfarelar o universo, perder o respeito pelo todo. A inocncia
a verdade do mltiplo. Ela decorre imediatamente dos princpios da filosofia da fora
e da vontade. 110
Para Deleuze, h dois momentos que aparecem no jogo, como um lance de
dados: em primeiro lugar, quando os dados so lanados; em segundo lugar, quando os
dados caem. Nietzsche, ao apresentar o lance de dados, apresenta-o como sendo jogado
diante de duas mesas distintas - a terra e o cu. A terra onde se lanam os dados, o cu
onde caem os dados. 111Pensar-se-ia, tendo em vista os dois momentos que cercam o
jogo, que as duas mesas seriam como que dois mundos distintos: de um lado, o mundo
do devir, de pura aparncia e iluso; de outro, o mundo do ser ou das verdades
universais. Ser e devir numa relao de oposio ou de negao. Mas, no assim que
Nietzsche posiciona-se diante do tema. Deleuze lembra que esses dois momentos no
so os de dois mundos distintos, mas s duas horas de um mesmo mundo, os dois
momentos do mesmo mundo, meia-noite e meio-dia, a hora em que se lanam os dados,
a hora em que caem os dados. Nietzsche insiste nas duas mesas da vida que so tambm
os dois tempos do jogador ou do artista. 112Deleuze est preparado para dizer que da
mesma maneira que o devir afirma o ser e o ser se afirma no devir, a necessidade se
afirma com o acaso ao mesmo tempo que o acaso se afirma com a necessidade. Porm,
110
Idem, ibidem; pp-18-19.111Idem, ibidem; pp-21-22.112Idem, ibidem.
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importante acompanhar como Deleuze apresenta a correlao de temas que
aparentemente se mostram to distantes, para em seguida ver como Deleuze, intrprete
de Nietzsche, faz do par acaso-necessidade uma crtica ao par causalidade-finalidade.
O ponto de partida de Deleuze o seguinte: num lance de dados, no
ocorrem vrios lanamentos ou tentativas (atravs de um nmero crescente ou
decrescente de jogadas), para que a mesma combinao se reproduz (a combinao
mxima enquanto doze), permitindo ao jogador a repetio da jogada. Em vez disso, h
um nico lance de dados, que de acordo com o nmero ou combinao produzida,
permite ao jogador a repetio da jogada. Dessa f