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PIETRO COSTA
SOBERANIA, REPRESENTAO, DEMOCRACIA
Ensaios da histria do pensamento jurdico
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NDICE
I Histria do direito e histria dos do conceitos
Histria do direito:imagens comparadas
1. A dimenso hermenutica da historiografia
2. A histria do direito: a unidade do objeto e a continuidade da tradio
3. A histria e as histrias: uma proposta "anrquica"
Em Busca de Textos Jurdicos: quais textos para cada historiador?
1. As pressuposies hermenuticas do historiador
2. A tenso essencial da historiografia: a 'alteridade' do passado e o horizonte do presente
3. Formulando a metalinguagem do historiador
4. Histria das ou histria atravs das palavras? Um estudo de caso
5. Algumas observaes conclusivas
Pra que serve a histria do direito? Um humilde elogio da inutilidade
1. O 'tempo' do historiador e o 'tempo' do jurista
2. Pra que serve a histria do direito? A resposta neopandectstica 3. A histria como linha: a utilidade da historiografia
4. A histria como labirinto: a inutilidade da historiografia
II Soberania
O Estado
1. Observaes introdutrias: o 'tempo histrico' do Estado
2. A soberania 'absoluta'
3. O desdobramento da ordem: a distino entre Estado e sociedade
4. A recomposio da liberdade: entre representao e democracia
5. O fundamento de legitimidade: nao, povo, poder constituinte
6. Os fins do Estado e os direitos dos sujeitos
7. Os limites da soberania: o Estado de direito
8. Do Estado totalitrio ordem jurdica europia
A soberania na cultura poltico-jurdica medieval: imagens e teorias
1. Existe uma 'soberania medieval'? Algumas consideraes metodolgicas
2. Soberania e realeza: algumas metforas recorrentes
3. A iurisdictio plenssima do imperador e a representao da ordem
4. O um e os muitos: o princeps e as cidades
5. Plenitudo potestatis e iurisdictio plenissima: o confronto das soberanias
6. A soberania medieval entre poder e direito
No alto e no centro: imagens da ordem e da soberania entre medievo e modernidade
1. Menes introdutrias
2. O alto e o baixo: a imagem medieval da verticalidade
3. De alto a baixo: modelos monsticos na idade moderna
4. De baixo at o alto (e vice-versa): modelos dualsticos na idade moderna
5. No alto e no centro: a realidade da ordem 6. O exaurimento das metforas: a crise da representao moderna da soberania
III Representao
O problema da representao poltica: uma perspectiva histrica
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1. Os dilemas da representao
2. A representao medieval
3. A soberania 'representativa': Hobbes
4. A representao parlamentar: entre Burke e Sieys
5. A representao 'contra' a democracia
6. A representao como democracia
7. A democracia 'contra' a representao
8. A representao 'sem' democracia
9. A representao e os interesses
10. A representao e o partido
11. A representao 'totalitria'
12. Do segundo ps-guerra hoje: em direo crise da representao?
IV Democracia
Democracia
1. Notas introdutrias
2. A democracia dos antigos: uma trilha interrompida?
3. A democracia dos modernos: Jean-Jacques Rousseau
4. A luta pela democracia poltica: o sufrgio universal
5. Democracia 'formal', democracia 'substancial, democracia 'social'
6. Notas conclusivas
Liberdade
1. A 'liberdade dos antigos'
2. A 'liberdade dos modernos': o paradigma jusnaturalista
3. A 'liberdade dos modernos': o problema da igualdade e o papel do Estado
4. As transformaes da liberdade: do Estado social s democracias constitucionais do
segundo ps-guerra
Democracia Poltica e Estado Constitucional
1. Noes introdutrias
2. Voluntas e ratio
3. O poder do demos e os direitos dos sujeitos: um moderno 'campo de tenso'
4. Como defender do poder o sujeito: a teoria do Estado de direito
5. Como defender do totalitarismo os sujeitos: a democracia constitucional
6. Como defender da democracia a constituio: os princpios indecidveis 7. As metamorfoses da democracia: do demos s elites
8. As metamofoses do constitucionalismo: como defender dos poderes a democracia
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I
Histria do direito e histria dos conceitos
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Histria do direito: imagens comparadas
1. A dimenso hermenutica da historiografia
A historiografia dos sculos XIX e XX (a historiografia jurdica no menos que a
historiografia geral), se desenvolveu como disciplina especializadda, empenhada em
minuciosas pesquisas documentais e disposta a renunciar s grandes questes filosficas
sobre o sentido do devir histrico, no por isto se resolveu em uma (de qualquer forma
impossvel) operao cultural livre de pressupostos: no evitou assim de recorrer a
filosofias ou teorias gerais nem de depender delas em alguma medida, assumindo
entretanto diferentes estratgias no confronto com elas, s vezes de explicita e critica
tematizao outras de implcita e disfarada adoo.
no horizonte de uma viso global da sociedade que o historiador de um modo geral
concebeu e praticou sua profisso. As filosofias sociais totalizadoras forneciam ao
historiador dois importantes instrumentos de orientao: de um lado, ofereciam-lhe um
repertrio lexical e conceitual empregvel no trabalho de revelao, sistematizao e
narrao dos dados; de outro lado, e respectivamente, assinalavam sua disciplina um
local preciso no mapa do saber, legitimando-a como componente essencial de uma
enciclopdia geral.
Graas ao mapa fornecido por uma ou outra filosofia social o historiador tinha a
sensao de avanar sobre um terreno que podia ser difcil e spero mas aparecia
consistente equilibrado e estvel: o historiador sabia quem era, que coisa se esperava dele,
qual conhecimento podia considerar-se capaz de fornecer. Nesta moldura de algum modo
tranqilizadora realizava-se, claro, a aventura da pesquisa de campo, cujos resultados
no podiam ser, na realidade, rigidamente predeterminados (no contedo e na qualidade)
pelos pr-juzos que a cada vez eram compartilhados: no importa quais fossem os
resultados da pesquisa concreta, o mtodo, o objeto e, em resumo, a identidade da
Traduo de Alexander Rodrigues de Castro (doutorando em histria do direito na Universit degli Studi di
Firenze).
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historiografia eram dados claramente pela inscrio da pesquisa no horizonte terico
escolhido. A historiografia trazia a sua legitimao terica do fato de ser concebida como
um captulo daquilo que chamaria de uma grande narrativa: um discurso global sobre o
homem e as suas relaes intersubjetivas. nisso que a historiografia encontrava a sua
colocao, a sua destinao de sentido, contribuindo para o seu desenvolvimento e ao
mesmo tempo dependendo disso.
Estava disposio da historiografia, naturalmente, no uma nica, indiscutvel
grande narrativa, mas diversos esquemas tericos com relao aos quais era necessrio
realizar (implcita ou explicitamente) uma escolha. O positivismo tardo-oitocentista, o
neoidealismo, o marxismo, ofereciam-se historiografia, por assim dizer, como cartas
geogrficas de larga escala, entre seus concorrentes, algumas das quais prometendo
fornecer uma orientao segura para o deslocamento nas terras incgnitas nas quais o
historiador teria iniciado as suas minuciosas viagens de reconhecimento.
A cultura do sculo XIX e de grande parte do XX foi o teatro de um penoso confronto
entre grandes teorias, de uma luta entre gigantes que se desenvolveu com diferentes
sortes e que ocupou o cenrio ideolgico dos ltimos cento e cinqenta anos. De tal forma,
passamos da hegemonia positivista aos xitos idealistas que, ao menos na Itlia, tiveram
campo at o segundo ps-guerra, quando veio difundindo-se o marxismo, que at agora
est presente na cena, mas em posio relativamente mais perifrica.
Entre as grande narrativas, o marxismo que provavelmente manteve at os nossos
dias, mais que os outros velhos concorrentes, o fascnio de uma compreenso terica
global da realidade social. Mas tambm esta grande narrativa entrou, em anos recentes, em
uma crise significativa: uma crise que certamente no a primeira em seu mais que
centenrio percurso, mas que entretanto particularmente relevante, ligada provavelmente
no apenas (como se repetiu demasiadamente) mudana do cenrio internacional, mas
tambm percepo da impotncia, no apenas pragmtica, mas tambm de diagnstico,
da teoria freten complexidade da realidade. em fim uma crise sobre a qual pesa uma
difusa, e crescente, desconfiana com relao s grandes narrativas oniexplicativas - e
sob este ponto de vista a historiografia, se se pensa apenas no caso de Les Annales, se
antecipou.
Hoje, muito alm da primeira e da segunda gerao dos Annales, a desintegrao
minimalista das grandes narrativas em numerosos microcosmos cognitivos
indubitavelmente uma marca do nossso presente. a continuao das vises gerais, a
confiabilidade das cartas geogrficas de escala planetria, que hoje parece sofrer uma crise
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radical. Certamente podemos com facilidade reconhecer nas grandes narrativas o
fascnio da coerncia, da globalidade, da coragem terica. Ao mesmo tempo, entretanto,
cresce a sensao de que as filosofias sociais totalizadoras prometam demais com relao
quelas que hoje parecem ser expectativas mais modestas. As grandes narrativas so no
fundo, mesmo nas mais recentes e sofisticadas verses, ainda restos do otimismo
progressista do sculo XVIII, portadores de uma epistemologia que o sofisticado debate
contemporneo induz a perceber como ingnua.
Um dos pontos de separao com relao grande tradio oito-novecentista (poderia
dizer-se um dos pontos de emerso da sensibilidade ps-moderna1?) a problematizaro da
relao entre sujeito e realidade. No conflito entre as grandes teorias rivais, o desafio era a
tomada de uma realidade histrico-social que se apresentava como afervel
univocamente: se contendia sobre tudo (sobre o objeto,sobre o mtodo, sobre as
representaes substantivas), mas compartilhava-se substancialmente de um certo
otimismo sobre o xito da tarefa. ao contrrio o xito do empreendimento cognoscitivo
que aparece hoje mais complexo e esquivo, como se a idia de uma percepo
(relativamente) unvoca da realidade tivesse sido substituda por algo como um complicado
e substancialmente interminvel jogo de espelhos e de prospectivas entrelaadas.
no vcuo aberto pela percepo da problemtica caracterstica de cada
empreendimento cognoscitivo que se introduziu com grande fora de sugesto a
possibilidade de valorizar a dimenso hermenutica da historiografia.
No apenas pela cincias sociais, mas tambm pelas cincias fsico-naturais, a
possibilidade de uma descrio pura da realidade, a empregabilidade das categorias
(originalmente positivistas) de fato e de observao, foram energicamente colocadas
em dvida, no mbito dos mais recentes debates epistemolgicos.2 Fatos e observaes; a
realidade, de um lado, e o cientista como um impassvel e metdico observador dela, do
outro lado: este esquema, simples e ntido, familiar epistemologia das cincias da
natureza e transformado pelo positivismo oitocentista (mas tambm pelas suas revisitaes
novecentistas) na outra face de qualquer possvel conhecimento que quisesse dizer-se
cientfica, parece agora ter entrado em uma crise radical tambm l onde nasceu, no
mbito das cincias fsico-naturais.
justamente no debate epistemolgico geral que a crise do neopositivismo induziu a
1 Cf. AA.VV., Sulla modernit, Angeli, Milano1986; C. Galli (a cura di), Logiche e crisi della modernit, Il
Mulino, Bologna1991. 2 Cf. V. Villa, Teorie della scienza giuridica e teorie delle scienze naturali. Modelli e analogie, Giuffr,
Milano 1984; D. Zolo, Scienza e politica in Otto Neurath. Una prospettiva post-empiristica, Feltrinelli,
Milano 1986.
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duvidar do paradigma cientificista nos seus asuntos principais. E se observa ento que no
existe, por parte de nenhum cientista, uma observao pura do fato: a observao
necessariamente sobrecarregada de teoria; o cientista no registra passivamente os fatos,
ma os seleciona, os ordena, os constri: em resumo os compreende a partir da sua
especfica formao cultural e profissional. No possvel colher os fatos em sua nua
objetividade, mas inevitvel perceber-los atravs da mediao da cultura, da linguagem,
do saber prprios do ambiente histrico e da camada profissional aos quais se pertence.
Se depois voltamos o olhar da epistemologia geral epistemologia das cincias
humanas, o paradigma positivista aparece com maior razo comprometido. Neste de fato
intervm um outro elemento: no s a observao do fato um processo complicado e
mediado pela linguagem, pelas teorias, pela cultura do sujeito, como nas cincias da
natureza, ma no existe realmente, para o cultor das cincias humanas, a possibilidade de
uma simples, actica observao. Como j foi freqentemente sublinhado, o cientista da
sociedade , ao mesmo tempo, observador e ator: no est fora do objeto observado, mas
est dentro dele, envolvido em um processo que a sua prpria atividade de observador
contribui para modificar. portanto o conceito mesmo de observao a aparecer como
inadequado, a idia de um sujeito que se faz puro espelho de uma realidade j dada que
no parece fazer justia complexidade do processo cognoscitivo.
H ainda um ltimo, banalssimo mas no insignificante, argumento, que nos interessa
de um modo particular porque diz respeito especificamente ao saber historiogrfico. No
quero arriscar nenhuma complexa definio; mas creio que posso dizer que o saber
historiogrfico, na convencional diviso das tarefas dentro da corrente enciclopdia do
saber, individualizado primeiramente por uma conotao temporal: o saber
historiogrfico um saber voltado ao passado, a realidade da qual o historiador se pretende
expert uma realidade j transcorrida: uma realidade que era, mas que no mais; e ao
historiador pede-se justamente que consiga re-construir a realidade desaparecida, a recriar-
la na narrativa. E ento: a operao intelectual prpria da historiografia no pode, por
definio, ser reportada categoria observao de fato, em nenhum sentido (positivista
ou post-positivista) da expresso, pelo banal motivo de que o mundo dos eventos e das
aes dos quais o historiador se ocupa foi, mas no . O historiador no se encontra nunca,
nem pode encontrar-se, pela definio convencional de seu saber, frente aos fatos, mas
apenas frente a testemunhos, a pegadas, a discursos que no so fatos, mas sinais.
A historiografia, em resumo, no dispe nunca de um encontro face a face, no uma
analise direta da realidade, no um discurso de primeiro grau, mas um discurso sobre um
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discurso, ou ao menos um discurso atravs de um discurso: entre a realidade e o historiador
se interpe um estratificado e complexo mundo de sinais, palavras, de testes que
constituem, para o historiador, a demora habitual. Quando tambm o historiador entre em
contato com objetos materiais (um antigo edifcio, um instrumento de trabalho), eles
contaro para ele como sinais, testemunhos de alguma coisa que ele no alcana em uma
tomada direta, mas reconstri atravs da via obliqua do indcio.
A historiografia, portanto, no a descrio de coisas o estados de coisas, mas
atribuio de sentido: portanto interpretao. Uma relao entre historiografia e
hermenutica uma relao de espcie e gnero: aquela operao intelectual que
chamamos historiografia compreensvel enquanto reconduzvel lgica da interpretao.
No toda interpretao historiografia, mas toda operao historiogrfica, como decifrao
de textos, testemunhos, sinais, como reconstruo de um sentido, interpretao: refletir
sobre a historiografia significa ento colher dela as essenciais significados hermenuticos,
na linha de uma tradio que, a partir de Schleiermacher, tematiza o nexo entre
interpretao e historiografia.
Com isto, o problema (embora rapidamente) esta ajustado, mas de modo algum
simplificado: para quem esteja persuadido da oportunidade de associar hermenutica e
historiografia, o inteiro e multifacetado debate hermenutico do sculo XX que vem a ser
envolvido na tentativa de representar o objeto e as caractersticas da operao
historiogrfica. No obviamente este o lugar para uma qualquer tentativa de
aprofundamento e de discusso crtica3. Limitar-me-ei a indicar uma srie de opes
(insuficientemente argumentadas) que permitem extrair da associao entre hermenutica e
historiografia alguma conseqncia.
a) Conta-se a realidade do passado interpretando textos. Mas estes textos no so a
realidade: so pontos de vista, parciais, contraditrios, sobre ela. E ainda: dos
complicadssimos jogos interativos das quais uma sociedade se compe aquilo que se torna
palavra e mensagem uma poro muito modesta. Em fim: das aes e eventos que em
uma sociedade se torna discurso e texto, s uma parte relativamente pequena chega at ns
e utilizvel pelo historiador para a sua narrativa; os textos que o historiador interroga so
apenas a ponta de um enorme iceberg em grande parte submerso.
O historiador portanto no descreve fatos, mas interpreta textos e estes textos no so
um tecido continuo e compacto que adere perfeitamente aos perfis da realidade: so pontos
de vista fragmentados e descontnuos, testemunhos esparsos, indcios de uma realidade
3 Cf. para uma boa sntese M. Ferraris, Storia dell'ermeneutica, Bompiani, Milano 1988.
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desaparecida, no fotografias exaurientes e fiis dela. Do paradigma indicirio fala Carlo
Ginzburg em um seu brilhante ensaio4: a lgica da historiografia a lgica de Sherlock
Holmes, o seu mtodo a conjectura, a atribuio de sentido a fragmentos em vista da
construo de uma narrativa; com uma diferena, inteiramente para a desvantagem do
historiador: este, diferentemente de Sherlock Holmes, no pode nunca sair da narrativa
para entrar em uma qualquer realidade a verifique definitivamente5.
b) A historiografia, portanto, no pode produzir resultados certos e unvocos porque
trabalha sobre textos (constitutivamente, no acidentalmente) fragmentrios e indicirios.
No apenas: o carter problemtico do conhecimento historiogrfico aumenta quanto mais
se tem presente uma caracterstica sobre a qual a hermenutica do sculo XX (ainda que
no univocamente) insistiu: a necessidade de reverter a idia tradicional e ingnua da
imanncia, no texto, de um significado escondido que o interprete descobre na sua
objetividade. A interpretao no o registrar passivo de um significado j dado no texto;
o texto disponvel e suscetivel de produzir nmero indeterminado de significados, que
aumenta proporcionalmente sua complexidade. O texto uma obra aberta6, capaz de
assumir sempre novos significados graas criativa solicitao do intrprete.
Dado um texto, portanto, no h uma e uma s interpretao verdadeira porque no
h um e um s significado j dado no texto: porque a interpretao justamente no
registramento do significado, mas atribuio de sentido ao texto, necessariamente varia e
mutvel segundo os sujeitos e os contextos histricos pelos quais o texto produz
significados (e alm disso: que coisa a cultura medieval se no uma re-escritura sempre
diferente dos mesmos Textos de Autoridade, antes de tudo da Bblia e do Corpus Juris,
que ser tornaram, por esta via, textos cannicos de toda a cultura ocidental?)
c) O interprete, o historiador, no encontra portanto os significados do texto, mas
inventa significados atravs do texto, atribui ao resto sentidos diversos a cada vez. O
texto um puzzle que o intrprete desmonta e remonta movendo-se a partir das prprias
questes e exigncias cognoscitivas e prticas. Se a historiografia interpretao, o lugar
da subjetividade do historiador no processo cognoscitivo no mais minimizado ou
dissimulado a favor de uma exageradamente fcil e imediata objetividade do resultado
hermenutico, mas reconhecido na sua insubstituibilidade e fecundidade. A atribuio de
significado, a interpretao, , nos confrontos do texto, uma operao ativa, na qual o
4 Cf. C. Ginzburg, Spie. Radici di un paradigma indiziario, in C. Ginzburg, Miti emblemi spie. Morfologia e
storia, Einaudi, Torino 1986, pp. 158-209. 5 Sobre a analogia entre as operaes hermenuticos do historiador e do juiz j havia chamado a ateno G.
Calogero, La logica del giudice e il suo controllo in cassazione, Cedam, Padova 1937. 6 No sentido de U. Eco, Opera aperta, Bompiani, Milano 19672.
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sujeito pe em jogo a totalidade da sua experincia situada: v o texto a partir de seu
mundo, o interroga a partir da prpria histria, a partir do prprio enraizamento cultural, da
prpria estrutura psico-fsica. O envolvimento do sujeito na operao interpretativa no
uma escolha, mas um elemento constitutivo da operao hermenutica: pode-se apenas
escolher entre desconhecer ou reconhecer o ineliminvel aporto da subjetividade.
d) O sujeito assim interpreta os textos sobre a base da prpria cultura, da prpria
linguagem, da teoria e dos valores dos quais partilha, sobre a base, em resumo, de todos os
elementos que, sendo componentes essenciais da sua subjetividade, constituem os
pressupostos e os instrumentos da sua operao hermenutica. A interpretao no nunca
voraussetzungslos: o interprete se move da sua subjetividade e pr-compreende os textos,
os desmonta e os remonta em torno de um significado que atribui a eles, para tornar, em
fim, a si mesmo em uma viagem que procede, sim, em crculo, mas transforma os lugares
no momento em que os atravessa.
Nesta prospectiva, cai, em primeiro lugar, como artificiosa a oposio, tipicamente
historicista e, de modo especfico, neo-idealista, entre teoria e historiografia. Interroga-se,
interpreta-se um texto no mais despindo-se obrigatoriamente de esquemas tericos gerais,
mas servindo-se de tudo o que pertence ao mundo do interprete: tambm das teorias das
quais o interprete disponha, que devero ser usadas para dobrar, desconstruir e reconstruir
o texto interpretado. Deste ponto de vista, vale o exemplo de um grande exerccio
hermenutico, a psicanlise7: onde um complexo corpus de teorias abstratas devem ser
subordinado compreenso do interlocutor pego na sua mais determinada e precisa
individualidade.
Em segundo lugar, torna-se difcil atribuir interpretao, e assim historiografia,
uma relao privilegiada e forte com a verdade. No existe uma, e apenas uma,
interpretao verdadeira porque no existe um, e apenas um significado j dato pelo texto.
Existem questes diferentes referentes ao mesmo texto, diferentes pontos de vista sobre o
texto, diferentes atribuies de sentido a ele: uma historiografia de inspirao hermenutica
duvida da possibilidade de um conhecimento em sentido forte e pensa antes na pluralidade
das prospectivas e na relatividade, aleatoriedade, no risco das prprias operaes.
Trata-se, naturalmente, de um problema muito complexo, que no posso discutir com
suficiente aprofundamento. Certo , entretanto, que a partir desta inspirao relativista,
comum na hermenutica do sculo XX, possam ramificar-se caminhos diferentes.
Entre estes, gozou em anos recentes de uma notvel notoriedade, sobretudo nos
7 Cf. P. Ricoeur, De linterpretation. Essai sur Freud, Seuil, Paris 1965.
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Estados Unidos, sob a influncia de Derrida, naquele particular setor histrico-
hermenutico que a crtica literria, a tendncia assim chamada de desconstrucionista8.
Para esta, a arbitrariedade da interpretao absoluta e sem remdio: o leitor, o intrprete,
reescreve o texto substituindo-se a ele; o texto e o interprete perdem a sua relativa
distino e autonomia porque o texto interpretante engloba o texto interpretado e faz aquilo
que quer dele. No s omite a objetividade, a verdade, da operao hermenutica, mas
aparece problemtica a possibilidade de um confronto entre interpretaes diferentes e a
argumentabilidade mesma de uma opo interpretativa, confiada em ltima anlise a uma
escolha inefvel do prprio intrprete.
Para continuar a exprimir, de minha parte, pareceres sobre este assunto
inevitavelmente peremptrios porque insuficientemente motivados, creio que o relativismo
caracterstico da hermenutica do sculo XX deva evitar o solipsismo hermenutico dos
desconstrucionistas. Com ele se arrisca perder no tanto a arcaica idia da verdade da
interpretao, mas o sentido mesmo da operao hermenutica. Isto , acaba-se
comprometendo o nexo funcional que liga, que deve ligar, o texto interpretante com o texto
interpretado. No se encontra o significado, ele atribudo a um texto: mas se joga sempre
sobre um texto que tem uma sua precisa configurao. A liberdade da interpretao
ampla tanto quanto extenso o campo da indeterminao do texto, mas no ilimitada: o
vnculo dado pela constitutiva alteridade do texto, pela necessidade de dar conta
daquele texto, da sua coerncia, da sua unidade. A arbitrariedade da interpretao no
ento absoluta, mas relativa ao procedimento de anlise que v de qualquer forma o texto
interpretante empenhado em dar conta do texto interpretado, orientado sobre ele9.
A historiografia, portanto, enquanto interpretao, procede atribuindo sentido aos mais
diversos tipos de signos, de discursos, de textos. A sua finalidade compreender que coisa
um texto diz e como um texto diz aquilo que diz. No , ao contrrio, uma pergunta
hermeneuticamente pertinente aquela que diz respeito verdade do texto interpretado:
interrogo-me sobre as modalidades enunciativas e argumentativas do texto sobre o tema ou
os temas que lhe tornam possvel a coerncia, mas no lhe avalio a mensagem luz de um
pressuposto critrio de verdade, qualquer que seja o significado que queremos atribuir a
esta palavra. No fundo, no posicionamento hermenutico-historiogrfico, assim, no h
uma especfica preocupao epistemolgica, no h uma teoria da verdade: colocada de
frente a um antigo texto cosmolgico, no interessa avaliar o grau de fiabilidade da teoria
8 Cf. ad es. C. Norris, Deconstruction. Theory and Practice, Methuen, London-New York 1982. Uma
perspectiva de grande interesse em S. Fish, Doing What Comes Naturally. Change, Rhetoric and the Practice
of Theory in Literary and Legal Studies, Clarendon Press, Oxford 1989. 9 Cf. Neste sentido U. Eco, I limiti dell'interpretazione, Bompiani, Milano 1990.
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ptolomaica mas compreender o texto na complexidade dos seus extratos de sentido
suspendendo o juzo sobre a verdade de suas assertivas luz de uma ou de outra teoria
de que se compartilhe.
A historiografia como interpretao, portanto, pressupe, pode pressupor, entre os
muitos elementos dos quais a cultura do intrprete se compe,uma teoria, mais ou menos
elaborada e sistemtica, mas se serve dela para por questes ao texto, no para avaliar-
lhe o grau de verdade: no porque o problema da verdade de uma srie de proposies no
possa ser legitimamente colocado, mas porque aquele problema pertence a uma ordem do
discurso que no o seu. A pergunta epistemologica e a pergunta hermenutica divergem,
tambm onde um mesmo texto se preta a ser interrogado em relao a ambas as perguntas.
A historiografia, portanto, como hermenutica, exclui as preocupaes da
epistemologia e no mximo pode encontrar afinidades ao seu campo problemtico nos
interesses do semitico, que se interessa pelo modo como um sistema de signos funciona,
pelo modo como produz a sua mensagem, pelo modo como diz aquilo que diz. Nem para o
historiador, nem para o semitico se pe o problema da verdade do texto, mas do seu
concreto funcionamento, de que coisa e de como da sua mensagem - e por outro lado,
ainda que por um longo tempo hermenutica e semitica tenham caminhado por linhas
paralelas, movendo-se a partir de pressupostos e tradies muito diferentes, no faltam
recentes sinais de troca e convergncia.
pois bem presente semitica como historiografia um problema particularmente
importante e angustiante: o problema da relao entre os sistemas de signos, os discursos,
os textos, de um lado, e a ao e interao social, de outro lado.
Uma historiografia de inspirao hermenutica considera que tem o que fazer com
textos que contam em variadssimos e contraditrios modos a realidade, mas no s
simplesmente espelham a realidade. A pergunta do historiador, de frente a isto, diz respeito
ao contedo e forma de suas narrativas. Compreender um texto em sua autonomia, na sua
intrinsica capacidade de produzir uma mensagem, faz parte daquele captulo da anlise dos
signos que, utilizando liberalmente a teoria de Morris, poderamos chamar sinttico-
semntico. Como entretanto nos recordam os estudiosos de semitica, os signos, os
discursos, os textos, no narram apenas, no representam estaticamente o mundo externo:
produzem efeitos, transformam comportamentos, so, eles prprios, aes sociais.
Compreender historicamente um texto exige que se entendam seus contedos
representativos, o contedo e a forma da narrativa, mas requer tambm que se reconstruam
os seus efeitos socialmente relevantes, as transformaes induzidas: continuando a usar a
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terminologia de Morris, prximo a uma compreenso histrica de tipo sinttico-semntico,
necessrio pensa em uma anlise pragmtica do texto interpretado.
No se trata obviamente de um problema novo, mas de um problema que torna
continuamente a repropor-se ao menos a partir de Marx e de suas brilhantes e subversivas
reflexes sobre o carter ideolgica das teorias, sobre a dependncia gentica e funcional
das teorias aos interesses, s relaes sociais, pratica justamente. No momento no qual
entretanto o problema da relao entre pensamento e prtica vinha posto em toda a sua
fecundidade, nascia o risco, sempre recorrente, de uma impostao dualista dos termos da
relao: um dualismo que poderia dar lugar at mesmo predicao de um nexo de
causalidade e que apesar disso arriscava negligenciar, a cada vez, a validade pragmtica do
discurso ou o componente lingstico-comunicativo da interao social. No quero dizer, e
deveria apesar disso argument-lo ainda mais profundamente, que uma aproximao
hermenutica evite radicalmente o dualismo: creio que ela possa dar uma boa contribuio
nesta direo sublinhando a recproca imanncia de saber e poder, de discurso e ao.
Tentemos agora traar alguma concluso provisria. Pensar em termos hermenuticos
a historiografia significa dar um passo atrs da realidade ao texto: a historiografia no se
debrua diretamente sobre a realidade, mas trabalha indiciariamente sobre os textos.
Renunciar s grandes teorias onicompreensivas impe proceder na pesquisa sabendo no
dispor de uma viso sistemtica e predeterminada da realidade na qual acomodar as peas
do mosaico isoladas cansativamente recolhidas. Deste ponto de vista, pensar
hermeneuticamente a historiografia um exerccio da socrtica conscincia de no saber:
no sabemos a priori em qual captulo da grande narrativa os textos interpretados se
inserem porque no dispomos mais de nenhuma grande narrativa. A realidade no
aparece mais disposta em uma ordem da qual conhecemos a trama geral, faltando-nos
justamente a conscincia aproximada dos particulares: a realidade se apresenta como um
entrelaamento, uma confuso de aes e interaes cuja complexidade no reduzida por
uma teoria geral.
Em torno a esta realidade os textos que, como historiadores, vnhamos interrogando,
desenvolveram um discurso que, naquele momento no qual tentava-se decifr-los,
contribua inadvertidamente para a sua modificao. Interpretar historicamente os textos
significa levar a srio a narrativa que eles tentam nos comunicar: significa por isso
suspender o juzo sobre a verdade, colher a sua validade pragmtica, compreender em
fim em que modo, atravs de quais estratgias discursivas, eles conseguem transformar a
desordem da realidade em uma ordem inteligvel.
15
2. A histria do direito: a unidade do objeto e a continuidade da tradio
Se a historiografia interpretao de textos, a operao intelectual na qual ela se
traduz procede de acordo com etapas, em ltima instncia, similares, quaisquer que sejam
os textos interpretados, falem eles de batalhas, de antigas cidades, de filosofias, de leis, de
tribunais. , entretanto, inegvel que as concretas operaes historiogrficas se
diferenciam, tambm significativamente, em relao a dois elementos fundamentais: em
relao aos tipos de textos interpretados, em relao s perguntas atinentes aos textos: e
com efeito a historiografia do sculo XIX e do XX repensou continuamente a si mesma em
relao variedade de seus objetos, redesenhou algumas vezes os prprios perfis internos
discutindo sobre a legitimidade de uma ou de outra partilha.
No indevido esperar que sobre isto possa vir a incidir a crise das grandes
narrativas no apenas convidando a redesenhar a relao entre as diversas historiografias
particulares, mas levantando alguma dvida sobre o sentido de uma historiografia que
possa dizer-se geral. Obviamente, podemos usar as palavras como queremos, mas
confesso compreender facilmente o lugar (cognoscitivamente forte) de uma histria geral
somente onde se considera possvel: a) alcanar uma compreenso tendencialmente global
da realidade do passado; b) individualizar, dentro da sociedade do passado, tipos de aes,
nveis de realidade, mais relevantes que outras com respeito ao funcionamento global da
sociedade mesma; c) estabelecer, por conseqncia, internamente historiografia, alguma
hierarquia epistemolgica entre cada um dos setores de pesquisa. Nesta prospectiva, a
histria geral ser ento aquela historiografia que, indagando sobre os elementos
(considerados) essenciais sociedade, estar capacitada para representar o quadro global
da sociedade do passado e poder, por tanto, confiar s histrias particulares a tarefa de
aprofundar os elementos estrategicamente secundrios, que devero compor-se com a
narrativa principal como suas sees ou captulos (ainda que, obviamente, o critrio de
distribuio das partes seja diverso de acordo com o modelo terico-social subjacente).
Agora, o posicionamento prprio de uma historiografia de inspirao hermenutica,
sobre o fundo da crise das grandes narrativas, induz, a meu parecer, a romper com uma
lgica tal: se a historiografia interpretao de textos, se a historiografia no se move a
partir de uma grande narrativa social pressuposta, nenhum texto adquire o valor de fonte
privilegiada, nenhuma classe de informaes , a priori, dotadas de um poder explicativo
maior o menor que qualquer outra. O historiador se encontra de fronte aos mais variados
16
textos, estimulado pelas mais variadas perguntas, empenhado em uma viagem para a qual
nada e ningum lhe fornece uma carta geogrfica geral. Um texto vale por aquilo que diz
em relao pergunta e ao processo de atribuio de sentido do intrprete: a histria do
arado no explica mais, ou menos, que a histria da metafsica ocidental e a histria das
receitas de cozinha no uma histria necessariamente menor (mas nem maior) que as
histrias das batalhas.
Abolidos todos os nveis hierrquicos dentro da operao historiogrfica, no esto
resolvidos, entretanto, todos os problemas. Na sociedade felizmente anrquica das mil
histrias (necessariamente) particulares, pe-se para algumas delas o problema das
relaes com as outras novecentos e noventa e nove, ao pelo menos com muitas delas; e
no est em queto a mera exigncia acadmica de delimitar as fronteiras (e de assinalar
ctedras a um ou a outro agrupamento disciplinar), mas antes a efetiva necessidade de
elaborar uma eficaz estratgia de pesquisa. necessrio individualizar, no entrelaamento
no dominvel de todos os textos, um grupo de textos que possa a cada vez aparecer
relativamente homogneo; e necessrio, respectivamente, formular as perguntas
corretas, determinar os critrios de uma leitura que d sentido ao texto valorizando-lhe a
coerncia. Trata-se, em resumo, de ajustar os instrumentos lingsticos-conceituais em
torno aos quais organizar a prpria narrativa.
sobre este fundo, portanto, que devemos raciocinar sobre o problema das
caractersticas especficas daquela historiografia particular que chamamos historiografia
jurdica.
Tambm para essa vale a regra geral anteriormente recordada: para quem compartilhe
do fim de todas as hierarquizaes dentro da operao historiogrfica, a historiografia
jurdica no produz narrativas historiograficamente mais importantes ou menos
importantes, do que aquelas produzidas pro qualquer outra possvel historiografia. Esta
afirmao, aparentemente bvia, pode talvez aparecer menos banal se apenas se recorde a
posio fortemente subordinada que a histria do direito veio a ocupar nas prospectivas das
grandes narrativas historiogrficas: pense-se na crnica sub-valorizao do fenmeno
jurdico-normativo no qual esto incursos, ainda que com algumas excees, os clssicos
do marxismo, e a grande parte da historiografia que dela dependia; pense-se na impostao
crociana que desconhecia a relevncia dos momentos jurdico-institucionais da experincia
ocultando-os sobre a dimenso prtico-econmica do agir e desvalorizava o saber dos
juristas reportando-o ao domnio daqueles famigerados pseudo-conceitos nos quais se
exauria o discurso de toda cincia.
17
Naturalmente, no bastava a incumbncia das grandes narrativas para tolher toda a
legitimidade s historiografias particulares e, entre estas, a histria do direito; e alm
disso necessrio ainda reconhecer que a dialtica entre geral e particular, a
necessidade de medir-se com as grandes propostas terico-sociais e com os grandes
afrescos historiogrficos no desempenhou apenas uma funo mortificante nas
preocupaes da histria do direito mas a obrigou repetidamente a propor-se problemas de
definio de objeto e de mtodo que provavelmente teria demorado a enfrentar se fosse
deixada aos cuidados de seu tranqilo jardim.
necessrio assim tentar compreender em que modo a histria do direito representou
a si mesma, seja em relao aos grandes modelos seja independentemente deles. Creio que
haja, para a auto-representao da histria do direito, um ponto obrigatrio de partida, uma
verdadeira e prpria arch: Federico Carlo di Savigny. Savigny criou, por assim dizer, um
idioma prprio do historiador do direito: um idioma que se enriqueceu e complicou no
curso do tempo, mas que continuou a ser falado, em alguma medida, at a tempos recentes.
singular pois que o idioma savigniano goze de uma tal durao como dialeto, no como
lngua: quero dizer, sem metfora, que, enquanto a imagem savigniana do desenvolvimento
histrico em geral teve uma sorte tudo somado modesta (pense-se ao contrrio, por
contraste, no historicismo hegeliano e em todas as sucessivas revisitaes), o modo
savigniano de pensar o direito, o pensamento jurdico e a sua histria assinalaram
verdadeiramente uma longa estao da historiografia jurdica.
Gostaria apenas de relembrar esquematicamente alguns dos grandes temas savignianos
que, de acordo com meu parecer, so mais significativos (para o assunto em questo) e
mais duradouros.
a) Um tema importante a convico da substancial absoro do direito no
pensamento jurdico. Estou ressaltando as tintas por comodidade de exposio. No quero
dizer que Savigny ignorasse modalidades do jurdico diversas do pensamento dos juristas:
basta pensar nas costumes e em sua ralao romntica ntima com o Volk. Quero dizer
apenas que toda a sua representao da experincia jurdica se alavancava no sobre a
legislao, no sobre a jurisprudncia, nem ao menos sobre os costumes, mas sobre o
jurista como produtor de textos de saber: em torno a isso e graas a isso que os outros
elementos tornavam-se inteligveis como foras operantes do ordenamento. o
pensamento jurdico, a obra de reflexo e de elaborao empreendidas pelo jurista que
recolhe para si, concentra e exalta a unidade da experincia jurdica.
b) O direito pensamento jurdico e o pensamento jurdico se d na continuidade da
18
tradio. A tradio o segundo grande conceito savigniano: o historicismo de Savigny ,
diria com Hobsbawm10
, a inveno, mais do que o simples registro, de uma tradio que
dilata no tempo, e refora, a imanente unidade do sistema jurdico e a sua representao e
celebrao no pensamento. O pensamento jurdico se desenvolve no tempo, mas no
procede por saltos e fraturas, mas por continuidade e acumulao progressiva. O
pensamento jurdico no na histria, mas a histria (assim como verdade,
tendencialmente, o recproco).
c) E eis ento o terceiro tema: no momento no qual Savigny enfatiza a historicidade do
direito, no momento no qual representa o direito como pensamento jurdico e o
pensamento jurdico como tradio, ele declara, per facta, um tipo de harmonia
preestabelecida entre direito e histria, entre teoria jurdica e histria do direito. O ofcio
do historiador do direito e do jurista tendem a dispor-se sobre uma mesma linha, a
combinar-se harmoniosamente na continuidade da tradio e na unidade do sistema.
A perfeita harmonia da soluo savigniana estava destinada a rachar-se assaz
rapidamente (e no falta alis quem no mesmo Savigny veja parcialmente rejeitada a
soluo por ele mesmo teoricamente proposta): aquilo que, entretanto, continua a marcar
por longo tempo a auto-compreenso da histria do direito e a impostao savigniana do
problema, se no a soluo. A soluo pode ser posta de lado e se introduzir conflito e
tenso entre os elementos que Savigny via harmonicamente componveis: mas o espelho
no qual a histria do direito reflete a prpria imagem ainda o espelho de Savigny.
Pense-se no caso emblemtico da relao da cultura jurdica oitocentista com o direito
romano. Ela se desenvolve em duas direes que, ainda que terminando por se oporem
reciprocamente, partem as duas, idealmente, de Savigny: de um lado a pandectstica, que
continua a ver o direito romano como um direito atual, que constri, atravs do direito
romano, um articulado sistema de conceitos; do outro lado, a crtica interpolao, que tenta
aproximar-se ao direito romano em termos puramente histricos, ainda que terminando
por coexistir por longo tempo com um uso sempre novamente atualizante do direito
romano.
A oposio ntida, mas no deve obscurecer a permanncia de elementos de fundo
ainda largamente comuns em ambos os contendentes e cultura jurdica entre o sculo
XIX e XX. Em primeiro lugar, o uso atualizaste do direito romano, a construo da
dogmtica atravs (tambm) do direito romano, tem como premissa (nem sempre explcita,
mas ainda assim operante) a idia, tipicamente savigniana, da continuidade da tradio. Em
10
Cf. E.J. Hobsbawm, T. Ranger, L'invenzione della tradizione, Einaudi, Torino 1983.
19
segundo lugar, a construo do saber jurdico depende ainda da presuno savigniana
acerca do primado do saber sobre outras formas da experincia jurdica. Em terceiro lugar,
a aproximao interpolacionista histrica mais por negao que por posio: histrica
porque no atualizaste, mas no capaz de propor um tipo de relao com o direito
romano que se ponha como alternativa real ao uso dogmtico-jurdico do direito romano.
Neste quadro, o grande modelo positivista tardo-oitocentista apresenta como uma
eficaz provocao. A proposta inovativa que ele apresenta ao jurista consiste em substncia
em ver o direito em termos francamente funcionalistas: a experincia jurdica no se fecha
no crculo mgico do pensamento que a representa na continuidade da tradio; o direito
compreensvel como varivel dependente dos grupos sociais, interesses, relaes
econmicas. Repensar positivisticamente o direito e a histria do direito impunha
efetivamente o rompimento da casca do jurdico e o abrir-se a uma grande narrativa que,
como tal, deslocava o acento, para usar uma habitual metfora, de dentro para fora do
direito: deslocava o direito para uma grande narrativa que rompia exatamente aquela
idia de auto-suficincia do direito e da sua histria que estava no centro da prospectiva
savigniana (e ps-savigniana).
Era certamente, aquela do positivismo, uma proposta sugestiva: e no faltaram
personagens de indubitvel relevo intelectual, seja entre os juristas seja entre os
historiadores do direito, que se empenharam nesta direo. No centro deste novo
orientamento, sem dvida indito com relao ao quadro savigniano e ps-savigniano, se
colocava, em sintonia com a filosofia positivista, o primado do fato, da reconstruo do
fato, por isso o domnio da sociologia e da histria econmico-social. E ento realmente
pela primeira vez, bem mais consistentemente que com a crtica inerpolacionista, histria e
dogmtica jurdica tendem a se opor frontalmente, no mais como tenses internas a um
campo anda fundamentalmente homogneo, mas como dimenses qualitativamente
heterogneo: de um lado o direito, seus conceitos, sua cincia, seus dogmas; de outro
lado a histria, os fatos, a averiguao da realidade do passado.
Dogma e histria, portanto: eis o dilema metdico que est no centro da auto-
representao da histria do direito, ao menos na Itlia, entre a primeira metade do sculo
XX e toda a dcada de cinqenta. Compreende-se a dificuldade e a importncia do dilema:
escolher decisivamente o lado da histria parecia, para o historiador do direito,
comprometer a relao com o saber jurdico; e vice-versa, escolher este ltimo parecia
tolher toda a credibilidade historiogrfica s suas investigaes.
Como notrio, uma soluo do dilema, que arriscava se tornar uma verdadeira e
20
prpria aporia, foi adiantada por Emilio Betti e muito discutida por historiadores e juristas
por mais de vinte anos11
. O dilema, apesar disso, era, por assim dizer, j inscrito nas coisas
mesmas, antes que Betti o apresentasse em sua definitiva e mais clara formulao. O
dilema nascia do influxo que o grande modelo positivista havia exercitado tambm sobre a
histria do direito: a defesa da histria, do seu valor autnomo e fundante, confiada em
boa medida a autores de inspirao positivista, a defesa do primado epistemolgico dos
fatos sociais, com relao aos quais o direito mera forma, compreensvel apenas em
termos funcionalistas.
Deste ponto de vista, a interveno de Betti, feitas em um clebre discurso de 1927,
deve ser lido, antes de tudo, como um episdio, de qualquer modo tardio, de rao neo-
idealista ao positivismo sobre o terreno da histria do direito. Vejamos de qualquer forma
mais de perto a argumentao. A primeira, fundamental, assero diz respeito ao lugar
ativo, determinante do sujeito na operao historiogrfica: a crtica bettina ao positivismo e
sua hermenutica objetivista ntida e, ao menos nesta fase de seu pensamento,
largamente tributria das opinies de Croce. No se compreende o passado se no
movendo-se do sujeito e do seu presente: o sujeito e o seu presente no so um obstculo
eliminvel, mas o pressuposto da compreenso do passado. O objeto da historiografia no
inteligvel como tal, mas s atravs dos instrumentos conceituais inscritos no presente do
historiador.
fcil intuir a conseqncia desta premissa: se o objeto da historiografia o direito do
passado, se um qualquer setor da experincia no compreensvel sem o uso dos
instrumentos conceituais correspondentes, no se haver histria do direito, no ser
possvel uma compreenso histrico-jurdica do direito do passado, sem o uso, parte do
historiador, do saber jurdico elaborado em seu presente; a dogmtica hodierna, portanto,
no um obstculo compreenso jurdica do passado; no nem ao menos qualquer
coisa que o historiador do direito possa livremente colocar de lado; a dogmtica hodierna
a condio mesma da anlise histrico-jurdica, o instrumento que torna visvel uma
qualquer experincia jurdica do passado.
necessrio avaliar atentamente o raciocnio bettiano. Ora, j no discurso de 1927
est presente o ncleo central da posterior reflexo hermenutica de Betti, que levar este
autor redao da monografia sobre a interpretao da lei e em fim, conclusivamente,
imponente tentativa de hermenutica geral. A importncia desta tentativa no deve ser sub-
valorizada: uma empreitada, na Itlia, absolutamente isolada (no s sobre o terreno da
11
Sobre Betti cf. Quaderni Fiorentini, VII, 1978; T. Griffero, Interpretare: la teoria di Emilio Betti e il suo
contesto, Rosenberg e Sellier, Torino 1988.
21
cultura jurdica, mas tambm filosfica) na qual Betti entre em discusso com a grande
reflexo terico-hermenutica alem, de Schleiermacher at Heidegger e Gadamer.
Todavia, deve-se tambm notar que a direo atrav da qual procede a hermenutica
bettiana substancialmente diferente, se no oposta, direo que assumir a
hermenutica gadameriana e, de um modo geral, a hermenutica contempornea: enquanto
esta tender a espraiar-se em resultados francamente relativistas, Betti procura fundar,
justamente atravs de reflexo hermenutica, a objetividade das cincias do esprito. A
centralidade do sujeito no significa para ele dissoluo do objeto e de seu intrnseco
significado: interpretar para Betti realizar um dilogo amigvel com o passado, realizar
um encontro perfeito entre sujeito e objeto, onde o texto, graas interpretao, se revela
por aquilo que realmente significa.
O uso da dogmtica hodierna , assim, instrumento de inteleco do direito passado:
mas, gostaria de dizer, um instrumento de inteleco no sentido forte. O pensamento
jurdico no vale para o historiador do direito simplesmente como um critrio de seleo
dos textos, um repertrio de perguntas, um lxico empregvel na prpria narrativa; a
dogmtica hodierna serve ao jurista para compreender historicamente aquela que a
verdadeira e prpria essncia do objeto direito, tanto no presente quanto no passado. A
dogmtica hodierna serve, assim, ao historiador do direito para compreender os elementos
essenciais, os significados ocultos, da experincia jurdica do passado: a dogmtica jurdica
o nome melhor para coisa jurdica do passado12.
Se isto verdadeiro, so facilmente intuveis duas conseqncias.
Em primeiro lugar, a dogmtica, o saber jurdico no seu mximo esforo de
conceitualizao, no um momento apartado das outras experincias jurdicas de hoje ou
de ontem: o saber jurdico o centro da experincia jurdica; esta existe na medida em que
espelha a sua essncia no saber e vice-versa este ltimo condensa em si a inteireza da
experincia jurdica.
Em segundo lugar, o saber jurdico do presente permite o dilogo como passado no
porque o intrprete escolhe livremente (arbitrariamente) usar uma linguagem para atribuir
significados e narrar textos, mas porque o passado do direito objetivamente conexo
com o presente na inquebrvel unidade da tradio: o dilogo amigvel entre passado e
presente um dilogo ininterrupto, um contnuo fluir e refluir do passado no presente e do
presente no passado.
A dogmtica jurdica, portanto, exprime a essncia da experincia jurdica em todo o
12
Cf. A. Schiavone, 'Il Nome' e 'la Cosa'. Appunti sulla romanistica di Emilio Betti, in Quaderni
Fiorentini, VII, 1978, pp. 293-310.
22
arco de seu desenvolvimento e torna possvel o dilogo entre presente e passado sob a
insgnia da continuidade da tradio; respectivamente, a histria do direito se move a partir
do saber jurdico, sobre esta base compreende o passado, torna, em fim, o saber jurdico
enriquecendo-o com os outros aportes da tradio por ela revisitada e reconstruda.
Se isto verdade, parece-me que um nome possa ser evocado em relao idia
bettiana de direito e de histria do direito: mais uma vez Savigny. Rejeitado o positivismo
como responsvel por uma compreenso meramente sociolgico-funcionalista do direito;
superado o idealismo pela sua indevida minimizao do jurdico, o ambiente no qual a
histria jurdica termina, com Betti, para reencontrar-se, tem uma marca abertamente
savigniana, para esta familiar e tranqilizadora: familiar, porque os legames com Savigny
no se interromperam nunca; tranqilizadora, porque garantia histria do direito a
possibilidade de no ser o patinho feio da Faculdade de Direito, mas de dialogar em
posio de paridade com as disciplinas especificamente jurdicas.
Tratava-se certamente de uma soluo que resolvia o dilema dogma\histria de modo
apenas aparentemente igualitrio, na realidade desequilibrado a favor da centralidade do
saber jurdico: verdade que ele servia compreenso do passado, mas o passado era pr-
definido pelo presente do saber jurdico e vivia em simbiose e perfeita continuidade com
ele. Justamente por isso, a soluo bettiana do problema da identidade da histria do direito
era uma verso sofisticada e atualizada do modelo savigniano antes que a inveno de uma
perspectiva radicalmente nova. Ela tendia a resolver a especificidade da histria do direito
dando importncia central ao elemento jurdico: a histria no sai, nesta perspectiva, do
crculo mgico do direito. Na unidade e na continuidade da tradio, no perfeito espelhar-
se do ordenamento no saber, a experincia jurdica se perfilava como uma zona
perfeitamente concluda e definida que o historiador contemplava atravs do filtro
obrigatrio da dogmtica de seu presente.
3. A histria e as histrias: uma proposta anrquica
Da estao dominada pelo dilema dogma\histria muita gua, obviamente, passou
sob as pontes (tambm) da historiografia jurdica; e parece difcil reencontrar no hodierno
debate alguma coisa similar quela clssica aporia. Entretanto, tambm verdade que,
apesar dos motivos de contraste que dividiam os historiadores dos dogmticos, era
compartilhada pelos contendentes uma convico que teria mantido por muito tempo uma
vitalidade e plausibilidade: a convico de poder definir como direito uma zona da
23
experincia precisamentte delineada.
Mesmo que concebessem a histria do direito e suas relaes com a histria geral,
permanecia esttica a confiana de se poder referir a um objeto, o direito, que graas s
suas intrnsecas caractersticas valia como seguro contraponto da identidade da histria do
direito. Seja concebendo a histria do direito como captulo de uma narrativa
historiogrfica geral, seja exaltando-lhe o ligame com a dogmtica e a sua tradio, a
unidade e a identidade da disciplina histrico-jurdica derivava imediatamente da
objetiva consistncia jurdica da experincia qual se referia. Nesta perspectiva, em
suma, a histria do direito tal porque se ocupa do direito, porque assumo o direito como o
referente real da prpria operao cognoscitiva.
Ora, que a histria do direito assuma o direito como seu objeto parece uma tautologia
banal. Vendo-se bem, entretanto, a tautologia mais aparente que real: quando a
historiografia jurdica obstina-se em fundar a prpria identidade referindo-a ao objeto
direito, ela via de regra pressupe uma assero terica muito complexa, ainda que
subentendida; pressupe que direito valha como uma estrutura da experincia, capaz de a
identificar na sua objetividade e unidade.
Ora, eu creio que uma histria do direito de inspirao hermenutica, que tente se
pensar alm da crise dos grandes modelos omniexplicativos, possa duvidar da
necessidade (e demonstrabilidade) de tal pressuposio. O historiador do direito no se
encontra, na realidade, frente ao direito como frente a um bem delimitado setor da
experincia, que ele antes compreende em sua objetividade e unidade e depois, se quiser,
insere no contexto social global, domnio de competncia do historiador geral. O
historiador do direito, como qualquer outro historiador, se encontra simplesmente frente a
diferentssimos tipos de texto: o problema comum, ao historiador do direito como a
qualquer outro historiador, compreender que coisa diz o texto e como o texto diz aquilo
que diz. A juridicidade no uma estrutura do texto (e tanto menos obviamente uma
estrutura da realidade), uma qualidade que o intrprete constata decidindo
conseqentemente se o texto em questo tarefa sua ou de competncia do colega. O
intrprete atribui um significado ao texto e nos conta o texto, constri uma narrativa
atravs do texto e sobre o texto; esta narrativa tem uma coerncia e inteligibilidade na
medida em que fala de alguma coisa, na medida em que tem um tema e coordena os
prprios enunciados em torno a ele; se o tema em questo definvel como jurdico em
qualquer significado que esta expresso possa assumir no nosso hodierno lxico terico a
narrativa pode dizer-se uma narrativa histrico-jurdica.
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Gostaria de insistir sobre alguns aspectos desta questo.
a) O standard de juridicidade um elemento da cultura do intrprete, no uma
caracterstica do texto.
b) O standard de juridicidade no uma teoria concluda: so suficientes fragmentos
de teoria, conceitos esparsos, no necessariamente coligados em um sistema; o standard de
juridicidade no uma teoria filosfico-jurdica, no uma dogmtica: pode ser qualquer
aluso lingstico-conceitual que a hodierna cultura jurdica reconhece como seu e que o
historiador livremente usa com vistas a uma narrativa, da sua prpria narrativa
historiogrfica. Se a narrao historiogrfica usa instrumentos lingstico-conceituais
definveis hoje como jurdicos, sejam quais forem os significados da expresso, ela se
configura como um discurso histrico-jurdico.
c) A narrativa histrico-jurdica no tem um objetivo mximo ou geral, coincidente
com a representao sistemtica de tudo o que de juridicamente relevante se verificou em
um dado contexto; ela no necessariamente a descrio de uma experincia unitria e
concluda que possa dizer-se jurdica: constri-se uma relao com diferentes tipos de
textos, orquestra-se graas s mais diversas teorias ou fragmentos de teorias jurdicas; no
conhece nveis hierarquicamente diferenciados; no ambiciona representar a unidade
sistematicamente concentrada do objeto direito; uma narrativa aberta, que procede na
ausncia de limites previamente assinalados: o intrprete que escolhe livremente,
arriscadamente, um ou outro esquema jurdico de organizao do discurso, em relao ao
texto ou aos textos utilizados. Everything goes, em resumo, com exceo da convico
tradicionalmente mais difundida: que o discurso histrico-jurdico seja capaz de
representar na sua unidade uma particular e fechada zona de experincia que possui a
juridicidade como sua prpria essncia.
A rigor, portanto, existem no a histria do direito, mas tantas histria do direito
quanto so as narrativas historiogrficas que a cada vez se redigem: a histria do direito
no o espelho de uma experincia j definida e em si mesma fechada, mas simplesmente
um contraponto lingstico capaz de contrapor todas aquelas narrativas historiogrficas
(diversas entre si, ainda que incomparveis) que se organizam em torno de algum standard
de juridicidade, mesmo que compreendida.
Se isto verdade, se a histria do direito, no referindo-se a um objeto unitrio, no
uma homognia, definida, fechada prxis de pesquisa, parece improponvel a idia de uma
metodologia histrico-jurdica de carter geral, um passe-partout bom para todas as portas.
A rigor, cada pesquisa pe perguntas diferentes a diversos tipos de texto: cada narrativa
25
vale por si mesma. Existe entretanto uma circunstncia que no cancela, mas atenua,
aquele tipo de feyerabendiano anarquismo histrico-jurdico que acabo de propor:
verdade que os textos que o historiador interpreta so via de regra muito diferentes entre si,
mas tambm verade que os textos no so sempre e apesar disso assim diferentes entre si
a ponto de no poderem ser, ao menos em certos casos, coligados entre si em razo da sua
particular homogeneidade, a ponto de no poderem ser reagrupados em tipos sobre a
base de significativas analogias. Quando falamos, para ficar claro, de histria do
pensamento jurdico, ou de histria da cincia do direito, ou de histria da legislao ou de
histria das instituies e assim por diante, nos referimos a narrativas histrico-jurdicas
que compartilham, alm de um standard de juridicidade, o fato de trabalhar
prioritariamente sobre textos entre si homognios.
Ora, provvel que em algum destes casos seja possvel formular perguntas de carter
geral aos quais reconduzir um nmero de narrativas histrico-jurdicas de outro modo entre
si no confrontveis. No posso, entretanto, tentar desenvolver aqui uma demonstrao do
disto; e tanto menos posso referir-me s numerosssimas famlias textuais suscetveis de
serem interrogadas a partir de uma definio previa de juridicidade, sugerindo, para
algumas delas, a eventual, subjacente, unidade temtica. Posso apenas assumir, como um
exemplo entre mil, aquela classe de textos, para mim mais familiares, qual alude-se
quando se usa a expresso pensamento jurdico.
Os textos que via de regra compreendemos nesta expresso so textos que, em uma
situao histrica determinada, estruturaram-se, e foram utilizados, como textos funcionais
formao e transmisso do saber. Que tipo de pergunta geral pode-se por a este tipo de
texto?
Certamente se trata, de qualquer maneira, de compreender, como em toda operao
interpretativa, que coisa diz o texto e como o texto diz aquilo que diz. Neste caso
especfico, entretanto, talvez o dado imediatamente evidente o carter homognio dos
textos em questo. O que torna estes textos homognios? Antes de tudo, a organizao da
mensagem e a sua destinao: so textos que produziram e nos comunicam um saber; no
nos dizem o que devemos fazer ou no fazer; no querem simplesmente divertir-nos ou nos
informar; propem-se como textos capazes de aumentar os nossos conhecimentos. O que
os torna, em termos gerais, homognios o seu componente essencialmente cognitivo, o
seu organizar-se em cadeias argumentativas e demonstrativas em funo da verdade.
Em termos gerais, portanto, a raiz da homogeneidade destes textos est na sua
definibilidade como textos de saber. Na realidade, entretanto, quando falamos de saber
26
no singular, do saber global de uma poca, usamos de uma cmoda abstrao: o saber
sempre o resultado de uma multiplicidade de saberes que se encaixam um ao outro,
coordenam-se ou se sobrepem, vindo a compor, em um contexto dato, uma complexa
enciclopdia. Os textos de saber vm, assim, na realidade a estruturar-se, e como tais
pedem para ser compreendidos, como textos de saber especializados, como textos que tem
tudo em comum, ou seja, uma finalidade cognitiva, mas que mostrar depois diferenas
relevantes em relao aos diversos saberes que eles transmitem.
Dentro destes textos de saber, portanto, formam-se ulteriores ligames de afinidade e
respectivas marcas de diferena: alguns textos se coligam preferivelmente a outros textos,
reclamam-se um ao outro, formam no curso do tempo um espcie de longa cadeia, vem a
construir uma especfica tradio. Dentro dela, os textos tendem com maior freqncia a
reclamar-se, a coligar-se um ao outro, vindo a constituir, por assim dizer, os pontos de uma
linha ininterrupta. A conduzir o leitor ao longo desta linha esto os mesmo textos, atravs
do jogo combinado de citaes abertas e algumas remies dissimuladas; e o que deles
impressiona a sua rea de famlia, a intuitiva reconhecibilidade de traos comuns,
apesar de neles distinguirem-se alguns aportes individuais, nas mudanas das modas e dos
usos.
Ora, uma pergunta de carter geral que possvel direcionar a estes tipos de textos diz
respeito justamente sua rea de famlia: o que torna estes textos compatveis entre si e
relativamente homognios? O que faz com que um setor do saber seja unitrio com relao
a um outro, o que confere a uma disciplina a sua especfica identidade, estabelecendo
contigidade e diferenas com relao s outras disciplinas na enciclopdia do saber?
De frente aos textos de saber, de frente a uma especfica tradio disciplinar, existe
assim, penso eu, uma pergunta geral que de qualquer modo precede (e apesar disso
qualitativamente diversa dela) a longa srie de questes que podemos formular a propsito
dos especficos contedos e problemas afrontados a cada vez pela prpria disciplina.
A resposta concreta a uma tal pergunta permanece confiada, obviamente, s inmeras
narrativas historiogrficas que em torno dela se possam desenvolver. Alm da variedade
das respostas, todavia possvel, penso eu, precisar ulteriormente os termos da pergunta
servindo-se do conceito de paradigma ou matriz disciplinar13
.
13
O conceito, como se sabe, foi proposto, j h muitos anos, pelo historiador da cincia Kuhn, mas se revelou
um instrumento utilmente empregvel em variados setores de pesquisa. Cf. T.S. Kuhn, La struttura delle
rivoluzioni scientifiche, Einaudi, Torino 1978; Id., The Essential Tension. Selected Studies in Scientific
Tradition and Change, University of Chicago Press, Chicago-London 1977; G. Gutting (a cura di),
Paradigms and Revolutions, University of Notre Dame Press, Notre-Dame (Ind.) 1980; B. Barnes, T.S.Kuhn
and the Social Science, Columbia University Press, New York 1983; E. Zuleita Puceiro, Paradigmen und
Modelle in der modernen Rechtstheorie, in Rechtstheorie, 15, 1984, pp. 503-514. Para o uso do conceito
27
Indagar sobre a matriz de uma disciplina significa em substncia tentar individualizar
aqueles elementos que permitem a uma disciplina existir e funcionar: antes de tudo a
definio de objeto terico da disciplina, do tema central sobre o qual os vrios textos
disciplinares convergem, o ponto de vista sobre a realidade que a disciplina intenciona
transmitir por esta via; e depois o mtodo recomendado pela disciplina em funo da
resoluo dos concretos problemas que ela vem enfrentando; em fim, o estilo
argumentativo adotado e as escolhas de valor imanentes na tradio disciplinar.
Definies de objeto, de mtodo, de estilo argumentativo, de valores: o conjunto
destes elementos que constituem a matriz da qual toma forma unitria a disciplina. No se
trata necessariamente de definies explcitas: os textos revelam a sua ria de famlia
porque de fato os autores pertencentes a uma determinada tradio compartilham escolhas
fundamentais, adotam especficos pressupostos (com relao ao objeto, ao mtodo, ao
estilo) sobre a base dos quais operam, produzem os seus textos e tornam aqueles textos
reconhecveis e acessveis como textos pertencentes a um especfico setor do saber.
Desenvolve-se, ento, um discurso que se organiza em funo cognitiva, estrutura-se
para produzir no leitor um efeito de variedade, e em relao a esta estratgia que pede
para ser compreendido (no desde j avaliado em nome da prvia deciso epistemolgica
do intrprete): ele representa um ponto de vista sobre a realidade, a abordagem especfica
de um determinado saber, realizado e consolidado pelo consenso implcito dos membros da
disciplina mesma. o consenso de uma especfica comunidade dos membros da disciplina
mesma. o consenso de uma especfica comunidade de autores que torna possvel a
adoo de estilos e mtodos comuns e especficos de uma determinada tradio cognitiva:
discurso de saber e comunidade disciplinar que produz aquele discurso e se reconhece nele,
implicando-se mutuamente.
possvel, neste ponto, desenhar um mapa esquemtico e aproximativo de diversas
linhas de pesquisa. Estudar historicamente um saber especializado, e assim o saber
jurdico, pode comportar portanto diversos nveis de anlise, entre si distintos ainda que
idealmente complementares: um primeiro objetivo individuar a cifra, o segredo da
unidade e tipicidade do saber, o seu particular modo de conceitualizar a experincia; um
segundo objetivo compreender em que modo a estrutura cognitiva e argumentativa
caracterstica de um determinado saber permite a ele individualizar, impostar, resolver os
problemas para os quais ele se considera especificamente equipado; um terceiro objetivo
de paradigma na histria do pensamento jurdico cf. P. Costa, Lo Stato immaginario, Milano, Giuffr, 1986; P. Costa, La giuspubblicistica dell'Italia unita: il paradigma disciplinare, in A. Schiavone (a cura di),
Stato e cultura giuridica in Italia dallunit alla Repubblica, Laterza, Roma-Bari 1990.
28
entender as formas de vida e as formas institucionais, dentro das quais, graas s quais, o
saber se veio formando e transmitindo.
O paradigma, de outra parte, , como dizia, uma realidade de duas faces, que opera
nos textos de saber, mas junto, finca razes nas estratgias prprias de um grupo social
(de vrios modos institucionalizado), a comunidade dos autores, a comunidade disciplinar
que produz e transmite o saber. Uma interessante diretiva de pesquisa procede ento, por
assim dizer, no a partir do paradigma atravs da estrutura da disciplina, mas a partir do
paradigma atravs da comunidade dos autores. claro que dos textos, como sabemos, o
historiador no pode sair: mas pode, interpretando textos, cruzando entre eles diversos
tipos de textos, construir narrativas que neste caso tentam se fazer compreender no tanto
os contedos do saber disciplinar, quanto as formas daquela interao social na qual os
discursos de saber vieram existir.
Os textos de saber constituem assim de um tipo relativamente homognio de textos
que podem ser estudados em sua especfica validade cognitiva. Entretanto, todos os textos,
e por isso tambm os textos de saber, includos os textos de saber jurdicos, no so apenas
instrumentos de conhecimento: no momento no qual transmitem informaes, eles
modificam comportamentos. Vale assim a morrisiana distino entre uma anlise
semntico-sinttica e uma anlise pragmtica do texto: e para outros poucos textos pe-se
com urgncia, como para os textos de saber jurdico, o problema dos seus efeitos
pragmticos; pe-se, isto , a exigncia de compreender de que modo um texto de saber
faz coisas com palavras, modifica os comportamentos, legitima o deslegitima coalizes
de interesses e estratificaes de poder. O saber-poder de foucaultiana memria, o saber
que inclui necessariamente um momento de poder, adquirida, pelos textos de saber
jurdico, uma capacidade de sugesto e uma persuasividade particular, em muitas direes,
seja pensando-se na relao entre os textos de saber e a comunidade disciplinar, seja
pensado-se na relao entre o jurista e os seus vrios, inevitveis comitentes polticos.
Trabalhar sobre os textos de saber escolher um ponto de observao entre os tantos
possveis: um ponto de observao, no um mundo necessariamente fechado e perfeito.
Ser assim possvel conjecturar pesquisas que trabalham no j sobre o texto homognio
mas, por assim dizer, sobre pontos de interseco, sobre zonas de encontro e sobreposio
de textos diferentes. Estas pesquisas ento podero assim partir da anlise de textos de
saber, mas se perguntaro em que modo, em um contexto dado, o saber alimenta, prepara,
transforma-se em um saber fazer; em que modo, exemplificando, o saber jurdico
acadmico se enxerta na cultura jurdica da prxis jurisprudencial ou da prxis
29
administrativa e vice-versa. Respectivamente, a anlise da comunidade disciplinar se
complicar com a anlise comparativa de outros grupos profissionais, na tentativa de
compreenso dos diversos lugares sociais que o jurista pode a cada vez assumir.
So, estes, breves e rpidos acenos a uma linha de pesquisa imaginvel dentro de uma
anlise voltada quele tipo de texto que chamei texto de saber ou texto disciplinar jurdico.
Tratam-se de exemplos extemporneos, que no valem nem como um articulado programa
de pesquisa nem como um ngulo de observao sobre as atuais pesquisas histrico-
jurdicas14
, mas que servem apenas para sugerir uma entre as numerosssimas
possibilidades de movimento em um campo que o abandono das certezas tradicionais
deixou aberto e indeterminado, privado de vnculos, mas tambm de indicaes, livre de
rgidos limites, mas tambm desprovido de uma precisa configurao: agora que j surgem
menos, de um lado, as grandes narrativas, de outro, aquela pequena narrativa que eu
gostaria de chamar o savignismo eterno da histria do direito, do qual Betti havia, por
ltimo, fornecido a mais sofisticada e robusta fundao.
Espalhar uma pitada de anarquismo metodolgico na ordenada cidadela histrico-
jurdica significa em substncia aproximar-se dos textos renunciando a certezas prvias: a
uma preventiva hierarquizao da experincia e a uma idia do jurdico como estrutura
unitria da experincia. Significa olhar os textos de saber sem pretender que eles exprimam
e exaltem a essncia do jurdico: significa olhar aos textos disciplinares jurdicos sem se
por necessariamente dentro da tradio, sem inserir-se no bettiano processo circular que
transcorre do presente ao passado na inaltervel unidade da cincia jurdica e do seu
circular desenvolvimento.
Olhar os textos de saber jurdico anarquisticamente significa fazer dar um passo fora
da sua tradio e olha a disciplina jurdica e a sua histria de um ponto de observao
destacado com relao a ela. Perguntamo-nos, ento, de que modo o saber se estruturou,
funcionou, produziu significados, enfrentou e resolveu problemas, expressou o seu ponto
de vista sobre a realidade; no assumimos propriamente uma doutrina jurdica, no nos
identificamos com a dogmtica dos nossos dias em toda a sua organizao sistemtica
global; no decidimos sobre a verdade de uma ou de outra teoria. Comportamo-nos
frente aos textos de saber jurdicos como o entomologista frente s abelhas: seguindo-as
diligentemente, diria amorosamente, o vo, os hbitos, a vida; sem, entretanto, pretender
entrar na colmia para colaborar na produo de mel.
Emerge, ento, a propsito disto, a pergunta ligada ao tema a que serve a histria do
14
Para uma apresentao da atual historiografia jurdica italiana cf. A. Mazzacane, Tendenze attuali della
storiografia giuridica italiana sull'et moderna e contemporanea, in Scienza & Politica, 6, 1992, pp. 3-26.
30
direito. A pergunta, trivial na sua corrente formulao, revela-se na realidade fundamental
se a entendemos como uma pergunta sobre o sentido da operao hermenutica que como
historiadores do direito tentamos compreender. No possvel, agora, nem ao menos
inscrever uma pergunta assim complexa. Vale apenas, conclusivamente, aceno que se
conecte com a diagnose o, para melhor dizer, com a impresso da qual parti: se verdade
que as grandes narrativas perderam muito de sua eficcia persuasiva, ento tambm a
pergunta sobre o sentido da operao historiogrfica dever ser novamente inscrita.
A idia de um saber progressivo e emancipatrio ligava-se via de regra ao
compartilhamento das grandes narrativas omnicompreensivas, conectava-se em particular
com o modelo positivista e marxista e reverberava seus efeitos sobre a interpretao
historiografia legitimando-a como captulo de uma prxis de libertao. A crise destes
modelos tornou sem dvida mais problemtica a conexo entre saber historiogrfico e
emancipao ou progresso. Em uma perspectiva hermenutica, talvez o sentido da
operao historiogrfica poderia ser referido no a um geral projeto emancipatrio, mas a
uma mais modesta e sugestiva, mas no transcurvel, lgica do confronto: e poder-se-ia
pensar, ento, na interpretao historiogrfica como um exerccio de curiosidade e de
paixo com relao ao diferente, ao longnquo, ao disforme; um exerccio de compreenso
transcultural, similar na substncia ao trabalho do etnlogo, que aceita o desafio da
diversidade jogando no com o fator espao, mas com o fator tempo.
31
Em Busca de Textos Jurdicos: quais textos para qual historiador?
i
1. As pressuposies hermenuticas do historiador
Eu gostaria de comear propondo uma das questes mais recorrentes em nosso
trabalho: com que tipo de histria lida o historiador do direito?
A apresentao adequada deste problema demandaria a discusso de dois assuntos
distintos, mas conectados: deveramos primeiramente apontar as caractersticas do
conhecimento histrico em si, para ento nos concentrarmos nos tpicos particulares da
histria do direito. Eu no posso, porm, abordar uma gama to ampla de problemas
hermenuticos em minha conferncia. Devo, portanto, apresentar um enunciado no
comprovado, um axioma sobre o qual minha exposio se apoiar: entendo a historiografia
como uma operao de compreenso de textos. De acordo com este axioma, a
historiografia um tipo especfico de hermenutica.
Se a historiografia algo como a compreenso de textos, torna-se evidente a resposta
primeira questo, acerca do estatuto da histria do direito: a histria do direito a
interpretao de textos jurdicos. Ento, a verdadeira questo que devo discutir a
seguinte: o que so textos jurdicos para um historiador do direito? O que torna um texto
jurdico? Como uma suposta natureza jurdica diferencia alguns textos dos inumerveis
textos de que composta uma cultura?
Podemos seguir duas diferentes abordagens para responder esta questo. Uma primeira
abordagem (digamos objetivista) leva em considerao o texto em si, tentando identificar
caractersticas substanciais ou formais capazes de torn-lo objetivamente jurdico. Uma
segunda abordagem (subjetivista) se refere ao sujeito, ao leitor, levando em considerao a
relao hermenutica que se desenvolve entre o intrprete e o texto.
Eu gostaria de seguir a segunda abordagem, e comearei a desenvolver minha linha de
raciocnio com um exemplo: o Corpus Juris, um texto que pode ser considerado como o
emblema de cada texto jurdico possvel. Todo historiador do direito est, ou pensa estar,
Traduo do ingls de Walter Guandalini Jr. (doutorando do PPGD/UFPR e professor nas Faculdades Dom
Bosco). i Publicado em D. Michalsen (ed.), Reading Past Legal Texts, Unipax, Oslo 2006, pp. 158-181.
32
familiarizado e vontade com este texto. Na verdade, um texto muito distante de ns:
dezenas de sculos nos separam da data de sua redao. Ele compartilha com cada texto do
passado uma caracterstica importante: por meio dele o intrprete se depara com um
mundo seriamente diferente, com um universo de significados distante e enigmtico, com
uma realidade que desafia sua atitude hermenutica e a torna inevitavelmente
problemtica.
Por que primeira vista o Corpus Juris gera uma impresso oposta no historiador do
direito, que o percebe como um texto familiar e prximo sua prpria experincia? Pode
ser em razo da interveno de algo que reduz a distncia entre o presente e o passado e
age como um poderoso suporte do processo hermenutico: a tradio. O Corpus Juris foi
escrito no sculo seis, mas bem conhecido o fato de que sua existncia textual foi
impressionantemente longa. Ele foi redescoberto no sculo doze, ininterruptamente lido e
anotado na era do ius commune, tornou-se a base da nova abordagem sistemtica da
Pandektenwissenschaft durante o sculo dezenove e finalmente foi estudado como mero
documento histrico pela abordagem historicista.
essa longa e contnua tradio que (apesar de suas transformaes internas) torna o
Corpus Juris familiar e prximo. E essa tradio que o torna um texto indubitavelmente
jurdico. Ns no lemos o Corpus Juris suspensos em um espao vazio de quatorze
sculos. Ns o lemos apoiados sobre o slido alicerce de uma tradio contnua que no-lo
entrega e o torna parte de nossa cultura corrente. Apenas porque essa tradio um
componente importante de nossa cultura que consideramos o Corpus Juris um texto
jurdico e com significado.
Eu gostaria agora de inferir algumas consideraes mais gerais deste exemplo. Para
isso devo me referir aos principais, e bem conhecidos, aspectos do processo hermenutico.
O intrprete de um texto um indivduo historicamente confinado. Ele no um esprito
puro nem um eco passivo do texto, como se o texto fosse uma arca cheia de significados
fixos e pr-determinados. O texto uma estrutura flexvel, aberta a um indefinido nmero
de significados, e o intrprete quem atribui sentido ao texto e o reescreve. A interpretao
um discurso de segundo nvel, um discurso sobre um discurso. O discurso interpretativo
que construo composto de linguagem, valores e expectativas que compartilho com a
sociedade, os grupos, a comunidade profissional a que perteno. Essas so as
pressuposies culturais que em unssono determinam e permitem cada discurso
interpretativo. Conforme a sugesto do semilogo Umberto Eco15
, podemos definir nossas
15
Cf. U. Eco, Lector in fabula, Bompiani, Milano 1979 e U. Eco, Semiotica e filosofia del linguaggio,
33
pressuposies culturais como nossa enciclopdia. Enciclopdia, nesse sentido, denota
as principais idias compartilhadas pelos membros de um grupo social.
Entendemos o passado da perspectiva de nossa enciclopdia. Nossas pressuposies
culturais so as condies indispensveis do processo hermenutico. So as lentes atravs
das quais olhamos para o passado. So o filtro cultural atravs do qual consideramos um
texto como texto jurdico (ou respectivamente como texto filosfico, literrio ou poltico).
Um desses filtros, um componente importante de nossa enciclopdia , como j apontei, a
tradio. Nossas pressuposies culturais necessitam, de fato, de um horizonte temporal.
Eu sei (pelo menos de forma implcita e subconsciente) no presente o que o direito (ou a
poltica, ou a economia, ou a literatura) porque tomo emprestadas tais noes de uma
tradio que funciona como ponte entre o presente e o passado. Este o tpico crculo
hermenutico. J sabemos (de forma implcita) o que o direito, o que faz de um texto um
texto jurdico, porque uma tradio (que se tornou parte integral de nossa cultura corrente)
denota um fenmeno ou texto como fenmeno jurdico ou texto jurdico.
Assim, a tradio que, atuando como uma de nossas pressuposies culturais, nos diz
qual texto ou no jurdico. Os textos jurdicos no o so por possurem quaisquer
propriedades estruturais; textos jurdicos so aqueles que uma tradio denota como tais. A
tradio apenas um critrio de reconhecimento de textos.
Agora pode ser interessante nos concentrarmos no modo como a tradio funciona.
Em primeiro lugar, a tradio no ocorre como um instrumento neutro e descritivo, mas
sugere um modelo prescritivo. Ela parece comunicar (digamos) a seguinte mensagem: no
haver textos jurdicos alm daqueles que eu tenha declarado como tais. A tradio
governada por um princpio de exclusividade. Ela monopoliza os filtros que nos permitem
definir o carter jurdico de um texto.
Alm disso, a tradio parece existir per se, independentemente de qualquer escolha
ou avaliao individual. , de fato, parte da cultura do intrprete, uma das pressuposies
culturais de suas operaes hermenuticas, mas se apresenta como um mundo objetivo que
o indviduo no pode evitar habitar.
A tradio indubitavelmente um poderoso instrumento de nosso processo
hermenutico. Podemos recorrer a ela com legitimidade e sucesso para realizarmos a
pesquisa histrico-jurdica. Podemos decidir atribuir tradio a tarefa de nos dizer quais
textos devemos considerar como jurdicos. Nesse caso, a tradio que controla o jogo.
Ela nos diz quais textos so textos jurdicos, e assim resolve um dos problemas mais srios
Einaudi, Torino 1984, pp. 70 ff.
34
de toda pesquisa histrica: a construo do corpus de textos pertinentes. Textos pertinentes