Post on 21-Sep-2018
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Contexto histórico, relações intertextuais e ideologia no cinema infantil
Uma análise de O Gigante de Ferro
Raquel Aparecida Cesar da Silva (Universidade de Passo Fundo/ RS)
Fabiane Verardi Burlamaque (Universidade de Passo Fundo/ RS)
INTRODUÇÃO
Baseado em obra do poeta inglês Ted Hughes, O Gigante de Ferro é um longa-
metragem de animação dirigido pelo norte-americano Brad Bird e lançado nos cinemas
dos Estados Unidos no ano de 1999. Realizado através de técnicas tradicionais de
desenho, pintura e filmagem quadro a quadro, o filme apresenta uma trama repleta de
referências a importantes momentos da história norte-americana e também àquilo que o
crítico norte-americano de cinema Roger Ebert chamou de “ET type of story1”, ou seja,
ao momento de encontro entre dois sujeitos provenientes de realidades radicalmente
diferentes, cujos discursos ideológicos se consolidam justamente durante o tempo em
que lhes é dado conviver um com o outro.
Apesar de ter obtido um modesto sucesso de público quando de seu lançamento
nos cinemas, segundo o site IMDB, o filme foi bastante laureado, recebendo, inclusive,
alguns prêmios voltados especificamente para obras cinematográficas infantis, como o
BAFTA2 Children’s Award. Hoje O Gigante de Ferro ocupa o lugar de filme cult,
sobretudo entre os adultos que descobrem nele evidentes ressonâncias de uma reflexão
filosófica e de um discurso ideológico marcadamente pacifista. O robô gigante é na
verdade um armamento bélico, cuja descoberta da existência em tempos de Guerra Fria
entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética – o filme é ambientado no ano de
1957 –, provoca medo e perplexidade entre os habitantes da pequena cidade de
Rockwell, e acaba atraindo a atenção do governo federal.
A intenção a partir da qual o robô é criado, bem como a identidade de seus
criadores, não são reveladas em nenhum momento da obra, justamente porque o que é
importante para o filme – e para o estudo aqui proposto – é a negação, por parte do
gigante, dessa natureza originalmente orientada para a violência. O teórico russo
Mikhail Bakhtin (1997) afirma que o herói de uma criação estética precisa ser entendido
1 Referência ao filme ET – O Extraterrestre, dirigido por Steven Spielberg e lançado nos
Estados Unidos em 1982. 2 Trata-se de um evento do cinema inglês adulto, com uma categoria especificamente voltada
aos filmes infantis. O Children’s Award, portanto, é uma premiação dentro da premiação.
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e recriado por meio do outro, através de uma vivência exterior a si mesmo, para que sua
alma (a representação narrativa da alma) adquira integridade e significação dentro da
obra. O Gigante de Ferro se desvincula de sua origem por meio do relacionamento que
estabelece com o menino e dos símbolos que lhe são apresentados por ele, o que acaba
por evidenciar o processo de reconstrução do discurso produzido por meio do signo
ideológico físico no qual o robô se constitui. A amizade com o menino permite ao
gigante o acesso a uma nova linguagem, cujo significado vai muito além de seu aspecto
exterior.
Os demais temas que fazem parte do enredo geral da animação, e que compõem
uma atmosfera cinematográfica cujo ponto central é o encontro entre o menino e o robô,
contribuem tanto para evidenciar as características infantis da obra, quanto para
distanciar-lhe dos paradigmas pré-concebidos dentro dos quais uma narrativa para
crianças deveria enquadrar-se. Estudos acerca da natureza de obras literárias voltadas
para o público infantil, bem como a melhor maneira de analisá-las criticamente,
aproximados da trama exposta em O Gigante de Ferro, contribuem para evidenciar-lhe
os traços que, muito embora pertençam a uma linguagem artística diferente, colocam-no
sob a mesma perspectiva a partir da qual os estudiosos examinam seus exemplos. O que
já foi dito acerca do filme pela crítica especializada em cinema, representada aqui por
Roger Ebert, em consonância com as ideias dos pesquisadores de literatura infantil,
auxiliam na melhor compreensão do contexto histórico e de sua representação em obras
relacionadas à infância.
O trabalho aqui apresentado tem como principal objetivo evidenciar a
complexidade da história e da realização de O Gigante de Ferro, capaz de torná-lo uma
experiência estética singular, para além de categorias dentro das quais seus elementos
narrativos poderiam encerrá-lo. O artigo divide-se em três momentos: uma seção
dedicada ao exame dos elementos narrativos e intertextuais da obra à luz das percepções
de Ebert e das ideias de críticos e estudiosos de narrativas infantis, uma seção contendo
a resenha do recorte teórico de Mikhail Bakhtin e uma análise final, onde os signos
ideológicos através dos quais o robô – aqui entendido como o herói do filme – se
expressa, encontram-se traduzidos por meio dos postulados bakhtinianos expostos
previamente. Delimitar as características internas da obra, tais como personagens,
ambientes e período, e relacioná-las não apenas com o contexto social que representam,
mas também com as demais obras às quais aludem, direta ou indiretamente, por meio de
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teorias e pensamentos críticos, significa aproximar linguagens e comprovar o valor
estético de uma bela história.
1 ENQUANTO O GIGANTE NÃO VEM: REALISMO E INTERTEXTUALIDADE
NA HISTÓRIA
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que, muito embora se trate da adaptação
de uma obra literária, O Gigante de Ferro será sintetizado e analisado aqui
exclusivamente em sua versão cinematográfica, sem que sejam feitas, em momento
algum, alusões ao conteúdo do trabalho escrito de Ted Hughes. O filme, lançado em
1999 e ambientado no ano de 1957, é repleto de referências à história e a determinados
ícones da cultura estadunidense, que possuem importância crucial tanto para o
desenvolvimento da trama quanto para sua compreensão. A natureza claramente
intertextual da obra, portanto, lhe confere riqueza e autonomia, permitindo-lhe ser
descrita e estudada exclusivamente em seus próprios termos.
O filme começa, já, com uma referência histórica: o satélite Sputnik, lançado ao
espaço pelos russos no mesmo ano em que a história toma lugar aparece na primeira
cena da animação. O objeto que gravita em torno da Terra tem a foice e o martelo,
símbolo da então chamada União Soviética, gravados em sua lateral. Ainda não se pode
saber a real dimensão que o objeto ocupará na trama, mas já se pode depreender que
algo de importante sairá dali. O contraste entre imagens animadas e a exposição de um
signo amplamente associado – via de regra pelo senso comum – à ideologia comunista,
evidencia a iminência de uma história cujos desdobramentos suplantarão em muito
aquilo que se espera de uma narrativa tradicionalmente infantil. Porém, é no que ambos,
imagens animadas e símbolo ideológico, possuem de convergente, que o longo caminho
alusivo de O Gigante de Ferro se inicia.
Lançado pela produtora Warner Brothers, o filme abre com o logotipo da
empresa – um escudo com as iniciais WB –, cujo braço animado da companhia tem no
coelho esperto e algo sarcástico, Pernalonga, seu mais notório representante. É Roger
Ebert (1988) quem aponta, a propósito do lançamento de Who Framed Roger Rabbit3
3 Dirigido por Robert Zemeckis, Uma cilada para Roger Rabbit inovou ao misturar personagens
de desenho animado com atores reais, em uma trama que alude a temas e ícones pertencentes a ambos os universos.
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nos cinemas, a estreita relação entre os old school movie cartoons realizados durante as
décadas de 30, 40 e 50 do século passado e a situação política e social atravessada pelos
Estados Unidos no período. Uma das séries de desenhos animados produzida e lançada
pelo estúdio dos irmãos Warner na década de 1940 foi batizada de Looney Tunes e se
configurou na grande responsável pela consolidação de Pernalonga como um dos
maiores ícones da cultura popular norte-americana. Durante os primeiros anos de
produção da série, os Looney Tunes protagonizaram tramas de espionagem, mistério e
sedução – inclusive com veladas insinuações sexuais –, bem como histórias de cunho
social, que representavam a condição de pobreza extrema da legião de desempregados
da grande depressão econômica.
A primeira cena do filme, portanto, além de se constituir em uma representação
simbólica do medo e da paranóia provocados pela guerra fria, principais elementos
problematizadores da obra, é um retorno ao passado das animações, onde os desenhos
planos, em duas dimensões, encerravam possibilidades de exploração de temas tão
complexos quanto perigosos. Entretanto, O Gigante de Ferro difere dos cartoons
clássicos norte-americanos não apenas por ter sido produzido e lançado recentemente
ou, ainda, por ser a adaptação de uma obra literária inglesa, mas porque o
distanciamento histórico dentro do qual tem sua história situada, bem como os detalhes
realistas de sua trama, não permitem que o filme seja relacionado ao conteúdo
claramente alegórico e panfletário dos desenhos lançados durante as primeiras décadas
do século passado.
O teor potencialmente político de O Gigante de Ferro se dilui rapidamente com
o decorrer o filme, sobretudo quando começamos a vislumbrar o perfil dos habitantes da
cidade de Rockwell e a maneira como se relacionam uns com os outros. As personagens
do filme são suficientemente bem construídas para sustentarem conflitos de natureza
realista, que poderiam ser enfrentados por pessoas de qualquer lugar do mundo, em
qualquer período dos últimos 100 anos; muito embora tais conflitos permaneçam em
segundo plano, funcionando como o cenário sobre o qual a história principal acontece.
Hogarth Hughes, o protagonista4 do filme, é um menino de 9 anos que vive em uma
4 Durante a análise aqui proposta será feita uma diferenciação entre os termos “protagonista” e
“herói”, baseada em alguns aspectos da teoria bakhtiniana e em definições amplamente utilizadas pela crítica especializada em cinema. Hogarth é o protagonista porque está situado no centro da imensa maioria das cenas, e o robô é o herói do filme por ser ele o objeto da reconstrução discursivo-ideológica do eu.
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casa afastada da cidade onde nasceu e onde a mãe trabalha como garçonete; é a esse
menino, filho de uma mulher solteira trabalhando fora de casa nos anos 1950, que
caberá a condução da história, bem como grande parte da responsabilidade no destino
final do robô. E é justamente quando o gigante de metal entra em cena e começa a
interagir com o menino que o filme adquire os contornos de uma história real. O
Gigante de Ferro é um longa-metragem de difícil qualificação: é um desenho animado
com características de ficção científica, aventura, comédia dramática e fantasia. A única
definição sobre a qual todos parecem acordar é que se trata de uma obra infantil e, para
muitos, uma denominação tão generalista quanto essa significa tudo que é preciso saber
para se assistir, ou não, a um filme.
Depois que o gigante “cai” na Terra, o filme passa a se dedicar ao menino
Hogarth, à sua personalidade, e ao modo como ele interage com as pessoas e os objetos
de seu cotidiano. O jovem protagonista da trama é uma personagem muito bem
construída, dotada de características típicas de qualquer menino de 9 anos – curiosidade,
destemor e desobediência, são algumas delas –, porém com especificidades de
comportamento e personalidade que o singularizam. Hogarth é, a trama parece indicar,
uma criança solitária, incompreendida pelos colegas de escola e que procura em
pequenos animais de estimação e em filmes e revistas de super-heróis a companhia e a
amizade que lhe são sonegadas pelos humanos. A fantasia, portanto, faz parte da
realidade do menino, sendo, inclusive, indissociável da forma aberta e generosa através
da qual ele se torna responsável pela “educação terrestre” do robô. As pessoas com as
quais Hogarth convive constituem um painel bastante eloquente do american way of life
da primeira metade do século passado, com seus trabalhadores beberrões, seus artistas
locais, seus burocratas engravatados, todos vivendo apartados uns dos outros, presos às
reminiscências da II Guerra Mundial e ao pavor de um iminente holocausto atômico.
Annie Hughes, a mãe de Hogarth, sustenta o filho sozinha, trabalhando num
Diner e, muito embora não acredite na palavra do menino sobre a existência de um robô
gigantesco, é tolerante e compreensiva para com ele. Outra personagem importante para
a trama é o dono do ferro-velho local, Dean, uma personagem cuja figura lembra
bastante o modo de vestir, falar e agir da juventude “rebelde sem causa” dos anos 50,
que teve em Marlon Brando e no seu quase homônimo James Dean seus principais
representantes cinematográficos. Annie e Dean parecem habitar as margens da cidade
de Rockwell, tanto física como socialmente, uma vez que ambos moram em lugares
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retirados e suas relações pessoais, pelo menos aquelas que são mostradas dentro do
espaço-tempo da história, não vão além de conversas superficiais trocadas com colegas
ou clientes profissionais. A solidão e o isolamento das três personagens, no entanto,
vem a ser justamente o que acaba por garantir ao robô a possibilidade de se manter
incógnito por cerca de três quartos da trama, período no qual o menino estabelece com
ele uma relação genuína de confiança e afeto.
Hogarth, Anne e Dean podem ser considerados os “mocinhos” da trama, porque
a eles se opõe um vilão cuja intenção é não apenas comprovar a existência do gigante
para o governo federal, como também incitar seus representantes – o exército – a
eliminá-lo sumariamente. Quando Kent Mansley, o agente enviado para verificar a
veracidade dos rumores sobre uma criatura enorme que, depois de cair no mar, andaria
pelos arredores da cidade a devorar objetos e construções de metal, o filme aproxima-se
pela primeira vez do fantasma da “facilidade” temática que, segundo Regina Zilberman
(1987), vem acompanhando a literatura infantil desde seu surgimento no século XVIII
até os dias de hoje. Mansley força os limites entre o arquétipo e o estereótipo, porque
personifica o sentimento de medo e paranóia do período e porque sua construção, desde
a figura física, cujo destaque é um queixo pronunciado, quase draculesco, passando pela
obstinação que demonstra em encontrar e destruir o robô, até chegar à maneira como se
expressa – and all that that implies é o bordão que repete constantemente para
convencer seus interlocutores de que todo e qualquer fato possui desdobramentos –
destoa sutilmente das demais personagens. Kate Mansley é rígido e imutável em sua
representação estética e ideológica.
Porém, o que pode ser considerado fácil em O Gigante de Ferro é aquilo que
pode ser considerado fácil em grande parte dos filmes de aventura e fantasia e não
apenas naqueles voltados exclusivamente para o público infantil. A história do cinema,
segundo Roger Ebert, foi feita da construção e desconstrução sistemática de
comportamentos e posturas exemplares, que, em maior ou menor grau, ajudaram a
moldar as expectativas do público, qualquer público, de uma obra cinematográfica. O
agente federal é a única personagem que se mantém pensando e agindo de acordo com o
pavor nuclear herdado pela geração posterior à descoberta e utilização da bomba
atômica e, se isso faz dele o vilão, é tão somente porque num filme, muito mais do que
numa narrativa escrita, como um conto ou romance, a intransigência é, quase sempre,
sinônimo de antagonismo. Em oposição ao menino, cuja coragem e abertura para
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enfrentar o inesperado e receber o desconhecido são marcas tanto de sua idade quanto
do lugar que lhe coube ocupar na trama, Kent Mansley adquire também sua parcela de
profundidade.
A realização técnica da obra, a despeito da simplicidade do resultado final, é um
dos fatores que contribuem para que seus elementos possam ir muito além daquilo que
parecem ser numa primeira observação do universo narrativo do filme. A sincronia
entre as cenas animadas e a dublagem das vozes permite ao longa um ritmo muito
semelhante à de qualquer trabalho live-action, com atores de carne e osso e cenários
reais. Hogarth, por exemplo, é uma personagem cujos movimentos e palavras
acompanham à perfeição o raciocínio ágil e a disposição para as façanhas físicas de um
menino de 9 anos; o gigante, por sua vez, movimenta-se com a lentidão e a gravidade
esperada de uma criatura de 30 metros de altura feita inteiramente de metal. E é também
essa atenção conferida à concepção e criação dos detalhes do filme que, segundo Ebert,
“make you forget from time to time that these are moving drawings, because the story
and characters are so compelling5”.
Roger Ebert lembra, ainda, que O Gigante de Ferro é uma das obras que melhor
evidenciam a liberdade de concepção e realização encontrada pelos cineastas no
universo das animações tradicionais. A construção do gigante, em um filme “real”, não
custaria menos de 100 milhões de dólares, o que acabaria por amarrar o trabalho a uma
obrigatoriedade de resultados financeiros – o que certamente lhe cercearia a
originalidade – e por concentrar grande parte da atenção dos expectadores nos efeitos
visuais, em detrimento da história e, para o crítico norte-americano, o longa metragem
é, antes e acima de tudo, uma bela história, narrada de uma maneira envolvente. Ebert
afirma que, mais do que simplesmente aludir ao fato, o filme é, verdadeiramente, uma
parábola da Guerra Fria, na qual a criança ensina a um robô criado para ser e fazer o que
se espera de uma arma de destruição em massa, que somos aquilo que escolhemos ser, e
que é errado ferir e matar, em qualquer circunstância. O fato de ser ambientado nos anos
1950 é parte indissociável daquilo que se pode buscar compreender sobre a animação, e
parte indissociável dos gêneros dentro dos quais ela poderia ser enquadrada, sendo a
ficção científica o mais evidente.
5 Do original, em tradução livre: “fazem com que você esqueça, de tempos em tempos, que se
trata de desenho animado, porque a história e as personagens são muito convincentes”.
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Teresa Colomer (2003), em um estudo acerca do perfil da narrativa juvenil e
infantil atual, lembra que a ficção científica se consolidou como gênero literário a partir
do início do século XIX, com a publicação de Frankenstein. Para a pesquisadora
espanhola, as obras que vieram na esteira da criação clássica de Mary Shelley e que
estabeleceram, por assim dizer, o cânone do gênero, estiveram durante muito tempo
afastadas do público infantil por conta das descrições técnicas nas quais a uma narrativa
de ficção científica deve forçosamente estar baseada, e também por aquilo que ela
chama de “complexidade de sua possível especulação moral”. Essa especulação
mencionada por Colomer – utilizando ainda o exemplo da obra de Shelley, na qual um
cientista visionário recria vida a partir de corpos mortos – nos dias de hoje, passa de
possível a evidente. E ela prossegue:
Mas o crescimento do romance juvenil, a partir dos anos 70, propiciou
sua [da ficção científica] aceitação nesse corpus literário. Ao mesmo
tempo, a crescente complexidade tecnológica atual começou a
dificultar a possibilidade de uma especulação científica compreensível
para o público e admitiu uma certa presença de fatos e personagens
simplesmente estranhos, que aproximaram a ficção científica às
formas da fantasia tradicional e facilitaram, pois, sua assimilação por
parte da narrativa infantil e juvenil. (COLOMER, 2003, p. 195)
Se lembrarmos das palavras de Regina Zilberman acerca da maneira como a
necessidade da presença do fantástico em obras destinadas ao público infantil contribui
tanto para garantir a esse segmento uma parcela genuína de criatividade temática,
quanto para encerrá-lo dentro de uma obrigatoriedade que lhe compromete a
verossimilhança, a aproximação mencionada por Colomer torna-se menos uma solução
do que o prolongamento do problema. A narrativa de ficção científica, no que diz
respeito a obras infantis e juvenis, parece ter encontrado um ponto de consonância com
a fantasia justamente naquilo que ambas possuem de inverossímil, e de superficial; sem
a possibilidade de que suas “especulações científicas e morais” sejam percebidas e
examinadas.
Em O Gigante de Ferro, entretanto, ficção científica e ficção fantástica ocupam
exatamente o mesmo lugar de representação, porque uma não funciona sem a outra; e
ambas se encontram no espaço de interação entre forma e conteúdo, apontado por Peter
Hunt como um dos fatores que mais influenciam a maneira como a crítica observa a
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narrativa infantil. Para o pesquisador britânico, mais importante do que constatar o que
uma criança consegue ou não compreender em uma obra, é perceber as formas através
das quais essa obra se mostra capaz de representar a totalidade narrativa que emerge do
embate entre as situações de problema que se estabelecem ao longo da história, e suas
resoluções (HUNT, 2010). Hogarth vive em um mundo à parte, feito de revistinhas de
super-heróis e “scary movies” e o universo alegórico de sua infância reside todo no
imaginário tecnológico daquele período específico. Para o menino, a ficção científica é
a única fantasia que existe, e é por meio de sua materialização na figura do robô – cuja
descoberta é tão possível quanto improvável de acontecer no tempo presente, como em
toda ficção científica –, que ele resolve seus conflitos.
Nesse sentido, alguns momentos do filme são bastante ilustrativos: Kent
Mansley, a certa altura, faz referência ao Sputnik afirmando que seu enorme perigo
reside tanto no fato de ter sido criado por estrangeiros, quanto na impossibilidade de seu
país de vigiá-lo da mesma maneira como o satélite os vigia. A ameaça da “era atômica”
encontra-se menos naquilo que ela representa de fato do que naquilo que se pode
imaginar sobre ela. A paranóia do agente, ressaltada como traço principal de sua
personalidade, apesar de baseada em informações e acontecimentos reais, possui
proporções fantasiosas e, o filme parece afirmar, descabidas. Outro momento
importante é quando Hogarth pede a Dean para que acolha o robô em seu ferro-velho,
alegando que seria o espaço perfeito para se esconder um enorme “devorador de metal”.
Dean é um artista cujo trabalho com sucata possibilita a matéria prima para a criação de
suas peças; ele torna belo o que para os outros já não possui utilidade alguma. Vivendo
isolado da cidade, o dono do ferro-velho não pode afirmar com certeza se é “a junkman
who makes art or an artist who sells junk”6 e é exatamente essa indefinição, essa
condição ambígua de sua própria identidade, o que permite a ele ter condições de ajudar
ao menino e ao robô, porque, se com o espaço e “alimento” de que dispõe pode
acomodar o gigante, é muitas vezes em meio às suas palavras que Hogarth vai buscar os
ensinamentos que transmite a seu amigo de metal.
A aproximação entre os elementos de sci-fi e fantasia na obra aqui estudada não
acontece através da simplificação de ambos os universos, de uma redução da
complexidade de sua estrutura e conteúdo até um plano comum mais visível e
6 Em tradução livre: “um vendedor de sucata que faz arte ou um artista que vende sucata”.
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quantificável, como é o caso da admissão por si só da presença do estranho mencionada
por Colomer, ou da aceitação pura e simples do que parece inverossímil sob todos os
ângulos. Não são coelhos, patos ou porcos falantes que precisam lidar com os dramas de
um cotidiano feito de trabalho duro, solidão, medo e incomunicabilidade. Em O Gigante
de Ferro, a fantasia encontra-se atrelada ao realismo do filme, e não existe possibilidade
de que seu principal destinatário não seja capaz de compreender-lhe as referências
intertextuais ou aquilo que nele permanece inclassificável, porque deixar-se encantar
pela história antes mesmo de reconhecer-lhe todos os signos, como crianças deixam-se
encantar pelo que é belo e simples antes mesmo de perceber-lhe os desdobramentos, ou
como Hogarth deixa-se encantar por um gigante de metal antes mesmo de conhecer-lhe
a origem e o destino, é, ontem e hoje, o passo mais importante para apreciar e
compreender um objeto estético, seja ele literário ou cinematográfico.
2 O HERÓI DA OBRA: CRIAÇÃO ESTÉTICA E RECRIAÇÃO IDEOLÓGICA
Para Mikhail Bakhtin, o homem criado na e pela arte, exterioriza sua consciência
através de um discurso que é primordialmente ideológico, porque composto de signos
que se encerram num bloco intencional único que, ainda que guarde uma enorme
variação de sentidos, forçosamente será observado a partir de um ponto de vista
delimitado. O valor “plástico-pictural” do herói de uma construção estética é
absolutamente exteriorizado; ele é aquilo que é capaz de mostrar ser, por meio dos
gestos que pratica e das palavras que pronuncia. A alma, aqui entendida como a
vivência interior do homem na arte, nesse sentido, é parte de uma reconstrução de fora
para dentro, de uma refração dos signos capturados na fronteira entre o eu e o outro
(BAKHTIN, 1997, p. 114 -116).
É importante considerar que Bakhtin trata de narrativas escritas, nas quais a
palavra, mais do que ser o que o teórico russo chama de “signo ideológico por
excelência”, é o próprio suporte sobre o qual é fixada a intencionalidade do autor do
objeto estético (BAKHTIN, 1995, p. 36). Numa manifestação artística cinematográfica
que, por mais que seja pontuada por diálogos, faz da imagem em movimento a
expressão maior de sua discursividade, o valor plástico-pictural compreende a totalidade
da obra. Tudo pode ser analisado e julgado no espaço da intersubjetividade mediante a
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observação visual, e o que se pode depreender dela. A forma do homem estético, no
caso específico de um filme, é particularmente devedora da contemplação do outro; e,
segundo Bakhtin, numa criação artística, a própria existência do eu é devedora de tal
contemplação:
Quando a vivo fora de mim, no outro, essa vivência comporta uma
exterioridade interna voltada para mim, apresenta-me uma face interna
que posso e devo contemplar com amor, guardar em minha memória,
assim como guardo a lembrança de um rosto (e não do modo que
guardo a lembrança de minha própria vivencia passada), devo validar,
modelar, amar, acariciar com um olhar interior e não com um olhar
fisiológico, externo. Essa exterioridade da alma do Outro, semelhante
a um tênue invólucro carnal, é precisamente o que constitui a
individualidade artística, intuitivamente perceptível: o caráter, o tipo,
etc., a refração do sentido da existência, a refração e a condensação do
sentido na individualidade, a carne interna mortal de que se reveste o
sentido – tudo o que pode ser idealizado, heroificado, ritmizado, etc.
(BAKHTIN, 1997, p. 117-118)
A longa citação acima diz respeito à recriação do outro para além das fronteiras
fisiológicas do corpo do outro. Amar e acariciar, nesse caso, equivale a modelar e
validar, e aquilo que é validado pelo outro é menos uma existência física do que uma
ideia de existência física, percebida no momento do relacionamento interpessoal,
traduzido pelo olhar, pela palavra e pelo toque. O sentido de que se reveste a
individualidade é oferecido pelo olhar exterior, porque apenas ele é capaz de “idealizar”
a subjetividade interna e torná-la algo mais do que uma simples abstração encerrada em
si mesma. Bakhtin aproxima tais conceitos da “estética expressiva”, opondo-a à
“estética impressiva”, para a qual o valor intrínseco de um objeto de arte encontra-se
limitado àquilo que seus componentes externos oferecem em termos de significado, e
afirma que, para a primeira, “o objeto estético é expressivo enquanto tal, é a
representação externa de um estado interior” (BAKHTIN 1997, p. 79).
A presença do eu e do outro em uma narrativa cinematográfica, portanto, força
os limites entre a impressão e a expressão, entre o que é puramente visual e o que, muito
embora encontre ressonância no exterior, é composto de signos e discursos interiores,
que demandam interação ideológica. Porém, o próprio teórico russo, no decorrer de seu
pensamento, constata que uma definição tal como é a da estética expressiva, que diz
respeito à percepção de uma externalidade representativa de signos internos, também é
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falsa, justamente porque parte do princípio de que pode haver a apreensão e recriação
do eu como um todo no espaço da percepção do outro, no espaço da vivência
interacional. Para Bakhtin, “o todo estético não é algo para ser vivido, é algo [sim] para
ser criado”, mas essa criação acontece ainda dentro do espaço da individualidade
cognitiva do eu (BAKHTIN, 1997, p. 80-83).
Uma das maneiras através das quais a individualidade do eu pode ser
verdadeiramente percebida e transformada em discurso – cultural, ideológico, narrativo
– numa obra artística, é a consciência de finitude, de antecipação da morte, que permite
que a manifestação da alma individual seja apreendida e recriada de maneira quase
completa pelo outro. Bakhtin entende, ainda, que a ingenuidade de um herói estético é
pressuposto básico de sua existência, porque é a prova de que seu autor, bem como o
recriador de seu discurso dentro do universo narrativo – ambos não precisam,
necessariamente, comungar de uma única voz –, apesar de moldarem-lhe a alma, não se
confundem jamais com ela (BAKHTIN, 1997, 142-144). Ingenuidade e consciência de
finitude, assim, são formas de sobrevivência da individualidade do herói, porque lhe
asseguram a posição de objeto contemplado ao mesmo tempo em que permitem que seu
contemplador, ao reconstruir-lhe o sentido discursivo, valide sua presença na obra.
3 NO ATOMO, I SUPERMAN: AO ROBÔ, FINALMENTE, UMA VOZ
Em primeiro lugar é preciso que se conheça um pouco mais da trajetória do
gigante de ferro na obra, porque é por meio dos gestos por ele praticados ao longo do
filme que se tornam evidentes tanto a sua natureza original quanto a influência do
menino sobre seu modo de agir e pensar acerca dos humanos e de si mesmo. Logo após
cair na Terra, o robô se refugia em uma floresta localizada nos arredores da cidade de
Rockwell e é encontrado por Hogarth durante um incidente em uma torre de energia
elétrica. O gigante é eletrocutado ao tentar arrancar os componentes de metal da torre
para se alimentar e é salvo pelo menino, que desliga a alavanca de força. A partir desse
momento a criança e o robô tornam-se inseparáveis, e o processo de reconstrução
ideológica do segundo tem início.
O laço de amizade que une os dois personagens se torna mais e mais forte na
medida em que eles atravessam as dificuldades provocadas pela perseguição incansável
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do agente Kent Mansley e descobrem juntos os perigos da vida, representados na obra
pelo medo e pelo ódio que o robô é capaz de despertar nos habitantes de Rockwell. O
gigante de ferro é verdadeiramente uma arma de guerra, construída para atacar e, no
entanto, antes que se passe mais de uma hora de filme, não podemos ter certeza disso.
Em duas cenas em especial, a primeira logo após Mansley se apresentar à Hogarth e à
sua mãe e a segunda depois que o menino finalmente consegue convencer Dean a
aceitar esconder seu amigo no ferro-velho, torna-se explícita a maneira pela qual os
autores da obra fazem da criança o espelho no qual o gigante enxerga aquilo que deseja
se tornar. Mas antes de descrever e analisar tais sequências, é preciso refazer alguns dos
passos do “homem de metal”.
Depois de encontrar o gigante e salvar-lhe a vida na torre de energia, Hogarth
começa lentamente a interagir com ele, ensinando-lhe palavras e surpreendendo-se com
a rapidez com que seu amigo apreende as lições. O início do relacionamento entre o
menino e o robô não difere muito do modo como o primeiro tentava se relacionar com
seus animais de estimação, e o fato de o segundo ser capaz de falar parece menos um
ato consciente do que mero mimetismo, o que leva Hogarth a considerar o robô, em um
primeiro momento, como uma descoberta sua, equivalente aos guaxinins e esquilos que
encontrava durante as brincadeiras e, através do afeto, procurava transformar em
amigos. Desde o princípio o gigante se mostra imensamente grato ao menino e procura
imitar-lhe não apenas as palavras, como também os gestos; e Hogarth não demora muito
para perceber que finalmente encontrou um companheiro de fato, alguém com quem
poderá compartilhar seus gostos e, principalmente, sua maneira de enxergar a realidade.
O relacionamento entre Hogarth e seu amigo se fortalece na mesma medida em
que a permanência do gigante na cidade se torna insustentável. Kent consegue, por meio
de uma fotografia que descobre na máquina do menino, fazer com que o exército entre
em Rockwell, causando pânico generalizado na população e despertando no robô sua
adormecida natureza bélica. Em seus momentos finais, O Gigante de Ferro volta a
evocar algumas obras que fazem parte da história do cinema mundial. Em algumas das
últimas sequências do filme o robô carrega Hogarth nas mãos enquanto tenta escapar à
perseguição dos militares, lembrando a clássica cena de King Kong (1933), na qual o
enorme gorila escala o Empire State Building, em meio a aviões e rajadas de
metralhadora, carregando a atriz Fay Wray entre os braços. E a maneira furiosa com que
o gigante é atacado remete à perseguição cega sofrida pela criatura concebida pelo Dr.
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Frankenstein na já mencionada obra literária homônima de Mary Shelley, e que teve em
Boris Karloff, no filme dirigido pelo cineasta inglês James Whale e lançado em 1931,
uma de suas mais marcantes representações cinematográficas.
Porém, é na comparação entre o herói de O Gigante de Ferro e a figura icônica
de Superman que pode ser melhor percebida a maneira através da qual a identidade do
robô é recriada por meio dos signos que lhe são oferecidos pelo menino nos momentos
de interação entre eles. O próprio aspecto físico do gigante parece ter sido criado de
maneira e aproximá-lo das representações do Homem de Aço. O robô possui ombros e
tórax largos, cintura fina e em seu rosto se destaca uma mandíbula quadrada, angulosa,
características que o tornam muito semelhante a algumas das principais imagens do
Superman imortalizadas em histórias em quadrinho e desenhos animados, assim
também como em filmes e seriados live-action ao longo de boa parte do século XX.
Aliadas a determinadas posturas adotadas pelo gigante ao longo do filme, tais
semelhanças potencializam a impressão que temos de que o gigante não é uma máquina,
mas um herói, bravo e bom.
A personagem criada pelos norte-americanos Jerry Siegel e Joe Schuster durante
as primeiras décadas do século passado é um alienígena enviado para a Terra pelos pais
às vésperas da destruição de seu planeta natal por um enorme meteorito quando ainda
não passa de um bebê, e que é adotado por um casal de humanos que ensinam a ele as
primeiras lições de justiça e generosidade, permitindo-o, assim, crescer fazendo bom
uso das magníficas – e sobre-humanas – habilidades que a atmosfera terrestre lhe
proporciona. Superman, entre outros poderes que manifesta sob a luz do sol, é capaz de
voar, de sustentar pesos descomunais e de disparar raios-laser dos próprios olhos. A
semelhança entre a personagem e o gigante de ferro é evidente, e não passa
despercebida aos olhos de um menino cuja imaginação é impregnada pela iconografia
fantástica da época.
Imediatamente depois de receber a primeira visita de Kent Mansley em sua casa,
e de uma sequência cômica na qual tenta de todas as formas esconder a mão –
desmembrada por um acidente envolvendo um trem – do robô dos olhos da mãe e do
agente, Hogarth vai até o celeiro onde escondera seu amigo levando algumas revistas,
entre elas uma edição das histórias do Superman. O menino apresenta o super-herói ao
gigante informando-lhe que sua história é muito semelhante à dele e enfatizando que o
homem de aço usa seus poderes “apenas para o bem, jamais para o mal”. Ao perceber
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que seu amigo demonstra interesse por outra revista, que traz na capa um enorme robô
cujo aspecto físico se parece muito com o dele, Hogarth afirma que Atomo, a ameaça de
metal, é um vilão, e que por isso difere completamente do gigante que, assim como
Superman, é um dos mocinhos. Esse jogo de semelhanças físicas que se estabelece
desde o princípio contribui para que seja possível perceber as profundas modificações
ideológicas sofridas pelo herói na obra, bem como a maneira através da qual a
comparação mais óbvia entre ele e uma gigantesca estrutura ambulante de metal,
concebida para destruir, se torna mais e mais distante da realidade apresentada no filme.
Muito embora seja igualmente um gigante de metal, e que mais tarde venhamos a
descobrir que também possui um potencial destrutivo, o robô permanecerá, aos olhos de
Hogarth e dos espectadores, muito mais similar à figura altiva e justa do herói do que à
representação de um vilão frio e impiedoso, inclusive fisicamente.
Hogarth não duvida nem por um segundo de que o gigante possui uma alma – e
de que essa alma é boa –, sobretudo porque projeta nele os principais aspectos da ideia
que faz da maneira como um indivíduo detentor de habilidades especiais deve se
comportar. O robô não possui memória de seu passado e nem perspectivas em relação
ao futuro, é como uma criança, ingênuo, crédulo e completamente vulnerável a quem
quer que seja; e parece verdadeiramente uma sorte que ele seja “encontrado” pelo
menino e que esse, ao enxergar nele o mesmo heroísmo que move seus ídolos dos
quadrinhos, acabe por transformá-lo efetivamente em um herói. Quando oferece as
revistas a seu amigo e se detém na explicação sobre as origens do Superman, Hogarth
dá início a um processo de reconstrução ideológica que nem o gigante e nem ele podem
ter certeza de que resultará em uma nova consciência, ou em um novo modo de pensar e
agir; o segundo porque não se recorda de nada e o primeiro porque ainda não conhece a
natureza original de seu amigo e procura, por meio de conselhos e orientações, apenas
ajudá-lo a se tornar aquilo – o menino não demonstra nenhuma dúvida quanto a isso –
que ele já é.
Em determinados momentos da animação, os ensinamentos que Hogarth oferece
a seu amigo adquirem as dimensões de uma verdadeira lição de humanidade, capaz de
calar em seu pensamento e impedi-lo de, nos momentos finais do filme, quando é
cruelmente perseguido e agredido pelos militares, utilizar os “superpoderes” que possui
para destruir seus algozes. Em uma sequência que toma lugar por volta da metade do
filme, com o gigante já escondido no ferro-velho de Dean, menino e robô testemunham
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a morte de um veado, atingido pelas balas de uma dupla de caçadores, e ficam
extremamente abalados com a cena. Nesse momento do filme, Hogarth transmite ao
amigo as lições mais preciosas que ele poderia receber: de que é errado matar, de que
armas são feitas para matar e, principalmente, de que você pode escolher não ser uma
arma, de que você pode escolher não matar. O gigante possui um mecanismo que é
acionado todas as vezes em que ele faz contato visual com uma arma de fogo,
obrigando-lhe a reagir e atacar instintivamente, como um animal ameaçado, sem
preocupar-se com as consequências de seu ato ou com a identidade de seu alvo. É
principalmente contra essa personalidade impulsivamente violenta que Hogarth luta,
mesmo sem saber.
Não é apenas na imaginação do menino ou mesmo no espaço de interação criado
pelo fortalecimento dos laços de amizade entre eles, que o gigante se distancia da
imagem de um vilão ameaçador como Atomo e ganha os contornos de um herói capaz
de renunciar à própria natureza para preservar a vida de pessoas inocentes. O que
Hogarth faz é construir uma história para um indivíduo que parece não possuir
nenhuma, oferecendo-lhe, assim, uma nova identidade. Ao menino não interessam os
obscuros propósitos dos hipotéticos criadores do robô porque para ele, desde o
princípio, O Gigante de Ferro é apenas e tão somente um amigo, no qual deseja
encontrar qualidades e potenciais e do qual procura ignorar ou esquecer os defeitos. A
ingenuidade e vulnerabilidade do robô permite que um menino de 9 anos, que ainda
constrói para si mesmo uma identidade individual, apartada da de seus responsáveis
adultos, e por meio de confiança, imaginação e ternura, lhe valide a existência. E nas
últimas sequências do filme, quando o gigante assume completamente a identidade do
herói radicalmente altruísta e voa em direção à bomba atômica lançada contra a cidade,
o que muito provavelmente resultará em sua destruição completa, Hogarth, o
protagonista, pronuncia para o herói – da história e de sua própria construção –, as três
palavras que sintetizam aquilo que todos, crianças ou adultos, desejam dizer a um amigo
de verdade: “eu te amo”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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A literatura e o cinema para criança, muito embora pertençam a linguagens
diferentes, historicamente enfrentam problemas similares no que diz respeito ao
reconhecimento de seus próprios signos e de sua importância em meio a uma enorme
quantidade de manifestações artísticas veiculadas através dos mais diferentes tipos de
mídia, e cuja identificação de um público alvo específico é, senão impossível de ser
definida, ao menos bastante nebulosa. O filme O Gigante de Ferro, desde seu
lançamento, arregimenta, ao redor do mundo, admiradores das mais diferentes origens
culturais e faixas etárias imagináveis e, se isso não diz tudo o que precisamos saber
sobre a obra, seguramente nos aponta alguns caminhos.
No estudo Crítica, teoria e literatura infantil, Peter Hunt trata exclusivamente de
literatura, ou de palavras e ilustrações colocadas sobre o suporte físico do livro, sem
mencionar, em momento algum, produções cinematográficas. No entanto, as
dificuldades por ele apontadas sobre uma possível classificação ideal de obras voltadas
para crianças e sobre a consolidação de uma crítica que assegure a esse segmento
artístico visibilidade acadêmica, inspiraram não apenas a escolha do corpus do artigo
aqui apresentado como também e, sobretudo, as questões que foram levantadas sobre
ele.
O filme de Brad Bird é, sim, um trabalho infantil, tanto na forma de sua
realização quanto no conteúdo de sua narrativa e é, também, uma obra para adultos,
porque a maneira através da qual mobiliza referências históricas, sociais e, sobretudo,
ideológicas, o torna uma inesgotável fonte de atração e inspiração para indivíduos já
habituados com associações desse tipo e seus consequentes desdobramentos cognitivos.
A extensa rede alusiva evocada pelo filme, suas conotações políticas ou mesmo a
confirmação de seu sucesso junto ao público adulto correspondem às mesmas dúvidas
que movem os teóricos de literatura infantil mencionados ao longo do trabalho e, de
certa maneira, contribuem para ampliá-las, porque carregam o problema para fora dos
limites do livro.
Porém, é na capacidade de seus autores de amplificar o raio de ação da obra por
meio de um intenso conteúdo intertextual sem, contudo, comprometer as características
mais evidentes e luminosas da história que desejam narrar, que as dúvidas começam a
parecer menos uma continuação do problema do que uma possível solução para ele.
Teóricos e críticos da literatura feita para a criança, como Hunt, são unânimes em
afirmar que, se não existe um conceito fixo para obras infantis – assim como para o que
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costumamos chamar de infância –, a melhor maneira de classificar um trabalho de arte
é, ainda e sempre, através de suas qualidades e do respeito que demonstra em cada linha
(ou em cada sequência) por seu público. E O Gigante de Ferro é um filme que encanta
sem jamais parecer condescendente.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. A estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual.
São Paulo: Global, 2002.
EBERT, Roger. RogerEbert.com. In: Chicago Sun-Times. Revista Eletrônica.
Disponível em <http://rogerebert.suntimes.com/>. Acesso em 25 de mar. 2011.
FRANKENSTEIN. Dirigido por James Whale. Escrito por Garret Fort e Francis Edward
Faragoh baseado em livro de Mary Shelley. Los Angeles, Universal Movies, 1931. 70
min.
KING KONG. Dirigido por Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. Escrito por
James Creelman. Los Angeles, RKO Radio Pictures, 1933. 100 min.
O GIGANTE DE FERRO (The Iron Giant). Dirigido por Brad Bird. Escrito por Brad
Bird e Tim McCanlies baseado em livro de Ted Hughes. Los Angeles, Warner Bros.
Feature Animation, 1999. 86 min.
HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
IMDB (Internet Movie Database). Banco de dados. Disponível em
<http://www.imdb.com/>. Acesso em 25 mar. 2011.
SHELLEY, Mary. Frankenstein. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.