Post on 10-Nov-2018
CENTRO UNIVERSITÁRIO SENAC
Carina de Barros Fernandes
Maria Clara Villas
A Ilha de Morel:
Projeto audiovisual para novas mídias
São Paulo
2011
2
Carina de Barros Fernandes
Maria Clara Villas
A Ilha de Morel:
Projeto audiovisual para novas mídias
Projeto para Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca de qualificação do curso de Bacharelado em Audiovisual do Centro Universitário Senac, como exigência parcial para obtenção do título de bacharel em audiovisual, sob a orientação da Profa. Dra. Renata Gomes e da Profa. Me. Ester Marçal Fer.
São Paulo
2011
3
Carina de Barros Fernandes
Maria Clara Villas
A Ilha de Morel:
Projeto audiovisual para novas mídias
A banca examinadora de qualificação dos Trabalhos de
Conclusão em sessão pública realizada em 31/05/2011
considerou o(a) candidato(a):
1. Prof. Lucas Bambozzi
________________________
2. Prof. Luiz Carneiro
________________________
3. Orientadora Profa. Dra. Renata Gomes
_________________________
4. Orientadora Profa. Me. Ester Marçal Fer
_________________________
4
Resumo
Proposta de roteiro e projeto de narrativa interativa de novas mídias para veiculação na web,
baseado no livro A Invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares. Consiste nas descobertas de
um personagem/interator preso em uma ilha misteriosa habitada por “projeções-fantasmas”,
geradas por uma máquina que se baseia na utopia da imortalidade. O projeto também
apresenta uma fundamentação teórica sobre o interator e sua relação com as mídias
audiovisuais, assim como uma exposição de formas e formatos interativos.
Abstract
Presents a new media’s project of an interactive narrative for web placement, based on the
book The Invention of Morel by Adolfo Bioy Casares. Consists of the findings of a
character/interactor stuck on a mysterious island inhabited by "phantom-projections",
generated by a machine that is based on the utopia of immortality. The project also presents a
theoretical foundation of the interactor and its relationship with the audiovisual media, as well
as an exhibition of interactive formats.
5
Sumário
1. Introdução .............................................................................................................. 6
1.1 Objetivos: Gerais e Específicos ............................................................. 6 1.2 Universo temático ................................................................................. 7 2. Fundamentação Teórica .......................................................................................... 8 2.1 Apresentação da Bibliografia ................................................................. 8 2.2 Formas e Formatos ................................................................................. 9 2.3 As Novas Mídias ................................................................................... 12 3. Morel e a narrativa................................................................................................. 16 3.1 O Realismo Fantástico........................................................................... 16 3.2 A Invenção de Morel ............................................................................. 17 3.2.1 O autor ...................................................................................... 18 3.3 A Narrativa ........................................................................................... 18 4. Procedimentos Metodológicos ............................................................................... 20 4.1 Proposta do projeto ................................................................................ 20 4.2 Referências de formato, visuais, conceituais e sonoras.......................... 22 4.2.1 Imagens ......................................................................................24 5. Cronograma de Pesquisa e Realização ................................................................... 25 6. Considerações Finais .............................................................................................. 26 7. Esqueleto da Dissertação Final ............................................................................... 27 8. Referências Bibliográficas ....................................................................................... 28 9. Anexos .................................................................................................................... 31 9.1 Manuscrito em Páginas Amarelas - O Tratado de Morel ......................... 31
9.2 Comportamento dos espelhos na ilha da Páscoa, Julio Cortázar ..............34
6
1. Introdução
1.1 Objetivos gerais e específicos
Este projeto sugere a adaptação do livro A Invenção de Morel, de Bioy Casares para
um roteiro interativo com veiculação na web. A idéia surge da proposta de criar uma ponte no
audiovisual entre os campos teórico e o prático. Decidimos fazer um trabalho de conclusão de
curso que foge dos parâmetros de outros até então realizados no Bacharelado em Audiovisual,
tanto por ser realizado em dupla, quanto pela proposta de um roteiro para as novas mídias
nunca antes realizado. Desde o início, o que nos motivou foi desenvolver um produto final
criativo e o interesse em explorar um campo de possibilidades, um caminho a princípio
incerto e também o contexto audiovisual x tecnologia, despertado pelo videoclipe da banda
Arcade Fire, The Wilderness Downtown, realizado e veiculado de forma inovadora.
Para que uma obra seja consistente, achamos que seja imprescindível uma reflexão
tanto no processo como no produto final e que, para não ser efêmera, ao menos registre o
processo e abra um caminho a ser explorado. Chamamos portanto nosso trabalho de teórico-
prático já que o processo segue pelos dois vieses. O teórico, apresentado a seguir, é um
recorte sobre os principais pontos em que se finca o projeto da obra que pretendemos realizar:
a transformação da relação do sujeito com o audiovisual desde o início – no “pré-cinema”, no
cinema canônico e moderno, no vídeo e por fim nas mídias digitais onde pontuamos alguns
formatos e possibilidades. Em seguida apresentamos as idéias centrais do conto que será
adaptado – a Invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, e alguns pontos importantes dos
caminhos possíveis da narrativa nas novas mídias. O prático, ainda em processo, se inicia
neste projeto como uma proposta inicial de adaptação e roteiro e exposição de referências
visuais e de formato. Pretendemos no fim de todos os processos refletir sobre a metodologia
usada, para exercício de amadurecimento do trabalho e registro de uma espécie de diário de
bordo contando nossas dificuldades, descobertas.
7
1.2 Universo Temático
Quando iniciamos este processo, nos deparamos com uma infinidade de temas e
possibilidades para a pesquisa e desenvolvimento teórico. Começamos a mapear conceitos do
universo audiovisual – uma espécie de retrospectiva e peneira de assuntos abordados durante
esses três anos de curso na tentativa de descobrir onde poderíamos inserir nosso projeto e
começar a fundamentação. Desenvolvemos um gráfico para visualizar os objetos de pesquisa
– a base de todo o nosso trabalho.
8
2. Fundamentação teórica
2.1 Apresentação da bibliografia
“As telas se acumularam a tal ponto que apagaram o mundo. Elas nos tornaram cegos pensando que poderiam nos fazer ver tudo. Elas nos tornaram insensíveis pensando que poderiam nos fazer sentir tudo.” (DUBOIS, 2004).
É complicado definir o conceito multimídia em um mundo pautado pelas novas
tecnologias e meios de comunicação. O termo surgiu a partir das primeiras experiências de
hibridização de formatos audiovisuais e hoje em dia é difícil distinguir o que não é
multiplataforma, o que se finca em somente um formato. A palavra multimídia pode estar
datada, mas podemos pensá-la como uma apropriação das novas tecnologias para a
reprodução de imagens e sons e criação de uma narrativa audiovisual interativa. Novas
mídias ou hipermídia são alguns dos termos usados na tentativa de se catalogar experiências
e conteúdo de videogames, instalações, sites, performances, entre outros, onde se usa mais de
uma mídia, imagens eletrônicas, digitais e técnicas recentes e muitas vezes inovadoras. Em
toda a história do audiovisual e da própria produção e reprodução de imagens vemos esse
processo de catalogação, que pretende explicar e inserir determinadas obras em um grupo
para assim poder analisá-las e refletir sobre elas.
Estamos em processo de realização de um projeto audiovisual interativo, de
“multimídia”. Antes da elaboração, foi preciso entender um pouco o que são esses novos
conteúdos, essa nova interatividade para então podermos decidir o formato que pretendemos
usar e os objetivos da nossa experiência. Percebemos então que estávamos no meio de uma
teorização que ainda está criando forma – é muito atual e portanto em constante mudança,
pesquisa e exposição. Muitas pessoas estão pensando nas novas mídias, nas novas narrativas
possíveis em todos os seus formatos, tentando criar métodos, meios, jeitos de se entender algo
que possui uma infinidade de possibilidades.
Elaboramos então uma pequena bibliografia que pretende nos inserir nesse universo e em
seus possíveis caminhos. Começamos tentando analisar a relação do espectador nas novas
mídias, e acabamos sentindo a necessidade de voltar um pouco no tempo para perceber essa
relação desde o início do cinema. Este panorama pontua simples e brevemente a mudança da
posição do espectador desde os primeiros experimentos com imagens em movimento até o
9
surgimento do vídeo - onde começa a se desenhar um tipo de linguagem pautada em um novo
dispositivo. Estudar essa linguagem foi importante para entrarmos, enfim, na “multimídia”.
Analisamos alguns formatos e suas principais características e depois discutimos um pouco
sobre o sujeito/interator e imersão. Conceitos importantes para nossa breve discussão sobre a
Invenção de Morel e algumas características da narrativa na hipermídia.
Para essa primeira exposição, usamos como base bibliográfica os livros Pré-Cinemas
e Pós-Cinemas, de Arlindo Machado e O Discurso Cinematográfico, de Ismail Xavier.
Contamos também com a leitura de textos de Philippe Dubois, reunidos no livro Cinema,
vídeo, Godard especificamente na área de vídeo. Para o panorama de formas e formatos, nos
baseamos em diversos textos do livro organizado pela Kátia Maciel, o Transcinemas, em O
Sujeito na Tela, de Arlindo Machado, no texto “Imersão”, do autor Oliver Grau e no The
Language of New Media, de Lev Manovich.
2.2 Formas e formatos “No terreno dos modernos meios audiovisuais, ‘linguagens’ nunca são fenômenos naturais, como são ou parecem ser (...) tudo pode ser descrito em termos de fenômeno cultural, ou seja, como decorrência de um certo estágio de desenvolvimento das técnicas e dos meios de expressão, das pressões de natureza socioeconômica e também das demandas imaginárias, subjetivas, ou, se preferirem, estéticas, de uma época ou lugar” (MACHADO, 1997).
O cinema começou como uma curiosidade, uma novidade. As primeiras
experiências com imagem em movimento eram filmes curtos exibidos apenas como uma
atração no meio de muitas em Vaudevilles, feiras de entretenimento que possuíam um público
popular, formado por operários e imigrantes. Não eram atrações da alta cultura, pelo o
contrário, na época o meio artístico era um programa exclusivo para classes mais altas. Os
filmes duravam poucos minutos e eram em boa parte registros da vida real, normalmente em
um só plano aberto. As apresentações contavam com um narrador ou com ajuda de cartelas
que explicavam o que estava acontecendo. Não havia, ainda, uma linguagem que fosse
autônoma o suficiente para contar essas “estórias” sem ajuda de comentários. Com o
desenvolvimento da técnica, começaram a fazer filmes um pouco mais compridos, mas ainda
sim simples e com caráter de entretenimento que passavam em Nickelodeons – exibição de
10
pequenos filmes em uma sala (talvez a primeira idéia de sala-escura, como conhecemos hoje)
pelo preço de um níquel (MACHADO, 1997).
Esse cenário começou a mudar quando os realizadores americanos perceberam o
potencial industrial e comercial que o cinema poderia ter, e para isso precisava alcançar um
público mais economicamente estável, mais burguês, que poderia investir nesse setor. Criou-
se então a necessidade de um cinema que contasse histórias, que fosse narrativo, assim como
o teatro e a literatura. “O cinema tinha de aprender a contar uma história, armar um conflito e
pô-lo a desfiar-se em acontecimentos lineares, encarnar esse enredo em personagens
nitidamente individualizados e dotados de densidade psicológica.” (MACHADO, 1997).
Para atingir esse novo público, o cinema tinha que ser mais do que entretenimento.
Precisava emocionar, contar um história linear e que fosse coerente com a vida real; enredos
desenvolvidos que prendem o espectador e criam uma identificação com os personagens e
com a narrativa. Começa-se então a desenvolver técnicas que se apropriam das características
da fotografia e da montagem cinematográfica - as cartelas e comentários dão lugar aos planos,
cortes, perspectivas. Busca-se uma transparência, um jeito de imergir e ilusionar o espectador.
A decupagem linear; o uso de atores e cenários realistas e o uso de gêneros narrativos de fácil
acesso como melodrama, ação e aventura são elementos que estão na base desse cinema
canônico (XAVIER, 1989). Essa transparência é essencial, em nenhum momento o
dispositivo pode ser revelado, não há quebra de eixo, elementos não naturalistas – nada que
disperse o espectador e que o tire de sua ilusão na sala escura. A linguagem é domesticada,
linear, lógica. Cria-se então uma nova condição do espectador, que se identifica e imerge na
narrativa, elucidando essa capacidade do cinema em produzir a impressão de realidade.
Essa linguagem foi completamente absorvida pela indústria cinematográfica e é
usada até hoje, mas não é a única: ao mesmo tempo em que foi sendo desenvolvida, ela
também foi quebrada por muitos artistas e pensadores. Era um outro potencial do cinema,
muito mais artístico, poético, vanguardista. Se uma imagem já estava carregada de
significados e conceitos, a idéia de 24 imagens por segundo era elevar o potencial da arte.
Surge então a vanguarda do cinema, que se apropria da multiplicidade de pontos de vista – o
mundo pode ser visto e reproduzido de várias maneiras, não havendo motivo para ser realista.
É um novo cinema, que quebra com os padrões e se inspira muitas vezes na arte moderna. O
cinema poético acaba tomando várias formas, vários “ismos” (XAVIER, 1947). Essa
vanguarda é muito forte na década de 20 e possui diversas caras e movimentos. Décadas
depois, quando a linguagem canônica já está consolidada e já possui um mercado forte, surge
11
o cinema moderno que inverte os padrões e se apropria muitas vezes de elementos e questões
já apontadas pelas vanguardas. Esse cinema é o oposto do clássico, onde a linguagem é
disfarçada em planos e em uma decupagem narrativa linear. Nele você enxerga a linguagem,
os atores olham para a câmera, existem quebras de eixo, entre outras coisas - tudo para fazer
com que o espectador saia da sua posição confortável e ilusória e pense no dispositivo,
questione-o, estranhe-o. Surge nos anos 60 com a juventude que quer lutar pelos seus direitos,
quer ter sua própria voz. É um cinema de experiências e experimentos. Com o surgimento de
novos dispositivos - como o vídeo – cria-se uma linha tênue entre cinema e artes visuais, e
muitos cineastas começam a se aventurar no campo plástico e vice-e-versa, com experiências
que vão além da tela do cinema. Abre-se um leque de possiblidades dentre as quais está
inserido o cinema experimental, a videoarte, o cinema expandido, entre outros. O cinema
experimental, também com suas ramificações, apropria-se da imagem em seu significado
plástico, “seu interesse não está na representação e sim na intensidade e duração das imagens”
(PARENTE, 2009, pg. 38).
Alguns cineastas também começam a utilizar imagens eletrônicas, o que acaba
dando um novo significado para a representação audiovisual. É uma imagem-dispositivo, não-
narrativa, plástica, opaca. Possui uma característica de novidade, de tecnologia. “Numa
palavra, a arte do vídeo tende a se configurar mais como processo do que como produto e essa
contingência reclama um tratamento semiótico fundamentalmente descontínuo e
fragmentado” (MACHADO, 1997).
O vídeo surge como um dispositivo, pensado como imagem, objeto, ponte entre o
audiovisual e a arte (DUBOIS, 2004). É a arte da sobreimpressão das imagens, das janelas, da
composição de imagem (ao contrário do cinema, que pensa em escalas de planos), da
espessura da imagem, da mixagem, da textura; ao mesmo tempo, no início de seu
desenvolvimento, a qualidade da imagem digital era precária, sem detalhamentos, nem
profundidade de campo, características que se potencializavam na tela pequena em que
geralmente os vídeos eram exibidos. As exibições tendiam a ocorrer em locais ao ar livre,
espaços públicos, museus, exposições; locais onde pessoas estão de passagem e podem ser
fisgadas pela imagem exibida. A atenção do espectador diante da imagem videográfica por
vezes se dispersa e é fragmentada, consequência de suas subjetividades, abstrações, narrativas
não lineares e ausência de narrativa.
No meio da produção em vídeo surgiu uma grande questão proveniente do conflito
de suporte: tanto o cinema como o vídeo produzem imagens em movimento, entretanto os
12
dois suportes são distintos. Hoje o campo de produção videográfica e cinematográfica
caminham juntos. A utilização do vídeo extrapola o uso como imagem auxiliar da produção
de cinema ou imagens experimentais e puramente artísticas, aproximando-se de uma reflexão
sobre a multiplicidade do fazer cinema. A tecnologia e a influência do vídeo surgem para
incrementar o cinema e se tornaram um dispositivo válido para a produção de filmes, criando
uma discussão na qual se questiona realmente o valor de “cinema” para a produção
audiovisual em vídeo.
2.3 As novas mídias “A tecnologia se dá não como um objeto, e sim como um
espaço a ser vivido, experimentado, explorado, ou seja, trata-se de máquinas relacionais em que as noções de simulação, cognição e experiência ganham novos contornos” (DUBOIS, 2004, pg. 67).
O surgimento da televisão traz consigo uma mudança na posição do espectador, de seu
olhar e sua relação com a imagem. Até então, no cinema, imerso numa sala escura, com uma
postura individual e imersiva, o espectador estava com toda a sua energia voltada para a
história e, portanto, mais vulnerável psicologicamente para se identificar, entrosar, mergulhar
através da tela. Já o ato de assistir à televisão é fragmentado e ocorre muitas vezes em
ambientes dispersivos, com outras coisas distintas acontecendo ao mesmo tempo
(MACHADO, 2007). Com o surgimento de novas mídias, a posição do espectador e do
enunciador se confunde, se mescla, se complementa.
Nos novos meios digitais, há uma substituição da figura narradora que apresenta os
acontecimentos da diegese. A narrativa – ao invés de inteiramente dada – surge como um
campo de possibilidades – repertório de situações – em que o interator irá optar por qual
caminho seguir. Ele se torna sujeito que se deixa imergir e agenciar naquela narrativa através
da manipulação da máquina e a máquina torna-se o “ser manipulado” representado e
traduzido em ações na tela (MACHADO, 2007).
Os ambientes e seres virtuais podem ou não ser alterados pelo personagem-usuário. O
programa estabelece um universo – com regras e condições para os acontecimentos possíveis
onde o sujeito interage (MACHADO, 2007). Nas mídias tradicionais não temos nenhum
poder sobre o que acontece. Nas novas mídias o mundo é modificado a partir da nossa
participação. Essa sensação experimentada pelo interator de decisão e escolha pode ser
chamada de agenciamento: “agenciar é experimentar um evento como o seu agente”
13
(MACHADO, 2007). Entretanto, esta participação dinâmica não indica que o interator é o
agente absoluto dos acontecimentos, o que nos leva a um questionamento da construção da
narrativa nas novas mídias. Pensar a narrativa nos ambientes digitais é levar em conta o grau
de agenciamento do sujeito em relação à obra e da obra em relação a ela mesma. Sendo assim
é essencial pensar até que ponto o interator pode ou não interferir, modificar ou dar
andamento à narrativa e qual o campo disponível de fragmentos soltos em que ele pode se
deixar agenciar.
Neste tipo de narrativa é essencial compreender o conceito de imersão. Somente
imerso na experiência, que o interator continuará o agenciamento, dando continuidade à
narrativa. Desde o surgimento do cinema já se falava na importância da sala escura, tela
grande, e depois o som alto para fazer com que os espectadores entrassem na história e se
identificassem com os personagens. Tudo isso para gerar o que um dos autores que
analisamos, Oliver Grau, caracteriza como imersão a “diminuição da distância crítica do que é
exibido e o crescente envolvimento emocional com aquilo que está acontecendo” (2007).
Existem diferentes graus de imersão: o observador pode desde interagir com simples
comandos que desencadeiam determinada narrativa até se transportar na ilusão de estar em
um mundo natural, o que seria a imersão total. “A intenção [das realidades virtuais] é
instalar um mundo artificial que proporcione ao espaço imagético uma totalidade ou, pelo
menos, que preencha todo o campo de visão do observador” (GRAU, 2007). Estes espaços
imersivos virtuais podem oferecer ao espectador-observador uma espécie de mimese da
imagem com a mídia. Mimese que surge a partir da construção de um cenário virtual com
precisão de detalhes – um espaço de ilusão que compõe uma estrutura de efeitos sinérgicos.
Para Grau, a ilusão em ambientes virtuais pode ocorrer de duas maneiras: uma mais
clássica, decorrente de ilusão – como no cinema, jogos, etc. E outra que seria a “inibição
temporária da percepção de diferença entre realidade e espaço imagético” (2007) . Este poder
sugestivo consegue, por algum tempo, suspender a relação entre sujeito e objeto, e o “faz-de-
conta” surte efeitos sobre a consciência.
Para Machado, essa sensação de imersão se dá a partir de dois meios diferentes que
ajudam na construção da narrativa pelo agenciador: o avatar e a câmera subjetiva. Ele fala
também de uma terceira forma, que é uma espécie de junção das duas formas anteriores
(2007).
O avatar é uma espécie de alter-ego do interator, e ele exprime uma necessidade de dar
vazão a identidades múltiplas e muitas vezes reprimidas. É um personagem construído ou já
14
dado pela máquina que é controlado pelo interator.
A câmera subjetiva é a maneira mais poderosa de se fazer com que o espectador se
sinta “dentro” do ambiente virtual, incorporando um olhar já presente e previsto na imagem, o
olhar de uma personagem virtual ou potencial que ele próprio, o interator, assume ao penetrar
no sistema. A câmera subjetiva insere o espectador dentro da cena e se torna o personagem
principal da narrativa.
A possibilidade de alternância entre os pontos de vista, bastante utilizada em games,
simuladores e outros, oferece ao interator maior deslocamento, potencializando a
funcionalidade de diversas câmeras, em relação ao seu avanço na obra. É possível apontar
alguns tipos de manifestação - como em simuladores de corridas de carros, onde o interator
pode escolher e alternar entre primeira e terceira pessoa, em videogames em que o usuário
pode ser representado na cena por vários avatares ao mesmo tempo, jogos de ação em que o
usuário além de poder estar representado por vários avatares, também pode alternar câmeras
subjetivas, com planos gerais, aéreos, em terceira pessoa, entre outros (MACHADO, 2007).
•§•
Uma das primeiras formas de se pensar em novas mídias e em narrativas interativas é
interpretá-las como um novo tipo de cinema, que vá para além da tela grande e da sala escura.
Com o surgimento da tecnologia digital, a “impressão de realidade” se expande à “impressão
da presença” (PARENTE, 2009) e, por vezes, o usuário experimenta a simulação quase como
o próprio real. É a simulação além da representação. Podemos observar diversos tipos de
manifestações que relacionam o audiovisual com imagens eletrônicas e digitais ou novos
meios de representações, não mais pautado no cinema - seja ele clássico ou moderno. Aqui,
fizemos um recorte parcial, na tentativa de analisar com mais atenção algumas delas.
É possível apontar a radicalização dos processos de hibridização entre diferentes
mídias - obras que se apropriam de mais de uma plataforma audiovisual - muito usado em
instalações, experiências artísticas, sites que utilizam diversos formatos para contar uma
história. A questão da interatividade é muito forte nesses novos meios - no cinema interativo
aonde o interator pode definir a ordem e o fim da narrativa; em videogames onde essa
interatividade é essencial (jogos de simulação, aventura, esportivos, os videogames possuem
um caráter comercial muito forte, mas pode também tomar outros rumos mais livres e
artísticos) onde a relação jogador-jogo vai além da identificação e manipulação do
personagem principal e se relaciona diretamente com a linguagem do jogo para avançar na
narrativa. As possibilidades são inúmeras, e o digital possui um potencial muito grande – isso
15
por causa de alguns elementos e características específicas das novas mídias, o interator e a
imersão.
Instalações que reinventam a sala de cinema em outros espaços – como projeções
interativas em museus – que, como não há um tempo dado, o próprio espectador escolhe o
tempo que quer dedicar a ela e sua significação. Com um caráter mais plástico, onde por trás
do vídeo e das imagens há um conceito forte, uma idéia, que é, não necessariamente lida
como representação e narrativa. Nessas projeções, instalações, o próprio corpo do visitante-
interator é o instrumento privilegiado da exploração - é ele que ativa e desfaz o enigma
conceitual por trás das imagens. O próprio corpo experimenta e percebe o universo conceitual
e artístico. (DUGUET, 2009). Um pouco fora desse universo plástico, podemos observar
muitas obras audiovisuais narrativas e experimentais, exibidas em espaços e galerias de arte,
grandes exposições e até mesmo em Bienais. São algumas formas de cinema expandido, que
vão além da projeção programada, da sala de cinema, imagens que possuem uma narrativa,
mas com uma linguagem experimental e muitas vezes plástica, poética, artística.
A imagem muitas vezes pode estar relacionada com o corpo, com o presente. Em
diversas performances com projeções e música, artistas fazem e manipulam o material ao vivo.
Os VJ surgiram em um meio musical muito forte, tentando criar imagens ao vivo para
músicas, mixagens. Essa atuação performática e imediata lembra um pouco os happenings
dos dadaístas - uma obra de arte, um meio de representação que tem duração e público
limitado. Esse tipo de “imagem dançante”, aponta não somente a relação entre cinema como
espetáculo e vídeo como projeção, mas também como performance e linguagem audiovisual
(SALIS, 2009 ). A popularização - e simplificação - dos meios de manipulação de imagens
facilitou a escolha do dispositivo e do mecanismo vídeo e projeção.
A relação corpo-performance-imagem também pode tomar outros rumos. A relação
da arte com o espaço urbano tem origem nas artes plásticas, na arquitetura - e é um ambiente
propício para a relação com o audiovisual interativo, intermidiático. Filmes projetados em
espaços públicos; registros em vídeo de performances nestes ambientes e até mesmo uma
relação mais atual, que vem tomando forma e atraindo um forte público publicitário e
artístico: o videomapping. Projeção de vídeos ao vivo em prédios e ambientes urbanos que se
relacionam com a própria arquitetura da “tela” e que devido à tecnologia de projetores, causa
a ilusão de desconstrução e construção do prédio, com efeitos em 3D que causam espanto e
tem um impacto muito forte.
16
3. Morel e a Narrativa
“Acho que essa gente não me veio procurar; talvez nem me tenham visto. Mas continuo o meu destino; estou desprovido de tudo, confinado ao lugar mais escasso, menos habitável da ilha; a pântanos, que o mar suprime uma vez por semana.” (CASARES, 1940)
3.1 O Realismo Fantástico
Definir o gênero literário foi o primeiro recorte na busca do conto a ser adaptado. Uma
vez que, no processo de criação para as mídias digitais pode-se atingir níveis infinitos,
podemos considerar campo ideal para a criação de elementos fantásticos.
Segundo o dicionário, fantástico pode ter diversos significados: “1. aquilo que só
existe na imaginação, na fantasia; 2. caráter caprichoso, extravagante; 3. o fora do comum;
extraordinário, prodigioso; 4. o que não tem nenhuma veracidade; falso, inventado”
(HOUAISS, 2001),
A literatura fantástica se apropria de muitos desses elementos, transformando a
narrativa em algo imaginário, que não existe nessa realidade e sim em alguma outra – virtual,
fantástica. Em O Fantástico, de Selma Calasans Rodrigues, a autora recorre à casualidade
mágica e à hesitação presentes no discurso narrativo para classificá-lo como Fantástico
(RODRIGUES, 1988). A casualidade mágica é a relatividade da realidade e a hesitação
corresponde ao diálogo entre racional e não racional presente na narrativa - o realismo
fantástico brinca o tempo inteiro com essa dualidade de realidade e sobrenatural que é
questionado constantemente – dualidade que faz com que o leitor assuma o universo, o
mistério e com a “sensação do fantástico predominante sobre explicações objetivas”
(ECHETO; SARTORI, 2001).
17
3.2 A Invenção de Morel
A Invenção de Morel (La Invención de Morel), do argentino Adolfo Bioy Casares, é
um conto narrado em primeira pessoa no formato de um diário de um fugitivo que encontra
em uma ilha – aparentemente deserta – o seu exílio. A ilha surpreende o personagem com
suas construções inusitadas – nela, além de toda a farta vegetação, estão um museu, uma
capela e uma piscina - e com os seus habitantes que revelam aos poucos um comportamento
estranho e repetitivo. O fugitivo espanta-se ao perceber que aquele grupo de pessoas exerce as
mesmas atividades em um determinado espaço de tempo e vão repetindo-as sucessivamente.
Curioso com o comportamento anormal dos personagens daquela ilha, o personagem
vai atrás de alguma resposta e encontra algo que transforma completamente toda a nossa
percepção do espaço e tempo. Seguindo os passos dos habitantes – em especial de uma,
Faustine, que chama sua atenção e desperta uma espécie de paixão platônica no protagonista –
percebe que aquelas pessoas não o enxergam, e possuem um comportamento quase
fantasmagórico. Em alguns dias, tudo desaparece, e a ilha se torna inabitada e abandonada –
com peixes mortos nas construções, a piscina suja. E em outros dias está cheia de gente,
arrumada.
O fugitivo então vai atrás de alguma resposta que possa explicar os acontecimentos e
encontra Morel – inventor de um aparato que simula a utopia da eternidade: uma máquina que
é capaz de gravar a vida humana (as pessoas, os sentimentos, as sensações – sua alma) e
depois reproduzi-la, em forma holográfica. Desse modo você vive para sempre preso nesse
simulacro1, nessa representação – junto com sua alma, seus sentimentos. A única parte da
máquina que assusta a todos é que a reprodução faz com que a imagem-original acabe, morra.
“A vida real, uma vez duplicada, começa a perder densidade ontológica, até que seu peso de
realidade se iguale a zero, enquanto as projeções tomam vida própria, assumindo um estranho
estatuto de realidade em relação ao qual o fugitivo define suas expectativas; este, finalmente
decide duplicar-se e editar-se dentro da projeção eterna” (ECHETO; SARTORI, 2001).
Morel explica a sua invenção com detalhes em um manuscrito (anexo 1), e o
1 O conceito de simulacro foi utilizado por Baudrillard e sugere que o mundo em que vivemos foi substituído por um mundo-cópia, no qual vivemos cercados por um simulacro de ordem estimular e nada mais – se apropria do exemplo criado por Jorge Luis Borges de uma sociedade onde cartógrafos desenvolveram um mapa tão detalhado que cobria com perfeição absoluta todas as coisas para as quais fora designado a representar, assim quando o império caiu, o mapa tomou a posição da paisagem, e agora já não restava nem a representação nem o real - apenas o hiper-real. (ECHETO; SARTORI, 2001)
18
protagonista se baseia em suas palavras para criação de deduções e explicações. A máquina
trata de uma especulação entre imagem e mundo real – e funciona a partir dos movimentos
das marés, que não são totalmente reguladas sendo interrompida em alguns momentos - que
para o fugitivo é perfeito para a exploração e descoberta da ilha, de Morel e seus segredos. A
ilha é um espaço da utopia da eternidade, da imortalidade – e o personagem se enche de
curiosidade e a vontade de passar o resto dos seus dias sendo projetado do lado de sua paixão
e se entrega à experiência de Morel, deixando em suas últimas palavras um suplício para que
alguém descubra se sua experiência de se projetar entre as projeções foi bem sucedida.
3.2.1 O autor
Bioy Casares nasceu em 1914, em Buenos Aires. Começou a escrever com 11 e com
18 anos começou uma parceria com seu amigo Jorge Luis Borges que levou a produção de
obras como: Un modelo para la muerte (1946), Libro del cielo y del Inferno e as Crónicas de
Bustos Domecq (1967) - a maioria das quais estão assinadas por esse pseudónimo que lhes era
comum: Bustos Domecq. Publicou em 1940 a sua obra prima “A Invenção de Morel”, que
rendeu ao escritor diversos prêmios. Bioy Casares é autor de uma vasta obra onde a fantasia e
a realidade se sobrepõem. A impecável construção dos seus relatos é, talvez, a característica
pela qual é referido pela crítica com mais frequência. Ele morreu em 1999 e teve sua obra
traduzida em 16 idiomas.
3.3 A narrativa
Um dos maiores desafios do nosso projeto será adaptar o conto – narrativa clássica,
linear, com um narrador definido – para uma nova plataforma, que possui características
diferentes para cada formato, com uma narrativa não linear e complexa. Pensando nisso,
estudamos um pouco da narrativa nos novos meios digitais, para tentar visualizar um caminho
para a adaptação.
Arlindo Machado destaca que na multimídia o interator sempre tem uma autonomia de
decisão muito maior do que o leitor de livros e espectador de cinema, mas, por outro lado, seu
sentimento de impotência diante de uma narrativa que parece escapar de seu domínio também
cresce na mesma proporção que sua autonomia (2007). Além disso, na narrativa digital pode
não existir uma única maneira de fazer evoluir os acontecimentos – todos os caminhos são
19
legítimos, mesmo que não levem a lugar nenhum. O grande prazer da experiência está em
experimentar as possibilidades e não tanto em chegar ao fim – que muitas vezes pode ser mais
de um, já que o interator pode retornar e mudar suas decisões, chegando a finais distintos.
A autora de “Will New Media Produce New Narratives?”, Marie-Laure Ryan, explica
que a narrativa é “uma representação mental de estados ligados causalmente e de eventos que
captam um segmento da história de um mundo e seus membros” – conceito abstrato, porém
aplicável aos diversos tipos de roteiro de novas mídias. Ela ainda expõe cinco propriedades
fundamentais da mídia digital: a interatividade, que permite ao usuário participar e agenciar
a experiência: as possibilidades de canais sensoriais e semióticos, que é basicamente a
capacidade da multimídia de englobar diversos níveis e canais em um só projeto – os
caminhos exercidos, os finais possíveis, etc; a capacidade de rede que a mídia digital possui
– de conectar pessoas, máquinas em ambientes virtuais; os signos voláteis que permitem que
a multimídia possa ser reescrita sem ter que se jogar fora qualquer suporte do material –
característica que torna o digital dinâmico; a possibilidade de modularidade, que permite que
trabalhos digitais possam ser compostos de vários elementos autônomos que podem se
transformar durante a execução da obra (RYAN, 2004).
Hoje em dia, as narrativas são “arquitetadas” e desempenhadas por robôs informáticos,
que adotam papéis ao mesmo tempo de narrador e personagem, além de interagirem com os
usuários. Pensamos que as projeções da ilha podem ter esse papel no nosso projeto, de
personagens que narram e evidenciam o mistério a ser desvendado pelo interator.
20
4. Procedimentos Metodológicos
4.1 Proposta do projeto
Ao decidir realizar um roteiro e um projeto para novas mídias nosso grande desafio foi
- antes mesmo de pensar em uma plataforma e um formato - criar a linha narrativa, a história
que queremos. Optamos então em fazer uma adaptação de um conto, e começamos a procurar
algum que nos instigasse. No meio dos escritores latinos nos deparamos com a literatura
fantástica, e foi no universo de Borges e Cortázar que encontramos a obra que será a base de
todo o nosso projeto. A Invenção de Morel, do escritor argentino Adolfo Bioy Casares, nos
inspirou e servirá de cenário para a nossa narrativa audiovisual. A questão da adaptação, ou
seja, de como podemos apropriar uma obra literária e adaptá-la para um novo suporte ainda é
muito pertinente, e no projeto final pretendemos relacioná-la com o roteiro que criaremos,
tentando esclarecer nosso método usado e as dificuldades encontradas.
Selecionado o conto, a segunda etapa foi a de escolha do formato que usaremos para
contar a historia. Um jogo? Uma instalação? Morel nos inspirou de diversas maneiras, e
ficamos tentadas a usar todos os conceitos importantes da história: projeção, mistério, a
máquina de Morel, a utopia da vida eterna, a repetição. Nossa primeira ideia foi criar uma
experiência multimidiática um pouco mais abstrata que, de alguma forma, produzisse
sensações existentes no livro; acabamos percebendo que o que mais nos atraiu foi a própria
narrativa, o mistério – um personagem que vai descobrindo aos poucos os segredos da ilha.
Decidimos então por um projeto que segue a narrativa, que tenha um personagem
principal – o interator – que vai descobrindo, desvendando aos poucos a ilha. Explorando.
Entretanto, achamos que é importante manter um lado artístico, poético - o que acabou
descartando a possibilidade de criar um produto-game. Pensamos em atrair leitores do livro,
entusiastas das novas mídias; um jogo mais livre, que tenha uma experiência sensorial e
artística forte.
Queremos transformar a ilha de Morel em algo visível, (virtualmente) físico. O
cenário de toda a experiência. A partir desse cenário, o usuário pode interagir com a ilha, seus
moradores e suas construções. Essa interação ocorre em dois momentos diferentes: um
quando a máquina funciona e as projeções acontecem – nesse momento a maré está alta, forte
– nesse primeiro cenário o usuário experimentará mais como um voyeur, um observador:
21
conhecendo os personagens, notando a repetição. Verá a ilha com vida, ativa. Num segundo
momento, a ilha está abandonada, a maré parada. Nesse momento o interator consegue
explorar um pouco mais a fundo, se relacionar com objetos, ver a ilha morta, silenciosa. Essa
será a hora de maiores descobertas, já que o personagem consegue chegar até as máquinas,
observá-las para tentar entender o seu funcionamento. O objetivo geral do projeto é
desenvolver um ambiente imersivo que faça com que o interator entre no universo e possa
perceber a relação entre os objeto e assim ir desvendando aos poucos a linguagem e a
narrativa. Ainda não temos claro como essas interações ocorrerão, ou melhor, os objetivos
mais específicos e características de personagens, cenário, jogabilidade, etc.
Alguns elementos da ilha nos fizeram pensar em meios de tornar a experiência
multiplataforma: as gravações e projeções nos remeteram à webcam – que poderia, em algum
momento, gravar o usuário e projetar aquilo de alguma forma na ilha – como o personagem
do livro que escolhe por ter sua imagem gravada (e consequentemente sua alma roubada) para
ficar na ilha com Faustine, seu amor platônico; outro elemento são os espelhos – queremos
nos apropriar de um conto-pílula do Cortázar (“Comportamento dos espelhos na ilha da
Páscoa” – anexo 2) – que mostram o futuro e o passado, dependendo de sua posição. Os
espelhos podem ser espécies de janelas pop-up que pulam e revelam o que já passou e o que
irá acontecer; outro elemento – ainda distante, mas achamos importante citar, é o de projeção.
A experiência poderia, de alguma forma, projetar-se em algum outro lugar, físico.
Transportando-se da tela do computador para o mundo real (um videomapping em algum
prédio ou uma instalação).
No segundo semestre o projeto prático irá se desenvolver, tomar forma. Nesta primeira
parte desenvolvemos em uma pesquisa mais geral um embasamento com os conceitos de
imersão, interatividade e a relação do interator no cinema e na multimídia. Nosso próximo
passo é pesquisar novas referências de jogos, experimentos e obras de arte com características
interessantes para o projeto. Iremos destrinchar essas características em uma pesquisa mais
específica, que vai lidar um pouco também com o formato, plataforma e questões mais
técnicas. Em seguida, iremos desenvolver objetivos claros e específicos da narrativa, e
elaborar um fluxograma da interatividade que servirá como esqueleto de onde iremos partir
para o desenvolvimento dos personagens, interações, objetos importantes e cenário. A partir
disso, focaremos na parte visual e sonora, com novas referências e primeiros rascunhos do
cenário, da plataforma, sempre pensando na imersão e na sensibilidade.
22
4.2 Referências de formato, visuais, conceituais e sonoras
Para essa primeira etapa selecionamos duas referências mais importantes: a primeira
é uma obra virtual e videoclipe interativo da banda canadense Arcade Fire que serviu de
inspiração para a realização desse projeto pelo formato e estética: o Wilderness Downtown
(MILK, 2010). Com um conceito de videoclipe totalmente inovador, é veiculado pela web e
trata-se de uma experiência do Chrome Experiments2 que relaciona música, vídeo, animação
em 3D, janelas pop-up e realidade.
Ao entrar no website o interator encontra um campo em que deve escrever o
endereço onde passou sua infância. Orienta-se o fechamento de outros programas, devido o
intenso uso do processador do computador (imagem 1). Seguidas as indicações, uma série de
pequenas janelas se abrem e posicionam-se estrategicamente atrás de uma maior, que dá
início ao vídeo. Vemos uma pessoa correndo no meio de uma rua, sem parar, durante um
longo tempo (imagem 2). A música acompanha seu ritmo e vai se elevando aos poucos,
enquanto se revela por completo o lugar, a situação. Outra janela se abre, são pássaros
sobrevoando e, mais uma, com imagens aéreas do Google Street, que logo reconhecemos ser
do endereço inserido no início (imagem 3). As janelas mostram diferentes pontos de vistas em
um mesmo espaço de tempo, se intercalam, se sobrepõem e se complementam. A interação
entre os quadros e a idéia de simultaneidade acontece com os pássaros voando de uma janela
para outra, os movimentos de câmera, as aproximações e revelações do mesmo espaço. No
final, ao chegar ao destino - vista aérea e terrestre pelo Google Street View do endereço
colocado no início, teoricamente o lugar aonde a pessoa cresceu - uma nova janela se abre
para que a pessoa possa escrever um cartão postal para ela mesma quando jovem3. A sensação
em todo momento, em cada batida sincronizada com as imagens em janelas pop-up, é a de
nostalgia, a experiência de estar novamente em um lugar que marcou muito.
A segunda referência é o jogo Closure (GLAIEL, 2009) que possui um visual
simples – um fundo preto com os elementos e personagem em branco -, mas uma linguagem
diferente, onde o jogador carrega uma luz que ilumina o ambiente – que, por sua vez, só
existe enquanto é iluminado, a escuridão é um buraco que leva ao fim do jogo. O jogador
precisa atravessar todo o cenário até chegar a uma porta, onde passa de fase. Carregando essa
2 O Chrome Experiments é um espaço criado pelo Google, espécie de vitrine para que projetos criativos da web, que transcendem o formato JavaScript unindo sua programação em formatos livres (como HTML5, Lona, SVG, e WebGL) diretamente com seus navegadores (no caso, com o Gloogle Chrome). 3 “write a postcard of advice to the younger you that lived there then.”
23
luz, começa-se a perceber o caráter exploratório, onde o usuário não precisa entender somente
o universo, mas a própria linguagem e suas possibilidades para avançar no jogo. Essa questão
da apropriação da linguagem nos inspirou, e pretendemos usar isso em nosso projeto essa
linguagem-dispositivo que serve também como parte da própria ficção e narrativa. O interator
só poderá explorar diversos lugares se perceber como o dispositivo-máquina-do-Morel
funciona.
Consideramos também como referências significativas alguns games que têm uma
concepção mais artística e têm acesso livre pela internet, experiências visuais e sonoras não
enquadráveis no formato game: o Dreaming Methods (DIGITAL FICTION PROJECTS,
2000) é um conjunto de experiências oníricas, sensoriais e textuais, com uma concepção
visual e sonora muito forte; o jogo/conto Hotel (HOOGERBRUGGE, 2004), que conta com
uma história de suspense dividida por fases, capítulos, onde o interator pode explorar o
ambiente; o jogo Everyday The Same Dream (MOLLEINDUSTRIA, 2009) que possui uma
narrativa simples e que se baseia na repetição – ele pode ser “jogado” infinitamente, contando
o cotidiano de um personagem que é sempre igual, com algumas pequenas possibilidades de
mudança, mas que sempre volta para a mesma cena inicial.
25
5. Cronograma de Pesquisa e Realização
Primeiro Semestre Fev Mar Abr Mai Jun Início das aulas q Etapa I - Pesquisa Apuração bibliografia q Seleção de livros / contos q q Seleção de referências q q q Leituras / Fichamentos q q q Etapa II - Formatação do Projeto Esqueleto do Projeto q Fundamentação teórica q q Processos Metodológicos q Objetivos / Apresentação q Primeira Banca - Qualificação q
Segundo Semestre Jul Ago Set Out Nov Etapa III - Adaptação Engenharia reversa: referências q Descrição e objetivos da obra q Fluxograma q q Ambientação e sonorização q q Constituição de personagens q q Descrição de interação q q Design e criação de mapas q q Etapa IV - Projeto Final Redação q Revisão q Banca Final q
26
6. Considerações Finais
Esta primeira parte teórica servirá como base para o próximo semestre, onde
desenvolveremos todo o projeto de adaptação. O primeiro desafio será a escolha do formato –
até que ponto poderemos chamar de game, ou experiência audiovisual interativa? É um
processo de aprofundamento e pesquisa de pontos mais específicos e técnicos. Teremos que
pensar em plataformas, universos possíveis para o desenvolvimento, para assim conseguir
lidar com as especificidades e limitações do suporte. A obra, mesmo não sendo desenvolvida
fisicamente, precisa ser possível, estar dentro de um contexto real. Com o formato escolhido,
poderemos começar a desenvolver um roteiro. As interações, os personagens, o caminho do
interator pela obra, o cenário. Isso tudo será mapeado em um fluxograma e detalhado melhor
conforme o andamento do projeto. Outro desafio será a criação da parte visual e sonora.
Pretendemos criar esboços de toda a obra, e torna-la mais visível e palpável.
Durante todo o semestre iremos questionar e registrar o processo, apreendendo melhor
a metodologia para desenvolver um “diário de bordo”, que servirá como uma reflexão teórica
sobre o processo prático e de criação. Acreditamos que é importante costurar os conceitos
abordados na fundamentação teórica com a própria realização, afim de dar corpo ao projeto.
27
7. Esqueleto da dissertação final
1. Introdução 1.1 Apresentação do projeto 1.2 Metodologia
2. Fundamentação teórica
2.1 Apresentação da Bibliografia 2.2 Formas e Formatos 2.3 O sujeito na interatividade 2.4 A Invenção de Morel 2.4.1 A adaptação 2.4.2 A narrativa
3. Objetivos principais 4. Roteiro 4.1 Linguagem 4.2 Fluxograma 4.3 Cenário 4.4 Personagens 4.5 Interações 4.6 Público alvo 5. Conceito visual e sonoro 5.1 Visual 5.1.1 Croquis do cenário 5.1.2 Croquis dos personagens 5.1.4 Referências visuais 5.2 Sonoro 5.2.1 Referências sonoras 6. Considerações finais 6.1 “Diário de Bordo” / Dificuldades encontradas
6.2 Conclusão
28
8. Referências Bibliográficas Teoria BATISTA, Maria Santana Batista. GARCÍA, Flávio. Dos Fantásticos Ao Fantástico: Um Percurso Por Teorias Do Gênero. In: “Questões de Gênero em Méndez Ferrín e Murilo Rubião”. Rio de Janeiro: UERJ, 2006. BORGES, Jorge Luis. CASARES, Adolfo Bioy, OCAMPO, Silvana. Antologia de la Literatura Fantastica. Buenos Aires: Sudamericana, 2006. COMPARATO, Doc. Da criação ao roteiro - Teoria e prática. São Paulo: Summus, 2009. DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. DUGUET, Anne-Marie, “Dispositivos”. In MACIEL, Kátia (Org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009, pg 49-68. ECHETO, Víctor Silva. SARTORI, Rodrigo Francisco Browne. En búsqueda de la espectrología de Faustine. A propósito de La invención de Morel. Revista de estudios literarios. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2001. GOMES, Renata. Agentes Verossímeis, tese de Doutorado. São Paulo: 2009. GOMES, Renata. Imersão e Participação, tese de Mestrado. São Paulo: 2009. GOSCIOLA, Vicente. Roteiro para as Novas Mídias - Do cinema às mídias interativas. São Paulo: Senac, 2008. GRAU, Oliver. Arte Virtual - da ilusão à imersão. São Paulo: Senac, 2007. HOUAISS, Antonio, VILLAR, Mauro de Salles, FRACO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001 JANA, Reena. TRIBE, Mark. New Media Art. São Paulo: Taschen do Brasil, 2007. LEVINE, Suzanne Jill. Guía de Bioy Casares. Madrid: Espiral, 1982. MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela – Modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo: Paulus, 2007. MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e Pós-Cinemas. Campinas: Papirus, 1998. MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007. MACIEL, Katia (org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009. MANOVICH, Lev. The Language of New Media. Cambridge, MA; London, England.: MIT,
29
2001. PARENTE, André, “A forma cinema: variações e rupturas”. In: MACIEL, Kátia (Org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009, pg 38-44. PÉREZ, María Rodríguez. A propósito del poder de las construcciones simuladas: La invención de Morel y Ceci n'est pas une pipe. Revista de estudios literários. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2004. ROCCA, Adolfo Vásquez. La Invención de Morel. Defensa para sobrevivientes. Revista Zona Moebius, 2006. RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988. RYAN, Marie-Laure. “Will New Media Produce New Narratives?” in Narrative Across Media: The Langages os Storytelling. Lincoln: University of Nebraska Press, 2004. SANTAELLA, Lúcia. Navegar no ciberespaço – Perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulos, 2004. UEXKÜLL, T.V., 2004. A teoria do Umwelt de Jacob von Uexküll. Galáxia: revista transdisciplinar de comunicação, semiótica e cultlura, (7), 19-48. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992. XAVIER, Ismail (org.) A Experiência do Cinema - Antologia. Rio de janeio, Graal/Embrafilme, 1983 . XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico - A opacidade e a transparência. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984. WOOK. Sobre Adolfo Bioy Casares. Página visitada em 25 de abril de 2011. <http://www.wook.pt/authors/detail/id/9206> Ficção: BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução de Calor Nejar. São Paulo: Globo, 1989. CASARES, Adolfo Bioy. A invenção de Morel. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Cosac &Naify, 2006. CORTÁZAR, Julio. Bestiário. Tradução de Remy Gorga Filho. São Paulo: Círculo do Livro, 1951. CORTÁZAR, Julio. Histórias de Cronópios e de Famas. Tradução de Gloria Rodríguez. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. HESSE, Hermann. Contos. Tradução de Angelina Peralva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
30
RUBIÃO, Murilo. Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. TELLES, Lygia Fagundes. Seminário dos Ratos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Jogos e obras audiovisuais BENMERGUI, Daniel. Today I Die. Ludomancy. <http://www.ludomancy.com/games/today.php?lang=pt> BLOW, Jonathan. Braid. 2008. <http://www.braid-game.com/> Chrome Experiments, página visitada em 15 de março de 2011. <http://www.chromeexperiments.com/> Dreaming Methods. Digital Fiction Projects. 2000. <http://www.dreamingmethods.com/index.html> GLAIEL, Tyler. SCHUBBE, Jon. Closure. 2009. <http://www.closuregame.com/> HOOGERBRUGGE, H. Hotel - an interactive tale. SUBMARINECHANNEL, 2004. <http://www.hoteloscartangoecholima.com/splash.html> MILK, Chris. The Wilderness Downtown. 2010. <http://www.thewildernessdowntown.com> MOLLEINDUSTRIA. Every day the Same Dream. 2009. <http://www.molleindustria.org/everydaythesamedream/everydaythesamedream.html> PIGLIA, Ricardo. “La Invención de Morel”. Instalaciones. 1996.
31
9. Anexos
9.1. Manuscrito em Páginas Amarelas - O Tratado de Morel
Meu abuso consiste em tê-los fotografado sem autorização. É claro que não se trata de
uma fotografia qualquer; é minha última invenção. Nós vivemos nessa fotografia, para sempre.
Imaginem-se num cenário em que se representa completamente nossa vida nestes sete dias.
Nós representamos. Todos os nossos atos ficam gravados. Vivemos numa eternidade.
Quando completei a invenção, ocorreu-me, primeiro, como simples tema para a
imaginação e, depois, como projeto implausível, dar perpétua realidade à minha fantasia
sentimental...
Julgar-me superior e a convicção de que é mais fácil fazer uma mulher se apaixonar
do que fabricar os céus me aconselharam a agir espontaneamente. As esperanças de fazê-la se
apaixonar ficaram para trás; já não tenho sua amizade confiante; já não tenho o apoio, o
ânimo para enfrentar a vida. Convinha seguir uma tática, traçar planos. Nos primeiros, ou a
convencia a virmos sozinhos (impossível: não a vi sozinha desde que lhe confessei minha
paixão) ou a raptava (teríamos brigado eternamente). Note-se que, desta feita, não há exagero
na palavra eternamente. Agora lhes explicarei minha invenção.
Qual é a função da radiotelefonia? Suprimir, no que diz respeito à audição, uma
ausência especial: valendo-nos de transmissores e receptores, podemos nos reunir neste quarto
para conversar com Madaleine, muito embora esteja a mais de vinte mil quilômetros, no
interior de Québec. A televisão consegue o mesmo, no que diz respeito à visão. Alcançar
vibrações mais rápidas, mais lentas, significará estender-se aos demais sentidos; a todos os
outros sentidos.
O quadro científico dos meios de fazer frente a ausência era, até pouco tempo atrás,
mais ou menos o seguinte: quanto à visão: a televisão, o cinema, a fotografia; quanto à
audição: a radiotelefonia, o gramofone, o telefone. Conclusão: A ciência, até pouco tempo
atrás, limitava0se a fazer frente, para a audição e a visão, a ausências espaciais e temporais. O
mérito da primeira parte de meus trabalhos consiste em ter posto fim a uma incúria que já
tinha o peso das tradições e em ter dado sequência, com lógica, por caminhos quase paralelos,
aos raciocínios e aos ensinamentos dos sábios que melhoraram o mundo com as invenções
que mencionei. [...] saí em busca de ondas e vibrações inalcançadas, de idealizar instrumentos
para captá-las e transmiti-las. Obtive, com relativa facilidade, as sensações olfativas; as
32
térmicas e as tácteis propriamente ditas exigiram toda minha perseverança. Foi preciso,
ademais, aperfeiçoar os meios exigentes. Os melhores resultados faziam honra aos fabricantes
de discos de gramofone. Havia bom tempo que era possível afirmar que já não temíamos a
morte no que diz respeito à voz. As imagens haviam sido arquivadas muito deficientemente
pela fotografia e pelo cinema. Dirigi essa parte de meu trabalho à retenção das imagens que se
formam nos espelhos. Uma pessoa ou um animal ou uma coisa é, diante de meus aparelhos,
como a estação que emite o concerto que vocês estão ouvindo no rádio.
Se abrirem o receptor de ondas olfativas, sentirão o perfume dos jasmins que estão
junto aos seios de Madeleine, sem vê-la. Abrindo o setor de ondas tácteis, poderão acariciar
sua cabeleira, suave e invisível, e aprender, como cegos, a conhecer as coisas com as mãos.
Mas se abrirem todo o conjunto de receptores, aparece Madeleine, completa, reproduzida,
idêntica; não esqueçam que se trata de imagens extraídas dos espelhos, com os sons, a
resistência ao tato, o sabor, os cheiros, a temperatura perfeitamente sincronizados. Nenhuma
testemunha admitirá que são imagens. E se agora aparecessem as nossas, vocês mesmos não
acreditariam em mim. Seria mais cômodo pensar que contratei uma companhia de atores, de
sósias inverossímeis.
Esta é a primeira parte da máquina; a segunda grava; a terceira projeta. Não precisa de
telas ou papéis; suas projeções são bem acolhidas em todo o espaço, não importa se é dia ou
noite. A bem da clareza, ousarei comparar as partes da máquina com: o aparelho de televisão
que exibe imagens de emissores mais ou menos distantes; a câmera que registra em película
as imagens que trazidas pelo aparelho de televisão; o projetor cinematográfico.
Eu cogitava coordenar as recepções dos meus aparelhos e gravar cenas de nossa vida:
uma tarde com Faustine, pedaços de conversas com vocês; teria composto assim um álbum de
presenças bastante duráveis e nítidas, que seria um legado de alguns momentos para outros,
grato aos filhos, aos amigas e às gerações que viviam outros costumes. Com efeito, imaginava
que, por mais que as reproduções de objetos fossem objetos - como a fotografia de uma casa é
um objeto que representa um outro -, as reproduções de animais e plantas não seriam animais
nem plantas. Estava certo de que meus simulacros de pessoas careciam de autoconsciência.
Tive uma surpresa: depois de muito trabalho, ao congregar esses dados
harmonicamente, encontrei pessoas construídas, que desapareciam e como se eu desconectava
o aparelho projetor, viviam apenas os momentos passados em que se gravara a cena e, ao
terminá-los, voltavam a repeti-los, como se fossem partes de um disco ou de um filme que,
uma vez terminado, tornasse a começar, mas que ninguém poderia distinguir das pessoas
33
vivas (parecem circular em outro mundo, fortuitamente abordado pelo nosso). Se atribuímos
consciência e tudo que nos distingue dos objetos às pessoas que nos rodeiam, não poderemos
negá-la àquelas criadas por meus aparelhos com nenhum argumento válido e exclusivo.
Congregados os sentidos, surge a alma. Era de se esperar. Madeleine estava ali para a visão,
Madeleine estava ali para a audição, Madeleine estava ali para o paladar, Madeleine estava ali
para o olfato, Madeleine estava ali para o tato: Madeleine estava ali. [...] Para fazer
reproduções vivas, preciso de emissores vivos. Não crio a vida.
Diante da impossibilidade de executar meu primeiro projeto - levá-la até em casa e
gravar uma cena de felicidade minha ou recíproca -, concebi um outro que é decerto, melhor.
Descobrimos esta ilha nas circunstâncias que vocês recordam. Três condições
recomendavam-na a mim: 1) as marés; 2) os recifes; 3) a luminosidade.
A regularidade costumeira das marés lunares e a abundância de marés meteorológicas
asseguram um suprimento quase constante de força motriz. Os recifes são um vasto sistema
de muralhas contra invasores; um homem os conhece: é o nosso capitão McGregor; cuidei
para que não volte a se arriscar e outros perigos. A clara mas não deslumbrante luminosidade
permite esperar uma perda verdadeiramente exígua na captação e imagens.
Confesso-lhes que, uma vez descobertas essas generosas virtudes, não hesitei em
investir minha fortuna na aquisição da ilha e na construção do museu, da igreja, da piscina.
Aluguei esse cargueiro que vocês chamam de iate para que nossa vinda fosse mais agradável.
A palavra museu, que uso para designar esta casa, é uma sobrevivência do tempo em que
trabalhava nos projetos da minha invenção, sem conhecer seu alcance. Pensava então em
erigir grandes álbuns ou museus, familiares e públicos, para essas imagens. É chegado o
momento de anunciar: esta ilha, com suas edificações, é nosso paraíso privado. Tomei
algumas precauções - físicas, morais - para sua defesa: creio que o protegerão. Aqui
estaremos eternamente - mesmo que partamos amanhã -, repetindo consecutivamente os
momentos desta semana e sem jamais poder sair da consciência que tivemos em cada um
deles, pois assim nos gravaram os aparelhos; isso permitirá que nos sintamos numa vida
sempre nova, pois não haverá outras recordações em cada momento da projeção salvo aquelas
que tivemos no momentos correspondente da gravação, e porque o futuro, muitas vezes
deixado para trás, manterá sempre [sempre: por toda a duração de nossa imortalidade; as
máquinas, simples e de materiais seletos, são mais incorruptíveis que o metrô de Paris e seus
atributos.
34
9. 2. Comportamento dos espelhos na ilha da Páscoa, Julio Cortázar
Quando se põe um espelho a oeste da ilha da Páscoa, ele atrasa. Quando se põe um
espelho a leste da ilha da Páscoa, ele adianta. Mediante delicadas medições pode-se encontrar
o ponto em que esse espelho estará na hora, mas o ponto que serve para esse espelho não é
garantia de que sirva para outro, pois os espelhos são feitos de diferentes materiais e reagem
segundo lhes dá na telha. Assim, Salomón Lemos, o antropólogo a serviço da Fundação
Guggenheim, se viu morto de tifo ao olhar seu espelho de barbear, tudo isso a leste da ilha. E
ao mesmo tempo um espelhinho que ele esquecera a oeste da ilha da Páscoa refletia para
ninguém (estava jogado entre as pedras) Salomón Lemos de calça curta indo para a escola,
depois Salomón Lemos nu na banheira, sendo entusiasticamente ensaboado por seu pai e sua
mãe, depois Salomón Lemos falando “ah” para grande emoção de sua tia Remeditos numa
fazenda do município de Trenque Lauquen.