Post on 02-Mar-2020
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Mais Jane do que GOODALL: uma trajetória não acadêmica exemplar
Carolina Alves d’Almeida
caroldalmvegan@gmail.com
Programa de Pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e
Epistemologia da UFRJ
Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio
Professora substituta do BHU da UFVJM
Introdução
O presente trabalho é parte da minha tese de doutorado, em fase de conclusão, no
Programa de pós graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE)
da UFRJ, que em termos gerais busca suscitar reflexões acerca dos atravessamentos e
dissoluções de fronteiras na produção de conhecimentos sobre os animais, com ênfase na
importância do papel dos atores locais e tradicionais na viabilização de práticas científicas, na
desconstrução das fronteiras institucionais e epistemológicas das ciências naturais
universalistas e eurocêntricas, e na construção social, pluriversal e polirracional do
conhecimento científico. Com base na perspectiva de que todo conhecimento é situado e de que
todas as ciências também são sistemas de conhecimento local, busco dar visibilidade às
diferentes localidades e racionalidades envolvidas na produção e descolonização do
conhecimento científico, incluindo as múltiplas racionalidades e pontos de vista não-humanos.
No presente texto, partirei do exemplo da trajetória peculiar da primatóloga Jane Goodall, que
contribuiu significativamente para o desenvolvimento da primatologia e da etologia.
Trimatas
O renomado paleontólogo Louis Leakey contratou 3 mulheres, as “Trimatas” (Trimates),
– Jane Goodall, Dian Fossey e Birute Galdikas – para estudarem, respectivamente, os
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chimpanzés, os gorilas das montanhas e os orangotangos na natureza por longos períodos.
Leakey sustentava que os estudos de longa duração do comportamento dos grandes primatas
não-humanos eram fundamentais para a compreensão das raízes do comportamento humano,
tendo em vista suas relações evolutivas e ligações filogenéticas. O paleontólogo procurava para
a pesquisa mulheres sem muita experiência e conhecimento científico, ou, em suas palavras,
“mentes organizadas e imparciais pela ciência”, pois acreditava que esse perfil estaria mais
sensível e aberto para a compreensão e apreensão do comportamento e da vida desses primatas.
Pouco se sabe sobre a real intenção de Leakey nessa escolha, se distinguia intelectualmente as
mulheres dos homens, ou se reconhecia uma lacuna na ciência ocidental (e patriarcal) do
comportamento animal que apenas mulheres não-cientistas (atores dominados e invisíveis para
o paradigma dominante da ciência moderna), com suas diferentes racionalidades e pontos de
vista, poderiam preencher. Independentemente da intenção de Leakey, a escolha deu certo, pois
o trio contribuiu significativamente para a primatologia e para a etologia. As três mulheres
inicialmente não eram primatólogas, mas pessoas muito interessadas e dispostas a adentrar
profundamente nos mundos dos primatas não-humanos e apreender suas diferentes alteridades.
Além disso, independentemente de Leakey, as três mulheres puderam desenvolver livremente
seus próprios métodos particulares de estudo do comportamento animal.
Dian Fossey, antes de tornar-se a famosa primatóloga conhecida principalmente por seu
engajamento nas causas dos gorilas, foi terapeuta ocupacional e trabalhou com crianças com
deficiência no Kentucky, embora sempre tenha demonstrado grande interesse pela ciência
veterinária. A dedicação e defesa apaixonada de Fossey pelos gorilas foi tão intensa, que a
primatóloga foi assassinada em 1985, com suspeita de crime encomendado por importantes
autoridades do país. Embora excessivamente polêmicas e controversas, as atitudes de Fossey
contribuíram significativamente para a proteção dos gorilas das montanhas. Seu livro Gorillas
In The Mist, de 1983, foi adaptado para o cinema1, em 1988, com a atriz Sigourney Weaver
como protagonista.
1 O filme, no Brasil, ganhou o título de “Na Montanha dos Gorilas”.
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Goodall, desde criança, sempre foi apaixonada pelos animais e trabalhou como garçonete
para poder realizar seu sonho de viajar para a África. Lá foi secretária do Leakey e depois
contratada para estudar por longos períodos os chimpanzés na Tanzânia.
Galdikas já planejava estudar os orangotangos e após uma palestra de Leakey, em 1969,
na UCLA, onde estudava, resolveu pedir auxílio ao primatólogo convencendo-o a apoiar sua
pesquisa com os primatas. Desse modo, as três mulheres, inicialmente invisíveis para a ciência
e primatologia, tornaram-se as três mais conhecidas primatólogas do século XX, contribuindo
para a visibilidade das capacidades complexas e os comportamentos sociais dos primatas não-
humanos.
Um pouco sobre Jane antes de tornar-se GOODALL
.
Valeria Jane Morris Goodall nasceu em Londres, no dia 3 de abril de 1934. Como já
citado, desde criança sempre cultivou uma paixão pelos animais (livres) e pela África, tendo
começado a observá-los bem jovem. Quando criança Jane ganhou de seu pai um chimpanzé de
brinquedo ao qual deu o nome de Jubilee e, segundo seus relatos, independente de Jubilee, ela
se fascinou por animais vivos desde o momento em que aprendeu a engatinhar. Desde os dez
anos de idade, Jane sonhava em ir para a África e viver com animais, tendo sido influenciada
pela leitura do livro A História do Dr. Dolittle (The Story of Dr. Dolitle)2, de Hugh Lofting, do
qual conseguiu uma cópia da biblioteca quando tinha apenas 8 anos de idade. Neste livro, o Dr.
Dolittle liberta para a vida selvagem um bando de animais de circo, e, segundo Jane, seu amor
pela África começou a partir do contato com essa obra. Nas palavras da primatóloga, tal livro
“(...) realmente é um fundamento na etologia, o estudo do comportamento”. Jane também foi
influenciada pela leitura das histórias de Tarzan (Tarzan of the Apes) 3 , de Edgar Rice
Burroughs, do qual ainda guarda uma cópia usada, tendo em vista que economizou centavos
para comprá-lo quando criança. Segundo Jane, foi através desse livro que decidiu que seu sonho
era ir para a África, crescer e viver com os animais, bem como escrever livros sobre eles. Sua
mãe, Margaret Myfanwe Joseph, a encorajou na realização desse sonho e dessa jornada, mesmo
2 Retirado do site http://florenceinprint.com/the-books-that-inspired-dr-jane-goodall/ 3 Retirado do site http://florenceinprint.com/the-books-that-inspired-dr-jane-goodall/
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sabendo que não era um sonho comum para uma menina na época e dos obstáculos que teria
de enfrentar, sobretudo o machismo epistêmico e científico da sociedade inglesa.
A formação de Jane, antes de viajar para África e conhecer Leakey, se resumia ao ensino
secundário e um curso de secretariado, tendo trabalhado um tempo na Universidade de Oxford.
Quando, em 1956, foi convidada para visitar a família de sua amiga Clo Mange, no Quênia,
Jane abandonou seu trabalho em Londres para se mudar para Bournemouth. Lá trabalhou como
garçonete com o intuito de arranjar o dinheiro necessário para viajar para a África. Quando
conseguiu viajar para África, Jane chegou a trabalhar como secretária em Nairobi, no Quênia.
Lá conheceu Louis Leakey, que inicialmente a contratou para trabalhar como assistente e
secretária no Museu Nacional do Quênia (Coryndon Museum). Leakey, como já mencionado,
planejava realizar estudos de longa duração com grandes primatas, acreditando que poderiam
fornecer pistas sobre o comportamento dos primeiros hominídeos, e convidou Goodall e outro
estudante para irem para as escavações de fósseis em Olduvai Gorge, na Tanzânia, com ele e
sua esposa, a antropóloga Mary Leakey. Encantado com a paciência, determinação, dedicação
e interesse de Jane nos animais selvagens, Leakey a convidou para estudar os chimpanzés na
Tanzânia por longos períodos. Jane, sem qualquer conhecimento científico sobre chimpanzés,
foi para Londres em 1958 para estudar o comportamento e anatomia de primatas com Osmam
Colina e John Napier. Finalmente, em 1960, Jane viajou financiada para o Parque Nacional de
Gombe Stream (Gombe Stream Nacional Park) com sua mãe. Assim começa a trajetória
peculiar da primatóloga sem formação universitária, que adentrou na África selvagem e no
mundo dos chimpanzés para apreender suas alteridades e conviver com eles definitivamente,
bem como para estabelecer com eles relações sociais interespecíficas, antes impensáveis na
primatologia. Posteriormente, Jane conseguiu patrocínio da National Geographic, que enviou
Hugo Van Lawick, fotógrafo e cineasta, para documentar sua vida. Jane e Hugo se casaram em
1964, e, em 1967 tiveram um filho, Hugo Eric Louis van Lawick, que passou seus primeiros
anos de vida na África, junto com os pais. Jane revezava entre realizar suas pesquisas de campo
ou escrever artigos e cuidar de seu filho. Por exigência do trabalho, Jane se separou de Hugo
quando seu filho tinha 7 anos. Posteriormente, em 1975, Jane se casou com o diretor do Parque
Nacional da Tanzânia, Derek Bryceson.
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Através dessa convivência e desse “co-tornar-se” ou “tornar-se-com” (DOOREN;
KIRKSEY; MÜNSTER. 2016) os chimpanzés, Jane conseguiu traduzir seus pontos de vista,
antes negligenciados pela comunidade científica, transformando os conhecimentos sobre o
comportamento dos chimpanzés. Como uma etnógrafa de etnias animais, Jane utilizava como
metodologia a observação participante e a relação intersubjetiva com os chimpanzés, por meio
do contato intenso e prolongado com seus grupos. Isso gerou uma revolta em alguns etólogos
que acreditavam que Jane poderia estar interferindo no comportamento, organização e
sociedade dos chimpanzés, em vista da aproximação e afeto que estabelecia com eles, e também
por fornecer alimentos. Além disso, a primatologia ainda não reconhece essas práticas
etnográficas e metodologias (utilizadas nas ciências humanas) como científicas, pois
desmantelam a separação entre sujeito/objeto e pesquisador/pesquisado, bem como, desafiam
a neutralidade das ciências naturais.
Alguns pesquisadores sugeriram que a guerra, que Jane chamou de “A Guerra dos 4
anos”, entre as facções Kasakela e Kahama de chimpanzés, que ficavam ao norte e ao sul do
Parque Nacional de Gombe, foi provocada involuntariamente pela própria primatóloga, em
vista de ter montado uma estação de observação no local onde os animais recebiam alimentos4.
Jane, quando já havia iniciado seus estudos sobre o comportamento dos chimpanzés na
África, relata que também foi influenciada pelo livro A Mentalidade em Macacos (The
Mentality of Apes)5, do etólogo Wolfgang Köhler – um dos pioneiros da Psicologia da Gestalt
e o primeiro a realizar uma análise cognitiva dos processos de aprendizagem através do conceito
de insight em chimpanzés – publicado inicialmente em 1917. Tendo em vista a escassez de
obras sobre o comportamento de chimpanzés, bem como a incipiência dos estudos sobre esses
animais na natureza, sobretudo, os de longa de duração, Jane afirma que a leitura desse livro a
ajudou muito na análise posterior do comportamento dos chimpanzés.
Goodall se recusava a utilizar os pronomes neutros it e which (usados para objetos) para
se referir aos chimpanzés, e, tal como o primatólogo Robert Hinde, se referia a esses animais
como he/she/who.
4 Retirado da reportagem da BBC “Os motivos por trás da Guerra dos Chimpanzés, a única registrada entre
animais”, de abril de 2018. Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/geral-43648714 5 Retirado do site http://florenceinprint.com/the-books-that-inspired-dr-jane-goodall/
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Os comentários editoriais a respeito do primeiro ensaio que escrevi para
publicação exigiam que todos os he ou she fossem substituídos por it e que
todos os who fossem substituídos por which. Exaltada, eu, por minha vez,
risquei os its e whichs e rabisquei novamente os pronomes originais. Como
não tinha nenhum desejo de cavar um nicho para mim no mundo da ciência,
mas queria simplesmente continuar a viver entre os chimpanzés, aprendendo
a respeito deles, a possível reação do editor daquela publicação erudita não
me perturbou. Para falar a verdade, aquela parada eu ganhei: o ensaio, quando
finalmente publicado, conferiu aos chimpanzés a dignidade dos seus gêneros
apropriados e promoveu-os adequadamente de simples “coisas” a uma
condição essencial de Ser. (GOODALL, 1991: 21)
Por ser uma mulher sem formação acadêmica, Jane enfrentou o machismo epistêmico e
institucional dos cientistas, com duras críticas às suas observações, descrições e interpretações
do comportamento dos chimpanzés. Suas observações e ideias de comportamento animal foram
desqualificadas pelos etólogos da época como anotações de uma jovem ingênua sem formação
universitária (GOODALL, 1991). Jane fez importantes descobertas sobre o comportamento
dos chimpanzés, reconhecendo suas capacidades complexas e comportamentos sociais,
revolucionando os conhecimentos sobre o comportamento desses animais. No entanto, quando
suas descobertas ganharam destaque na imprensa britânica, Jane teve que escutar comentários
do tipo “ela é apenas a garota da capa da National Geographic porque tem belas pernas"6.
É importante destacar que as descobertas e ideias de Goodall influenciaram
significativamente toda uma nova geração, na década de 1960, de cientistas comprometidas e
engajadas eticamente com a mudança das relações com animais e a natureza – que reconheciam
a senciência, os sentimentos, as capacidades cognitivas e sociais dos animais, suas capacidades
de empatia, de amar e odiar, demonstrar alegria e tristeza, medo e desespero. Os estudos de
comportamento animal começaram a ganhar um viés mais ético, e alguns etólogos começaram
a pensar mais na importância de suas pesquisas para a reconfiguração do status ontológico dos
animais no mundo ocidental, contribuindo para uma virada ontológica.
Com base nas semelhanças entre o comportamento dos seres humanos e dos chimpanzés,
Goodall levantava as seguintes questões:
Se atribuímos emoções humanas a animais não-humanos, somos acusados de
antropomorfismo – um pecado cardeal na etologia. Mas será isso assim tão
terrível? Se testamos o efeito de drogas em chimpanzés porque eles são
6 Retirado do filme-documentário Jane, de 2017, dirigido e escrito por Brett Morgen.
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biologicamente tão semelhantes a nós próprios, se aceitamos que existem
semelhanças impressionantes entre os cérebros e os sistemas nervosos dos
humanos e dos chimpanzés, não seria lógico presumir que haverá semelhanças
também entre pelo menos os sentimentos, emoções e estados de ânimo mais
básicos das duas espécies? (GOODALL, 1991:21)
Goodall conviveu durante muitos anos com os chimpanzés na África, estabelecendo com
eles diálogos e relações intersubjetivas, inclusive de amizade e afeto, em suas práticas
cotidianas, bem como em suas práticas científicas, de modo que tais relações intersubjetivas
contribuíram mais para suas descobertas científicas do que a simples observação científica do
comportamento desses animais, dissolvendo fronteiras epistemológicas entre o local e cotidiano
e total e científico. Jane deixava claro que seu interesse era viver entre os chimpanzés e, a partir
dessa convivência, aprender sobre eles. Goodall também descrevia o comportamento dos
sujeitos chimpanzés que observava e se relacionava através de uma linguagem comum, ou
narrativas, abrindo mão da fria e neutra linguagem científica utilizada nos etogramas7. Além
disso, Jane se referia aos chimpanzés nos trabalhos científicos com nomes próprios e não com
números, como era o padrão da linguagem científica da época e que persiste até os dias de hoje
entre muitos cientistas. Jane também utilizava termos das ciências humanas na primatologia,
fomentando diálogos interdisciplinares entre a ciências sociais e naturais, uma vez que
reconhecia os chimpanzés como humanos. O fato da primatóloga não ter a formação acadêmica
e estudar os chimpanzés através de seu ponto de vista, livre da monorracionalidade do
paradigma dominante das ciências modernas, contribuiu para uma mudança radical dos
conhecimentos acerca dos animais, bem como das relações animal-humano nas práticas
científicas.
Como eu era ingênua. E uma vez que não era formada em ciências, custei a
perceber que não se esperava que os animais tivessem personalidade,
pensassem, ou sentissem emoções e dor. Eu não fazia ideia de que, quando
ficava conhecendo um chimpanzé, era muito mais adequado designá-lo por
um número do que por um nome. Não percebi que não era científico discutir
comportamento em termos de motivação ou propósito. E ninguém me disse
que palavras tais como infância e adolescência referiam-se unicamente a fases
do ciclo de vida humano, fases culturalmente determinadas, e que essas
7 Etogramas consistem em listas de comportamentos onde pode ser descrito todo o repertório comportamental
observado em uma espécie animal, grupo ou indivíduo, em determinados contextos, bem como perfis particulares
e personalidades.
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palavras não deviam ser usadas com referência a chimpanzés jovens. Sem
saber disso, utilizei livremente todas essas palavras e conceitos proibidos em
minha primeira tentativa de descrever, da melhor maneira que pude, as coisas
espantosas que eu observara em Gombe. (GOODALL, 1991: 20)
Jane desafiou o antropocentrismo científico ao defender que os chimpanzés (e outros
animais) também possuem mentes e personalidades, que deveriam ser tratados com dignidade
e promovidos a uma outra condição ontológica. Indo mais além, Jane criticava a etologia
objetivista e mecanicista em termos epistemológicos, metodológicos e bioéticos: “infelizmente,
enquanto alguns cientistas continuarem a defender (pelo menos na vida profissional) a visão
equivocada de que os animais são meras “coisas”, isso será usado para que as pessoas fechem
os olhos para comportamentos desumanos como estes” (GOODALL apud BEKOFF, 2010:14).
Acerca das lacunas da etologia em reconhecer a mente animal, na década de 1960, Jane
discorre:
Quando comecei meu estudo em Gombe, em 1960, não era permissível – pelo
menos não em círculos etológicos – falar a respeito da mente de um animal.
Somente os humanos tinham mentes. Nem era muito adequado falar a respeito
de personalidade animal. É claro que todo mundo sabia que os animais tinham
suas características próprias e únicas – qualquer pessoa que tenha tido um
cachorro ou algum outro animal de estimação sabe disso. Mas os etologistas,
no esforço de tornar sua ciência “exata”, esquivaram-se à tarefa de tentar
explicar essas coisas de forma objetiva. Um etologista respeitado, ao mesmo
tempo em que reconhecia haver “variabilidade entre animais considerados
individualmente”, escreveu que era melhor esse fato ser “varrido para baixo
do tapete”. Naquela época, os tapetes etológicos andavam inchados com tanta
coisa escondida por baixo. (GOODALL, 1991: 20)
A primatóloga, desde a década de 1960, confere aos chimpanzés atributos e predicados
da humanidade, o que até os dias de hoje ainda é um tabu, tendo em vista a insistência na crença
na excepcionalidade humana. Atualmente, muitos primatólogos e etólogos, como Frans De
Waal, Barbara Smuts, Carl Safina, Marc Bekoff, Hal Whitehead, entre outros, publicam livros
que questionam o antropocentrismo e a ideia da excepcionalidade humana, discorrendo sobre
as dimensões biológicas e evolutivas da empatia, do senso de justiça, moral e ética, da
humanidade, da cultura e outros comportamentos sociais em primatas e outros animais não-
humanos, bem como sobre as relações intersubjetivas entre animais e humanos. No entanto, a
crença na excepcionalidade humana ainda não foi superada pelas ciências.
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Em decorrência dessa ousadia que desafiou o paradigma dominante da ciência moderna,
o antropocentrismo, o machismo e o especismo epistêmico da primatologia ocidental na década
de 1960, alguns de seus relatos foram negligenciados como anedóticos e suas ideias foram
consideradas antropomórficas pela maioria dos (homens) cientistas da época. No trecho abaixo
a primatóloga relata as reações negativas e indiferentes dos cientistas após a apresentação de
algumas de suas observações.
Não me esquecerei nunca da reação de um grupo de etologistas a algumas
observações que fiz em um seminário científico. Descrevi como Figan,
quando adolescente, aprendera a ficar para trás, no acampamento, depois dos
machos mais velhos terem partido, a fim de que eu pudesse dar algumas
bananas só para ele. Na primeira dessas ocasiões, ele, ao ver a fruta, lançou
chamados de comida, muito altos e satisfeitos: ao que dois machos mais
velhos correram de volta, perseguiram Figan e tomaram-lhe as bananas. E
então, chegando ao fulcro da história, expliquei como, na oportunidade
seguinte, Figan efetivamente conteve os gritos. Dava para ouvir os pequenos
sons em sua garganta, mas tão baixinhos que nenhum de seus companheiros
poderia ouví-los. Outros chimpanzés jovens, a quem tentamos dar frutas sem
o conhecimento dos mais velhos, nunca aprenderam esse autocontrole.
Precipitavam-se sobre a comida com gritos de júbilo, e com isso ela lhes era
roubada quando os machos grandes voltavam correndo. Eu esperara que
minha plateia ficasse tão fascinada e impressionada quanto eu tinha ficado.
Esperara uma troca de pontos de vista a respeito da indubitável inteligência
do chimpanzé. Em vez disso, houve um silencia gélido, após o que o
presidente da mesa rapidamente mudou de assunto. Ocioso dizer que, após
tamanha desconsideração, durante muito tempo me mostrei relutante em
contribuir com qualquer tipo de comentário em qualquer reunião cientifica.
Olhando em retrospecto, suspeito que todos ficaram muito interessados, mas
evidentemente não era permissível uma mera “anedota” como evidencia de
nada. (GOODALL, 1991: 20)
Jane foi uma das primeiras a defenderem que os chimpanzés possuíam capacidades
culturais, bem como a descobrir que fabricavam e usavam ferramentas, que possuíam uma
linguagem primitiva e eram capazes de entender o que seus pares pensavam. Tais observações
e descobertas provocaram uma reviravolta na primatologia, desencadeando mudanças que
permitiram o desenvolvimento da primatologia cultural no ocidente 8 . A ideia, segundo a
primatóloga, foi bem recebida pelos pesquisadores:
8 É importante destacar que, antes de Goodall, os primatólogos japoneses já observavam comportamentos culturais
em primatas, desde a década de 1950. Um dos primeiros e mais clássicos exemplos de comportamento cultural em
primatas não-humanos foi o da jovem macaca-japonesa (Macaca fuscata) Imo, na ilha de Kochima. A primatologia
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E houve apenas uns poucos antropólogos que se opuseram quando sugeri que
os chimpanzés provavelmente passavam suas tradições de utilização de
ferramentas de uma geração para outra, através da observação, imitação e
prática, de forma que era possível esperar que cada população tivesse a sua
cultura própria e singular na utilização de ferramentas (GOODALL, 1991:24).
Entretanto, diferente dos outros primatólogos, etólogos e cientistas que advogavam a
cultura animal, Goodall ia mais além da concepção biológica de cultura, ainda monolítica,
simplista e funcional, sugerindo a possível existência de mitos, rituais ou religião entre os
chimpanzés. Na conclusão de seu livro Uma Janela Para a Vida, de 1991, a primatóloga
extravasa os limites epistemológicos da primatologia para afirmar (com licença poética) a
existência de mitos entre os chimpanzés:
Teriam seus mitos também, os chimpanzés. Prestariam honra aos antigos
sábios, os primeiros que ensinaram a abrir a terra e a fabricar ferramentas para
a captura de formigas e cupins, e a intimidar os inimigos com pedras e pedaços
de pau. E os adolescentes aprenderiam a fazer oferendas propiciatórias ao
grande deus Pã, divindade silvestre de todas as criaturas da mata, com
impressionantes cerimônias nas cachoeiras, e danças de chuva bem no coração
da floresta. (GOODALL, 1991: 249).
Ao descrever um comportamento, Jane também suscita reflexões acerca da possibilidade
de religião entre nossos primos:
Durante dez minutos os três executaram suas exibições desordenadas,
enquanto Fifi e suas crias mais jovens observavam de uma das figueiras altas,
junto ao riacho. Estariam os chimpanzés expressando sentimentos de
admiração e reverência, tais como aqueles que, no homem primitivo, deram
origem às primeiras religiões, à adoração aos elementos? Adoração do
mistério da água, que parece viva; sempre correndo, e nunca indo embora;
sempre a mesma, mas sempre diferente. (GOODALL, 1991:252)
Em suma, Goodall reconhecia os animais como sujeitos, e por isso, dotados de cultura e
de todas as características que a definem, embora nas suas reflexões tenha demonstrado certo
desconhecimento antropológico cultural, caindo em um tipo de antropomorfismo etnocêntrico
(quando sugere que os chimpanzés fariam oferendas ao deus Pã, da mitologia grega).
Desconsiderando esses deslizes possivelmente ‘acidentais’, seus estudos sobre a cultura dos
japonesa, neste sentido, revolucionou as pesquisas sobre cultura e sociedade, ampliando seu alcance para além dos
limites antropocêntricos. Ao contrário dos primatólogos ocidentais, os japoneses não hesitavam em empregar
termos, teorias e métodos das ciências sociais em suas pesquisas.
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sujeitos chimpanzés contribuíram significativamente para o desenvolvimento dos estudos de
tradições culturais, etnias, diversidade e variabilidade de comportamentos, capacidades
simbólicas, capacidades éticas e morais, e humanidade nos primatas não-humanos, bem como
em outros animais. Indo mais além, seus estudos direta ou indiretamente contribuíram para o
atravessamento e dissolução de fronteiras entre as ciências sociais (ou humanidades) e as
ciências naturais, permitindo repensar a etologia, a partir de outros paradigmas emergentes,
como um campo interdisciplinar ou transversal, relacional, biossocial e fronteiriço. Como
aponta o filósofo-etólogo Dominique Lestel (2001), o primeiro passo para a discussão da
hipótese da cultura em animais não-humanos é o reconhecimento dos animais como sujeitos,
tendo em vista que “não existe cultura sem sujeito, e a questão das culturas animais é em
primeiro lugar, a do sujeito animal” (LESTEL, 2001: 9).
Embora transgredisse fronteiras epistemológicas e metodológicas no estudo biológico do
comportamento animal, Goodall também reconhecia o papel ético das ciências naturais no
despertar da consciência ecológica e animal da sociedade ocidental, ao provar cientificamente
e legitimar as capacidades cognitivas, mentais, sociais e emocionais dos animais.
O etólogo Marc Bekoff (2010) também reconhece o papel significativo da etologia na
mudança de percepções acerca do status ontológico dos animais no mundo ocidental e de sua
dimensão ética. Bekoff decidiu se tornar etólogo cognitivo para descobrir o que se passa no
coração e na mente dos animais. A etologia cognitiva, segundo Bekoff, é o estudo da evolução
dos processos cognitivos nos animais (continuidade evolutiva), ou “o estudo comparativo,
evolutivo e ecológico da mente dos animais” (BEKOFF, 2010:). A questão principal da etologia
passou a ser, para além de descobrir por que os comportamentos evoluem e para que servem,
compreender como os animais pensam e o que eles sentem (BEKOFF, 2010). Por se dedicar ao
estudo das emoções e dos sentimentos dos animais, a etologia de Bekoff adquire uma dimensão
ética muito significativa. Goodall, Bekoff, entre outros acreditam que o reconhecimento
científico das capacidades e potenciais dos animais pode contribuir para que sejam
reconhecidos como pessoas dotadas de valor intrínseco, consideradas eticamente e respeitadas
pela sociedade.
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Jane foi pioneira nos estudos de longa duração de chimpanzés na natureza, sem os quais
não poderia ter realizado suas descobertas. Segundo a primatóloga, só é possível compreender
a vida e as sociedades dos chimpanzés através dos estudos de longa duração.
Acima de tudo, nossa experiência em Gombe enfatizou a necessidade de um
estudo a longo prazo, se quisermos tentar compreender a complexa sociedade
desses chimpanzés. Grande parte de seu comportamento social só começou a
fazer sentido quando pudemos ficar no meio deles o tempo suficiente para
descobrir quem estava relacionado com quem entre os adultos. E só estando
presentes, ano após ano, é que fomos capazes de documentar os laços estreitos,
protetores e duradouros que se formam entre os membros de uma família.
Além disso, se a pesquisa tivesse terminado após apenas dez anos, nunca
teríamos observado a brutalidade que pode ocorrer durante os choques
intercomunitários. Se tivesse parado após vinte anos, não teríamos
documentado a história tocante da adoção do pequeno Mel pelo adolescente
Spindle. E quem sabe o que a próxima década vai revelar? Haverá mais
surpresas, não tenho dúvidas, pois cada ano, a partir de 1960, trouxe suas
próprias recompensas em termos de novas observações a respeito da natureza
do chimpanzé, novas percepções sobre a forma como suas mentes funcionam.
Eles são seres extremamente complexos, seu comportamento é muito flexível,
sua individualidade muito pronunciada. (GOODALL, 1991: 248)
Jane é considerada atualmente como a maior especialista em chimpanzés, bem como a
maior ativista pelos direitos desses animais. Goodall fundou o famoso Jane Goodall Institute
e, atualmente, também é mensageira da paz das Nações Unidas e afiliada ao grupo defensor dos
animais Humane Society of the United States.
É importante destacar que Goodall também é mais conhecida por suas publicações de
livros sobre experiências e relações intersubjetivas com animais, especialmente com os
chimpanzés, do que pelos seus artigos científicos. Em seus livros descreve sua trajetória como
etóloga e primatóloga culturalista – destacando relações de amizade e amor com chimpanzés,
experiências intersubjetivas, controvérsias, conflitos epistemológicos e institucionais, entre
outras situações. É importante destacar a contribuição dos livros (extracientíficos) para a
expressão da produção de conhecimentos etológicos através de narrativas e anedotas, que não
podem ser expressos na linguagem dos artigos científicos.
Algumas questões de gênero na primatologia ocidental
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Vinciane Despret (2011) analisa e descreve situações de machismo na ciência,
particularmente na primatologia, sugerindo que o machismo e sexismo dos cientistas
influenciou seus interesses de pesquisa, suas escolhas (do que pesquisar e encontrar),
descobertas e conclusões sobre comportamento animal. As pesquisadoras feministas, nesse
sentido, contribuiriam para a emancipação social e política das babuínas, por exemplo, ou do
que se conhecia cientificamente sobre elas.
Estas mulheres primatólogas vão começar a questionar o que havia
fundamentado as observações de seus colegas: será que o machismo não
colore um pouco demais as teorias e, em especial, a ideia de que a força
assegura a dominância? Mas, mais interessante ainda, tanto Thelma Rowell
quanto Shirley Strum vão se perguntar se a hierarquia não é antes de tudo
um problema que interessa prioritariamente aos machos, em particular
os machos da universidade. Os papéis, nos babuínos, elas observam, são
espantosamente similares ao que se espera de homens e mulheres na sociedade
humana: “uma sociedade dominada pelos machos, [escreverá Shirley Strum
(1990, p. 30)], caracterizada por uma divisão clara do trabalho; uma sociedade
onde os machos detêm o poder e onde as fêmeas só podem ser promovidas
quando se associam a um macho dominante”. Certamente, na mesma medida
em que esta diferenciação de papéis surge, no Ocidente, em especial desde o
século XVIII, como pertencendo à própria natureza dos homens e das
mulheres e não como uma forma singular de organização política, era desde
então totalmente legítimo, até necessário, encontrá-la nos ancestrais
“naturais”. Mas, se afirmarmos isto, não deveríamos então inferir que a crítica
do modelo e as novas observações que acompanham e fundamentam estas
críticas não são estranhas à mudança das condições sociais, políticas e
culturais que marcam o final dos anos 1960? Em termos mais claros, o avanço
do feminismo não teria influenciado o comportamento das babuínas?
(DESPRET, 2011:62)
Despret (2011), como já citado, observa a influência de fatores, tais como o contexto
político, sociocultural e histórico no qual o pesquisador está inserido, bem como seu gênero e
orientação sexual na interpretação do comportamento dos animais estudados. Esses fatores
influenciam o modo como os pesquisadores veem essas sociedades animais, o que eles
observam ou querem observar. A psicóloga destaca a revolução feminista como uma
oportunidade para a emancipação social das babuínas e a influência das ideias feministas, dos
anos 1960, nas pesquisas de primatólogas, através das quais elas colocaram “em discussão o
modelo tradicional do macho dominante e da fêmea submissa, o que lhes permitiu observar as
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fêmeas, elaborando a hipótese de que elas tinham provavelmente um papel social relevante”
(DESPRET, 2011:68).
Despret (2011) também destaca a influência da condição na qual as primatólogas
trabalhavam nos anos 1960: elas ficavam mais tempo no campo do que os homens, pois tinham
pouco acesso aos cargos acadêmicos de alto nível. No trabalho de campo, elas passavam longos
períodos no mesmo lugar, em vista da falta de opções. Nesta condição, elas puderam imergir
profundamente no mundo dos babuínos, observar cuidadosamente seus modos de vida, prestar
mais atenção neles, bem como estabelecer conexões ou interações, e constatar que as fêmeas
desempenhavam tarefas sociais importantes.
Jane Goodall e as primeiras primatólogas foram colocadas para trabalhar no campo em
estudo de longa duração, no qual passavam longos tempos observando e registrando o
comportamento de primatas. É importante destacar que a pesquisa de campo era desvalorizada
na época, considerada intelectualmente inferior ao trabalho de gabinete dos primatólogos
homens, embora eles também fossem ao campo, mas por curta duração e período.
A partir dessa “imersão apaixonada”9 proporcionada pelos estudos de longa duração, que
permitiam a convivência por longos períodos com os primatas, o estabelecimento de laços
sociais, vínculos e experiências intersubjetivas, essas primatólogas puderam conhecer
profundamente esses primatas, bem como tornar-se-com e emaranhar-se nos seus diferentes
modos de vida.
Vale ressaltar a relação do feminismo com o animalismo, em termos de perspectivas,
epistemologias e ontologias descoloniais que questionam e combatem a tradição de pensamento
ocidental moderna, monorracional, universalista, dualista e patriarcal. Mulheres, animais e
9 Segundo Dooren, Kirksey e Münster (2016: 4-5), “uma imersão apaixonada pode assumir muitas formas. Em
seu âmago envolve atentas interações com os diversos modos de vida. Além de ver as outras criaturas como meros
símbolos, recursos ou fundo para a vida dos seres humanos, os pesquisadores dos estudos multiespécies têm por
objetivo fornecer consistentes relatos de distintos mundos experienciais, modos de ser e ligações bioculturais de
outras espécies. Caminhos imersivos de conhecer e estar com os outros envolvem uma cuidadosa atenção ao que
importa para eles – atenção para como eles criam vidas e mundos partilhados. “Paixão” não significa aqui praticar
um entusiasmo sem reservas ou fundamento para o florescimento do outro. A imersão na vida do estranho, o não
amado, ou mesmo o odiado, é muito possível. (...) uma diversidade de focos é possível; nem todos eles são
agradáveis e afirmadores-da-vida (embora a questão da vida de quem é afirmada é, em si, de interesse central e
crítico). Em resumo, uma imersão apaixonada significa tornar-se curioso e então emaranhado, “aprendendo a ser
afetado” e, assim, talvez, entender e cuidar de maneira um pouco diferente.
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natureza são objetificados e inferiorizados, atores dominados que reivindicam espaços
ontológicos e epistêmicos. Segundo Paul Beatriz Preciado:
O Renascimento, o Iluminismo, o milagre da revolução industrial repousam,
portanto, sobre a redução de escravos e mulheres à condição de animais e
sobre a redução dos três (escravos, mulheres e animais) à condição de
máquinas (re-) produtivas. Se o animal foi um dia concebido e tratado como
máquina, a máquina se torna pouco a pouco um tecnoanimal vivo entre os
animais tecnovivos. A máquina e o animal (migrantes, corpos
farmacopornográficos, filhos da ovelha Dolly, cérebros eletrodigitais) se
constituem como novos sujeitos políticos do animalismo por vir. A máquina
e o animal são nossos homônimos quânticos (PRECIADO, 2014:1)
Posteriormente, com o notável trabalho e significativas contribuições dessas
pesquisadoras, os estudos de longa duração foram reconhecidos e valorizados como
metodologia pelos etólogos e primatólogos. Atualmente, os estudos de longa duração são parte
essencial e indispensável para a primatologia e pesquisas etológicas.
Considerações finais
Atualmente muitos biólogos e etólogos, como Jane Goodall, Barbara Smuts, Thelma
Rowell, Marc Bekoff, Frans de Waal, Carl Safina entre outros, têm se empenhado ativamente
em reinventar as práticas de conhecer e experimentar dentro das ciências naturais,
reconhecendo a subjetividade, individualidade e humanidade de seus parceiros de pesquisa.
Indo mais além, eles reconhecem o contexto particular do pesquisador, “localmente
incorporado e implicado com o que é capaz de ser conhecido” (DOOREN; KIRKSEY;
MÜNSTER. 2016: 6).
Espero com este trabalho ter suscitado reflexões sobre a importância da trajetória e das
contribuições de Jane Goodall na descolonização epistêmica e na reconfiguração das ciências
animais no século XX. Sua trajetória é bastante conhecida, por sua imersão apaixonada, durante
50 anos, na vida dos chimpanzés na Tanzânia, bem como por sua dedicação incansável à
preservação e proteção desses animais. No entanto, pouco se fala sobre um dos aspectos que
contribuíram para essa mudança radical na primatologia, em termos epistemológicos,
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metodológicos, políticos e éticos, que é o fato da Jane Goodall, no começo de sua longa
trajetória, não ter a formação acadêmica e científica. Tal aspecto permitiu que Jane, a partir de
sua localidade e ponto de vista, desenvolvesse sua própria metodologia de imersão apaixonada
no mundo dos chimpanzés, estabelecesse relações intersubjetivas para compreender seus
diferentes modos de vida, e traduzisse tais experiências através de narrativas e “relatos
anedóticos”. Goodall realizava uma etologia ao modo “deleuziano” 10 , de modo que a
aproximação, os modos de afetar e ser afetada e a criação de laços sociais eram imprescindíveis
para suas pesquisas. Se fosse especialista, confinada em laboratórios ou gabinetes de pesquisa,
subordinada ao paradigma dominante da epistemologia moderna universalizante e
monorracional, Jane não poderia livremente emaranhar-se e tornar-se-com os chimpanzés.
Desse modo, podemos compreender a multiplicidade de perspectivas e conhecimentos situados
trazidos de “fora” dos limites da objetividade do mundo científico, que revolucionaram a
primatologia, suas metodologias e linguagem.
Pesquisadoras como Jane Goodall, Thelma Rowell, Donna Haraway, Barbara Smuts,
Shirley C. Strum e Linda M. Fedingan levantaram questões acerca da importância dos diálogos
intersubjetivos e das experiências subjetivas e pessoais para as práticas científicas, dando
visibilidade aos pontos de vista dos atores animais na produção de conhecimento, bem como
revolucionaram a linguagem científica, através das narrativas ricas em anedotas, metáforas e
figurações. Algumas delas, fortemente influenciadas pela teoria feminista, recusavam e se
manifestavam contra os determinismos, o relativismo, o universalismo, o binarismo, o discurso
científico hierarquizado, hegemônico e colonizante e o pensamento tipológico (HARAWAY,
2003) que caracterizam o paradigma dominante da ciência moderna ocidental. Segundo
Haraway, a teoria feminista “contribuiu com uma rica variedade de abordagens para a
emergência, o processo, a historicidade, a diferença, a especificidade, a co-habitação, a co-
constituição, e a contingência” (HARAWAY, 2003:7). Tais mulheres enfrentaram as enormes
barreiras impostas pelo machismo epistêmico e institucional das ciências, desconstruindo o
estereótipo de que não teriam habilidades intelectuais necessárias para encabeçar uma pesquisa
10 Gilles Deleuze (2002:130) repensa a etologia como os estudos das relações – e não das formas – “que definem
os corpos, os animais ou os homens, pelos afetos de que são capazes. (...) a etologia é, antes de tudo, o estudo das
relações de velocidade e de lentidão, dos poderes de afetar e de ser afetado que caracterizam cada coisa.”
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científica. É importante ressaltar que os animais não-humanos, como atores sociais dominados
ou “radicalmente outros”, também desempenham com seus pontos de vista e racionalidades
outras, através de relações emaranhadas, um papel relevante de resistência e ocupação de
espaços epistêmicos.
Referências
BARNET, Andrea. Visionary Women: How Rachel Carson, Jane Jacobs, Jane Goodall, and
Alice Waters Changed Our World. Ecco / HarperCollins. 2018.
BEKOFF, Marc. A Vida Emocional Dos Animais: alegria, tristeza e empatia nos animais. Trad:
Denise Delela. São Paulo:Cultrix, 2010.
BUCHANAN, B. OntoEthologies: The Animal Environments of Uexküll. Heidegger,Merleau
Ponty,and Deleuze. State University ofNewYork Press: Albany, NY. 2008
DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
DESPRET, Vinciane. O que as ciências da etologia e da primatologia nos ensinam sobre as
práticas científicas? Fractal: Revista de Psicologia, Niterói; pp. 59-72. 2011. Disponível em:
http://www.uff.br/periodicoshumanas/index.php/Fractal/article/view/649 Acesso em:
23/04/2011.
GOODALL, Jane. Uma Janela Para a Vida: 30 anos com os chimpanzés da Tanzania.
Tradução Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
GOODALL, Jane, with the Jane Goodall Institute. Jane Goodall: 50 Years at Gombe. New
York: Stewart, Tabori & Chang, 2010.
HARAWAY, Donna J. The Companion Species Manifesto: Dogs, People and Significant
Otherness, Chicago: Prickly Paradigm Press. 2003
LESTEL, D. As Origens Animais da Cultura. Tradução de Maria João Reis. Ed. Instituto Piaget.
Paris. 2001.
PRECIADO, Paul B. O Feminismo não é um Humanismo. Trad: Charles Feitosa. 2014.
Disponível em:
http://www.opovo.com.br/app/colunas/filosofiapop/2014/11/24/noticiasfilosofiapop,3352134/
o-feminismo-nao-e-um-humanismo.shtml. Acesso em 21/01/2016.
van DOOREN, Thom; KIRKSEY, Eben; MÜNSTER, Ursula. Estudos multiespécies:
cultivando artes de atentividade. Trad. Susana Oliveira Dias. ClimaCom [online], Campinas,
Incertezas, ano. 3, n. 7, pp.39-66, Dez. 2016. Disponível em:
http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/wp-content/uploads/2014/12/07-Incertezas-nov-
2016.pdf. Acesso em abril de 2018.