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Caminhando entre Mouros: O relato da viagem de D. Fernando II (1856) ao Marrocos
por José Daniel Colaço
Lucas de Mattos Moura Fernandes1
Resumo: No ano de 1856, o Rei de Portugal D. Fernando II empreendeu uma viagem
diplomática ao longo do Reino do Marrocos visando a aproximação entre as duas coroas e
esta viagem foi acompanhada e registrada pelo orientalista e diplomata José Daniel Colaço,
que, em relato publicado em 1882 no próprio Marrocos, descreveu a visita do monarca
lusitano bem como suas impressões sobre os costumes locais e a interação entre os visitantes
e visitados. Nosso trabalho se propõe a analisar o relato produzido pelo diplomata José Daniel
Colaço, visando compreender a importância do Marrocos na construção da percepção
portuguesa sobre o oriente e o outro colonizado, presente no olhar imperialista deste autor e
em sua obra num contexto em que o Marrocos estava sendo disputado por outras potências
coloniais, como Espanha e França.
Palavras-chave: Marrocos. Orientalismo. Viajantes.
Abstract: In 1856, the King of Portugal Fernando II undertook a diplomatic journey throught
the Kingdom of Morocco to bring the two crowns closer together, and this voyage was
accompanied and recorded by the orientalist and diplomat José Daniel Colaço, who in a report
published in 1882 in Morocco itself described the visit of Lusitanian monarch as well as his
impressions on local customs and the interaction between visitors and visitors. Our work
proposes to analyse the report produced by José Daniel Colaço aiming to the understand the
importance of Morocco in the construction of the Portuguese perception about the East and
the other colonized, present in the imperialist look of this autor and his work in a context in
which this is Morocco was being disputed by other colonial powers, such as Spain and
France.
Keywords: Morocco. Orientalism. Travellers.
1 O autor é mestrando filiado ao programa de pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio
de Janeiro e bolsista do CNPq. E-mail: professorlucasfernandes@gmail.com
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No ano de 1856, o monarca Português D. Fernando II realizou uma viagem
diplomática ao Reino do Marrocos, acompanhado de seu séquito, com a finalidade
diplomática de conceder ao Rei2 marroquino Sidi Mohammed a condecoração da Grã Cruz da
Torre e da Espada, primeira honraria ocidental atribuída a um soberano do Marrocos.
A viagem de D. Fernando II não se limita a uma reunião de chefes de estado, pelo
contrario, o monarca lusitano parte por uma trajetória progressiva visitando algumas das
principais cidades marroquinas do período. Apesar de muito pouco estudado, este
acontecimento histórico e diplomático tem em nossa percepção uma altíssima importância
cultural, tendo em vista a relação que há entre o topos norteafricano e o imaginário
colonizador ibérico, especialmente num período histórico (século XiX) em que o Marrocos e
seus vizinhos africanos estavam submetidos a uma série de pressões e conflitos por soberania,
resistindo a outras potências europeias.
Nosso objetivo neste artigo é analisar a trajetória de dom Fernando II ao longo do
Reino do Marrocos no ano de 1856, abordando não apenas a singularidade desta visita
diplomática, mas principalmente a narrativa construída sobre os mais diversos aspectos da
presença do soberano lusitano naquele território. Esta narrativa que analisaremos foi
produzida por José Daniel Colaço, diplomata português, considerado estudioso dos costumes
islâmicos em seu tempo e que acompanhou todo o percurso do Rei português, construindo um
relato de viagem que aborda, entre outras coisas, vários aspectos do imaginário imperial
português sobre o norte da África.
O livro escrito por José Daniel Colaço sobre a referida visita do monarca português ao
Marrocos, “Diário de viagem de Sua Majestade El Rei o Senhor Dom Fernando a Marrocos,
seguido da descrição da entrega da Grã Cruz da Torre e Espada ao Sultão Sid Mohammed” 3 ,
será a fonte histórica a qual analisaremos, tendo por objetivo compreender neste relato os
elementos do imaginário colonial português disseminados na “zona de contato” de seu
império.
Tendo em vista o cumprimento de tal objetivo, esta noção de “zona de contato” nos é
cara, sendo mobilizada a partir a obra de Mary Louise Pratt, referencial teórico incontornável
em relação a historiografia sobre relatos de viagem. A autora que produziu uma obra de
grande impacto acadêmico, discutindo os mecanismos ideológicos e semânticos através dos
2 Nossa fonte documental mobiliza o título de Sultão sempre que se refere ao monarca Marroquino, contudo é
notório que a realeza do Magreb Al-Aqsa seja protocolarmente tratada pelo título ocidental de “Rei” do
Marrocos. Ao longo do texto intercalaremos ambos os títulos. 3 José Daniel Colaço, Diário de viagem de Sua Majestade El Rei o Senhor Dom Fernando a Marrocos, seguido
da descrição da entrega da Grã Cruz da Torre e Espada ao Sultão Sid Mohammed, dedicada à Sociedade de
Geografia de Lisboa, Tanger, Imprensa Abrines, 1882.
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quais os viajantes europeus, partir do século XVIII, teriam criado um campo discursivo,
construindo uma consciência do outro colonial e sua cultura. A descoberta e a significação
dos territórios, símbolos e costumes dos povos é vista como uma fonte de estudo para a
compreensão das dinâmicas e expansão do modo capitalista em direção às colônias, sempre
produzindo novas realidades coloniais.
Aprendemos, tendo Mary Louise Pratt como referência, que a melhor forma de
analisar a construção do olhar imperial sobre a realidade colonial é valorizando as interações
bilaterais, resultante do encontro e da interseção entre o saber europeu e o saber nativo, entre
os viajantes e os viajados, Reinterpretando a perspectiva colonial presente nos relatos de
viagem. Deste modo, para melhor aproveitamento dos limites deste trabalho, nosso artigo será
organizado de modo a fazer uma leitura tópica sobre os principais aspectos do contato da
comitiva de D. Fernando II com a realidade Marroquina, sem deixar submergir no texto a
necessidade de compreender as relações culturais entre Portugal e o Marrocos moderno.
1- As relações coloniais entre Portugal e o Marrocos e a situação marroquina no XIX
As relações entre Portugal e Marrocos se iniciaram antes mesmo da formação de uma
coroa soberana lusitana. O Estado Ibérico que se expandiu e se formou no século XIII
seguindo a expansão cristã sobre a então Europa muçulmana partilhou (assim como Castela)
de uma fronteira porosa que serviu de rota para diferentes povos europeus latinos e góticos,
árabes, judeus e berberes, estando no outro lado de Gibraltar o refúgio principal das minorias
religiosas remanescentes aos Reinos taifas e que buscavam no Marrocos a possibilidade de
vida que a expansão cristã não permitiria.
Com as denominadas grandes navegações, o norte da África tornou-se o primeiro
objetivo dessas expedições, que poderiam bem ser consideradas um prolongamento das
guerras de reconquista. Ao longo do século XVI uma série de conflitos demarcou a história
das relações entre o Marrocos e Portugal. Funcionando como um estado tampão entre as
primeiras potências coloniais e o território norteafricano do império turco-otomano, o
Marrocos foi repetidamente invadido por expedições militares, que ainda no espírito
cruzadista traziam consigo a bandeira da cristianização de um Reino mouro, mas que
tomavam territórios específicos ao longo do litoral norte marroquino e em espaços
razoavelmente curtos de tempo tornavam a perdê-los por conta de contra ofensivas
magrebinas.
Da perspectiva colonial, o século XIX foi um período de dificuldades e decepções para
suas ambições. Em 1808 a metrópole foi colocada sob a ameaça do exército napoleônico, por
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estar na órbita de influência britânica, e seu centro metropolitano foi transferido para sua
maior colônia além mar. Como sabemos, após o congresso de Viena e o retorno de seu
monarca com a revolução liberal de 1820, a condição da América Portuguesa estava além das
possibilidades de dependência e controle lusitanas. Por conseguinte, em 1822 deu-se
formalmente a independência do Brasil, ainda na mesma década uma guerra civil pelo trono
entre D. Pedro e seu irmão D. Miguel, foram processos políticos e sociais que atingiram
duramente a estabilidade do país.
Ainda no século XIX, com a ascensão da Alemanha com estado unificado e também
como potência econômica e industrial, muitos governantes viram o fato como uma
oportunidade de equilíbrio entre as potências continentais e o império britânico, com sua
armada intercontinental e suas maquinas altamente desenvolvidas. A tentativa de portuguesa
de se afastar da órbita político-econômica britânica para firmar acordos com a França, não foi
oportuna como se imaginava e o ultimato inglês de 1890 veio frustrar o centenário sonho de
ligar as costas atlântica e índica africanas por meio da expansão de Angola e Moçambique
para o interior do continente.
O Marrocos por sua vez atravessou o século dezenove como uma presa disputada
pelas grandes potências coloniais. Sua posição geográfica entre o deserto e o mar, ligando
Gibraltar aos territórios africanos do império otomano, bem como seu acesso tanto ao
atlântico como ao mediterrâneo, colocaram o maghreb Al-aqsa sob a pressão francesa,
potência que avançava militarmente sobre a Argélia, a britânica que visava o controle das
rotas comerciais e penetração de seus comerciantes no território xerifiano com a abertura do
país ao comércio internacional, a pressão espanhola que estudava a ocupação de territórios
africanos.
Se desde o século XVI nenhuma força militar europeia foi páreo para a cavalaria
xerifiana, a sombra de Alcácer-Quibir foi afastada pela sede de conquistas desse novo
colonialismo, que em agosto de 1844 exército de Buegaud derrotou exercito local. Em 1859-
1860, a guerra hispano-marroquina permitiu a tomada das cidades de Ceuta e Melilla pela
Espanha , a partir de suas bases no norte mediterrânico do Marrocos, que até então cumpriam
função carcerária.
A mobilização imperialista espanhola no Marrocos oitocentista culminou no tratado de
1861, onde sua possessão é garantida e além de uma indenização, ainda obtém a posse do
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território de Santa Cruz de Mar Pequeña. Como observa Mohammed Nadir, em cerca de sete
anos a relação entre o Marrocos e a Europa ocidental foi completamente modificada4.
2- José Daniel Colaço e sua atuação na diplomacia
Compreendemos que o autor do Relato de Viagem de Dom Fernando II, o Cônsul
português José Daniel Colaço é uma figura central para que possamos desenvolver a análise
da referida fonte histórica. J. D. Colaço nasceu em 1831 na própria cidade marroquina de
Tânger, filho de uma família de agentes diplomáticos portugueses que se instalou no
Marrocos ainda no século XVIII, foi também diplomata, escritor, arabista e “pintor
orientalista”5.
Em 1851 José Daniel Colaço foi nomeado vice-cônsul de Portugal em Tânger, e em
1861 sucedeu seu irmão Jorge Colaço, no posto de Consul-Geral Português no Marrocos. Por
conta de seus auxílios prestados ás vítimas da corveta brasileira D. Izabel que naufragou na
baía de Tânger em novembro de 1860, foi também nomeado Cônsul do Brasil naquele país6.
Por Portugal foi elevado a Encarregado de Negócios (1869) e Enviado Extraordinário e
Ministro plenipotenciário, mas exonerado em 1896 por conveniência de serviço.
Sua missão diplomática circunscreveu um dos períodos mais turbulentos da história do
Marrocos, quando potências como Espanha e França passaram a interferir na política interna
do país. Sua residência neste posto diplomático foi marcada pela atuação em favor dos
interesses portugueses (e posteriormente brasileiros) e pelas negociações de viés econômico,
como a renegociação do Tratado de Paz e Comércio entre os dois países, em 1880, que estava
vigorando desde 1774.
Além de seu trabalho diplomático, como citamos anteriormente, escreveu “A viagem
de Sua Magestade o Senhor D. Fernando à África”, publicada no Archivo Universal (1856) e
editada em Tânger em 1882. Relatando outra Missão diplomática em que participou, publicou
também “Offerecimento da Grã-Cruz da Torre e Espada ao Emperador do Marrocos” (1865)
e já no fim de sua vida reformulou algumas de suas anotações sobre a história política do
Marrocos proveniente de suas atividades consulares, resultando na obra “Relação das
dinastias marroquinas até ao actual Sultão Muley El-Hasan” (1906).
4 NADIR,Mohammed. Em torno da viagem diplomática do Rei D. Fernando II de Portugal a Marrocos, em 1856.
Centro de História da Sociedade e da Cultura. Disponível em :URI:http://hdl.handle.net/10316.2/39674
acessado em 10 julho 2017. 5 José Daniel Colaço. Dicionário de Orientalistas de Língua Portuguesa Em
https://orientalistasdelinguaportuguesa.wordpress.com/ acessado em 20 de agosto de 2017 6 Documentação recolhida do Consulado Geral do Brasil em Tânger . Arquivo Histórico do Itamaraty 265-1-11.
Ofício 6 julho 1892.
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Ao seu conhecimento sobre a história do Marrocos somavam-se sua destreza com a
língua árabe e seus conhecimentos literários e filológicos, inscrevendo alguns de seus
trabalhos em autoria conjunta com seu sobrinho Júlio Rey Colaço7 no X Congresso
Internacional dos Orientalistas, ocorrido em Lisboa em 1892, onde dissertou sobre
“Descripção da Batalha de Alcácer Quibir” e “Versão do prólogo do livro arábico intitulado
“Fructo dos Imperadores e Recreio dos Engenhosos”. Também escreveu “Fatah - Notas de
uma viagem a Fez” (1903) e de artigos de imprensa relatando a situação em Marrocos.
Muito pouco comentada, sua atividade artística também se voltou para os temas do
oriente, tendo estudado na Academia de Belas Artes de Lisboa entre 1853 e 1855, ano em que
ganhou a Medalha de Ouro e posteriormente continuou seus estudos sob a tutoria particular
do pintor Alejandro Fernand y Fischermans. Em 1834, José Daniel Colaço participou do XIII
Salão de Pintura de Belas Artes em Lisboa, onde expôs suas obras retratando elementos
árabe-islâmicos.
Compreendemos que o conhecimento biográfico sobre J. D. Colaço corroboram para
que possamos analisar sua obra tendo em vista sua relação com o Oriente e a sua colaboração
na formação deste sistema de conceitos e definições que visam interpretar o Oriente real, mais
especificamente sua contribuição ao orientalismo português- neste artigo examinada de forma
muito limitada e sucinta.
Retomando a obra incontornável de Eduard Said, Orientalismo. “O Oriente como
invenção do Ocidente”, recuperamos a possibilidade de tratar o conceito de orientalismo de
três formas distintas: (1) como um campo acadêmico voltado para estudos do Oriente,
definição em desuso por estar atrelada ao eurocentrismo e ao suporte ao colonialismo
europeu; (2) como um termo referencial de distinção ontológica entre ocidente e oriente,
originada na Europa como forma de imaginário mítico de construção de sua identidade
geográfica e muitas vezes política; e (3) a maneira como o Ocidente produz informações
sobre o “outro”, sendo esta uma forma de “dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o
Oriente”8.
Pretendemos lidar com nossa fonte¸ “A viagem de Sua Magestade o Senhor D.
Fernando à África”, evidenciando o fato de que o autor, bem como sua família, eram
intelectuais versados em temas árabe-islâmicos e embora radicados em Tânger, mobilizavam
7 (1844, Tânger- 1902, Tânger) Agente diplomático e arabista, serviu como intérprete no exército francês na
Argélia e participou do corpo diplomático português no Marrocos, posto que sua família tradicionalmente
ocupava desde o século XVIII. Cf. Dicionário de Orientalistas de Língua Portuguesa Em
https://orientalistasdelinguaportuguesa.wordpress.com/ acessado em 20 de agosto de 2017 8 SAID, Edward. Orientalismo.O Oriente como invenção do Ocidente.São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
P.29
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seus conhecimentos para favorecimento da construção de uma imagem sobre o Marrocos que
atendia aos interesses do orientalismo português, ainda que este não possuísse mais poder
militar e político sobre El Maghreb Al-aqsa, ainda sustentava o status de um império pioneiro
entre os “civilizadores” da África, como veremos a seguir com a análise de excertos da obra.
3- A figura de um rei latino num país muçulmano
José Daniel Colaço inicia seu livro comentando a natureza da obra, segundo ele a
primeira publicada em uma imprensa em Tânger a convite do editor Sr. Abrines, como forma
de inaugurar sua editora no Marrocos. Este Sr. Abrines havia conhecido a primeira versão dos
fatos narrados por Colaço, então publicados num jornal português e decidira lançar esta
bibliografia no Marrocos porque, de acordo com Colaço,
[...] sendo o Imperio de Marrocos chamado pela força dos acontecimentos que
irresistivelmente movem a humanidade no sentido da luz e do progresso, a ir pouco a pouco
cedendo ás exigências da civilização, tudo que a seu respeito se publique deve
principalmente interessar ao povo latino que primeiro desembarcou os seus guerreiros
triunfantes nas costas africanas,2º, que o povo português, alistado felizmente na luminosa
falange que constitui a vanguarda dos países cultos, sacode a indiferença com que até há
pouco olhava para os assuntos desta parte do mundo, em cujas terras se aquilatara em
vitórias e derrotas, passando circundada de brilhante auréola para a posteridade, a
heroicidade dos seus filhos [...]9
Neste escrito inicial ao leitor, como podemos perceber, J. D. Colaço expôs sua
percepção sobre alguns dos aspectos da visita de D. Fernando ao Marrocos, que entendemos
ser uma percepção não apenas pessoal de nosso autor. Primeiramente a disputa por soberania
entre o Marrocos e as potências coloniais do século XIX na região norteafricana,
especialmente Espanha e França , parece ser vista pelo autor como um embate entre a
civilização e seu oposto, onde as interferências políticas e culturais europeias no maghreb são
interpretadas como uma espécie de destino “irresistível” que “força” o país a caminha em
direção ao progresso, exemplificado e idealizado nas potências ocidentais.
Claramente, como veremos adiante, Colaço inscreve Portugal em uma posição de
primazia e igualdade com as potências europeias então dominantes na região, sendo o “povo
latino que primeiro desembarcou seus guerreiros” na África, e portanto os primeiros a levar a
referida “luz e progresso” para além das fronteiras da Europa . A justificativa que o autor
parece colocar sobre a perda de territórios coloniais lusitanos sobre a África, como
contextualizamos no início deste artigo, estaria no discurso de que os portugueses haviam
9 COLAÇO. Op. Cit.. p.IV
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perdido o interesse, deixando assim as disputas coloniais para nações consideradas como de
capacidade mais recente.
O fio condutor da narrativa construída por José Daniel Colaço sobre a viagem de D.
Fernando II ao Marrocos baseia-se então nesta perspectiva de que a visita de um soberano
cristão, “latino”, a um país oriental corresponderia à chegada de um representante legítimo da
civilização, e que com sua presença apoiaria o Marrocos em seu desenvolvimento10
.
A chegada do majestoso viajante se dá debaixo de muita chuva, nos últimos dias do
mês de Maio de 1856, a bordo do vapor Mindello, que,ancorado na Baia de Tânger é
mobilizado por Colaço como um elemento demarcador de tempo da narrativa, pois em cada
etapa do itinerário do Rei lusitano, a posição do Mindello é informada. Surpreendentemente
D. Fernando não é recebido com honras de chefe de estado ou com qualquer tipo de
cerimonial, segundo Colaço, a seu próprio pedido, demonstrando sua simplicidade, contudo
ao longo do texto são citadas justificativas que parecem tentar dar conta da gafe ou mal-feito.
Segundo J. D. Colaço, era época de peregrinação á Meca e dois navios, um francês e
outro inglês, estavam embarcando seus passageiros em direção aos lugares santos islâmicos e
por isso retendo sobre eles toda a atenção do povo presente no porto tangerino. Como faz
parte do seu estilo de escrita, cada vez o autor cita um costume tradicional do islã, inclui no
texto alguma nota explicativa ou citação de autor árabe-islâmico , sobre o tema ao qual está
dissertando, no caso da viagem para Meca cita Ali Bey ElAbassi, o que evidencia seu
propósito de atender a um público conhecedor do islã e em seguida expõe mais de sua
observação sobre a cena testemunhada:
Era a primeira vez que aquela gente embarcava em vapores, a primeira vez também que
devia seguir certa ordem no embarque e acomodação a bordo; pois que em todos os outros
anos não tinha tido senão alguns navios de vela mal equipados e de pequeno lote, que ali
apareciam com o fim de transportar a Alexandria. Logo que punham o pé na embarcação,
tomavam posse de um pequeno lugar, em que se faziam fortes, não se arredando uma
polegada e defendendo-o até a ultima. Ora, como cada barco levava um número de
passageiros muito maior que lhe permitia sua capacidade, seguia-se que os desgraçados
perfeitamente imprensados, além de expostos ao rigor dos elementos, durante uma longa
viagem, morriam em grande parte antes de levá-la a cabo. Muitas vezes aconteceu de chegar
o navio ao seu destino aliviado de metade dos peregrinos11
.
A descrição feita pelo autor sobre o embarque dos passageiros para a peregrinação
islâmica parece surgir como uma justificativa que não seria necessária se não fosse da
expectativa do monarca lusitano ser recebido pela população em polvorosa.Posteriormente a
descrição de Colaço cita que como as autoridades locais também estavam preocupadas com o
10
COLAÇO, Op. Cit. p.78. 11
COLAÇO, Op. Cit.p.3
1146
embarque dos passageiros segundo uma ordem preestabelecida e foram em apoio às forças
policiais, resultou que nenhuma autoridade marroquina foi receber o Rei de Portugal em seu
desembarque, recepção que teve de ser feita solitária e solidariamente pelo próprio cônsul
português, autor desta obra que estamos analisando.
O referido incidente diplomático foi seguido da orientação do Visconde da Foz,
participante da comitiva real, de que D. Fernando embarcasse em um vapor inglês em que o
bachá12
estava situado e que , quando este desculpou-se, o Rei lusitano afirmou que relevava
o desencontro cerimonial.
A chegada oficial do Rei de Portugal está em sua descida na praia de Al-Marsa, onde o
bachá desembarcou antecipadamente para preparar uma recepção oficial, que se dera ás cinco
da tarde, retratada por Colaço sob a ótica de entusiasta da presença portuguesa no Marrocos,
como se segue:
Era um belo e grandioso espetáculo para comover o coração português, que o presenciou! O
Sol quase a esconder-se detrás das montanhas do ocidente, como único espectador que
existia de nossas glorias passadas naquele país, parecia deter-se para a saudar o aparecimento
de um Rei de Portugal naquelas praias quase desertas13
.
Ainda que corrigido o erro diplomático, mais uma vez apenas a natureza e as próprias
comitivas de autoridades presenciaram a chegada do monarca, narrada duas vezes de duas
formas como sinal de sua importância. Ainda de forma intrigante, o ato que se segue, descrito
por Colaço, de que o bachá segundo costume local ofereceu ao monarca lusitano um cavalo
de raça árabe e ajaezado para montaria para seu transporte pessoal, mas este tendo declinado
da montaria não teria conseguido acesso a nenhum outro modo de transporte, como
carruagens, algo estranhamente justificado porque “não havendo no império do Marrocos uma
só carruagem, nem coisa alguma que tenha rodas, proibida como é pelo estúpido fanatismo
daquela gente, teve [D. Fernando] que continuar a pé”14
.
Sendo a justificativa exposta por Colaço como no mínimo estranha para a ocasião,
consideramos que o Rei de Portugal teria sido colocado sobre a rigorosidade dos costumes
islâmicos do período de Ramadã e que por isso teve de continuar a viagem real com sua
comitiva a pé. Apesar da figura insólita deste percurso de um monarca lusitano deambulante
pelo Marrocos, Colaço constrói uma narrativa que coaduna com a visão de um representante
da mais alta civilização em seu périplo por um país oriental.
12
Governador de província. Título oriundo do termo “paxá”, atribuído a governadores do ImpérioTturco-
otomano. 13
COLAÇO Op. Cit..p.5 14
Idem,p.5
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A imagem de um Rei em toda a sua glória, por ser, na visão de Colaço, um
representante latino dos primeiros conquistadores sobre a África, ao mesmo tempo atua como
a figura tipicamente cristã de um monarca humilde, tal qual um cristo que adentra pela cidade
montado num jumentinho, um messias da civilização ocidental que vem para resgatar a glória
do Marrocos. Como descreve o autor:
Depois de breve demora com o governador, continuou El Rei com as pessoas, que tinham a
honra de o seguir, tomando a porta do mar pela calçada ou rua, que atravessa desde ali
irregularmente a cidade de este a oeste. Adiante e atrás da comitiva iam os soldados da
guarda, de mangas arregaçadas, distribuindo paulada por tudo quanto se opunha á passagem.
Os terraços de todas as casas estavam apinhados de mulheres mouras, com as caras tapadas,
e judias. As mouras lançavam, rivalizando em esforço, os espantosos gritos ou guinchos, que
costumam, á chegada ou na passagem dos Reis e em outras solenidades. Homens e crianças
de todos os sexos atulhavam as pequenas e tortuosas ruas com um sussurro diabólico 15
.
Em meio aos apertos da multidão, Colaço observa que muitos dos populares
marroquinos que seguiam a comitiva pensavam ser o Visconde da Foz o verdadeiro Rei de
Portugal ali presente, por sua postura diante da comitiva, ou ainda outros diziam ter o Rei
lusitano ficado no navio, de modo que não se compreendia a passagem de um monarca que
viesse caminhando por meio do povo. Desta forma a narrativa construída por Colaço
transforma a viagem diplomática de D. Fernando, num percurso expedicionário, no qual o
monarca lusitano e o próprio autor atuam como viajantes europeus explorando um país
oriental, “dispostos a tudo ver ou espreitar, até os lugares mais santos”16
.
Em seu primeiro dia no Marrocos, D. Fernando passeou pela cidade de Tânger,
passando diante da mesquita principal em direção ao mercado e após hospedado na sede do
consulado geral português, prosseguiu ao crepúsculo em sua caminhada entre as ruelas da
cidade observando o bazar e a casa de “berberiscos”, sem estar preocupado no cumprimento
de etiquetas protocolares e , de acordo com Colaço, passando como um estrangeiro qualquer
apesar de sua figura nobre, assim analisando o estado de “miséria original” e que achavam
aquelas ruas e lugares. “[...] assim o fez observando tudo com minuciosidade e interesse,
andando por aquelas ruas mal calçadas, cheias de barrancos e pedregulhos, quase
intransitáveis, com mais facilidade ainda do que os próprios habitantes”17
.
Nos dias seguintes, tendo visitado outras legações consulares europeias presentes na
cidade de Tânger, incluindo a horta europeia cultivada pelo cônsul da Suécia na cidade,
Colaço relata a busca do Rei lusitano por algo que escapasse à monotonia proporcionada pelas
regulamentações sociais daqueles dias de Ramadã, nos quais “não se fazem casamentos,
15
COLAÇO. Op. Cit.p. 7 16
Idem. p.8 17
Idem. p.9.
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batizados, nem outras cerimônias , coisas estas que constituem a parte mais interessante do
país”18
, D. Fernando prosseguiu sua jornada em direção ao bazar de Tânger e no dia seguinte
rumou para Tetuan, perpassando pelos acampamentos dos peregrinos que vem do interior do
país para comerciar com as grandes cidades, próximo ao “mercado de fora”.
Descrevendo as suas impressões pessoais sobre o ambiente encontrado pelo monarca
português ao longo do percurso, Colaço destaca sempre o olhar superior do Rei sobre uma
certa primitividade do povo, nunca citando diretamente alguma fala de D. Fernando mas
sempre supondo seus pensamentos sobre as situações encontradas pela comitiva, nas palavras
do autor:
As barraquinhas mais notáveis eram as que pertenciam a uma só pessoa e que o peregrino
constrói logo que chega, em poucos momentos , de raminhos secos ou verdes, e terra; se
aquele sitio se pudesse por de pé dir-se-ia que eram tantos outros ninhos de pássaros errantes
adaptados à parede. S.M. El-Rei teve ocasião de ver o estado de miséria e abandono das
famílias ou pessoas que habitavam, cujo aspecto é o mais triste que se pode imaginar, [...]19
Ao analisarmos mais pormenorizadamente o relato de J. D. Colaço e as características
negativas atribuídas aos Marroquinos, optamos aqui por utilizar como chave de leitura o
conceito de “formas de desrespeito como oposição assimétrica”20
, assim como elaborado por
João Feres Junior.
João Feres se apropria de pares antitéticos trabalhados por Kosellec (p.ex.
cristão/pagão, heleno/bárbaro etc) isolando de cada um tipo básico de oposição assimétrica,
que corresponda à sua característica modelar mais fundamental. Essas características de
oposição assimétrica seriam também uma tipologia das formas de desrespeito devido ao fato
de que esses conceitos seriam formas semânticas que o desrespeito pode assumir através da
linguagem, “onde o Eu vê no Outro somente reflexões invertidas de sua própria
autoimagem”21
.
A partir desta concepção, João Feres elabora três tipos de oposição assimétrica
comuns à construção de um discurso de desrespeito (negação de reconhecimento): 1) a
oposição assimétrica cultural, que denota no Outro hábitos, costumes e qualidades negativas
em contraposição aos hábitos próprios tidos como positivos; 2) a oposição assimétrica
temporal, que identifica no Outro um sujeito atrasado e primitivo ; e a 3) oposição assimétrica
18
COLAÇO. Op. Cit.p.14 19
COLAÇO, Op. Cit.p.17 20
FERES Junior,João.A história do conceito de LatinAmerica nos Estados Unidos. Bauru, SP: EDUSC, 2005.
p.41-46 21
FERES Junior.Op.Cit. p.42.
1149
racial, onde as características culturais se unem a aspectos biológicos (físicos, fisionômicos e
psicológicos)22
.
Essa estrutura conceitual criada por João Feres Junior, aplicada à construção
discursiva de nossa fonte de estudo nos permite perceber como se concebe essa retórica
europeia sobre o oriente e no nosso caso, como José Daniel Colaço insere em suas opiniões
pessoais sobre o Marrocos elementos de assimetria entre a presença do Rei lusitano,
sinédoque da civilização europeia em meio ao povo sempre retratado como, inculto, bárbaro.
Conclusão
Neste breve estudo pudemos expor o conteúdo do pouco estudado diária da viagem do
Rei Dom Fernando ao Marrocos, viagem esta realizada em 1856 acompanhada pelo diplomata
e orientalista José Daniel Colaço. Ao construir a narrativa sobre a viagem do monarca
lusitano ao reino magrebino, Colaço privilegiou as informações que colocavam em uma
relação assimétrica as características demonstradas pelo protagonista da obra, D. Fernando II
e aqueles que interagiam com ele, enquanto representantes do Marrocos.
Esta assimetria destacada pelo autor teria o objetivo de justapor os elementos
portugueses com os magrebinos, propondo a imagem de um representante legítimo da
civilização em meio a barbárie e o exótico. Fica claramente demarcado no texto elaborado por
Colaço a tentativa de posicionar Portugal em relação ás outras potências europeias como uma
nação pioneira na dominação da África, então em disputa entre impérios mais recentes.
Um estudo mais apurado se faz necessário sobre a representação dos elementos
femininos e judaicos presentes na narrativa, além da análise mais detalhada do aparecimento
na narrativa da viagem exposta por Colaço de locais de memória colonial lusitanos no
interior do Marrocos , cenário no qual o monarca português é relatado. Desta forma a
continuidade do estudo desta, como de outras obras se faz necessário, inclusive para uma
prepcepção mais abrangente da dominação imposta sobre a África e também a Ásia por parte
dos colonizadores portugueses, dominação não apenas militar, mas também cultural,
geográfica e psicológica; dominação compreendida pela forma de dizer o outro, o oriente.
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FERES Junior.Op.Cit p.45.
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Fontes
COLAÇO,José Daniel. Diário de viagem de Sua Majestade El Rei o Senhor Dom Fernando a
Marrocos, seguido da descrição da entrega da Grã Cruz da Torre e Espada ao Sultão Sid
Mohammed, dedicada à Sociedade de Geografia de Lisboa, Tanger, Imprensa Abrines, 1882.
Documentação recolhida do Consulado Geral do Brasil em Tânger . Arquivo Histórico do
Itamaraty 265-1-11. Ofício 6 julho 1892.
Referências Bibliográficas
José Daniel Colaço. Dicionário de Orientalistas de Língua Portuguesa Em
https://orientalistasdelinguaportuguesa.wordpress.com/ acessado em 20 de agosto de 2017
Julio Rey Colaço. Dicionário de Orientalistas de Língua Portuguesa Em
https://orientalistasdelinguaportuguesa.wordpress.com/ acessado em 20 de agosto de 2017
FERES Junior,João.A história do conceito de LatinAmerica nos Estados Unidos. Bauru, SP:
EDUSC, 2005.
NADIR,Mohammed. Em torno da viagem diplomática do Rei D. Fernando II de Portugal a
Marrocos, em 1856. Centro de História da Sociedade e da Cultura. Disponível em
URI:http://hdl.handle.net/10316.2/39674, acessado em 10 julho 2017.
SAID, Edward. Orientalismo.O Oriente como invenção do Ocidente.São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.