Post on 08-Jan-2017
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
BONUS REX ou REX INUTILIS
AS PERIFERIAS E O CENTRO
Redes de Poder no Reinado de D. Sancho II (1223-1248)
Jos Varandas
Tese orientada pelo Professor Doutor Pedro Gomes Barbosa e co-orientada pelo Professor Doutor Antnio Borges Coelho
DOUTORAMENTO EM HISTRIA
HISTRIA MEDIEVAL
2003
2
3
NDICE
Agradecimentos 5
Introduo 9
1. D. Sancho II de Portugal um conspecto historiogrfico.. 19
1.1. Do Conspecto 21
1.2. As Histrias Gerais 27 1.2.1. Fr. Antnio Brando (1632) 31
1.2.2. Alexandre Herculano (1847) 43
1.2.3. Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1879) 77
1.2.4. Manuel Pinheiro Chagas (1899) 79
1.2.5. Fortunato de Almeida (1910) 95
1.2.6. ngelo Ribeiro (1928) 103
1.2.7. Miguel de Oliveira (1940) 117
1.2.8. Lus Gonzaga de Azevedo (1944) 121
1.2.9. Maria Emlia Cordeiro Ferreira (1975) 149
1.2.10. Joaquim Verssimo Serro (1977) 153
1.2.11. Marcello Caetano (1981) 159
1.2.12. Jos Mattoso (1985) 163
1.2.13. Jorge Borges de Macedo (1988) 185
1.2.14. Antnio Borges Coelho (1993) 189
1.2.15. Leontina Ventura (1996) 199
1.3. Os estrangeiros: uma amostragem 211 1.3.1. Henri Schaefer (1847) 211
1.3.2. Harold V. Livermore (1969) 225
2. O Problema Poltico 231
2.1. A transferncia de poder 233 2.1.1. Limitaes ao modelo central: a questo com as infantas 241
2.1.2. Os bispos como problema poltico: uma primeira enunciao 255
2.1.3. O primeiro problema: a menoridade do soberano 263
2.1.4. Os tutores do rei: um falso problema? 275
4
2.1.5. Monarquia e igreja: problema central 281
2.2. O processo de deposio do rei 289 2.2.1. De rex utilis a rex inutilis 341
2.2.2. Da bula de deposio s reaces polticas 381
2.2.3. Guerra civil: a reaco militar de Sancho II 391
2.2.4. O fim do rei 409
3. Centro e Periferia 413
3.1. Centro e periferia: primeira abordagem 414
3.2. Rei e governo central: continuidade e ruptura das redes de poder (1210-1250) 426
3.3. Poder central e elites urbanas: factores de desagregao 449
3.4. Sancho II e a Igreja: a difcil delimitao de poderes 479
3.5. Senhorios e coroa: blocos antagnicos? 549
3.6. Aquisio e consolidao das periferias: o processo militar 561
3.7. Estrutura central e desenvolvimento: modelos econmicos e consolidao do
territrio 587
3.8. Centro e periferia: o rei como garantia do reino 603
Concluso 615
Fontes e Bibliografia 641
Anexo 731
5
AGRADECIMENTOS
Uma dissertao de doutoramento , sempre, um trabalho moroso, longo, difcil,
composto de estmulos, alegrias, tristezas e ansiedades, mas , sobretudo, um trabalho
solitrio, onde estados de alma contraditrios se entrecruzam e se anulam, ao longo de
uma caminhada, onde levamos por companhia a solido, e os fantasmas severos
daqueles que nalgumas pginas nos atrevemos a trazer ao mundo dos vivos.
Muitas vezes paramos, samos do caminho, e nessas paragens encontramos alento,
confiana, determinao, direco, carinho e amizade, de pessoas que na nossa vida
pessoal e acadmica assumem um papel fundamental. a essas, que queremos agradecer
muitas coisas, e entre elas o facto de termos conseguido concluir este trabalho.
O meu amigo, o meu orientador, o Professor Doutor Pedro Gomes Barbosa, o
primeiro a quem agradeo a disponibilidade, a confiana e a franqueza com que dirigiu
este trabalho e todos estes anos de vida acadmica. A ele devo a escolha do tema e o
desafio inicial.
Ao meu outro amigo e co-orientador desta dissertao, o Professor Doutor
Antnio Borges Coelho, agradeo esta emoo de poder contar com a sua amizade e com
o seu imenso saber, vitais que foram nos momentos de menor inspirao.
Outros dois amigos, dos grandes, sempre me acompanharam, no deixando que as
minhas fraquezas se sobrepusessem e impedissem os passos que devia dar. Professor
Doutor Hermenegildo Fernandes e Professor Doutor Bernardo de S Nogueira, a eles
devo a alegria de chegar ao fim, e tantas outras coisas. E, com eles, quero agradecer e
6
saudar outra amiga, a Dr Isabel de S Nogueira, que tambm l esteve, com a sua
perspiccia e sentido de humor fulminante, nos meus bons e maus momentos.
Para outro amigo se volta, constantemente o meu pensamento, lembrando os
momentos iniciais desta tese. Ao Professor Doutor Antnio Ribeiro Guerra, onde quer
que esteja, fica a tristeza de no poder mostrar o que escrevi, e a saudade de uma boa
amizade.
Agradeo ainda a ajuda constante e alegre de outro amigo de longa data e
companheiro de caminhada, o Dr. Nuno Simes Rodrigues.
No posso esquecer, nesta hora, outros Professores, outros tantos amigos, que
felizmente tenho no Departamento a que perteno na Universidade de Lisboa, e que
tantas vezes me deram provas de estima e amizade, atravs de conselhos, estmulos e, at,
repreenses simpticas. Espero no me esquecer de ningum, j que quero nomear
aqueles que se preocuparam com este trabalho: os Professores Doutores Jos Augusto
Ramos, Joo Medina, Antnio Dias Farinha, Antnio Marques de Almeida, Jos Nunes
Carreira, Maria do Rosrio Themudo Barata, Antnio Ventura, Vtor Serro, Lus Filipe
Barreto, Srgio Campos Matos, Joo Cosme, Jos Horta, Joo Pedro Cunha Ribeiro,
Francisco Contente Domingues, Antnio Joaquim Ramos dos Santos, Joo Martinez,
Paula Loureno, Ftima Reis, Carlos Fabio, Amlcar Guerra, Ana Arruda, Lus de
Arajo e Carlos Margaa Veiga.
Ao Dr. Jos Brissos, agradeo o seu apoio e imperturbvel amizade, de alguns
anos, e ao Dr. Antnio Cordeiro Lopes, tambm deixo um obrigado pela amizade e pela
ajuda, nalguns aspectos burocrticos, que podiam ter travado este trabalho.
7
Aos meus colegas e amigos da minha rea de trabalho, a Histria Medieval,
quero agradecer, de forma particular, todo o interesse e amizade com que seguiram este e
outros trabalhos, e que aqui quero referir: Professora Doutora Manuela Mendona,
Professora Doutora Margarida Garcez, Professora Doutora Manuela Santos Silva,
Professor Doutor Armando Martins, Professora Doutora Ana Maria Rodrigues e Dr
Julieta Arajo.
Aos Professores e amigos de outros Departamentos da minha Faculdade, e que
se interessaram por este trabalho, tambm quero deixar uma forte saudao: Professores
Doutores Joo Dionsio, Manuel do Carmo Ferreira, Leonel Ribeiro dos Santos, Maria
Alzira Seixo, Fernanda Gil Costa, Jos Manuel Simes, Teresa Alves, Teresa Seruya,
Graa Abreu e, ainda, aos Drs. Lus Pereira, Lus Filipe Teixeira e Ricardo Reis.
Pela amizade, disponibilidade e longas conversas em vrias terras deste Pas,
quero agradecer ao Dr. Srgio Farinha, meu amigo e meu cunhado.
Ao meu amigo, Dr. Vasco Resende, com quem nos ltimos anos trabalhei, no
Centro de Histria e no Instituto de Estudos rabes e Islmicos, em mltiplas tarefas,
quero agradecer a alegria, humor e amizade com que brindou um antigo professor.
Agradecimentos, que torno extensivos, a outro meu antigo aluno, o Dr. Paulo David
Vicente.
E, no fim, aqueles que so sempre os primeiros, a minha famlia. minha mulher,
Marina, e ao nosso filho, Diogo, os mais sacrificados pela minha solido, pela minha
incapacidade de os ajudar quando tambm precisavam, por estar presente, quando estava
ausente, mas a quem agradeo tudo. O amor, o carinho, a amizade, a censura, mas acima
8
de tudo a presena e o facto de partilharem a minha vida. Este trabalho para eles, com
Amor.
Aos meus Pais, que sempre esto.
9
INTRODUO
Sancius, Dei gratia
Imprimis mando quod filius meus infans D. Sancius, quem
habeo de Regina D. Urraca habeat Regnum meum integre & in
pace
(Treslado do Testamento delRey D. Affonso II, in BRANDO, Fr. Antnio,
Crnicas de D. Sancho I e D. Afonso II, Porto, Liv. Civilizao, 1945, p. 283)
10
11
Desde h muito que entre os historiadores da sociedade medieval europeia se
consolidou a noo de que durante o sculo XIII se verificaram mudanas substanciais
nos comportamentos e valores sociais, culturais e polticos dos vrios reinos da
Cristandade. Dentro das diversas alteraes que aquele perodo conheceu uma delas
sobressai em absoluto. A noo de que este o sculo onde numa Europa profundamente
Catlica, a Igreja perde alguma da sua influncia e capacidade de governao. No no
que concerne ao seu universo especfico, a no plano espiritual e na gesto dos seus
patrimnios, continuam exmios e o modelo de organizao a que chegam quase
perfeito. A viragem, ou seja o problema, est na maneira como foram administrando e
actuando sobre a sociedade civil. As grandes modificaes que os movimentos
reformistas e de transformao cultural ocorridos ao longo do sculo XII foram
introduzindo e consolidando, e que encontravam cada vez mais eco na sociedade laica,
tendiam a escapar ao controlo da Igreja. A Europa secularizava-se em todos os campos
onde existia actividade humana: na arte, na literatura, na economia, nas instituies e,
claro, na poltica.
No cabendo a este trabalho o estudo profundo dessas transformaes, das suas
causas e consequncias, interessa-nos contudo explorar um dos caminhos visveis e
determinador na forma como a opinio pblica daqueles tempos se alterou.
Esse caminho o que leva laicizao da sociedade medieval europeia e da
forma como ela se expressa na realidade portuguesa, em especial durante o reinado de D.
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Sancho II. A afirmao de novos valores polticos na Europa, onde o papel do soberano e
da sociedade laica ganham cada vez maiores adeptos e a ideia de Reino, cada vez mais, se
consubstancia, numa realidade tendencialmente homognea e coerente, garantida pela
continuidade fsica e poltica entre o centro de poder e as fronteiras e, claramente
desfavorvel manuteno dos velhos subsistemas feudais e esferas de influncia
regionais.
No processo de laicizao da sociedade percebemos que o poder se transfere da
Igreja para o Estado, em muitas das suas componentes. Desde a alta Idade Mdia que a
Igreja controlava o sistema poltico europeu. A nfase atribuda ideia de Cristandade
sobrepunha-se (ou devia sobrepor-se no entender da Igreja) a qualquer outra definio. O
indivduo devia a sua obedincia a esta noo. Em primeiro lugar era um cristo, era aqui
que estava a base da sua existncia, depois vinham as outras ligaes, onde as nacionais
ocupavam o ltimo lugar da hierarquia1.
A Christianitas era o lao mais forte entre os europeus, criando a expectativa de
uma Europa pan-nacional, com um nacionalismo especfico e traduzido nos exrcitos
que se armavam para as Cruzadas2. Promovia-se a livre circulao e estabelecia-se um
controlo supranacional sobre todos os aspectos da sociedade europeia onde o poder
residia nas mos do papa. Era, para o clero, uma situao satisfatria. Politicamente,
1 Na realidade francesa anterior ao sculo XIII a escala de valores para um indivduo podia ser definida desta
forma: em primeiro lugar era um cristo, depois um borguinho e francs s em terceiro lugar. Neste ltimo
caso ser francs significava apenas ser natural do norte da actual Frana.
2 Muitos autores falam da ideia de cidadania europeia, apontando o facto de clrigos e intelectuais
especializados ou cavaleiros poderem encontrar emprego em qualquer nao da cristandade,
independentemente do seu pas de origem (Cf., STRAYER, Joseph R., Medieval statecraft and perspectivs of history.
Princeton/New Jersey, Princeton University Press, 1971, p. 253).
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controlavam os diferentes reinos europeus, cujas dificuldades de coexistncia pacfica
eram conhecidas. As disputas de fronteiras entre reinos e entre casas senhoriais eram uma
constante; a guerra entre pases cristos uma certeza poltica, situao que era intolervel
para a Igreja, que pregava os valores da paz e da justia. E este aspecto leva-nos por um
novo caminho. Parece-nos ser a Igreja a primeira a abrir o ferrolho entrada de novas
ideias, em especial aquelas que podiam vir a alterar alguns modelos de comportamento na
liderana dos reinos. Se os ideais de paz e de justia apregoados pela Igreja desde sempre
pudessem ser garantidos pela fortificao da ideia de soberania do rei, tanto melhor. De
certa forma os eclesisticos ocidentais abriam o caminho a reformas profundas, que a
breve trecho iriam contribuir para uma inevitvel laicizao da cultura poltica europeia.
Neste trilho que os reinos europeus vo percorrendo para a sua autonomia esto
em causa outros aspectos vitais sociedade. No apenas a questo militar aquela que
provoca desagrado ao clero, tambm o aumento das transaces comerciais e da
capacidade produtiva os deixa apreensivos. A expanso da economia medieval, em
particular a dos centros urbanos, e a ocupao de novos espaos precipita a necessidade
de existncia de governos centrais mais organizados e fortes. Se a Igreja pouco faz pelo
desenvolvimento das actividades comerciais, por outro interessa-lhe (e participa
activamente nisso) que os sistemas monrquicos sejam mais eficientes e capazes na
administrao e controlo dos respectivos reinos. Mas, a prazo, a eficincia demonstrada
por algumas monarquias no controlo da sua economia e a dinmica que as novas
legislaes do aos espaos e cidades em expanso, modificam o tradicional sistema de
obedincia. Cada vez mais o Estado, atravs do mero exerccio do seu poder, substitui a
Igreja nas relaes com os governados. Assistimos, em muitos pases, introduo de
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novos modelos de governao, sustentados pela elaborao de um quadro legal com
tendncias mais generalistas e por um corpo de oficiais rgios que passam a controlar o
normal exerccio do poder central em todas as regies do reino. Modifica-se a velha
ordem. As esferas de influncia regional que muitas vezes asfixiavam e limitavam o
poder dos monarcas em sculos anteriores so substitudas por uma nova noo de
espao governado. O rei governa um regnum, que estende de forma contnua at s
fronteiras. O Centro assume-se cada vez mais sobre as periferias atravs da Lei, que
emanada da Cria e movimentada por oficiais e tabelies desses reinos cristos garante
um controlo do espao e das actividades nele desenvolvidas cada vez mais apertado. Na
Pennsula Ibrica, os reinos cristos em expanso so um excelente laboratrio para
estas modificaes. As novas ideias, trazidas para a corte portuguesa por eclesisticos
licenciados em universidades europeias sero decisivas no desenvolvimento e aplicao
das polticas centralizadoras de monarcas como Afonso II, Sancho II e Afonso III3.
O velho sistema medieval tinha grande dificuldade em assistir impassvel e em
assimilar as novas transformaes que rodeavam o modelo de poder. Conhecemos o
sculo XIII como o perodo onde o Direito se desenvolveu na Europa medieval. Estava
em causa um novo conceito de poder, suportado por um quadro legislativo especfico e
bem construdo. Cada vez mais se tornava difcil a existncia de perspectivas
diferenciadas sobre os sistemas polticos e a sua governao como acontecera
3 Sobre este tema vejam-se as obras de VENTURA, Leontina, A nobreza de corte de Afonso III. I., Coimbra,
dissert. de doutoramento policopiada, apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1992;
MATTOSO, Jos, Identificao de Um Pas, ensaio sobre as origens de Portugal 1096-1325, vol. II Composio, 5 ed.,
Lisboa, Editorial Estampa, 1995 e BRANCO, Maria Joo, Poder real e eclesisticos. A evoluo do conceito de soberania
rgia e a sua relao com a praxis poltica de Sancho I e Afonso II. Vol. I, Tese de doutoramento policopiada, Lisboa,
Universidade Aberta, 1999, 412-413).
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anteriormente. No havia lugar para a tolerncia e para a harmonizao de pensamentos
diferenciados. Assim se passava com a Igreja, onde os pensamentos dissonantes eram
catalogados como heresias. Assim era com a laicizao do Estado. A definio do Estado
e dos seus direitos, o novo modelo de organizao poltica e social fazia com que muitos
fossem forados a escolher entre serem leais ao Estado ou Igreja. A definio dos
poderes do soberano e o desenvolvimento de modelos tericos que enquadravam uma
nova realidade poltica foravam naturalmente a essa escolha.
O retrato da Pennsula Ibrica durante a primeira dinastia portuguesa bem
vincado pela ameaa constante do poder militar muulmano, o que obrigou a um estado
de guerra permanente, onde o rei se torna no chefe militar incontestado, coordenador
mximo da guerra contra um inimigo comum, ao mesmo tempo que lder poltico cada
vez mais enraizado e determinante na aco poltica dentro do seu territrio. Senhor, por
direito prprio, do esforo da Reconquista, aco fortalecedora do poder da Coroa, o rei
portugus, contudo, viveu ao longo de todo o sculo XIII, momentos difceis, motivados
por contestaes, mais ou menos explicitas, dos grupos nobilirquicos e de outros
sectores da sociedade portuguesa, que desde o governo de D. Afonso I, se perfilam contra
a monarquia.
Quando no ano de 1223, Sancho II, sobe ao trono, esta contestao estava, mais
do que nunca, activa. Do conjunto de fontes e informaes, ideologicamente bem
corporizadas, que at ns chegaram, percebe-se a existncia de uma forte crise poltica,
institucional e social ao longo de todo o seu reinado, resultado de opes mais
centralizadoras desenvolvidas por seu pai, D. Afonso II e que a incapacidade funcional de
Sancho II parece acentuar.
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Este estudo visa, sobretudo, um conhecimento mais profundo e detalhado da
dinmica das relaes polticas entre o Centro, o rei, o espao detentor do poder e as
periferias que o compem, complementam e estimulam. Neste enquadramento interessa-
nos o comportamento entre essas realidades, por exemplo, entre a nobreza e o rei,
nomeadamente a tipologia de funes curiais que a primeira desempenhava, juntamente
com uma sistemtica observao sobre o fenmeno de patrimonializao dos cargos
administrativos realizado pela aristocracia portuguesa. Como a constituio e afirmao
do grupo nobilirquico, nos seu expoentes poltico e econmico, se encontra directamente
com a formao do prprio poder rgio, a Crise que abalou o Pas durante o reinado de D.
Sancho II certamente se relacionar com alteraes produzidas no quadro das relaes
entre a nobreza e o rei, e entre este e outras instituies imbudas de poder e que formam
o conjunto do reino.
Mas no apenas no processo institucional das relaes entre os nobres e a Coroa
que se vislumbra a perturbao sistemtica do processo poltico em curso. Com efeito, a
discordia, que transversalmente afecta a gesto rgia de Sancho II, e que se traduz por um
assalto da aristocracia, em luta entre si, contra a instituio monrquica, ampliada pela
contestao desenvolvida por outras estruturas da sociedade portuguesa coeva. Tal
contestao bem expressa no descontentamento progressivo do clero e nas reclamaes
por justia, a um rei que parece incapaz de a assegurar, por parte dos representantes das
estruturas municipais portuguesas.
So bem evidentes estas queixas e perturbaes no esplio de documentos que o
reinado de Sancho II produziu, transmissores sintomticos de uma profunda crise poltica,
institucional e social em que o Pas mergulhou e onde a monarquia se debate.
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Eram tempos de ...roubo e malfeitoria..., expresses constantes nos
documentos que traduzem um estado de agitao e violncia, que acabam por precipitar o
Pas numa guerra civil, travada entre os partidrios do rei e aqueles que contra a realeza
se manifestavam, ou melhor, aqueles que se perfilavam contra a centralizao do poder
levada a cabo pelo rei e sua cria.
Mas o reinado de D. Sancho II marca, tambm, o predomnio dos cavaleiros
cristos nas terras alentejanas. O esforo de guerra que, nos reinados anteriores, serviu
para garantir ao monarca, atravs do alargamento dos seus domnios, um controlo
razovel das tenses aristocrticas, parece agora no se revelar to eficaz, no sentido de
debelar um cada vez maior sentimento de revolta contra o poder rgio.
o quadro destas instabilidades que pretendemos estudar. As suas origens, os
seus processos evolutivos, o estado e a forma das instituies polticas na transio do
poder de D. Afonso II para Sancho II e subsequentemente para Afonso III, a aco da
cria rgia, como rgo fundamental na estratgia da aco do Estado e no controlo da
sociedade portuguesa de meados do sculo XIII.
Da guerra nos campos do Alentejo e a tentativa de controlo das passagens
algarvias, contra um inimigo comum, luta civil que leva deposio do rei,
pretendemos observar o quadro de tenses e fracturas que caracterizaram este reinado e
que marcam o Portugal de 1223 a 1248 como um Pas onde ocorre uma grave crise
poltica. E se a viso interna nos orienta a curiosidade, tambm no podemos deixar de
fora o contexto internacional e a dinmica de uma Cristandade da qual o reino portugus
faz parte. A dinmica relacional com as monarquias peninsulares, os conflitos e as
composies entre este Centro nacional e a Santa S, a observao comportamental dos
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diferentes universos polticos, entre os quais Portugal se coloca, a influncia e introduo
progressiva de novos sistemas de organizao poltica e social, a turbulncia do sistema
dualista, caracterizado pelo dilogo interminvel entre o modelo cannico e o direito
civil, herdeiro do sistema romano, so aspectos que nos prendem e que se tornam vitais e
funcionais na percepo do conflito funcional do rei. Bonus rex, rex inutilis, duas faces,
cada uma delas possvel de ser aplicada aos soberanos, cada uma delas observvel nos
documentos e nas narrativas que impregnam este reinado. Cada uma delas disputada por
este rei, um dos mais obscuros da nossa histria, mas um dos que levou mais longe o
estandarte do reino e tambm o nico a ser vtima de um conceito de poder superior.
Como mais alguns reis do seu tempo, e at imperadores, Sancho II de Portugal travou
conhecimento de muito perto com a teoria da superioridade papal sobre as administraes
civis. Soube, de facto, o significado do conceito de Plenitudo Potestatis. Rex inutilis?
Veremos.
1
D. SANCHO II DE PORTUGAL
um conspecto historiogrfico
Antiguamente foi costume fazerem memoria das cousas que se
fazio, assi erradas, como dos valentes & nobres feytos. Dos erros
porque se delles soubessem guardar: & dos valentes & nobres feytos
aos bos fezessem cobia auer pera as semelhantes cousas fazerem.
(Coronica do Condestabre)
20
21
1.1
DO CONSPECTO
Qual a memria que nos resta de D. Sancho II, o quarto rei de Portugal? Da sua
vida, dos seus feitos, da sua governao, das suas desditas, do seu fim? Existe uma
necessidade imperiosa: a da reconstituio, a mais rigorosa possvel, daqueles tempos e
do que neles sucedeu. E se no conseguimos apreender a vida, tal como ela era, as suas
palpitaes, as suas tragdias, o seu quotidiano pleno, cheio de aces e sensaes,
podemos pelo menos procurar compreender e explicar alguns comportamentos e atitudes
do colectivo portugus durante grande parte da centria de Duzentos. E podemos faz-lo
com os textos e fontes escritas, mais ou menos coevas, e com as interpretaes que as
vrias dcadas de interpretao e sntese histrica foram capazes de produzir sobre aquele
rei e as variadas peripcias do seu reinado. E estas interpretaes, por vezes to
diferentes, permitem-nos assentar, desde j num primeiro problema em torno deste
reinado: o problema historiogrfico.
A questo fazer o ponto da situao sobre os conhecimentos existentes e fixados
em torno daquele monarca. Como que ao longo do processo historiogrfico portugus,
se foi edificando e transmitindo o conhecimento e a memria que hoje possumos sobre
D. Sancho II? Do que nos resta das fontes, da historiografia que as abordou e sobre elas
estruturou informao, da forma como o ensino da histria, nas suas vrias pocas, tratou
este rei, da imagem formada clara ou distorcida e propagandeada, destinada muitas
vezes a cumprir objectivos actuais e que pouco tinham a ver com a rigorosa reconstruo
22
da histria, das diferentes obras e autores que sobre o rei capelo se pronunciaram, de tudo
isto queremos falar, e com tudo isto pretendemos marcar um momento o ponto actual
sobre o estado da nao entre os anos de 1223 e 1248.
Do que se escreveu sobre aquele reinado tudo deve ser percorrido com rigor e
esprito crtico, procurando compreender essas obras luz dos contextos em que foram
criadas. A compreenso dos gneros, dos pblicos-alvo, dos destinos sociais e culturais
premeditados, da sua integrao em ideologias predominantes ou minoritrias. A
governao de D. Sancho II e todas as suas vicissitudes foram encaradas de diversas
maneiras, sob vrias abordagens, todas elas criadoras de uma imagem determinada do rei,
que ocupa, hoje, no nosso imaginrio colectivo, um lugar especfico. Apesar do carcter
fragmentrio e esparso em que muitos desses textos se baseiam, da insuficincia
qualitativa e quantitativa de muitas fontes, de orientaes de pesquisa desfocadas ou
insuficientes, da no existncia de uma regesta documental daquele perodo tratada
criticamente, o certo que uma imagem se reteve na histria dos portugueses e dos seus
reis, e que no caso de D. Sancho II no muito lisonjeira. A inutilidade governativa deste
monarca e a sua aflitiva incapacidade para dirigir, a sua inexistncia como lder, so
como flashes constantes na historiografia portuguesa dos sculos XIX e XX. A tese do
rex inutilis vingou e, se nalguns casos, poucos, mais recentes, o estudo da aco daquele
monarca foi integrada em contextos mais abrangentes, associados a uma ideia de Crise,
com carcter mais vasto e profundo e amarrada a um complexo cronolgico mais dilatado
aos dois reinados anteriores, a mensagem predominante ainda associa aquele rei a um
perodo negro e infeliz da monarquia portuguesa, dominado pelo fantasma da
incapacidade do Estado em se afirmar sobre o tecido vivo que o compe.
23
Em 1209, na cidade de Coimbra, nasce o primeiro1 filho de D. Afonso II e de D.
Urraca2. Baptizado com o nome de seu av, o infante Sancho ser um dos monarcas mais
infelizes da histria portuguesa3. Mal preparado para a governao de um pas ainda
em formao a sua subida ao trono ocorre, com pouco mais de treze anos4, a 25 de Maro
de 1223, data do falecimento de seu pai5 e as circunstncias no podiam ser piores.
Naturalmente a estrutura curial do final do reinado de D. Afonso II parece ter-se
mantido em funes, pelo menos durante algum tempo6. Com base nos documentos7 que
1 So, tambm, filhos deste casamento os infantes Afonso, futuro conde de Bolonha e rei de Portugal, a infanta
D. Leonor e o infante D. Fernando de Serpa. neto, pelo lado materno do rei de Castela, Afonso VIII e de
Leonor de Inglaterra.
2 Infanta de Castela. Filha do grande Afonso VIII, o heri cristo de Navas de Tolosa.
3 Sobre D. Sancho II de Portugal aguarda-se para breve, por Hermenegildo Fernandes, uma biografia detalhada.
4 Sobre a idade em que D. Sancho ter subido ao trono existem vrias interpretaes... Em relao idade de
20 anos Montalvo Machado vem corroborar a tese de Fr. Antnio Brando (Cf. MACHADO, J. T.
Montalvo, Causas de Morte dos Reis Portugueses, Braga, Liv. Pax Editora, 1974, pp. 48-51).
5 A rainha D. Urraca tinha falecido trs anos antes, em 3 de Novembro de 1220, tal como consta do Livro de
bitos de St Cruz de Coimbra: ...Tertio Nonas Novembris obiit D. Urraca Portugalensis Regina filia Donni Alfonso Regis
Castellae. Era MCC.LVIII; e como descreve BRANDO, Fr. Antnio em Monarchia Lusitana, IV Parte, Liv. 13,
c. 18 e 27; ibidem Escritura XV, no Apndice.
6 Bernardo de S Nogueira j demonstrou que, a nvel local, em 1223, a organizao notarial criada a partir de
1212-1214 j s subsistia em Braga, Guimares e Coimbra. A novidade do Primeiro Tabelionado parecia ter
alguma dificuldade para se impr e o reinado de Sancho II ir demonstrar que a articulao entre os nveis
central e local da administrao rgia se desorganizou por completo (Cf., S-NOGUEIRA, Bernardo de,
Tabelionado e Instrumento Pblico em Portugal. Gnese e Implantao, 3 vols., Dissertao de doutoramento em Histria
na rea de especializao de Paleografia e Diplomtica apresentada Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa, Lisboa, Univ. de Lisboa, 1996).
24
nos chegaram, da sua chancelaria, de instituies eclesisticas, de casas nobilirquicas, de
concelhos municipais ou de simples particulares; das bulas pontifcias de Gregrio IX,
Celestino II e Inocncio IV ou de fontes narrativas posteriores, ideologicamente marcadas
e contaminadas, procurmos reconstituir alguns dos aspectos fundamentais desse reinado.
No seu conjunto o volume de informao disponvel sobre o perodo de 1223 aos
incios de 1248 apresenta-se disperso por um conjunto de fontes documentais e
narrativas, que foram apreciadas e utilizadas pela historiografia portuguesa, quer a do
Antigo Regime, quer a mais prxima dos nossos tempos. De caractersticas bem distintas,
com forte vnculo ao universo cronstico ou mais relacionadas com processos
sistemticos de crtica e utilizao de fontes documentais, cabe s histrias gerais sobre
Portugal, neste trabalho, a primeira palavra sobre os acontecimentos em torno do reinado
de D. Sancho II.
Um outro aspecto que gostaramos de salientar na elaborao da primeira parte
deste trabalho relaciona-se com a forma como apresentamos as vrias posies
historiogrficas sobre o reinado de Sancho II. Numa primeira abordagem, pareceu-nos
que essa caracterizao pudesse ser feita por modelos historiogrficos, onde as vrias
vises sobre Sancho II pudessem ser observadas com maior coerncia. E, continua a
parecer-nos uma opo vlida. Contudo, optmos por desenvolver um conspecto
historiogrfico ordenado por critrios cronolgicos, desenvolvendo para cada um dos
autores que nos pareceram mais pertinentes, as posies tomadas em relao matria
disponvel sobre a forma como a estrutura central e os subsistemas perifricos se 7 As referncias escassez de documentos para o reinado de D. Sancho II, so uma constante na historiografia
portuguesa que estudou, ou abordou, este reinado. So poucos os autores, que apesar dessa exiguidade, referem
algumas capacidades governativas ao monarca. Veja-se, por exemplo: AZEVEDO, Lus Gonzaga de, Histria de
Portugal. VI, Lisboa, 1944, p. 1.
25
relacionavam entre 1223 e 1245. Pensamos que este mtodo, alm de no desvirtuar as
linhas metodolgicas de cada uma das Histrias observadas, nem de as retirar dos
complexos historiogrficos e dos estmulos externos onde e com que foram produzidas,
nos permitia observar o seu carcter evolutivo8, e nesse aspecto percebermos, tambm, a
evoluo historiogrfica das representaes sobre Sancho II.
A maior parte das obras consultadas so obras de continuao, compilaes ou
meros resumos de outras, que as antecederam, e que pela sua forma e objectivos das
obras de formao erudita. A opo por integrar, ambos os modelos, num processo de
observao cronolgico, tambm possibilita, pensamos, a percepo dos processos que
levaram sua elaborao. Afinal, repetida at exausto, ou observada com os mtodos
crticos disponveis no momento, a construo da imagem de Sancho II corresponde a
objectivos bem determinados. Se, partida, possa parecer relevante a opo por aquelas
obras que marcaram viragens historiogrficas, ou seja, neste caso concreto, aqueles
trabalhos que trouxeram novidades ao estudo da histria do reinado de Sancho II,
tambm nos pareceu interessante observarmos o acumular dos processos repetitivos
reproduzidos, cronologicamente, em muitas histrias com carcter eminentemente
divulgativo. Estas obras que no utilizam como suporte investigaes originais, antes
resultam do trabalho de recompilao, de sntese de memrias anteriores, ou de reescrita,
sem sentido crtico, pareceram-nos ocupar um lugar prprio no que diz respeito forma
como a memria deste rei, o que foi deposto, foi construda e depois, ensinada e
divulgada, desde os incios do sculo XIX at aos nossos dias. E, por isso que ao lado
de obras de perfil marcadamente erudito e pautadas pela dinmica das fontes e da sua
8 As nicas excepes so os dois autores estrangeiros que resolvemos incorporar e que saem da listagem
cronolgica original. Este aspecto, contudo, no os retira da sua cronologia nem dos modelos a que pertencem.
26
interminvel crtica, desfilam algumas dessas obras repetitivas e constantemente
reescritas com as mesmas passagens. Se, por um lado, garantimos a apresentao de um
estado da questo historiogrfico, que evoluiu cronologicamente, por outro, associamos-
lhe outra realidade, tambm inegavelmente de sentido cronolgico, e que est
representada por esta historiografia divulgativa.
27
1.2
AS HISTRIAS GERAIS
Todos os compndios de histria geral de Portugal apresentam um captulo, de
dimenso variada, descritivo da figura e dos feitos de D. Sancho II. Estes primeiros
trabalhos desenvolvem essencialmente quadros de observao influenciados pela tradio
cronstica e onde o tratamento de fontes documentais quase ignorado9.
So histrias que narram os sucessos militares, civis, eclesisticos, etc., e limitam-
se a isso mesmo, a produzir narrativas sobre acontecimentos de diversa ndole. So obras
que na maior parte das vezes tm perante si objectivos de ndole pedaggica e
divulgativa. No fundo particularizam uma escrita muito prpria, virada para as massas
que pretendem educar, e onde os feitos, os acontecimentos, so narrados, muitas vezes
de forma romanceada, e sem recurso utilizao de mtodos crticos ou de verificao do
que comentam.
O tratamento dado aos acontecimentos do reinado de Sancho II , por isso
superficial, e geralmente repetitivo de modelos anteriores onde, as personagens, se
apresentam sobre a forma de esteretipos, sendo avaliados sempre da mesma maneira e
com o sentido de produzir um sentimento de continuidade histrica, pouco
9 Destas histrias gerais destacamos: Francisco Duarte de Almeida e ARAJO, Histria de Portugal desde os
tempos primitivos at fundao da monarquia e desta poca at hoje. Lisboa, falta ed., 1852; Lus Francisco
MIDOSI, Compndio de Histria de Portugal para instruo da moidade. Lisboa, falta ed., 1843 a 1878 (17
edies); Antnio Jos VIALE, Novo eptome da Histria de Portugal para uso da real escola primria estabelecida por sua
majestade el-rei no Palcio de Mafra. Lisboa, 1856 a 1895 (4 edies); Arsnio Augusto Torres de
MASCARENHAS, Compndio de Histria de Portugal. Aprovado oficialmente para uso dos alunos dos Liceus.
Lisboa (com 8 edies at 1820).
28
problematizada, e centrada apenas na evoluo da realidade interna. O modelo do rei
incapaz, porque frgil, doente, pouco enrgico, influencivel por um conjunto de
personagens sinistras, que tantas vezes referido na cronstica, vale como um desses
modelos simplificados.
A problemtica das fontes geralmente subalternizada, quando no esquecida,
por estes divulgadores, que deixam de fora outros aspectos da histria, mais comum a
verses eruditas, como o estudo da genealogia, o processo de investigao, ou a aplicao
da hermenutica. Neste sentido, estas histrias gerais, de fundo divulgativo, so
especializadas tambm em aprofundar os silncios sobre determinados factos,
verdadeiros ou lendrios, e sobre figuras cujo percurso apresenta algumas dificuldades de
apresentao. No as acusando individualmente todas esta obras padecem de um
conjunto de omisses, claramente assumidas, em funo do perodo em que so
produzidas e do pblico a que se destinam e, no caso de Sancho II, colocam o leitor
perante a imagem do anti-heri, do rei que a nao no pode homenagear, mas que se
apresenta de forma longnqua e cujo fim redentor da nao10.
As histrias gerais sobre Portugal conhecem outro perodo de grande
desenvolvimento com o Estado Novo, onde a importncia da coeso nacional dirigida
para um propsito muito bem definido, produz modelos patriticos e hericos, onde
figuras como a de Sancho II encontram pouca simpatia. Nem mesmo a vertente, assumida
por historiadores como Antnio Brando e Alexandre Herculano, de que este rei
responsvel por um dos momentos de maior expanso territorial no reino, utilizada para
10 Sobre estas obras de carcter popular e divulgativo veja-se o que escreve Srgio Campos Matos (Cf.,
MATOS, Srgio Campos, Historiografia e memria nacional no Portugal do sculo XIX (1846-1898), Lisboa, Edies
Colibri, 1998, pp. 15-54).
29
valorizar a sua imagem. A posio tradicional assumida por muitos destes historiadores,
sobre a participao militar deste rei, a da sua desvalorizao, j que a verso oficial
assenta a dinmica da conquista nas campanhas dirigidas pelos mestres das ordens
militares.
30
31
1.2.1
Fr. Antnio Brando (1632)
Quarta parte da Monarchia Lusitana que conthem a Historia do reyno de Portugal, desde o tempo delRey
D. Sancho I, at o reynado delRey D. Affonso III
Lisboa, ed. por Pedro Crasbeek, 1632
Escrita h trezentos e setenta e um anos a Quarta Parte da Monarquia
Lusitana, marca o nascimento da historiografia portuguesa. Apesar de aparecer em jeito
de crnica caracteriza-se j por apresentar um notvel esprito crtico em relao s
informaes que reproduz. No caso particular do reinado que nos interessa comum
produzir juzos de valor sobre a forma que as crnicas antigas do reino trataram a
memria daquele rei, apontando incoerncias, contradies, impossibilidades e mentiras,
chegando mesmo a corrigir, utilizando processos comparativos, ou verificando se so
verdadeiros ou falsos, documentos notariais, bulas papais e instrumentos particulares. E,
neste aspecto, est uma das novidades, a utilizao crtica de fontes documentais ao lado
da interpretao rigorosa e desconfiada das informaes que crnicas e livros de
linhagens fizeram chegar ao sculo XVII, altura em que o distinto cisterciense escreveu.
comum ao referir-se a cdices existentes na Torre do Tombo reclamar da sua
veracidade, apontando-os como cpias e indicando quais os erros contidos11. Entre
11 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Monarquia Lusitana, Livro 14, c. 8.
32
muitos exemplos que podemos dar da sua percia e da sua prudncia podemos apontar o
que dizia sobre os feitos militares do famoso D. Paio Peres Correia, um dos maiores
capites do tempo de Sancho II. Afirmava que queria seguir o que os antigos tinham
escrito, mas adverte os seus leitores que ir discordar de muitas informaes que aqueles
apresentam, pois os tempos so outros12. Exemplo desta interessante postura crtica pode
ser o que afirma sobre a veracidade do episdio de Trancoso, quando Sancho II se
prepara para abandonar o pas. Considera verdadeiras as reclamaes de lealdade
dalguns cavaleiros para com o seu senhor. Diz que no cr em tudo, nem dvida de
tudo13. O escrpulo pela verdade parece predominar neste autor.
, o ltimo dos cronistas, e o primeiro dos historiadores portugueses. E, talvez,
por este facto, seja aprecivel, de todas as obras que escreveu, observar como no Livro IV
recupera a memria de Sancho II, afirmando peremptoriamente de que este foi um rei
injustiado e muitas das estrias que se contavam no faziam jus aos feitos daquele
monarca.
Duarte Nunes do Leo, Rui de Pina, Ferno Lopes, todos referiam, at exausto,
as poucas qualidades de soberano que D. Sancho II apresentava. Era para eles um ser
intil, incapaz e incapaz. Prejudicial para o reino e para os povos que governava e
responsvel por todas as violncias e crimes, grandes e pequenos, que assolavam o reino.
Todas aquelas crnicas seguiam um caminho pr-determinado: o da deposio do rei.
Todos os assuntos, todos os acontecimentos, toda a lgica de construo da narrativa se
12 Idem, ibidem, Livro 14, c. 19.
13 Idem, ibidem, Livro 14, c. 29.
33
dirigia para a necessidade que o pas tinha de se ver livre daquele monarca, marcando-o
como um soberano desprezvel, que nem aos mouros sabia fazer a guerra.
E, bastou um documento exarado nos gabinetes da Santa S, por um papa da
Cristandade, para a infelicidade de Sancho ser completa e ficar marcado, definitivamente,
para a histria. Nenhuma crnica se atreve a elogiar, mesmo depois da sua morte, as suas
virtudes, os seus feitos, as suas aces em prol da paz e do bem comum; nenhuma se
esforava por diminuir algum dos vergonhosos eptetos que de todo o lado surgiam e
tombavam sobre a memria do rei. Queria-se odiosa para o pas, como exemplo do que
no deve ser um governante.
E Brando? O que achava aquele monge cisterciense? A viso sob o reinado de
Sancho II bastante crtica. Crtica, para j, em relao aos que narravam vituperando o
rei, mas crtica tambm, porque apesar de valorizar os feitos do soberano que lhe
pareciam ser indiscutveis e que estavam sustentados em documentos bastante
verosmeis, discutia e criticava algumas opes de governo menos felizes por parte do
monarca. No entanto, e apesar desta tentativa de distanciamento sobre as provas,
caracterstica de uma forte conscincia historiogrfica, Antnio Brando no deixa de
apontar a m conscincia dos que para valorizarem, e legitimarem, a subida ao trono de
Afonso III, distorceram a verdade e enganaram a razo ao humilharem com todos os
defeitos o prncipe deposto.
Apesar de escrita no sculo XVII esta narrativa do reinado de Sancho II no
passou despercebida historiografia romntica do sculo XIX e, Alexandre Herculano
recupera muitas das afirmaes daquele autor seiscentista, como verdicas e bem
fundamentadas. O recurso confrontao com os documentos, embora no to
34
desenvolvida como no tempo de Herculano, no deixava de ser apreciada por este
historiador que no desprezou muitas das informaes sugeridas por Brando.
Parece ser Brando o primeiro a sugerir alguns dos problemas que mais tarde iro
tornar-se incontornveis, de uma forma ou de outra, para todos os que tentaram estudar
com maior profundidade aquele reinado. E o primeiro, como no podia deixar de ser, a
apresentao da menoridade do rei na subida ao trono. A posio de Antnio Brando
no +e muito clara, j que ao longo do seu trabalho entra em contradio em relao
idade que o prncipe teria e que Herculano perspicazmente criticou14. Se a data de
casamento de Afonso II parece no apresentar controvrsia. Todos os historiadores
depois de Herculano a aceitam como verdadeira, a afirmao de que o jovem rei teria j
vinte anos em 1223 muito mais difcil de aceitar e, provavelmente, um erro de leitura
sobre a Era em que o documento foi produzido (Brando, trocou a Era de 1251 pela de
1241) e que primeira vista lhe parecia argumento suficiente para apresentar o monarca
como adulto quando subiu ao trono.
O cognome do rei parece ser outra preocupao de Fr. Antnio Brando, que
defendia a utilizao daquela pea de vesturio por parte do rei como uma espcie de
pagamento de promessa por causa de enfermidades que teria tido enquanto criana.
Corroborava esta afirmao com a idade adulta do rei, os 20 anos, altura em que o
monarca poderia vestir o hbito dos monges de S. Francisco, j que na sua infncia esta
ordem menorita ainda no se tinha implantado na terra portuguesa15.
14 Cf., HERCULANO, Alexandre, Histria de PortugalII, p. 319.
15 Como mais frente veremos Alexandre Herculano no aceitava que o epteto do rei lhe tivesse sido atribudo
enquanto criana, mas sim na idade adulta, e por causa da atraco e interesse que tinha por aqueles monjes
mendicantes (Cf., HERCULANO, Alexandre, ibidem, p. 241).
35
A concrdia com D. Estvo Soares da Silva e com as suas trs tias so tambm
futuros clssicos tratados pela pena do cisterciense. As causas e as disposies de ambas
as concordatas, bem como a sua existncia, no so postas em causa por Brando, embora
desconfie que os textos chegados at ele, e que perduraram, muito dificilmente
corresponderiam, clusula por clusula, ao esprito dos dois textos assinados naquele ano
de 122316.
Outra dimenso aberta pela obra de Antnio Brando sobre as incertezas em torno
de Sancho II a da participao do monarca nas empresas militares contra o Islo.
Alicerado por bulas de cruzada e de incentivo despachadas pelos papas para terra
portuguesa e destinadas a dinamizar no rei o esprito da investida contra as tropas de
Mafoma, alm de citar outros autores que reafirmam essas existncias, Brando valoriza
a participao do rei portugus que, segundo ele, estaria j em 1225 em plena campanha
contra aquelas foras inimigas. A crtica a Brando no aceita alguma documentao por
aquele citada, como verdadeira. Muitos consideram que documentos referidos como
existentes na Torre do Tombo, mas nunca lidos pelo cisterciense, seriam de reinados
anteriores e teriam sido confundidos com apelos guerra e com descries sobre a
participao de outros reis portugueses na guerra contra os Sarracenos, como Afonso
Henriques ou Sancho I.
E, sob o ponto de vista militar, Antnio Brando que, pela primeira vez na
historiografia portuguesa, introduz a problemtica da conquista de Elvas, directamente
pelo rei de Portugal e da conquista de outras praas-fortes bem no interior do limes 16 Tambm aqui Herculano levanta algumas questes e refora a desconfiana de Fr. Antnio Brando ao
referir que a importncia daquelas duas composies no deveria ter passado despercebida hierarquia
eclesistica e que, pelo menos, deveriam ter sido referidas em bulas de confirmao (Cf., HERCULANO,
Alexandre, ibidem, pp. 171, 321 e 322).
36
islmico do Gharb. Achava Brando que a conquista se reportava ao ano de 1226, embora
mais tarde as fontes viessem a confirmar antes a data de 1230, quase na mesma altura em
que a fortaleza de Mrida cai nas mos dos cristos.
Foi, Alexandre Herculano, quem mais tarde deu algum sentido disparidade de
informao entre as crnicas portuguesas e as estrangeiras17 acerca das datas em que
Elvas caiu nas mos dos guerreiros portugueses. A cidade teria sido tomada em 1226
numa primeira investida mas o contingente que a conquistou no a conseguiu manter, ou
ento, optou por destruir os seus muros e infra-estruturas mais importantes e depois
abandonou-a. A ameaa crist de novo assalto fez com que os seus habitantes e respectiva
guarnio fossem forados a abandon-la definitivamente. desta forma que as foras de
Sancho II ocupam esta praa em 1230.
Inevitvel, incontornvel, e sem qualquer espcie de dvida, encarado como um
problema importante est o polmico casamento de D. Sancho II com D. Mcia Lopes de
Haro18. Citando A. de Magalhes Basto19 no comentrio crtico que faz quele episdio,
os principais argumentos de Brando resumir-se-iam da seguinte forma:
17 Sobretudo as narrativas de Lucas de Tuy e D. Rodrigo Ximenes de Rada
18 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Monarquia Lusitana, Livro 14, c. 31.
19 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Crnicas de D. Sancho II e D. Afonso III. Intr. de Artur Magalhes de Basto,
Porto, Livraria Civilizao, 1945, p. LXXXIX. Alexandre Herculano na sua perspectiva crtica utiliza os cinco
ponto do autor da Monarquia Lusitana para apresentar argumentos que, pelo menos, coloquem a dvida sobre
a hiptese de o casamento ter existido. Acaba mesmo por contribuir para invalidar a argumentao de Brando
referindo dois documentos provenientes de arquivos espanhis e que provavam a existncia do casamento e
servia-se das descries do Nobilirio para provar que o rapto da rainha tinha sido realizado.
37
1- Conhecendo ele, Brando, escrituras de doao de quasi todos os anos
do reinado de Sancho, em nenhuma aparece nomeada D. Mcia, ou
qualquer outra, como mulher do rei; mas a este respeito adverte: -
Poder haver alguma (escritura) que eu no visse em que se lhe d este
ttulo, mas dificultoso, porque vi muitas.
2- As bulas que h para el-rei no tocam cousa alguma em seu casamento.
3- No fala do casamento o arcebispo D. Rodrigo Ximenes, tendo, alis,
acabado a sua Histria em 1243.
4- Nem tampouco de tal casamento faz cargo a Sancho II o Papa Inocncio
IV na bula de deposio, de 24 de Julho de 1245, na qual, no entanto, este
Pontifice aponta todos os defeitos e aces indecentes do rei.
5- No prova o casamento a escritura publicada por Gudiel, celebrada em
Castela, no ano de 1257, e na qual D. Mcia se nomeia rainha, porque
uma cousa ter-se ela por rainha, e nomear-se por tal () outra s-lo
de feito.
Neste contexto, de que no teria havido casamento, Brando coloca a hiptese de
D. Mcia ter sido chamada a Portugal com esse engodo, ou eventual vontade do rei. No
sendo esposa de D. Sancho II a tradio do seu rapto e priso no castelo de Ourm no
38
colocava grandes problemas a Fr. Antnio Brando. No estando casada o ser arrancada
fora ao rei de Portugal no parecia to dramtico, como se o fosse.
Um dos problemas que o conde de Bolonha teria de enfrentar ao desembarcar em
Portugal, alm da hoste de guerra do seu irmo, seria o da aceitao da sua autoridade no
reino. Fr. Antnio Brando acompanha algumas das narrativas e delas retira a ideia de
que um conjunto aprecivel de terras e lugares do reino se ops entrada de D. Afonso,
como curador da terra portuguesa. Desses exemplos de lealdade pe em destaque a
resistncia de vilas como bidos20, Celorico e Coimbra, respeitando desta forma o
quadro da tradio cronstica que refere para esses locais, em especial para os dois
ltimos, momentos picos de resistncia ao vitorioso exrcito de Afonso, conde de
Bolonha. No deixa, no entanto, de referir, por comparao aqueles que muito cedo
traram o rei legtimo, como as aces vis dos familiares de Soeiro Bezerra ou a traio
do alcaide de Leiria, e cuja descrio encontrou no Nobilirio do conde D. Pedro de
Barcelos21.
Outro aspecto, a que recorrentemente, a historiografia portuguesa volta, quando
aborda o reinado de Sancho II, o que diz respeito s notcias de agravos e desmandos
que o rei de Portugal, por intermdio dos seus oficiais e validos, fazia s liberdades
20 Utiliza para se referir ao cerco de bidos, uma carta retirada da chancelaria de Afonso III, data de 1252 e
integrada no mao dos forais da Torre do Tombo.
21 Alexandre Herculano pe srias reservas se Fr. Antnio Brando ter, de facto, encontrado referncias
histria da defesa de Coimbra no Nobilirio. O primeiro a referi-la Rui de Pina, na sua Crnica de D. Sancho
II (Cf., Crnica de D. Sancho II, Lisboa, 1728, c. II), recuperando essa informao, no dizer do autor oitocentista,
talvez, das famosas crnicas perdidas de Ferno Lopes. Alis, o Nobilirio do conde D. Pedro indica que
Coimbra nunca ter sido cercada, j que as foras do conde de Bolonha no se teriam aproximado daquela
cidade, que poca, deveria estar bem guarnecida de defensores (Cf., Nobilirio, V, p. 73, nota 1).
39
eclesisticas. Como muitas outras, tambm estas informaes j encontram lugar na
narrativa de Antnio Brando. Contudo, a sua perspectiva volta-se para o facto de os
desmandos de que a Igreja se queixava serem perpetrados por elementos ligados coroa,
mas sem conhecimento ou autorizao do rei. As reaces da hierarquia eclesistica so
abordadas e indicadas as vrias bulas papais com que o clero admoestava o rei portugus,
procurando com isso lev-lo a tomar uma atitude mais firme sobre os seus homens.
Responde o monge de Cister com o relato de obras pias, fundaes de casas
religiosas e generosas dotaes fundirias a ordens militares, bispados e abadias, um
pouco por todo o pas, o que contrastava abundantemente com as informaes suspiradas
pelas crnicas do passado, que davam conta apenas da incapacidade e insensibilidade do
rei para com as coisas do clero. Por exemplo, podemos citar: Mando se d para as
obras dos frades pregadores de Santarm trezentos maravedis e se reparta com eles da
minha madeira de Lisboa e de outros lugares meus, a que lhes for necessria22. Alis,
Franciscanos e Dominicanos foram largamente apoiados e financiados por D. Sancho, e
Brando no se cansa de dar exemplos dessa intensa ligao entre o soberano e aquelas
ordens.
Vastas pginas tratam da questo da deposio do rei em 1245, e como a ela
recorreremos incessantemente, aqui deixamos o que nos parecem ser as principais
opinies de Fr. Antnio Brando:
No h dvida que foram mui urgentes as causas que obrigaram ao
Sumo Pontfice privar a el-rei D. Sancho do governo do reino, e a
22 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Crnicas de D. Sancho II e D. Afonso III, p. 82.
40
mandar em seu lugar o infante D. Afonso. Mal se pode desculpar el-
rei D. Sancho, nem ns o queremos livrar, nem ainda podemos, pois
anda incerta no corpo do direito cannico a bula de sua deposio
em que vem apontadas as cousas que moveram ao papa a fazer um
extremo to grande, como foi excluir a um rei do governo e
administrao de seu reino.23
Resume, desta forma, o facto incontestvel de que o rei foi deposto. Cita as
diversas queixas formuladas junto da Santa S e a inevitabilidade poltica dessa mesma
deposio. Curiosamente cita dois governantes de grande poder na Europa daquele
tempo, e que estaro para sempre ligados, de maneiras diferentes, deposio do seu
congnere portugus. So eles, Frederico II, o imperador deposto no Conclio de Lyon,
uma semana antes de D. Sancho e Lus IX, rei de Frana, patrono de Afonso de Bolonha
e protector do papado. Voltaremos a falar deles.
L esto, em Lyon, em plena actividade conciliar, os prelados portugueses mais
envolvidos do que nunca na conjura para deporem o seu rei. Nomeia-os a todos: Joo, o
arcebispo de braga, Pedro, o bispo do Porto, Tibrcio, bispo de Coimbra e junta-lhes
laicos. Estes so nobres e vem de Portugal, supostamente como embaixadores nomeados
pelo rei, atitude que Brando considera cnica. So eles Rui Gomes de Briteiros, infano
e mais tarde rico-homem do rei Afonso III e Gomes Viegas [Portocarreiro].
Importante para Brando o entendimento que o Bolonhs estabelece com
aqueles prelados portugueses no corao do reino francs. Em Paris, e sob os auspcios
23 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Crnicas de D. Sancho II e D. Afonso III, p. 90.
41
do rei de Frana, Afonso de Bolonha, jura perante diversas testemunhas e pelos
Evangelhos, o seguinte, que Brando no resistiu em transcrever:
Eu, D. Afonso, conde de Bolonha, filho de D. Afonso de ilustre
memria, rei de Portugal, prometo e juro sobre estes Santos
Evangelhos de Deus, que por qualquer ttulo que alcanar o reino de
Portugal, guardarei e farei guardar a todas as comunidades, conselhos,
cavaleiros e aos povos, aos religiosos e clero do dito reino todos os
bons costumes e foros escritos e no escritos que tiveram em tempo
de meu av e de meu bisav; e farei que se tirem todos os maus
costumes e abusos introduzidos por qualquer ocasio ou por
qualquer pessoa, em tempo de meu pai e irmo, e particularmente,
quando se cometer homicdio, que se no leve dinheiro aos vizinhos
do morto, mormente quando manifesto quem foi o matador24.
O resto a guerra. Sancho II tenta por todos os meios impedir que seu irmo
ocupe o governo do reino. Afonso, desembarca em Lisboa em 1245, nomeado curador do
reino e pouco tempo depois, a pedido do rei de Portugal, uma hoste de cavaleiros
castelhanos, s ordens do futuro Afonso X, atravessa as fronteiras do Ca e juntam-se s
foras de Sancho.
Enquanto o conde de Bolonha andava em Portugal, vencendo na
guerra as dificuldades que ocorriam e tratando de dar satisfao na 24 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Crnicas de D. Sancho II e D. Afonso III , pp. 96-97.
42
paz s esperanas que dele se tinham, el-rei D. Sancho, em Toledo,
livre j dos encargos do reino e bem desenganado do pouco caso que
se pode fazer das cousas da vida, passava o tempo com quietao e
repouso25.
O rei preparava-se para morrer naquela cidade e sua morte, Antnio Brando,
escreve sobre o ltimo enigma daquele reinado, os dois testamentos e sobre o que eles
contm, e mais uma vez, o seu esprito arguto detecta inconsistncias e incoerncias, que
ho-de acompanhar a historiografia portuguesa.
s vezes cronista, armado com a pena do patriotismo, faz descries perturbantes
das qualidades de um rei que foi deposto; outras vezes, sereno, frio, isento, abandona com
desprezo as antigas crnicas, monumentos incompletos e mergulha nos pergaminhos dos
mosteiros, das igrejas, das chancelarias rgias e, neles descobre, outras verdades sobre
aquele rei, sobre Sancho II que morreu em Toledo no princpio do ano de 1248. Do que
leu e depois escreveu, no mais a histria portuguesa se esqueceu, e da vida, feitos e
desventuras daquele rei, nenhuma histria se pode fazer sem parar nestas pginas que, na
primeira metade do sculo XVII um monge de Cister, mandou imprimir.
25 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Crnicas de D. Sancho II e D. Afonso III, p. 117.
43
1.2.2
Alexandre Herculano (1847)
Histria de Portugal. Desde o comeo da Monarquia at ao reinado de D. Afonso III
edio revista e anotada por Jos Mattoso, 4 vols., Lisboa, 1980-198426
Ainda hoje a Histria de Portugal de Alexandre Herculano pode ser considerada
como o grande monumento historiogrfico portugus do sculo XIX27. Profundamente
influenciado por uma exigente e moderna historiografia europeia28 estava convicto de que
a histria s podia ser feita a partir de documentos autnticos. A necessidade de uma
grande exigncia crtica ao nvel das fontes, requisito fundamental para uma verdadeira
reconstruo dos acontecimentos, levava-o a demarcar-se dos modelos historiogrficos
26 Utilizmos, para este trabalho, a edio com notas crticas de Jos Mattoso, HERCULANO, Alexandre,
Histria de Portugal. Desde o comeo da Monarquia at ao reinado de D. Afonso III, revista e anotada por Jos Mattoso, 4
vols., Lisboa, 1980-1984.
27 Oliveira Marques, por exemplo, dividiu a sua obra sobre historiografia nacional em dois volumes: das
Origens a Herculano e De Herculano aos nossos dias (Cf., MARQUES, A. H. de Oliveira, Antologia da
Historiografia Portuguesa, 2 vols., Lisboa, Publicaes Europa-Amrica, 1974-75). Outras obras de grande
importncia para o estudo da historiografia nacional so as actas de dois colquios realizados pela Academia
Portuguesa da Histria em 1976 e 1977, onde a diviso das matrias segue o mesmo critrio: A historiografia
portuguesa anterior a Herculano e A historiografia portuguesa de Herculano a 1950 (Cf., Historiografia, 1977 e
1978).
28 Particularmente a historiografia alem e francesa do seu tempo, das quais se destacam, por exemplo, algumas
obras de Thierry e de Guizot, como a Histoire de la Civilization en Europe, os Essays sur lHistoire de France ou os
Dix Ans dtudes Historiques. Dos autores alemes que o influenciaram, alm de Heinrich Schaefer (Geschichte von
Portugal), na vertente da histria poltica podemos destacar Friedrich Dalmann e a Geschichte von Dnemark, ou
Friedrich W. Lembke e a Geschichte von Spanien, entre outros.
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que o precederam e que no contemplavam a necessidade da crtica histrica, ou daqueles
que se limitavam a produzir histrias genealgicas, biogrficas ou narrativas de feitos
hericos onde os objectivos eram bem claros e pouco tinham a ver com a verdade
histrica.
Nesta obra valoriza os aspectos poltico-militares dos reinados de D. Sancho I, D.
Afonso II e D. Sancho II onde o modelo de anlise poltico-institucional predomina e
muitas vezes acrescentado com outras perspectivas. Os fenmenos econmicos, culturais
e mentais, transparecem em muitos dos seus pargrafos e a observao sistemtica dos
acontecimentos passados durante a governao de D. Sancho II prenhe desta conexo
entre o modelo institucional e os outros contextos. Vale a pena recordar a observao de
Vitorino Magalhes Godinho de que em Herculano:
coexistem dois historiadores: o da parte social da histria de
Portugal, da histria dos bens da Coroa [...] e o da parte narrativa, dos
acontecimentos da Histria de Portugal...29.
Lutava Herculano pela neutralidade do historiador em relao poca passada
que queria estudar, mas ele prprio no ficou imune aos condicionalismos e tentaes do
seu tempo. Era inevitvel que a histria passasse a ser cada vez mais entendida (e
produzida) como uma cincia aplicvel, que explicava o presente de forma pedaggica a
partir da reconstituio do passado.
29 Cf., GODINHO, Vitorino Magalhes, Alexandre Herculano, historiador, in Alexandre Herculano. Ciclo de
conferncias comemorativas do 1 centenrio da sua morte. Porto, Biblioteca Pblica Municipal do Porto, 1979, p. 79.
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Historiador liberal, acreditava na observao objectiva do passado como modelo
explicativo do presente e antecipador do futuro. O seu projecto historiogrfico assentava
na crtica das fontes disponveis, aproveitando os esforos que nesse sentido os monges
beneditinos do sculo XVIII tinham desenvolvido, e desvalorizava os modelos
tradicionais que punham em evidncia as vidas singulares dos monarcas e das suas
famlias, em detrimento da reconstituio das mudanas sociais e polticas, como por
exemplo, a evoluo dos sistemas jurdicos, econmicos e culturais. Lanava, desta forma
o antema contra a histria dos reis e das genealogias. O seu projecto almejava a
reconstituio da sociedade e no a histria dos indivduos, embora lhe fosse difcil negar
a importncia do indivduo na histria. o que se passa com os dois filhos de D. Afonso
II, que entre 1245 e 1248 disputam o trono de Portugal.
Carregada e melanclica rompia a aurora do reinado de Sancho II30.
A chegada ao poder do novo rei acontece num clima de grande perturbao em
torno da coroa e do sistema poltico vigente. Com a morte de D. Afonso II, Herculano
introduz uma questo no seio das preocupaes da historiografia portuguesa: a
menoridade de D. Sancho II. Este tema j tinha sido apontado por Antnio Brando,
embora com incorreces no que diz respeito a datas31. Herculano retoma-o, de forma
crtica, construindo sobre a idade insuficiente do rei a ideia de que a estava o incio de
30 Cf., HERCULANO, Alexandre, Histria de Portugal... II, p. 347.
31 Herculano critica as contradies em que Brando ter cado ao considerar que Afonso II se casara em 1208
(Cf., BRANDO, Antnio, Monarquia Lusitana, Livro 12, c. 30), e ao achar que Sancho II, em 1223, teria
acabado de fazer vinte anos (Cf., BRANDO, Antnio, Ibidem, Livro 14, c. 1). Veja-se o que diz o autor
oitocentista na sua Histria de Portugal (Cf., HERCULANO, Alexandre, Histria de PortugalII, p. 319).
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alguns dos problemas que diminuiram a governao de Sancho, em especial aqueles que
foram condicionados pela personalidade, vista como inconstante, do monarca. Com
efeito, com Alexandre Herculano, que esta questo ganha substncia e assume
personalidade prpria na historiografia portuguesa.
Torna-se numa questo fundamental e incontornvel na abordagem ao estudo
deste reinado pela historiografia portuguesa posterior a este autor. Quer seguindo-lhe
linearmente as interpretaes, quer intervindo criticamente sobre as suas afirmaes
menos consistentes, ningum mais se eximiu, ao falar deste reinado, a colocar a questo
da menoridade de D. Sancho32.
A maioria dos autores que precederam Alexandre Herculano mostram-se incertos
quanto idade com que Sancho II herda a coroa, embora na generalidade atribuam ao
novo monarca a idade de vinte e trs anos. Herculano reconsidera a data precisa do
nascimento do prncipe, afirmando que nunca poderia ter antecedido os meses finais do
ano de 120933 e que certamente as datas dos documentos teriam sido mal lidas, pois
considera erradas as leituras de Fr. Antnio Brando, em especial a contida no
instrumento de doao de D. Estevanha Soares ao mosteiro de Tarouca, onde teria sido
lida a data de 1241, em vez da era de 1251 (1213), lida por Viterbo34.
32 No ltimo caso de grande relevncia o artigo publicado por BRANCO, Maria Joo, A menoridade de
Sancho II: breve estudo de um caso exemplar, in Discursos. Lngua, Cultura e Sociedade. III srie, n 3. Memria e
Sociedade, Lisboa, Centro de Estudos Histricos Interdisciplinares, Junho 2001, pp. 89-116, onde a autora
contesta, veementemente, a ideia de que os problemas do reinado de Sancho II, e o prprio processo de
deposio, se devam em exclusivo ao facto de o rei ter assumido o trono ainda menor.
33 Cf., COSTA, A. D. Sousa, Mestre Silvestre e Mestre Vicente, juristas da contenda entre D. Afonso II e suas irms, Braga,
1963, pp. 436-437, nota 547; AZEVEDO, Rui; COSTA, Avelino Jesus da e PEREIRA, Marcelino,
Documentos de D. Sancho I (1174-1211), vol. 1, Coimbra, Univ. de Coimbra, 1979, pp. 271-272).
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Alexandre Herculano considera verosmil este casamento para o final de 1208 ou
princpio de 1209, indicando que o nome da rainha D. Urraca passa a figurar ao lado do
marido e do sogro, pelo menos a partir de Fevereiro de 1209. Recorda, na sua nota XIV,
uma passagem de FLORES35, onde se refere que uma das causas directas que
provocaram o conflito entre D. Sancho I e o bispo do Porto, D. Martinho Rodrigues, teria
sido a maneira como o prelado portuense teria tratado os noivos ao entrarem naquela
cidade. A utilizao crtica de diversos documentos permite precisar melhor a idade do
rei. Considera determinante o facto de na famosa composio com as tias se dizer que o
prncipe ainda no tinha atingido os catorze anos de idade; ou as expresses papais
contidas na bula Grandi non immerito que se referem ao infante como tendo herdado a
coroa paterna na idade da puercia.
Posteriormente, a publicao sistemtica da documentao de Sancho I vem
balizar com preciso a data daquele casamento, confirmando a opinio de Herculano. O
primeiro documento onde D. Urraca figura como mulher de Afonso II de Fevereiro de
1209. Como o ltimo instrumento rgio, sem aparecer referncia rainha de Novembro
de 1228, o casamento ter ocorrido entre aquelas duas datas.
A menoridade de D. Sancho serve de pretexto a Alexandre Herculano para
acrescentar uma nova dimenso s tenses existentes entre os partidrios do modelo
centralizador e os seus opositores. A clarividncia de D. Afonso II ao prever o seu
desaparecimento precoce, j que era provvel que tivesse conscincia de que a morte se
34 Cf., VITERBO, J. S. Rosa, Elucidrio das palavras, termos e frases que em Portugal se usaram e que hoje regularmente se
ignoram, ed. crtica baseada nos mss. de Viterbo por M. FIUZA, 2 vols., Porto, editora, 1983-1984, t. 2, p. 369;
FERNANDES, A. de Almeida, Esparsos de Histria, Porto, edio, 1970, pp. 183-184.
35 Cf., FLORES, Espaa Sagrada, t. 21, p. 144.
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aproximava, tambm admitia que todo o seu labor em prol do fortalecimento do poder
rgio poderia ser posto em causa pela transmisso do poder para as mos de uma criana.
Os testamentos do rei definem claramente que o prncipe herdeiro, caso seja menor, deve
ser aconselhado pelos seus validos, homens de confiana e a regncia confiada a D.
Urraca. No ltimo testamento, posterior morte da rainha, determina que essa regncia
passe aos ricos-homens que exerciam os mais altos cargos do estado que passaro a reger
os destinos do reino em nome do prncipe.
Diz Herculano sobre a menoridade do rei que:
os historiadores desprezaram ou controverteram um facto bem
simples e que, todavia, como o elo e origem da cadeia de
acontecimentos que prepararam a queda do infeliz prncipe36.
Os defeitos de leitura sobre a data de nascimento do herdeiro do trono tero
levado a um fatal erro de interpretao sobre as capacidades do novo rei, pois era
considerado adulto e responsvel pelos seus actos. Mas no o era. Para Herculano,
Sancho II, no era ainda adulto quando herda o trono, e esse facto ser impossvel de
dissociar da imagem de mau governante que a histria lhe dar.
imagem de um rei infantil, ainda impreparado para a governao liga-se o
estado em que Portugal se encontra. O rei morrera excomungado e os seus antigos
privados assumiam-se plenos de autoridade como regentes do reino, mantendo a presso
sobre sectores do clero e da nobreza terratenente que durante todo o reinado anterior se
36 Cf., HERCULANO, Alexandre, Histria de Portugal... II, p. 348.
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tinham oposto ao crescimento da autoridade rgia. A maioria das questes estava por
resolver. O reino estava interdito, o rei por sepultar em campo santo, as justias do reino
impedidas de funcionar. Necessariamente, era o momento para a composio entre as
faces opostas. A eterna questo sobre os direitos das infantas tinha-se agravado com
a interveno de Afonso IX de Leo, fragilizando a posio dos tutores do rei. A
insustentabilidade de um estado incapaz de agir e de impor a sua autoridade obrigava a
que se iniciassem conversaes. Herculano pe em evidncia as dificuldades em que se
encontravam os antigos conselheiros de D. Afonso II, e agora tutores do pequeno rei e a
necessidade de sair do impasse poltico em que o reino se encontrava.
Segundo Alexandre Herculano, o clero portugus colocou srios entraves ao
modelo centralizador de Afonso II. A sua oposio, motivada pela aplicao violenta das
determinaes da coroa, acabou por provocar danos insuportveis ao aparelho do estado e
autoridade dos validos do rei. A concrdia com o clero portugus era vital para a
manuteno do estado e da sua auctoritas.
A concordata com o clero assinada em 1223 considerada como um feliz
aproveitamento por parte da Igreja das infelizes circunstncias em que o reino se
encontrava. Sendo verdadeiras as disposies contidas naquele documento37, estas
37 Composta por dez artigos publicada pela primeira vez por CASTRO, Gabriel Pereira de, De manu regia
tractatus, Ulyssipone, apud Petrum Craesbeeck, 1622-1625 e por COSTA, Sousa, na Monomaquia sobre as
Concordatas. Tinha j sido referida por BRANDO, Fr. Antnio, na Monarquia Lusitana, mas nunca publicada.
Alexandre Herculano considera que o douto monge desconfiava da genuinidade do documento. Mesmo a
referncia existncia do original no arquivo do cabido bracarense (Cf., CUNHA, Rodrigo da, Historia
Ecclesiastica dos Arcebispos de Braga e dos Santos e Vares Illustres que floresceram neste Arcebispado, 2 vols., Braga, 1634-
1635 (edio facsim. com nota de apresentao por Jos Marques, Braga, 1989, P. 2, c. 23, 7) no resolve a
questo. Herculano desconfia que este autor ter usado o mesmo texto de Brando ou de Gabriel Pereira de
Castro, ou seja, uma cpia transmitida por Lousada. O facto de todos os autores que utilizam esta concordata
no citarem, ou indicarem, os confirmantes de to importante instrumento constitui o maior bice sua
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abrangiam muito mais do que uma mera indemnizao pecuniria, com efeito o que o
arcebispo pretendia era garantir condies vantajosas nos captulos da jurisdio e das
imunidades eclesisticas; a entrega de avultadas somas do tesouro real nos cofres da
arquidiocese representaria o pagamento pelos danos causados pela perturbao que as
medidas de D. Afonso II tinham causado sobre aqueles direitos da Igreja.
De seguida, comenta criticamente a ausncia de informaes sobre os trs
primeiros anos do reinado de D. Sancho II nos historiadores que o antecederam. Parece,
afirma, que no viram neles mais do que o movimento ordinrio de um reino pacfico38 e,
contudo, nos documentos desse perodo est, bem visvel, a existncia de uma grande
agitao poltica. Sinnimo desta agitao a constante mudana de grandes senhores
da aristocracia portuguesa nos principais cargos da cria. Essa acelerada sucesso de
validos do rei naqueles cargos contrariava, para Herculano, o quadro tradicional
observvel em reinados anteriores, onde os ministros do rei se mantinham nos cargos
durante muito tempo. A que se deve esta mudana na ocupao dos cargos pblicos?
legitimidade. O mesmo se passa com as bulas Ex Speciali e Siquam horribile de Gregrio IX ou a Grandi non
immerito, de Inocncio IV, onde no existe qualquer referncia concordata entre o rei de Portugal e o clero
nacional. Existe, ainda, outro documento arquivado na Mitra de Braga, cpia datvel do sculo XIII, e que tem
anexado o documento do Apndice 15 da parte 4 da Monarquia Lusitana, o que aumenta a veracidade sobre a
existncia de tal documento de composio. Contudo Alexandre Herculano na sua nota concordata levanta a
possibilidade de este documento ter sido forjado depois do desembarque em Lisboa do conde de Bolonha. Jos
Mattoso acrescenta que Sousa Costa publicou a concordata atravs de um exemplar existente nos Arquivos da
Torre do Tombo (Cf., IANTT, Mitra de Braga, cx 1, n 81), que supe ser a cpia do sc XIII de que fala
Herculano. Conferiu-a com a cpia do sc XVII dos Rerum Memorabilium, Livro II. Pode ainda ver-se o artigo
de MADAHIL, A. G. da Rocha, "O Cartulrio Seiscentista da Mitra de Braga Rerum Memorabilium", in
Boletim Cultural (da Cmara Municipal do Porto), 31 (1968), pp. 92-107, onde se v que muitas das cpias no
pertencem a Lousada.
38 Cf., HERCULANO, Alexandre, Histria de Portugal II, p. 358.
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Herculano atribui-a aos factos ocorridos durante a menoridade do rei, onde o
estado pueril do prncipe era causa dessa vertiginosa alternncia de nobres em cargos
pblicos. Alm do problema levantado pelo estado pueril de D. Sancho, o autor refere a
existncia de tenses e dios entre a nobreza do reino e os antigos validos de D. Afonso
II, agora tutores do pequeno rei.
A ausncia de um poder forte, como tinha sido o de D. Afonso II, levava a que os
senhores lanassem mo dos mais variados processos para alcanarem os seus objectivos,
atirando o reino para um estado de desordem. As referncias turbulncia social daqueles
primeiros tempos do reinado e s causas que as precipitaram esto dificultadas pela
escassez de documentao para aquele perodo, mas essa ausncia, pode tambm ser
demonstrativa de um estado fraco e desorganizado, onde os normais procedimentos da
chancelaria so uma das principais vtimas39.
Para ele cabe ao clero, em especial aos seus notveis, o principal papel na
perturbao da ordem pblica. nesta estrutura eclesistica que os tutores de D.
Sancho e o prprio rei encontram as maiores resistncias. As tentativas de pacificao
que definem os incios do reinado de D. Sancho II so alcanadas custa de grandes
concesses por parte da estrutura rgia Igreja e aos seus prelados e que acabam, num
39 Quer Jos Mattoso, nas suas notas crticas ao trabalho de Herculano (Cf., HERCULANO, Alexandre,
Histria de Portugal, II, nota [1], p. 543), quer Maria Joo Violante Branco (Ibidem, p. 95) desmontam a tese
defendida por Herculano e seus seguidores de que teria existido uma tutoria institucionalizada. Nada na
documentao disponvel faz pressupor que existisse um conjunto de validos que rodeassem o rei e o
influenciassem nas suas decises, para alm do que era comum na documentao dos reis que o antecederam e
at daquele que lhe vai suceder. Tais posies vo ao encontro do que j havia sido enunciado por Lus
Gonzaga de Azevedo (Cf., AZEVEDO, Lus Gonzaga de, Histria de Portugal, pref. e rev. de Domingos
Maurcio dos Santos, vol. 6, Lisboa, Ed. Biblon, 1944) ao comentar de forma muito crtica esta posio de
Alexandre Herculano.
52
prazo mais longo, por abrir novas frentes de coliso. A dinmica de conflito que o clero
apresenta face ao poder central, congrega em seu torno toda uma nobreza descontente,
como Herculano bem expressa:
Para se vingarem, os prelados no tinham s os raios de Roma, a
que logo recorriam: tinham, tambm, os elementos de desordem que
fermentavam no reino; tinham a poderosa alavanca de uma nobreza
ambiciosa e descontente. vista do carcter turbulento e audaz dos
dois prelados40, sobretudo do arcebispo, licito acreditar que foram
eles que deram impulso, ao menos em parte, anarquia que se
desenvolveu entre os bares do Norte e que, talvez por anos, afligiu
o reino41.
O quadro de perturbao poltica evidente para o autor e o rei parece passar de
mo em mo entre as duas faces, desejosas de assegurar atravs da influncia praticada
sobre ele o controlo do estado. neste sentido que Herculano considera este
encarniamento sobre a posse do rei como um dos motivos mais evidentes da ecloso
de conflitos civis. apresentado como um pobre mancebo, joguete dos principais
senhores, incapaz sequer de discernir o que se passava no seu prprio reino, ao ponto de
se considerar a possibilidade de que muitos documentos expedidos em nome de Sancho
40 Refere-se ao arcebispo de Braga, D. Estvo Soares da Silva e a D. Soeiro, bispo de Lisboa.
41 Cf., HERCULANO, Alexandre, Histria de Portugal II, p. 361.
53
II, serem de facto, documentos elaborados por aqueles que o dominavam, e dos quais o
rei pouco conhecimento deveria ter.
Afirma Herculano que este jovem rei mais parecia neto de D. Sancho I do que
filho de D. Afonso II. Aps introduzir a questo da menoridade do rei como um dos
aspectos provocadores da crise do reinado, aborda as capacidades de chefe militar de D.
Sancho integradas no processo de expanso crist sobre o espao muulmano. o
lanamento das campanhas ao Alentejo integradas numa conjuntura bem delineada, onde
os problemas do complexo islmico peninsular so enunciados e contextualizados em
especial com os avanos no terreno das coroas castelhana e a leonesa, desde os anos de
1218 ou 1219. O padro de conquista crist parece caracterizar-se pela existncia de
concertao entre os vrios reinos. O movimento de ocupao sistemtica da Estremadura
espanhola entre-os-rios Tejo e Guadiana parece, quase sempre, combinar-se com os
objectivos das hostes portuguesas, dirigidas por D. Sancho II42.
Comea assim a anlise da famosa expedio a Elvas. A confirmao feita pelo
papa em 1225 de D. Sancho II como rei de Portugal inicia a transio do prncipe para a
idade adulta; o comando dos exrcitos rgios permitir-lhe-ia ser rei de facto, ao mesmo
tempo que se subtraa ao abrao asfixiador dos ricos-homens que o tutelavam. A
dinmica de cruzada defendida pelo poder papal, que se traduz no envio de missivas
especiais a D. Sancho, e as aces vitoriosas de reis como Fernando III ou Afonso IX, e o 42 O autor afirma que o comando operacional das foras portuguesas recaa sobre Martim Anes, o antigo
Alferes-mor e sobre o arcebispo de Braga. Sobre a coordenao entre o dispositivo militar portugus e os
movimentos castelhanos, cita um documento publicado nos Extractos da Academia, (Santo Tirso, Gav. de Goim,
n 8) ou em TUY, Lucas, Chronicon Mundi, ed. E. Scothus, Hispania Illustrata, vol. IV, Frankfurt, 1608, p. 114,
que refere a presena de D. Martim S