«BONUS REX» ou «REX INUTILIS» AS PERIFERIAS E O CENTRO

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA «BONUS REX» ou «REX INUTILIS» AS PERIFERIAS E O CENTRO Redes de Poder no Reinado de D. Sancho II (1223-1248) José Varandas Tese orientada pelo Professor Doutor Pedro Gomes Barbosa e co-orientada pelo Professor Doutor António Borges Coelho DOUTORAMENTO EM HISTÓRIA HISTÓRIA MEDIEVAL 2003

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE LETRAS

    DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    BONUS REX ou REX INUTILIS

    AS PERIFERIAS E O CENTRO

    Redes de Poder no Reinado de D. Sancho II (1223-1248)

    Jos Varandas

    Tese orientada pelo Professor Doutor Pedro Gomes Barbosa e co-orientada pelo Professor Doutor Antnio Borges Coelho

    DOUTORAMENTO EM HISTRIA

    HISTRIA MEDIEVAL

    2003

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    NDICE

    Agradecimentos 5

    Introduo 9

    1. D. Sancho II de Portugal um conspecto historiogrfico.. 19

    1.1. Do Conspecto 21

    1.2. As Histrias Gerais 27 1.2.1. Fr. Antnio Brando (1632) 31

    1.2.2. Alexandre Herculano (1847) 43

    1.2.3. Joaquim Pedro de Oliveira Martins (1879) 77

    1.2.4. Manuel Pinheiro Chagas (1899) 79

    1.2.5. Fortunato de Almeida (1910) 95

    1.2.6. ngelo Ribeiro (1928) 103

    1.2.7. Miguel de Oliveira (1940) 117

    1.2.8. Lus Gonzaga de Azevedo (1944) 121

    1.2.9. Maria Emlia Cordeiro Ferreira (1975) 149

    1.2.10. Joaquim Verssimo Serro (1977) 153

    1.2.11. Marcello Caetano (1981) 159

    1.2.12. Jos Mattoso (1985) 163

    1.2.13. Jorge Borges de Macedo (1988) 185

    1.2.14. Antnio Borges Coelho (1993) 189

    1.2.15. Leontina Ventura (1996) 199

    1.3. Os estrangeiros: uma amostragem 211 1.3.1. Henri Schaefer (1847) 211

    1.3.2. Harold V. Livermore (1969) 225

    2. O Problema Poltico 231

    2.1. A transferncia de poder 233 2.1.1. Limitaes ao modelo central: a questo com as infantas 241

    2.1.2. Os bispos como problema poltico: uma primeira enunciao 255

    2.1.3. O primeiro problema: a menoridade do soberano 263

    2.1.4. Os tutores do rei: um falso problema? 275

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    2.1.5. Monarquia e igreja: problema central 281

    2.2. O processo de deposio do rei 289 2.2.1. De rex utilis a rex inutilis 341

    2.2.2. Da bula de deposio s reaces polticas 381

    2.2.3. Guerra civil: a reaco militar de Sancho II 391

    2.2.4. O fim do rei 409

    3. Centro e Periferia 413

    3.1. Centro e periferia: primeira abordagem 414

    3.2. Rei e governo central: continuidade e ruptura das redes de poder (1210-1250) 426

    3.3. Poder central e elites urbanas: factores de desagregao 449

    3.4. Sancho II e a Igreja: a difcil delimitao de poderes 479

    3.5. Senhorios e coroa: blocos antagnicos? 549

    3.6. Aquisio e consolidao das periferias: o processo militar 561

    3.7. Estrutura central e desenvolvimento: modelos econmicos e consolidao do

    territrio 587

    3.8. Centro e periferia: o rei como garantia do reino 603

    Concluso 615

    Fontes e Bibliografia 641

    Anexo 731

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    AGRADECIMENTOS

    Uma dissertao de doutoramento , sempre, um trabalho moroso, longo, difcil,

    composto de estmulos, alegrias, tristezas e ansiedades, mas , sobretudo, um trabalho

    solitrio, onde estados de alma contraditrios se entrecruzam e se anulam, ao longo de

    uma caminhada, onde levamos por companhia a solido, e os fantasmas severos

    daqueles que nalgumas pginas nos atrevemos a trazer ao mundo dos vivos.

    Muitas vezes paramos, samos do caminho, e nessas paragens encontramos alento,

    confiana, determinao, direco, carinho e amizade, de pessoas que na nossa vida

    pessoal e acadmica assumem um papel fundamental. a essas, que queremos agradecer

    muitas coisas, e entre elas o facto de termos conseguido concluir este trabalho.

    O meu amigo, o meu orientador, o Professor Doutor Pedro Gomes Barbosa, o

    primeiro a quem agradeo a disponibilidade, a confiana e a franqueza com que dirigiu

    este trabalho e todos estes anos de vida acadmica. A ele devo a escolha do tema e o

    desafio inicial.

    Ao meu outro amigo e co-orientador desta dissertao, o Professor Doutor

    Antnio Borges Coelho, agradeo esta emoo de poder contar com a sua amizade e com

    o seu imenso saber, vitais que foram nos momentos de menor inspirao.

    Outros dois amigos, dos grandes, sempre me acompanharam, no deixando que as

    minhas fraquezas se sobrepusessem e impedissem os passos que devia dar. Professor

    Doutor Hermenegildo Fernandes e Professor Doutor Bernardo de S Nogueira, a eles

    devo a alegria de chegar ao fim, e tantas outras coisas. E, com eles, quero agradecer e

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    saudar outra amiga, a Dr Isabel de S Nogueira, que tambm l esteve, com a sua

    perspiccia e sentido de humor fulminante, nos meus bons e maus momentos.

    Para outro amigo se volta, constantemente o meu pensamento, lembrando os

    momentos iniciais desta tese. Ao Professor Doutor Antnio Ribeiro Guerra, onde quer

    que esteja, fica a tristeza de no poder mostrar o que escrevi, e a saudade de uma boa

    amizade.

    Agradeo ainda a ajuda constante e alegre de outro amigo de longa data e

    companheiro de caminhada, o Dr. Nuno Simes Rodrigues.

    No posso esquecer, nesta hora, outros Professores, outros tantos amigos, que

    felizmente tenho no Departamento a que perteno na Universidade de Lisboa, e que

    tantas vezes me deram provas de estima e amizade, atravs de conselhos, estmulos e, at,

    repreenses simpticas. Espero no me esquecer de ningum, j que quero nomear

    aqueles que se preocuparam com este trabalho: os Professores Doutores Jos Augusto

    Ramos, Joo Medina, Antnio Dias Farinha, Antnio Marques de Almeida, Jos Nunes

    Carreira, Maria do Rosrio Themudo Barata, Antnio Ventura, Vtor Serro, Lus Filipe

    Barreto, Srgio Campos Matos, Joo Cosme, Jos Horta, Joo Pedro Cunha Ribeiro,

    Francisco Contente Domingues, Antnio Joaquim Ramos dos Santos, Joo Martinez,

    Paula Loureno, Ftima Reis, Carlos Fabio, Amlcar Guerra, Ana Arruda, Lus de

    Arajo e Carlos Margaa Veiga.

    Ao Dr. Jos Brissos, agradeo o seu apoio e imperturbvel amizade, de alguns

    anos, e ao Dr. Antnio Cordeiro Lopes, tambm deixo um obrigado pela amizade e pela

    ajuda, nalguns aspectos burocrticos, que podiam ter travado este trabalho.

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    Aos meus colegas e amigos da minha rea de trabalho, a Histria Medieval,

    quero agradecer, de forma particular, todo o interesse e amizade com que seguiram este e

    outros trabalhos, e que aqui quero referir: Professora Doutora Manuela Mendona,

    Professora Doutora Margarida Garcez, Professora Doutora Manuela Santos Silva,

    Professor Doutor Armando Martins, Professora Doutora Ana Maria Rodrigues e Dr

    Julieta Arajo.

    Aos Professores e amigos de outros Departamentos da minha Faculdade, e que

    se interessaram por este trabalho, tambm quero deixar uma forte saudao: Professores

    Doutores Joo Dionsio, Manuel do Carmo Ferreira, Leonel Ribeiro dos Santos, Maria

    Alzira Seixo, Fernanda Gil Costa, Jos Manuel Simes, Teresa Alves, Teresa Seruya,

    Graa Abreu e, ainda, aos Drs. Lus Pereira, Lus Filipe Teixeira e Ricardo Reis.

    Pela amizade, disponibilidade e longas conversas em vrias terras deste Pas,

    quero agradecer ao Dr. Srgio Farinha, meu amigo e meu cunhado.

    Ao meu amigo, Dr. Vasco Resende, com quem nos ltimos anos trabalhei, no

    Centro de Histria e no Instituto de Estudos rabes e Islmicos, em mltiplas tarefas,

    quero agradecer a alegria, humor e amizade com que brindou um antigo professor.

    Agradecimentos, que torno extensivos, a outro meu antigo aluno, o Dr. Paulo David

    Vicente.

    E, no fim, aqueles que so sempre os primeiros, a minha famlia. minha mulher,

    Marina, e ao nosso filho, Diogo, os mais sacrificados pela minha solido, pela minha

    incapacidade de os ajudar quando tambm precisavam, por estar presente, quando estava

    ausente, mas a quem agradeo tudo. O amor, o carinho, a amizade, a censura, mas acima

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    de tudo a presena e o facto de partilharem a minha vida. Este trabalho para eles, com

    Amor.

    Aos meus Pais, que sempre esto.

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    INTRODUO

    Sancius, Dei gratia

    Imprimis mando quod filius meus infans D. Sancius, quem

    habeo de Regina D. Urraca habeat Regnum meum integre & in

    pace

    (Treslado do Testamento delRey D. Affonso II, in BRANDO, Fr. Antnio,

    Crnicas de D. Sancho I e D. Afonso II, Porto, Liv. Civilizao, 1945, p. 283)

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    Desde h muito que entre os historiadores da sociedade medieval europeia se

    consolidou a noo de que durante o sculo XIII se verificaram mudanas substanciais

    nos comportamentos e valores sociais, culturais e polticos dos vrios reinos da

    Cristandade. Dentro das diversas alteraes que aquele perodo conheceu uma delas

    sobressai em absoluto. A noo de que este o sculo onde numa Europa profundamente

    Catlica, a Igreja perde alguma da sua influncia e capacidade de governao. No no

    que concerne ao seu universo especfico, a no plano espiritual e na gesto dos seus

    patrimnios, continuam exmios e o modelo de organizao a que chegam quase

    perfeito. A viragem, ou seja o problema, est na maneira como foram administrando e

    actuando sobre a sociedade civil. As grandes modificaes que os movimentos

    reformistas e de transformao cultural ocorridos ao longo do sculo XII foram

    introduzindo e consolidando, e que encontravam cada vez mais eco na sociedade laica,

    tendiam a escapar ao controlo da Igreja. A Europa secularizava-se em todos os campos

    onde existia actividade humana: na arte, na literatura, na economia, nas instituies e,

    claro, na poltica.

    No cabendo a este trabalho o estudo profundo dessas transformaes, das suas

    causas e consequncias, interessa-nos contudo explorar um dos caminhos visveis e

    determinador na forma como a opinio pblica daqueles tempos se alterou.

    Esse caminho o que leva laicizao da sociedade medieval europeia e da

    forma como ela se expressa na realidade portuguesa, em especial durante o reinado de D.

  • 12

    Sancho II. A afirmao de novos valores polticos na Europa, onde o papel do soberano e

    da sociedade laica ganham cada vez maiores adeptos e a ideia de Reino, cada vez mais, se

    consubstancia, numa realidade tendencialmente homognea e coerente, garantida pela

    continuidade fsica e poltica entre o centro de poder e as fronteiras e, claramente

    desfavorvel manuteno dos velhos subsistemas feudais e esferas de influncia

    regionais.

    No processo de laicizao da sociedade percebemos que o poder se transfere da

    Igreja para o Estado, em muitas das suas componentes. Desde a alta Idade Mdia que a

    Igreja controlava o sistema poltico europeu. A nfase atribuda ideia de Cristandade

    sobrepunha-se (ou devia sobrepor-se no entender da Igreja) a qualquer outra definio. O

    indivduo devia a sua obedincia a esta noo. Em primeiro lugar era um cristo, era aqui

    que estava a base da sua existncia, depois vinham as outras ligaes, onde as nacionais

    ocupavam o ltimo lugar da hierarquia1.

    A Christianitas era o lao mais forte entre os europeus, criando a expectativa de

    uma Europa pan-nacional, com um nacionalismo especfico e traduzido nos exrcitos

    que se armavam para as Cruzadas2. Promovia-se a livre circulao e estabelecia-se um

    controlo supranacional sobre todos os aspectos da sociedade europeia onde o poder

    residia nas mos do papa. Era, para o clero, uma situao satisfatria. Politicamente,

    1 Na realidade francesa anterior ao sculo XIII a escala de valores para um indivduo podia ser definida desta

    forma: em primeiro lugar era um cristo, depois um borguinho e francs s em terceiro lugar. Neste ltimo

    caso ser francs significava apenas ser natural do norte da actual Frana.

    2 Muitos autores falam da ideia de cidadania europeia, apontando o facto de clrigos e intelectuais

    especializados ou cavaleiros poderem encontrar emprego em qualquer nao da cristandade,

    independentemente do seu pas de origem (Cf., STRAYER, Joseph R., Medieval statecraft and perspectivs of history.

    Princeton/New Jersey, Princeton University Press, 1971, p. 253).

  • 13

    controlavam os diferentes reinos europeus, cujas dificuldades de coexistncia pacfica

    eram conhecidas. As disputas de fronteiras entre reinos e entre casas senhoriais eram uma

    constante; a guerra entre pases cristos uma certeza poltica, situao que era intolervel

    para a Igreja, que pregava os valores da paz e da justia. E este aspecto leva-nos por um

    novo caminho. Parece-nos ser a Igreja a primeira a abrir o ferrolho entrada de novas

    ideias, em especial aquelas que podiam vir a alterar alguns modelos de comportamento na

    liderana dos reinos. Se os ideais de paz e de justia apregoados pela Igreja desde sempre

    pudessem ser garantidos pela fortificao da ideia de soberania do rei, tanto melhor. De

    certa forma os eclesisticos ocidentais abriam o caminho a reformas profundas, que a

    breve trecho iriam contribuir para uma inevitvel laicizao da cultura poltica europeia.

    Neste trilho que os reinos europeus vo percorrendo para a sua autonomia esto

    em causa outros aspectos vitais sociedade. No apenas a questo militar aquela que

    provoca desagrado ao clero, tambm o aumento das transaces comerciais e da

    capacidade produtiva os deixa apreensivos. A expanso da economia medieval, em

    particular a dos centros urbanos, e a ocupao de novos espaos precipita a necessidade

    de existncia de governos centrais mais organizados e fortes. Se a Igreja pouco faz pelo

    desenvolvimento das actividades comerciais, por outro interessa-lhe (e participa

    activamente nisso) que os sistemas monrquicos sejam mais eficientes e capazes na

    administrao e controlo dos respectivos reinos. Mas, a prazo, a eficincia demonstrada

    por algumas monarquias no controlo da sua economia e a dinmica que as novas

    legislaes do aos espaos e cidades em expanso, modificam o tradicional sistema de

    obedincia. Cada vez mais o Estado, atravs do mero exerccio do seu poder, substitui a

    Igreja nas relaes com os governados. Assistimos, em muitos pases, introduo de

  • 14

    novos modelos de governao, sustentados pela elaborao de um quadro legal com

    tendncias mais generalistas e por um corpo de oficiais rgios que passam a controlar o

    normal exerccio do poder central em todas as regies do reino. Modifica-se a velha

    ordem. As esferas de influncia regional que muitas vezes asfixiavam e limitavam o

    poder dos monarcas em sculos anteriores so substitudas por uma nova noo de

    espao governado. O rei governa um regnum, que estende de forma contnua at s

    fronteiras. O Centro assume-se cada vez mais sobre as periferias atravs da Lei, que

    emanada da Cria e movimentada por oficiais e tabelies desses reinos cristos garante

    um controlo do espao e das actividades nele desenvolvidas cada vez mais apertado. Na

    Pennsula Ibrica, os reinos cristos em expanso so um excelente laboratrio para

    estas modificaes. As novas ideias, trazidas para a corte portuguesa por eclesisticos

    licenciados em universidades europeias sero decisivas no desenvolvimento e aplicao

    das polticas centralizadoras de monarcas como Afonso II, Sancho II e Afonso III3.

    O velho sistema medieval tinha grande dificuldade em assistir impassvel e em

    assimilar as novas transformaes que rodeavam o modelo de poder. Conhecemos o

    sculo XIII como o perodo onde o Direito se desenvolveu na Europa medieval. Estava

    em causa um novo conceito de poder, suportado por um quadro legislativo especfico e

    bem construdo. Cada vez mais se tornava difcil a existncia de perspectivas

    diferenciadas sobre os sistemas polticos e a sua governao como acontecera

    3 Sobre este tema vejam-se as obras de VENTURA, Leontina, A nobreza de corte de Afonso III. I., Coimbra,

    dissert. de doutoramento policopiada, apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1992;

    MATTOSO, Jos, Identificao de Um Pas, ensaio sobre as origens de Portugal 1096-1325, vol. II Composio, 5 ed.,

    Lisboa, Editorial Estampa, 1995 e BRANCO, Maria Joo, Poder real e eclesisticos. A evoluo do conceito de soberania

    rgia e a sua relao com a praxis poltica de Sancho I e Afonso II. Vol. I, Tese de doutoramento policopiada, Lisboa,

    Universidade Aberta, 1999, 412-413).

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    anteriormente. No havia lugar para a tolerncia e para a harmonizao de pensamentos

    diferenciados. Assim se passava com a Igreja, onde os pensamentos dissonantes eram

    catalogados como heresias. Assim era com a laicizao do Estado. A definio do Estado

    e dos seus direitos, o novo modelo de organizao poltica e social fazia com que muitos

    fossem forados a escolher entre serem leais ao Estado ou Igreja. A definio dos

    poderes do soberano e o desenvolvimento de modelos tericos que enquadravam uma

    nova realidade poltica foravam naturalmente a essa escolha.

    O retrato da Pennsula Ibrica durante a primeira dinastia portuguesa bem

    vincado pela ameaa constante do poder militar muulmano, o que obrigou a um estado

    de guerra permanente, onde o rei se torna no chefe militar incontestado, coordenador

    mximo da guerra contra um inimigo comum, ao mesmo tempo que lder poltico cada

    vez mais enraizado e determinante na aco poltica dentro do seu territrio. Senhor, por

    direito prprio, do esforo da Reconquista, aco fortalecedora do poder da Coroa, o rei

    portugus, contudo, viveu ao longo de todo o sculo XIII, momentos difceis, motivados

    por contestaes, mais ou menos explicitas, dos grupos nobilirquicos e de outros

    sectores da sociedade portuguesa, que desde o governo de D. Afonso I, se perfilam contra

    a monarquia.

    Quando no ano de 1223, Sancho II, sobe ao trono, esta contestao estava, mais

    do que nunca, activa. Do conjunto de fontes e informaes, ideologicamente bem

    corporizadas, que at ns chegaram, percebe-se a existncia de uma forte crise poltica,

    institucional e social ao longo de todo o seu reinado, resultado de opes mais

    centralizadoras desenvolvidas por seu pai, D. Afonso II e que a incapacidade funcional de

    Sancho II parece acentuar.

  • 16

    Este estudo visa, sobretudo, um conhecimento mais profundo e detalhado da

    dinmica das relaes polticas entre o Centro, o rei, o espao detentor do poder e as

    periferias que o compem, complementam e estimulam. Neste enquadramento interessa-

    nos o comportamento entre essas realidades, por exemplo, entre a nobreza e o rei,

    nomeadamente a tipologia de funes curiais que a primeira desempenhava, juntamente

    com uma sistemtica observao sobre o fenmeno de patrimonializao dos cargos

    administrativos realizado pela aristocracia portuguesa. Como a constituio e afirmao

    do grupo nobilirquico, nos seu expoentes poltico e econmico, se encontra directamente

    com a formao do prprio poder rgio, a Crise que abalou o Pas durante o reinado de D.

    Sancho II certamente se relacionar com alteraes produzidas no quadro das relaes

    entre a nobreza e o rei, e entre este e outras instituies imbudas de poder e que formam

    o conjunto do reino.

    Mas no apenas no processo institucional das relaes entre os nobres e a Coroa

    que se vislumbra a perturbao sistemtica do processo poltico em curso. Com efeito, a

    discordia, que transversalmente afecta a gesto rgia de Sancho II, e que se traduz por um

    assalto da aristocracia, em luta entre si, contra a instituio monrquica, ampliada pela

    contestao desenvolvida por outras estruturas da sociedade portuguesa coeva. Tal

    contestao bem expressa no descontentamento progressivo do clero e nas reclamaes

    por justia, a um rei que parece incapaz de a assegurar, por parte dos representantes das

    estruturas municipais portuguesas.

    So bem evidentes estas queixas e perturbaes no esplio de documentos que o

    reinado de Sancho II produziu, transmissores sintomticos de uma profunda crise poltica,

    institucional e social em que o Pas mergulhou e onde a monarquia se debate.

  • 17

    Eram tempos de ...roubo e malfeitoria..., expresses constantes nos

    documentos que traduzem um estado de agitao e violncia, que acabam por precipitar o

    Pas numa guerra civil, travada entre os partidrios do rei e aqueles que contra a realeza

    se manifestavam, ou melhor, aqueles que se perfilavam contra a centralizao do poder

    levada a cabo pelo rei e sua cria.

    Mas o reinado de D. Sancho II marca, tambm, o predomnio dos cavaleiros

    cristos nas terras alentejanas. O esforo de guerra que, nos reinados anteriores, serviu

    para garantir ao monarca, atravs do alargamento dos seus domnios, um controlo

    razovel das tenses aristocrticas, parece agora no se revelar to eficaz, no sentido de

    debelar um cada vez maior sentimento de revolta contra o poder rgio.

    o quadro destas instabilidades que pretendemos estudar. As suas origens, os

    seus processos evolutivos, o estado e a forma das instituies polticas na transio do

    poder de D. Afonso II para Sancho II e subsequentemente para Afonso III, a aco da

    cria rgia, como rgo fundamental na estratgia da aco do Estado e no controlo da

    sociedade portuguesa de meados do sculo XIII.

    Da guerra nos campos do Alentejo e a tentativa de controlo das passagens

    algarvias, contra um inimigo comum, luta civil que leva deposio do rei,

    pretendemos observar o quadro de tenses e fracturas que caracterizaram este reinado e

    que marcam o Portugal de 1223 a 1248 como um Pas onde ocorre uma grave crise

    poltica. E se a viso interna nos orienta a curiosidade, tambm no podemos deixar de

    fora o contexto internacional e a dinmica de uma Cristandade da qual o reino portugus

    faz parte. A dinmica relacional com as monarquias peninsulares, os conflitos e as

    composies entre este Centro nacional e a Santa S, a observao comportamental dos

  • 18

    diferentes universos polticos, entre os quais Portugal se coloca, a influncia e introduo

    progressiva de novos sistemas de organizao poltica e social, a turbulncia do sistema

    dualista, caracterizado pelo dilogo interminvel entre o modelo cannico e o direito

    civil, herdeiro do sistema romano, so aspectos que nos prendem e que se tornam vitais e

    funcionais na percepo do conflito funcional do rei. Bonus rex, rex inutilis, duas faces,

    cada uma delas possvel de ser aplicada aos soberanos, cada uma delas observvel nos

    documentos e nas narrativas que impregnam este reinado. Cada uma delas disputada por

    este rei, um dos mais obscuros da nossa histria, mas um dos que levou mais longe o

    estandarte do reino e tambm o nico a ser vtima de um conceito de poder superior.

    Como mais alguns reis do seu tempo, e at imperadores, Sancho II de Portugal travou

    conhecimento de muito perto com a teoria da superioridade papal sobre as administraes

    civis. Soube, de facto, o significado do conceito de Plenitudo Potestatis. Rex inutilis?

    Veremos.

  • 1

    D. SANCHO II DE PORTUGAL

    um conspecto historiogrfico

    Antiguamente foi costume fazerem memoria das cousas que se

    fazio, assi erradas, como dos valentes & nobres feytos. Dos erros

    porque se delles soubessem guardar: & dos valentes & nobres feytos

    aos bos fezessem cobia auer pera as semelhantes cousas fazerem.

    (Coronica do Condestabre)

  • 20

  • 21

    1.1

    DO CONSPECTO

    Qual a memria que nos resta de D. Sancho II, o quarto rei de Portugal? Da sua

    vida, dos seus feitos, da sua governao, das suas desditas, do seu fim? Existe uma

    necessidade imperiosa: a da reconstituio, a mais rigorosa possvel, daqueles tempos e

    do que neles sucedeu. E se no conseguimos apreender a vida, tal como ela era, as suas

    palpitaes, as suas tragdias, o seu quotidiano pleno, cheio de aces e sensaes,

    podemos pelo menos procurar compreender e explicar alguns comportamentos e atitudes

    do colectivo portugus durante grande parte da centria de Duzentos. E podemos faz-lo

    com os textos e fontes escritas, mais ou menos coevas, e com as interpretaes que as

    vrias dcadas de interpretao e sntese histrica foram capazes de produzir sobre aquele

    rei e as variadas peripcias do seu reinado. E estas interpretaes, por vezes to

    diferentes, permitem-nos assentar, desde j num primeiro problema em torno deste

    reinado: o problema historiogrfico.

    A questo fazer o ponto da situao sobre os conhecimentos existentes e fixados

    em torno daquele monarca. Como que ao longo do processo historiogrfico portugus,

    se foi edificando e transmitindo o conhecimento e a memria que hoje possumos sobre

    D. Sancho II? Do que nos resta das fontes, da historiografia que as abordou e sobre elas

    estruturou informao, da forma como o ensino da histria, nas suas vrias pocas, tratou

    este rei, da imagem formada clara ou distorcida e propagandeada, destinada muitas

    vezes a cumprir objectivos actuais e que pouco tinham a ver com a rigorosa reconstruo

  • 22

    da histria, das diferentes obras e autores que sobre o rei capelo se pronunciaram, de tudo

    isto queremos falar, e com tudo isto pretendemos marcar um momento o ponto actual

    sobre o estado da nao entre os anos de 1223 e 1248.

    Do que se escreveu sobre aquele reinado tudo deve ser percorrido com rigor e

    esprito crtico, procurando compreender essas obras luz dos contextos em que foram

    criadas. A compreenso dos gneros, dos pblicos-alvo, dos destinos sociais e culturais

    premeditados, da sua integrao em ideologias predominantes ou minoritrias. A

    governao de D. Sancho II e todas as suas vicissitudes foram encaradas de diversas

    maneiras, sob vrias abordagens, todas elas criadoras de uma imagem determinada do rei,

    que ocupa, hoje, no nosso imaginrio colectivo, um lugar especfico. Apesar do carcter

    fragmentrio e esparso em que muitos desses textos se baseiam, da insuficincia

    qualitativa e quantitativa de muitas fontes, de orientaes de pesquisa desfocadas ou

    insuficientes, da no existncia de uma regesta documental daquele perodo tratada

    criticamente, o certo que uma imagem se reteve na histria dos portugueses e dos seus

    reis, e que no caso de D. Sancho II no muito lisonjeira. A inutilidade governativa deste

    monarca e a sua aflitiva incapacidade para dirigir, a sua inexistncia como lder, so

    como flashes constantes na historiografia portuguesa dos sculos XIX e XX. A tese do

    rex inutilis vingou e, se nalguns casos, poucos, mais recentes, o estudo da aco daquele

    monarca foi integrada em contextos mais abrangentes, associados a uma ideia de Crise,

    com carcter mais vasto e profundo e amarrada a um complexo cronolgico mais dilatado

    aos dois reinados anteriores, a mensagem predominante ainda associa aquele rei a um

    perodo negro e infeliz da monarquia portuguesa, dominado pelo fantasma da

    incapacidade do Estado em se afirmar sobre o tecido vivo que o compe.

  • 23

    Em 1209, na cidade de Coimbra, nasce o primeiro1 filho de D. Afonso II e de D.

    Urraca2. Baptizado com o nome de seu av, o infante Sancho ser um dos monarcas mais

    infelizes da histria portuguesa3. Mal preparado para a governao de um pas ainda

    em formao a sua subida ao trono ocorre, com pouco mais de treze anos4, a 25 de Maro

    de 1223, data do falecimento de seu pai5 e as circunstncias no podiam ser piores.

    Naturalmente a estrutura curial do final do reinado de D. Afonso II parece ter-se

    mantido em funes, pelo menos durante algum tempo6. Com base nos documentos7 que

    1 So, tambm, filhos deste casamento os infantes Afonso, futuro conde de Bolonha e rei de Portugal, a infanta

    D. Leonor e o infante D. Fernando de Serpa. neto, pelo lado materno do rei de Castela, Afonso VIII e de

    Leonor de Inglaterra.

    2 Infanta de Castela. Filha do grande Afonso VIII, o heri cristo de Navas de Tolosa.

    3 Sobre D. Sancho II de Portugal aguarda-se para breve, por Hermenegildo Fernandes, uma biografia detalhada.

    4 Sobre a idade em que D. Sancho ter subido ao trono existem vrias interpretaes... Em relao idade de

    20 anos Montalvo Machado vem corroborar a tese de Fr. Antnio Brando (Cf. MACHADO, J. T.

    Montalvo, Causas de Morte dos Reis Portugueses, Braga, Liv. Pax Editora, 1974, pp. 48-51).

    5 A rainha D. Urraca tinha falecido trs anos antes, em 3 de Novembro de 1220, tal como consta do Livro de

    bitos de St Cruz de Coimbra: ...Tertio Nonas Novembris obiit D. Urraca Portugalensis Regina filia Donni Alfonso Regis

    Castellae. Era MCC.LVIII; e como descreve BRANDO, Fr. Antnio em Monarchia Lusitana, IV Parte, Liv. 13,

    c. 18 e 27; ibidem Escritura XV, no Apndice.

    6 Bernardo de S Nogueira j demonstrou que, a nvel local, em 1223, a organizao notarial criada a partir de

    1212-1214 j s subsistia em Braga, Guimares e Coimbra. A novidade do Primeiro Tabelionado parecia ter

    alguma dificuldade para se impr e o reinado de Sancho II ir demonstrar que a articulao entre os nveis

    central e local da administrao rgia se desorganizou por completo (Cf., S-NOGUEIRA, Bernardo de,

    Tabelionado e Instrumento Pblico em Portugal. Gnese e Implantao, 3 vols., Dissertao de doutoramento em Histria

    na rea de especializao de Paleografia e Diplomtica apresentada Faculdade de Letras da Universidade de

    Lisboa, Lisboa, Univ. de Lisboa, 1996).

  • 24

    nos chegaram, da sua chancelaria, de instituies eclesisticas, de casas nobilirquicas, de

    concelhos municipais ou de simples particulares; das bulas pontifcias de Gregrio IX,

    Celestino II e Inocncio IV ou de fontes narrativas posteriores, ideologicamente marcadas

    e contaminadas, procurmos reconstituir alguns dos aspectos fundamentais desse reinado.

    No seu conjunto o volume de informao disponvel sobre o perodo de 1223 aos

    incios de 1248 apresenta-se disperso por um conjunto de fontes documentais e

    narrativas, que foram apreciadas e utilizadas pela historiografia portuguesa, quer a do

    Antigo Regime, quer a mais prxima dos nossos tempos. De caractersticas bem distintas,

    com forte vnculo ao universo cronstico ou mais relacionadas com processos

    sistemticos de crtica e utilizao de fontes documentais, cabe s histrias gerais sobre

    Portugal, neste trabalho, a primeira palavra sobre os acontecimentos em torno do reinado

    de D. Sancho II.

    Um outro aspecto que gostaramos de salientar na elaborao da primeira parte

    deste trabalho relaciona-se com a forma como apresentamos as vrias posies

    historiogrficas sobre o reinado de Sancho II. Numa primeira abordagem, pareceu-nos

    que essa caracterizao pudesse ser feita por modelos historiogrficos, onde as vrias

    vises sobre Sancho II pudessem ser observadas com maior coerncia. E, continua a

    parecer-nos uma opo vlida. Contudo, optmos por desenvolver um conspecto

    historiogrfico ordenado por critrios cronolgicos, desenvolvendo para cada um dos

    autores que nos pareceram mais pertinentes, as posies tomadas em relao matria

    disponvel sobre a forma como a estrutura central e os subsistemas perifricos se 7 As referncias escassez de documentos para o reinado de D. Sancho II, so uma constante na historiografia

    portuguesa que estudou, ou abordou, este reinado. So poucos os autores, que apesar dessa exiguidade, referem

    algumas capacidades governativas ao monarca. Veja-se, por exemplo: AZEVEDO, Lus Gonzaga de, Histria de

    Portugal. VI, Lisboa, 1944, p. 1.

  • 25

    relacionavam entre 1223 e 1245. Pensamos que este mtodo, alm de no desvirtuar as

    linhas metodolgicas de cada uma das Histrias observadas, nem de as retirar dos

    complexos historiogrficos e dos estmulos externos onde e com que foram produzidas,

    nos permitia observar o seu carcter evolutivo8, e nesse aspecto percebermos, tambm, a

    evoluo historiogrfica das representaes sobre Sancho II.

    A maior parte das obras consultadas so obras de continuao, compilaes ou

    meros resumos de outras, que as antecederam, e que pela sua forma e objectivos das

    obras de formao erudita. A opo por integrar, ambos os modelos, num processo de

    observao cronolgico, tambm possibilita, pensamos, a percepo dos processos que

    levaram sua elaborao. Afinal, repetida at exausto, ou observada com os mtodos

    crticos disponveis no momento, a construo da imagem de Sancho II corresponde a

    objectivos bem determinados. Se, partida, possa parecer relevante a opo por aquelas

    obras que marcaram viragens historiogrficas, ou seja, neste caso concreto, aqueles

    trabalhos que trouxeram novidades ao estudo da histria do reinado de Sancho II,

    tambm nos pareceu interessante observarmos o acumular dos processos repetitivos

    reproduzidos, cronologicamente, em muitas histrias com carcter eminentemente

    divulgativo. Estas obras que no utilizam como suporte investigaes originais, antes

    resultam do trabalho de recompilao, de sntese de memrias anteriores, ou de reescrita,

    sem sentido crtico, pareceram-nos ocupar um lugar prprio no que diz respeito forma

    como a memria deste rei, o que foi deposto, foi construda e depois, ensinada e

    divulgada, desde os incios do sculo XIX at aos nossos dias. E, por isso que ao lado

    de obras de perfil marcadamente erudito e pautadas pela dinmica das fontes e da sua

    8 As nicas excepes so os dois autores estrangeiros que resolvemos incorporar e que saem da listagem

    cronolgica original. Este aspecto, contudo, no os retira da sua cronologia nem dos modelos a que pertencem.

  • 26

    interminvel crtica, desfilam algumas dessas obras repetitivas e constantemente

    reescritas com as mesmas passagens. Se, por um lado, garantimos a apresentao de um

    estado da questo historiogrfico, que evoluiu cronologicamente, por outro, associamos-

    lhe outra realidade, tambm inegavelmente de sentido cronolgico, e que est

    representada por esta historiografia divulgativa.

  • 27

    1.2

    AS HISTRIAS GERAIS

    Todos os compndios de histria geral de Portugal apresentam um captulo, de

    dimenso variada, descritivo da figura e dos feitos de D. Sancho II. Estes primeiros

    trabalhos desenvolvem essencialmente quadros de observao influenciados pela tradio

    cronstica e onde o tratamento de fontes documentais quase ignorado9.

    So histrias que narram os sucessos militares, civis, eclesisticos, etc., e limitam-

    se a isso mesmo, a produzir narrativas sobre acontecimentos de diversa ndole. So obras

    que na maior parte das vezes tm perante si objectivos de ndole pedaggica e

    divulgativa. No fundo particularizam uma escrita muito prpria, virada para as massas

    que pretendem educar, e onde os feitos, os acontecimentos, so narrados, muitas vezes

    de forma romanceada, e sem recurso utilizao de mtodos crticos ou de verificao do

    que comentam.

    O tratamento dado aos acontecimentos do reinado de Sancho II , por isso

    superficial, e geralmente repetitivo de modelos anteriores onde, as personagens, se

    apresentam sobre a forma de esteretipos, sendo avaliados sempre da mesma maneira e

    com o sentido de produzir um sentimento de continuidade histrica, pouco

    9 Destas histrias gerais destacamos: Francisco Duarte de Almeida e ARAJO, Histria de Portugal desde os

    tempos primitivos at fundao da monarquia e desta poca at hoje. Lisboa, falta ed., 1852; Lus Francisco

    MIDOSI, Compndio de Histria de Portugal para instruo da moidade. Lisboa, falta ed., 1843 a 1878 (17

    edies); Antnio Jos VIALE, Novo eptome da Histria de Portugal para uso da real escola primria estabelecida por sua

    majestade el-rei no Palcio de Mafra. Lisboa, 1856 a 1895 (4 edies); Arsnio Augusto Torres de

    MASCARENHAS, Compndio de Histria de Portugal. Aprovado oficialmente para uso dos alunos dos Liceus.

    Lisboa (com 8 edies at 1820).

  • 28

    problematizada, e centrada apenas na evoluo da realidade interna. O modelo do rei

    incapaz, porque frgil, doente, pouco enrgico, influencivel por um conjunto de

    personagens sinistras, que tantas vezes referido na cronstica, vale como um desses

    modelos simplificados.

    A problemtica das fontes geralmente subalternizada, quando no esquecida,

    por estes divulgadores, que deixam de fora outros aspectos da histria, mais comum a

    verses eruditas, como o estudo da genealogia, o processo de investigao, ou a aplicao

    da hermenutica. Neste sentido, estas histrias gerais, de fundo divulgativo, so

    especializadas tambm em aprofundar os silncios sobre determinados factos,

    verdadeiros ou lendrios, e sobre figuras cujo percurso apresenta algumas dificuldades de

    apresentao. No as acusando individualmente todas esta obras padecem de um

    conjunto de omisses, claramente assumidas, em funo do perodo em que so

    produzidas e do pblico a que se destinam e, no caso de Sancho II, colocam o leitor

    perante a imagem do anti-heri, do rei que a nao no pode homenagear, mas que se

    apresenta de forma longnqua e cujo fim redentor da nao10.

    As histrias gerais sobre Portugal conhecem outro perodo de grande

    desenvolvimento com o Estado Novo, onde a importncia da coeso nacional dirigida

    para um propsito muito bem definido, produz modelos patriticos e hericos, onde

    figuras como a de Sancho II encontram pouca simpatia. Nem mesmo a vertente, assumida

    por historiadores como Antnio Brando e Alexandre Herculano, de que este rei

    responsvel por um dos momentos de maior expanso territorial no reino, utilizada para

    10 Sobre estas obras de carcter popular e divulgativo veja-se o que escreve Srgio Campos Matos (Cf.,

    MATOS, Srgio Campos, Historiografia e memria nacional no Portugal do sculo XIX (1846-1898), Lisboa, Edies

    Colibri, 1998, pp. 15-54).

  • 29

    valorizar a sua imagem. A posio tradicional assumida por muitos destes historiadores,

    sobre a participao militar deste rei, a da sua desvalorizao, j que a verso oficial

    assenta a dinmica da conquista nas campanhas dirigidas pelos mestres das ordens

    militares.

  • 30

  • 31

    1.2.1

    Fr. Antnio Brando (1632)

    Quarta parte da Monarchia Lusitana que conthem a Historia do reyno de Portugal, desde o tempo delRey

    D. Sancho I, at o reynado delRey D. Affonso III

    Lisboa, ed. por Pedro Crasbeek, 1632

    Escrita h trezentos e setenta e um anos a Quarta Parte da Monarquia

    Lusitana, marca o nascimento da historiografia portuguesa. Apesar de aparecer em jeito

    de crnica caracteriza-se j por apresentar um notvel esprito crtico em relao s

    informaes que reproduz. No caso particular do reinado que nos interessa comum

    produzir juzos de valor sobre a forma que as crnicas antigas do reino trataram a

    memria daquele rei, apontando incoerncias, contradies, impossibilidades e mentiras,

    chegando mesmo a corrigir, utilizando processos comparativos, ou verificando se so

    verdadeiros ou falsos, documentos notariais, bulas papais e instrumentos particulares. E,

    neste aspecto, est uma das novidades, a utilizao crtica de fontes documentais ao lado

    da interpretao rigorosa e desconfiada das informaes que crnicas e livros de

    linhagens fizeram chegar ao sculo XVII, altura em que o distinto cisterciense escreveu.

    comum ao referir-se a cdices existentes na Torre do Tombo reclamar da sua

    veracidade, apontando-os como cpias e indicando quais os erros contidos11. Entre

    11 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Monarquia Lusitana, Livro 14, c. 8.

  • 32

    muitos exemplos que podemos dar da sua percia e da sua prudncia podemos apontar o

    que dizia sobre os feitos militares do famoso D. Paio Peres Correia, um dos maiores

    capites do tempo de Sancho II. Afirmava que queria seguir o que os antigos tinham

    escrito, mas adverte os seus leitores que ir discordar de muitas informaes que aqueles

    apresentam, pois os tempos so outros12. Exemplo desta interessante postura crtica pode

    ser o que afirma sobre a veracidade do episdio de Trancoso, quando Sancho II se

    prepara para abandonar o pas. Considera verdadeiras as reclamaes de lealdade

    dalguns cavaleiros para com o seu senhor. Diz que no cr em tudo, nem dvida de

    tudo13. O escrpulo pela verdade parece predominar neste autor.

    , o ltimo dos cronistas, e o primeiro dos historiadores portugueses. E, talvez,

    por este facto, seja aprecivel, de todas as obras que escreveu, observar como no Livro IV

    recupera a memria de Sancho II, afirmando peremptoriamente de que este foi um rei

    injustiado e muitas das estrias que se contavam no faziam jus aos feitos daquele

    monarca.

    Duarte Nunes do Leo, Rui de Pina, Ferno Lopes, todos referiam, at exausto,

    as poucas qualidades de soberano que D. Sancho II apresentava. Era para eles um ser

    intil, incapaz e incapaz. Prejudicial para o reino e para os povos que governava e

    responsvel por todas as violncias e crimes, grandes e pequenos, que assolavam o reino.

    Todas aquelas crnicas seguiam um caminho pr-determinado: o da deposio do rei.

    Todos os assuntos, todos os acontecimentos, toda a lgica de construo da narrativa se

    12 Idem, ibidem, Livro 14, c. 19.

    13 Idem, ibidem, Livro 14, c. 29.

  • 33

    dirigia para a necessidade que o pas tinha de se ver livre daquele monarca, marcando-o

    como um soberano desprezvel, que nem aos mouros sabia fazer a guerra.

    E, bastou um documento exarado nos gabinetes da Santa S, por um papa da

    Cristandade, para a infelicidade de Sancho ser completa e ficar marcado, definitivamente,

    para a histria. Nenhuma crnica se atreve a elogiar, mesmo depois da sua morte, as suas

    virtudes, os seus feitos, as suas aces em prol da paz e do bem comum; nenhuma se

    esforava por diminuir algum dos vergonhosos eptetos que de todo o lado surgiam e

    tombavam sobre a memria do rei. Queria-se odiosa para o pas, como exemplo do que

    no deve ser um governante.

    E Brando? O que achava aquele monge cisterciense? A viso sob o reinado de

    Sancho II bastante crtica. Crtica, para j, em relao aos que narravam vituperando o

    rei, mas crtica tambm, porque apesar de valorizar os feitos do soberano que lhe

    pareciam ser indiscutveis e que estavam sustentados em documentos bastante

    verosmeis, discutia e criticava algumas opes de governo menos felizes por parte do

    monarca. No entanto, e apesar desta tentativa de distanciamento sobre as provas,

    caracterstica de uma forte conscincia historiogrfica, Antnio Brando no deixa de

    apontar a m conscincia dos que para valorizarem, e legitimarem, a subida ao trono de

    Afonso III, distorceram a verdade e enganaram a razo ao humilharem com todos os

    defeitos o prncipe deposto.

    Apesar de escrita no sculo XVII esta narrativa do reinado de Sancho II no

    passou despercebida historiografia romntica do sculo XIX e, Alexandre Herculano

    recupera muitas das afirmaes daquele autor seiscentista, como verdicas e bem

    fundamentadas. O recurso confrontao com os documentos, embora no to

  • 34

    desenvolvida como no tempo de Herculano, no deixava de ser apreciada por este

    historiador que no desprezou muitas das informaes sugeridas por Brando.

    Parece ser Brando o primeiro a sugerir alguns dos problemas que mais tarde iro

    tornar-se incontornveis, de uma forma ou de outra, para todos os que tentaram estudar

    com maior profundidade aquele reinado. E o primeiro, como no podia deixar de ser, a

    apresentao da menoridade do rei na subida ao trono. A posio de Antnio Brando

    no +e muito clara, j que ao longo do seu trabalho entra em contradio em relao

    idade que o prncipe teria e que Herculano perspicazmente criticou14. Se a data de

    casamento de Afonso II parece no apresentar controvrsia. Todos os historiadores

    depois de Herculano a aceitam como verdadeira, a afirmao de que o jovem rei teria j

    vinte anos em 1223 muito mais difcil de aceitar e, provavelmente, um erro de leitura

    sobre a Era em que o documento foi produzido (Brando, trocou a Era de 1251 pela de

    1241) e que primeira vista lhe parecia argumento suficiente para apresentar o monarca

    como adulto quando subiu ao trono.

    O cognome do rei parece ser outra preocupao de Fr. Antnio Brando, que

    defendia a utilizao daquela pea de vesturio por parte do rei como uma espcie de

    pagamento de promessa por causa de enfermidades que teria tido enquanto criana.

    Corroborava esta afirmao com a idade adulta do rei, os 20 anos, altura em que o

    monarca poderia vestir o hbito dos monges de S. Francisco, j que na sua infncia esta

    ordem menorita ainda no se tinha implantado na terra portuguesa15.

    14 Cf., HERCULANO, Alexandre, Histria de PortugalII, p. 319.

    15 Como mais frente veremos Alexandre Herculano no aceitava que o epteto do rei lhe tivesse sido atribudo

    enquanto criana, mas sim na idade adulta, e por causa da atraco e interesse que tinha por aqueles monjes

    mendicantes (Cf., HERCULANO, Alexandre, ibidem, p. 241).

  • 35

    A concrdia com D. Estvo Soares da Silva e com as suas trs tias so tambm

    futuros clssicos tratados pela pena do cisterciense. As causas e as disposies de ambas

    as concordatas, bem como a sua existncia, no so postas em causa por Brando, embora

    desconfie que os textos chegados at ele, e que perduraram, muito dificilmente

    corresponderiam, clusula por clusula, ao esprito dos dois textos assinados naquele ano

    de 122316.

    Outra dimenso aberta pela obra de Antnio Brando sobre as incertezas em torno

    de Sancho II a da participao do monarca nas empresas militares contra o Islo.

    Alicerado por bulas de cruzada e de incentivo despachadas pelos papas para terra

    portuguesa e destinadas a dinamizar no rei o esprito da investida contra as tropas de

    Mafoma, alm de citar outros autores que reafirmam essas existncias, Brando valoriza

    a participao do rei portugus que, segundo ele, estaria j em 1225 em plena campanha

    contra aquelas foras inimigas. A crtica a Brando no aceita alguma documentao por

    aquele citada, como verdadeira. Muitos consideram que documentos referidos como

    existentes na Torre do Tombo, mas nunca lidos pelo cisterciense, seriam de reinados

    anteriores e teriam sido confundidos com apelos guerra e com descries sobre a

    participao de outros reis portugueses na guerra contra os Sarracenos, como Afonso

    Henriques ou Sancho I.

    E, sob o ponto de vista militar, Antnio Brando que, pela primeira vez na

    historiografia portuguesa, introduz a problemtica da conquista de Elvas, directamente

    pelo rei de Portugal e da conquista de outras praas-fortes bem no interior do limes 16 Tambm aqui Herculano levanta algumas questes e refora a desconfiana de Fr. Antnio Brando ao

    referir que a importncia daquelas duas composies no deveria ter passado despercebida hierarquia

    eclesistica e que, pelo menos, deveriam ter sido referidas em bulas de confirmao (Cf., HERCULANO,

    Alexandre, ibidem, pp. 171, 321 e 322).

  • 36

    islmico do Gharb. Achava Brando que a conquista se reportava ao ano de 1226, embora

    mais tarde as fontes viessem a confirmar antes a data de 1230, quase na mesma altura em

    que a fortaleza de Mrida cai nas mos dos cristos.

    Foi, Alexandre Herculano, quem mais tarde deu algum sentido disparidade de

    informao entre as crnicas portuguesas e as estrangeiras17 acerca das datas em que

    Elvas caiu nas mos dos guerreiros portugueses. A cidade teria sido tomada em 1226

    numa primeira investida mas o contingente que a conquistou no a conseguiu manter, ou

    ento, optou por destruir os seus muros e infra-estruturas mais importantes e depois

    abandonou-a. A ameaa crist de novo assalto fez com que os seus habitantes e respectiva

    guarnio fossem forados a abandon-la definitivamente. desta forma que as foras de

    Sancho II ocupam esta praa em 1230.

    Inevitvel, incontornvel, e sem qualquer espcie de dvida, encarado como um

    problema importante est o polmico casamento de D. Sancho II com D. Mcia Lopes de

    Haro18. Citando A. de Magalhes Basto19 no comentrio crtico que faz quele episdio,

    os principais argumentos de Brando resumir-se-iam da seguinte forma:

    17 Sobretudo as narrativas de Lucas de Tuy e D. Rodrigo Ximenes de Rada

    18 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Monarquia Lusitana, Livro 14, c. 31.

    19 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Crnicas de D. Sancho II e D. Afonso III. Intr. de Artur Magalhes de Basto,

    Porto, Livraria Civilizao, 1945, p. LXXXIX. Alexandre Herculano na sua perspectiva crtica utiliza os cinco

    ponto do autor da Monarquia Lusitana para apresentar argumentos que, pelo menos, coloquem a dvida sobre

    a hiptese de o casamento ter existido. Acaba mesmo por contribuir para invalidar a argumentao de Brando

    referindo dois documentos provenientes de arquivos espanhis e que provavam a existncia do casamento e

    servia-se das descries do Nobilirio para provar que o rapto da rainha tinha sido realizado.

  • 37

    1- Conhecendo ele, Brando, escrituras de doao de quasi todos os anos

    do reinado de Sancho, em nenhuma aparece nomeada D. Mcia, ou

    qualquer outra, como mulher do rei; mas a este respeito adverte: -

    Poder haver alguma (escritura) que eu no visse em que se lhe d este

    ttulo, mas dificultoso, porque vi muitas.

    2- As bulas que h para el-rei no tocam cousa alguma em seu casamento.

    3- No fala do casamento o arcebispo D. Rodrigo Ximenes, tendo, alis,

    acabado a sua Histria em 1243.

    4- Nem tampouco de tal casamento faz cargo a Sancho II o Papa Inocncio

    IV na bula de deposio, de 24 de Julho de 1245, na qual, no entanto, este

    Pontifice aponta todos os defeitos e aces indecentes do rei.

    5- No prova o casamento a escritura publicada por Gudiel, celebrada em

    Castela, no ano de 1257, e na qual D. Mcia se nomeia rainha, porque

    uma cousa ter-se ela por rainha, e nomear-se por tal () outra s-lo

    de feito.

    Neste contexto, de que no teria havido casamento, Brando coloca a hiptese de

    D. Mcia ter sido chamada a Portugal com esse engodo, ou eventual vontade do rei. No

    sendo esposa de D. Sancho II a tradio do seu rapto e priso no castelo de Ourm no

  • 38

    colocava grandes problemas a Fr. Antnio Brando. No estando casada o ser arrancada

    fora ao rei de Portugal no parecia to dramtico, como se o fosse.

    Um dos problemas que o conde de Bolonha teria de enfrentar ao desembarcar em

    Portugal, alm da hoste de guerra do seu irmo, seria o da aceitao da sua autoridade no

    reino. Fr. Antnio Brando acompanha algumas das narrativas e delas retira a ideia de

    que um conjunto aprecivel de terras e lugares do reino se ops entrada de D. Afonso,

    como curador da terra portuguesa. Desses exemplos de lealdade pe em destaque a

    resistncia de vilas como bidos20, Celorico e Coimbra, respeitando desta forma o

    quadro da tradio cronstica que refere para esses locais, em especial para os dois

    ltimos, momentos picos de resistncia ao vitorioso exrcito de Afonso, conde de

    Bolonha. No deixa, no entanto, de referir, por comparao aqueles que muito cedo

    traram o rei legtimo, como as aces vis dos familiares de Soeiro Bezerra ou a traio

    do alcaide de Leiria, e cuja descrio encontrou no Nobilirio do conde D. Pedro de

    Barcelos21.

    Outro aspecto, a que recorrentemente, a historiografia portuguesa volta, quando

    aborda o reinado de Sancho II, o que diz respeito s notcias de agravos e desmandos

    que o rei de Portugal, por intermdio dos seus oficiais e validos, fazia s liberdades

    20 Utiliza para se referir ao cerco de bidos, uma carta retirada da chancelaria de Afonso III, data de 1252 e

    integrada no mao dos forais da Torre do Tombo.

    21 Alexandre Herculano pe srias reservas se Fr. Antnio Brando ter, de facto, encontrado referncias

    histria da defesa de Coimbra no Nobilirio. O primeiro a referi-la Rui de Pina, na sua Crnica de D. Sancho

    II (Cf., Crnica de D. Sancho II, Lisboa, 1728, c. II), recuperando essa informao, no dizer do autor oitocentista,

    talvez, das famosas crnicas perdidas de Ferno Lopes. Alis, o Nobilirio do conde D. Pedro indica que

    Coimbra nunca ter sido cercada, j que as foras do conde de Bolonha no se teriam aproximado daquela

    cidade, que poca, deveria estar bem guarnecida de defensores (Cf., Nobilirio, V, p. 73, nota 1).

  • 39

    eclesisticas. Como muitas outras, tambm estas informaes j encontram lugar na

    narrativa de Antnio Brando. Contudo, a sua perspectiva volta-se para o facto de os

    desmandos de que a Igreja se queixava serem perpetrados por elementos ligados coroa,

    mas sem conhecimento ou autorizao do rei. As reaces da hierarquia eclesistica so

    abordadas e indicadas as vrias bulas papais com que o clero admoestava o rei portugus,

    procurando com isso lev-lo a tomar uma atitude mais firme sobre os seus homens.

    Responde o monge de Cister com o relato de obras pias, fundaes de casas

    religiosas e generosas dotaes fundirias a ordens militares, bispados e abadias, um

    pouco por todo o pas, o que contrastava abundantemente com as informaes suspiradas

    pelas crnicas do passado, que davam conta apenas da incapacidade e insensibilidade do

    rei para com as coisas do clero. Por exemplo, podemos citar: Mando se d para as

    obras dos frades pregadores de Santarm trezentos maravedis e se reparta com eles da

    minha madeira de Lisboa e de outros lugares meus, a que lhes for necessria22. Alis,

    Franciscanos e Dominicanos foram largamente apoiados e financiados por D. Sancho, e

    Brando no se cansa de dar exemplos dessa intensa ligao entre o soberano e aquelas

    ordens.

    Vastas pginas tratam da questo da deposio do rei em 1245, e como a ela

    recorreremos incessantemente, aqui deixamos o que nos parecem ser as principais

    opinies de Fr. Antnio Brando:

    No h dvida que foram mui urgentes as causas que obrigaram ao

    Sumo Pontfice privar a el-rei D. Sancho do governo do reino, e a

    22 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Crnicas de D. Sancho II e D. Afonso III, p. 82.

  • 40

    mandar em seu lugar o infante D. Afonso. Mal se pode desculpar el-

    rei D. Sancho, nem ns o queremos livrar, nem ainda podemos, pois

    anda incerta no corpo do direito cannico a bula de sua deposio

    em que vem apontadas as cousas que moveram ao papa a fazer um

    extremo to grande, como foi excluir a um rei do governo e

    administrao de seu reino.23

    Resume, desta forma, o facto incontestvel de que o rei foi deposto. Cita as

    diversas queixas formuladas junto da Santa S e a inevitabilidade poltica dessa mesma

    deposio. Curiosamente cita dois governantes de grande poder na Europa daquele

    tempo, e que estaro para sempre ligados, de maneiras diferentes, deposio do seu

    congnere portugus. So eles, Frederico II, o imperador deposto no Conclio de Lyon,

    uma semana antes de D. Sancho e Lus IX, rei de Frana, patrono de Afonso de Bolonha

    e protector do papado. Voltaremos a falar deles.

    L esto, em Lyon, em plena actividade conciliar, os prelados portugueses mais

    envolvidos do que nunca na conjura para deporem o seu rei. Nomeia-os a todos: Joo, o

    arcebispo de braga, Pedro, o bispo do Porto, Tibrcio, bispo de Coimbra e junta-lhes

    laicos. Estes so nobres e vem de Portugal, supostamente como embaixadores nomeados

    pelo rei, atitude que Brando considera cnica. So eles Rui Gomes de Briteiros, infano

    e mais tarde rico-homem do rei Afonso III e Gomes Viegas [Portocarreiro].

    Importante para Brando o entendimento que o Bolonhs estabelece com

    aqueles prelados portugueses no corao do reino francs. Em Paris, e sob os auspcios

    23 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Crnicas de D. Sancho II e D. Afonso III, p. 90.

  • 41

    do rei de Frana, Afonso de Bolonha, jura perante diversas testemunhas e pelos

    Evangelhos, o seguinte, que Brando no resistiu em transcrever:

    Eu, D. Afonso, conde de Bolonha, filho de D. Afonso de ilustre

    memria, rei de Portugal, prometo e juro sobre estes Santos

    Evangelhos de Deus, que por qualquer ttulo que alcanar o reino de

    Portugal, guardarei e farei guardar a todas as comunidades, conselhos,

    cavaleiros e aos povos, aos religiosos e clero do dito reino todos os

    bons costumes e foros escritos e no escritos que tiveram em tempo

    de meu av e de meu bisav; e farei que se tirem todos os maus

    costumes e abusos introduzidos por qualquer ocasio ou por

    qualquer pessoa, em tempo de meu pai e irmo, e particularmente,

    quando se cometer homicdio, que se no leve dinheiro aos vizinhos

    do morto, mormente quando manifesto quem foi o matador24.

    O resto a guerra. Sancho II tenta por todos os meios impedir que seu irmo

    ocupe o governo do reino. Afonso, desembarca em Lisboa em 1245, nomeado curador do

    reino e pouco tempo depois, a pedido do rei de Portugal, uma hoste de cavaleiros

    castelhanos, s ordens do futuro Afonso X, atravessa as fronteiras do Ca e juntam-se s

    foras de Sancho.

    Enquanto o conde de Bolonha andava em Portugal, vencendo na

    guerra as dificuldades que ocorriam e tratando de dar satisfao na 24 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Crnicas de D. Sancho II e D. Afonso III , pp. 96-97.

  • 42

    paz s esperanas que dele se tinham, el-rei D. Sancho, em Toledo,

    livre j dos encargos do reino e bem desenganado do pouco caso que

    se pode fazer das cousas da vida, passava o tempo com quietao e

    repouso25.

    O rei preparava-se para morrer naquela cidade e sua morte, Antnio Brando,

    escreve sobre o ltimo enigma daquele reinado, os dois testamentos e sobre o que eles

    contm, e mais uma vez, o seu esprito arguto detecta inconsistncias e incoerncias, que

    ho-de acompanhar a historiografia portuguesa.

    s vezes cronista, armado com a pena do patriotismo, faz descries perturbantes

    das qualidades de um rei que foi deposto; outras vezes, sereno, frio, isento, abandona com

    desprezo as antigas crnicas, monumentos incompletos e mergulha nos pergaminhos dos

    mosteiros, das igrejas, das chancelarias rgias e, neles descobre, outras verdades sobre

    aquele rei, sobre Sancho II que morreu em Toledo no princpio do ano de 1248. Do que

    leu e depois escreveu, no mais a histria portuguesa se esqueceu, e da vida, feitos e

    desventuras daquele rei, nenhuma histria se pode fazer sem parar nestas pginas que, na

    primeira metade do sculo XVII um monge de Cister, mandou imprimir.

    25 Cf., BRANDO, Fr. Antnio, Crnicas de D. Sancho II e D. Afonso III, p. 117.

  • 43

    1.2.2

    Alexandre Herculano (1847)

    Histria de Portugal. Desde o comeo da Monarquia at ao reinado de D. Afonso III

    edio revista e anotada por Jos Mattoso, 4 vols., Lisboa, 1980-198426

    Ainda hoje a Histria de Portugal de Alexandre Herculano pode ser considerada

    como o grande monumento historiogrfico portugus do sculo XIX27. Profundamente

    influenciado por uma exigente e moderna historiografia europeia28 estava convicto de que

    a histria s podia ser feita a partir de documentos autnticos. A necessidade de uma

    grande exigncia crtica ao nvel das fontes, requisito fundamental para uma verdadeira

    reconstruo dos acontecimentos, levava-o a demarcar-se dos modelos historiogrficos

    26 Utilizmos, para este trabalho, a edio com notas crticas de Jos Mattoso, HERCULANO, Alexandre,

    Histria de Portugal. Desde o comeo da Monarquia at ao reinado de D. Afonso III, revista e anotada por Jos Mattoso, 4

    vols., Lisboa, 1980-1984.

    27 Oliveira Marques, por exemplo, dividiu a sua obra sobre historiografia nacional em dois volumes: das

    Origens a Herculano e De Herculano aos nossos dias (Cf., MARQUES, A. H. de Oliveira, Antologia da

    Historiografia Portuguesa, 2 vols., Lisboa, Publicaes Europa-Amrica, 1974-75). Outras obras de grande

    importncia para o estudo da historiografia nacional so as actas de dois colquios realizados pela Academia

    Portuguesa da Histria em 1976 e 1977, onde a diviso das matrias segue o mesmo critrio: A historiografia

    portuguesa anterior a Herculano e A historiografia portuguesa de Herculano a 1950 (Cf., Historiografia, 1977 e

    1978).

    28 Particularmente a historiografia alem e francesa do seu tempo, das quais se destacam, por exemplo, algumas

    obras de Thierry e de Guizot, como a Histoire de la Civilization en Europe, os Essays sur lHistoire de France ou os

    Dix Ans dtudes Historiques. Dos autores alemes que o influenciaram, alm de Heinrich Schaefer (Geschichte von

    Portugal), na vertente da histria poltica podemos destacar Friedrich Dalmann e a Geschichte von Dnemark, ou

    Friedrich W. Lembke e a Geschichte von Spanien, entre outros.

  • 44

    que o precederam e que no contemplavam a necessidade da crtica histrica, ou daqueles

    que se limitavam a produzir histrias genealgicas, biogrficas ou narrativas de feitos

    hericos onde os objectivos eram bem claros e pouco tinham a ver com a verdade

    histrica.

    Nesta obra valoriza os aspectos poltico-militares dos reinados de D. Sancho I, D.

    Afonso II e D. Sancho II onde o modelo de anlise poltico-institucional predomina e

    muitas vezes acrescentado com outras perspectivas. Os fenmenos econmicos, culturais

    e mentais, transparecem em muitos dos seus pargrafos e a observao sistemtica dos

    acontecimentos passados durante a governao de D. Sancho II prenhe desta conexo

    entre o modelo institucional e os outros contextos. Vale a pena recordar a observao de

    Vitorino Magalhes Godinho de que em Herculano:

    coexistem dois historiadores: o da parte social da histria de

    Portugal, da histria dos bens da Coroa [...] e o da parte narrativa, dos

    acontecimentos da Histria de Portugal...29.

    Lutava Herculano pela neutralidade do historiador em relao poca passada

    que queria estudar, mas ele prprio no ficou imune aos condicionalismos e tentaes do

    seu tempo. Era inevitvel que a histria passasse a ser cada vez mais entendida (e

    produzida) como uma cincia aplicvel, que explicava o presente de forma pedaggica a

    partir da reconstituio do passado.

    29 Cf., GODINHO, Vitorino Magalhes, Alexandre Herculano, historiador, in Alexandre Herculano. Ciclo de

    conferncias comemorativas do 1 centenrio da sua morte. Porto, Biblioteca Pblica Municipal do Porto, 1979, p. 79.

  • 45

    Historiador liberal, acreditava na observao objectiva do passado como modelo

    explicativo do presente e antecipador do futuro. O seu projecto historiogrfico assentava

    na crtica das fontes disponveis, aproveitando os esforos que nesse sentido os monges

    beneditinos do sculo XVIII tinham desenvolvido, e desvalorizava os modelos

    tradicionais que punham em evidncia as vidas singulares dos monarcas e das suas

    famlias, em detrimento da reconstituio das mudanas sociais e polticas, como por

    exemplo, a evoluo dos sistemas jurdicos, econmicos e culturais. Lanava, desta forma

    o antema contra a histria dos reis e das genealogias. O seu projecto almejava a

    reconstituio da sociedade e no a histria dos indivduos, embora lhe fosse difcil negar

    a importncia do indivduo na histria. o que se passa com os dois filhos de D. Afonso

    II, que entre 1245 e 1248 disputam o trono de Portugal.

    Carregada e melanclica rompia a aurora do reinado de Sancho II30.

    A chegada ao poder do novo rei acontece num clima de grande perturbao em

    torno da coroa e do sistema poltico vigente. Com a morte de D. Afonso II, Herculano

    introduz uma questo no seio das preocupaes da historiografia portuguesa: a

    menoridade de D. Sancho II. Este tema j tinha sido apontado por Antnio Brando,

    embora com incorreces no que diz respeito a datas31. Herculano retoma-o, de forma

    crtica, construindo sobre a idade insuficiente do rei a ideia de que a estava o incio de

    30 Cf., HERCULANO, Alexandre, Histria de Portugal... II, p. 347.

    31 Herculano critica as contradies em que Brando ter cado ao considerar que Afonso II se casara em 1208

    (Cf., BRANDO, Antnio, Monarquia Lusitana, Livro 12, c. 30), e ao achar que Sancho II, em 1223, teria

    acabado de fazer vinte anos (Cf., BRANDO, Antnio, Ibidem, Livro 14, c. 1). Veja-se o que diz o autor

    oitocentista na sua Histria de Portugal (Cf., HERCULANO, Alexandre, Histria de PortugalII, p. 319).

  • 46

    alguns dos problemas que diminuiram a governao de Sancho, em especial aqueles que

    foram condicionados pela personalidade, vista como inconstante, do monarca. Com

    efeito, com Alexandre Herculano, que esta questo ganha substncia e assume

    personalidade prpria na historiografia portuguesa.

    Torna-se numa questo fundamental e incontornvel na abordagem ao estudo

    deste reinado pela historiografia portuguesa posterior a este autor. Quer seguindo-lhe

    linearmente as interpretaes, quer intervindo criticamente sobre as suas afirmaes

    menos consistentes, ningum mais se eximiu, ao falar deste reinado, a colocar a questo

    da menoridade de D. Sancho32.

    A maioria dos autores que precederam Alexandre Herculano mostram-se incertos

    quanto idade com que Sancho II herda a coroa, embora na generalidade atribuam ao

    novo monarca a idade de vinte e trs anos. Herculano reconsidera a data precisa do

    nascimento do prncipe, afirmando que nunca poderia ter antecedido os meses finais do

    ano de 120933 e que certamente as datas dos documentos teriam sido mal lidas, pois

    considera erradas as leituras de Fr. Antnio Brando, em especial a contida no

    instrumento de doao de D. Estevanha Soares ao mosteiro de Tarouca, onde teria sido

    lida a data de 1241, em vez da era de 1251 (1213), lida por Viterbo34.

    32 No ltimo caso de grande relevncia o artigo publicado por BRANCO, Maria Joo, A menoridade de

    Sancho II: breve estudo de um caso exemplar, in Discursos. Lngua, Cultura e Sociedade. III srie, n 3. Memria e

    Sociedade, Lisboa, Centro de Estudos Histricos Interdisciplinares, Junho 2001, pp. 89-116, onde a autora

    contesta, veementemente, a ideia de que os problemas do reinado de Sancho II, e o prprio processo de

    deposio, se devam em exclusivo ao facto de o rei ter assumido o trono ainda menor.

    33 Cf., COSTA, A. D. Sousa, Mestre Silvestre e Mestre Vicente, juristas da contenda entre D. Afonso II e suas irms, Braga,

    1963, pp. 436-437, nota 547; AZEVEDO, Rui; COSTA, Avelino Jesus da e PEREIRA, Marcelino,

    Documentos de D. Sancho I (1174-1211), vol. 1, Coimbra, Univ. de Coimbra, 1979, pp. 271-272).

  • 47

    Alexandre Herculano considera verosmil este casamento para o final de 1208 ou

    princpio de 1209, indicando que o nome da rainha D. Urraca passa a figurar ao lado do

    marido e do sogro, pelo menos a partir de Fevereiro de 1209. Recorda, na sua nota XIV,

    uma passagem de FLORES35, onde se refere que uma das causas directas que

    provocaram o conflito entre D. Sancho I e o bispo do Porto, D. Martinho Rodrigues, teria

    sido a maneira como o prelado portuense teria tratado os noivos ao entrarem naquela

    cidade. A utilizao crtica de diversos documentos permite precisar melhor a idade do

    rei. Considera determinante o facto de na famosa composio com as tias se dizer que o

    prncipe ainda no tinha atingido os catorze anos de idade; ou as expresses papais

    contidas na bula Grandi non immerito que se referem ao infante como tendo herdado a

    coroa paterna na idade da puercia.

    Posteriormente, a publicao sistemtica da documentao de Sancho I vem

    balizar com preciso a data daquele casamento, confirmando a opinio de Herculano. O

    primeiro documento onde D. Urraca figura como mulher de Afonso II de Fevereiro de

    1209. Como o ltimo instrumento rgio, sem aparecer referncia rainha de Novembro

    de 1228, o casamento ter ocorrido entre aquelas duas datas.

    A menoridade de D. Sancho serve de pretexto a Alexandre Herculano para

    acrescentar uma nova dimenso s tenses existentes entre os partidrios do modelo

    centralizador e os seus opositores. A clarividncia de D. Afonso II ao prever o seu

    desaparecimento precoce, j que era provvel que tivesse conscincia de que a morte se

    34 Cf., VITERBO, J. S. Rosa, Elucidrio das palavras, termos e frases que em Portugal se usaram e que hoje regularmente se

    ignoram, ed. crtica baseada nos mss. de Viterbo por M. FIUZA, 2 vols., Porto, editora, 1983-1984, t. 2, p. 369;

    FERNANDES, A. de Almeida, Esparsos de Histria, Porto, edio, 1970, pp. 183-184.

    35 Cf., FLORES, Espaa Sagrada, t. 21, p. 144.

  • 48

    aproximava, tambm admitia que todo o seu labor em prol do fortalecimento do poder

    rgio poderia ser posto em causa pela transmisso do poder para as mos de uma criana.

    Os testamentos do rei definem claramente que o prncipe herdeiro, caso seja menor, deve

    ser aconselhado pelos seus validos, homens de confiana e a regncia confiada a D.

    Urraca. No ltimo testamento, posterior morte da rainha, determina que essa regncia

    passe aos ricos-homens que exerciam os mais altos cargos do estado que passaro a reger

    os destinos do reino em nome do prncipe.

    Diz Herculano sobre a menoridade do rei que:

    os historiadores desprezaram ou controverteram um facto bem

    simples e que, todavia, como o elo e origem da cadeia de

    acontecimentos que prepararam a queda do infeliz prncipe36.

    Os defeitos de leitura sobre a data de nascimento do herdeiro do trono tero

    levado a um fatal erro de interpretao sobre as capacidades do novo rei, pois era

    considerado adulto e responsvel pelos seus actos. Mas no o era. Para Herculano,

    Sancho II, no era ainda adulto quando herda o trono, e esse facto ser impossvel de

    dissociar da imagem de mau governante que a histria lhe dar.

    imagem de um rei infantil, ainda impreparado para a governao liga-se o

    estado em que Portugal se encontra. O rei morrera excomungado e os seus antigos

    privados assumiam-se plenos de autoridade como regentes do reino, mantendo a presso

    sobre sectores do clero e da nobreza terratenente que durante todo o reinado anterior se

    36 Cf., HERCULANO, Alexandre, Histria de Portugal... II, p. 348.

  • 49

    tinham oposto ao crescimento da autoridade rgia. A maioria das questes estava por

    resolver. O reino estava interdito, o rei por sepultar em campo santo, as justias do reino

    impedidas de funcionar. Necessariamente, era o momento para a composio entre as

    faces opostas. A eterna questo sobre os direitos das infantas tinha-se agravado com

    a interveno de Afonso IX de Leo, fragilizando a posio dos tutores do rei. A

    insustentabilidade de um estado incapaz de agir e de impor a sua autoridade obrigava a

    que se iniciassem conversaes. Herculano pe em evidncia as dificuldades em que se

    encontravam os antigos conselheiros de D. Afonso II, e agora tutores do pequeno rei e a

    necessidade de sair do impasse poltico em que o reino se encontrava.

    Segundo Alexandre Herculano, o clero portugus colocou srios entraves ao

    modelo centralizador de Afonso II. A sua oposio, motivada pela aplicao violenta das

    determinaes da coroa, acabou por provocar danos insuportveis ao aparelho do estado e

    autoridade dos validos do rei. A concrdia com o clero portugus era vital para a

    manuteno do estado e da sua auctoritas.

    A concordata com o clero assinada em 1223 considerada como um feliz

    aproveitamento por parte da Igreja das infelizes circunstncias em que o reino se

    encontrava. Sendo verdadeiras as disposies contidas naquele documento37, estas

    37 Composta por dez artigos publicada pela primeira vez por CASTRO, Gabriel Pereira de, De manu regia

    tractatus, Ulyssipone, apud Petrum Craesbeeck, 1622-1625 e por COSTA, Sousa, na Monomaquia sobre as

    Concordatas. Tinha j sido referida por BRANDO, Fr. Antnio, na Monarquia Lusitana, mas nunca publicada.

    Alexandre Herculano considera que o douto monge desconfiava da genuinidade do documento. Mesmo a

    referncia existncia do original no arquivo do cabido bracarense (Cf., CUNHA, Rodrigo da, Historia

    Ecclesiastica dos Arcebispos de Braga e dos Santos e Vares Illustres que floresceram neste Arcebispado, 2 vols., Braga, 1634-

    1635 (edio facsim. com nota de apresentao por Jos Marques, Braga, 1989, P. 2, c. 23, 7) no resolve a

    questo. Herculano desconfia que este autor ter usado o mesmo texto de Brando ou de Gabriel Pereira de

    Castro, ou seja, uma cpia transmitida por Lousada. O facto de todos os autores que utilizam esta concordata

    no citarem, ou indicarem, os confirmantes de to importante instrumento constitui o maior bice sua

  • 50

    abrangiam muito mais do que uma mera indemnizao pecuniria, com efeito o que o

    arcebispo pretendia era garantir condies vantajosas nos captulos da jurisdio e das

    imunidades eclesisticas; a entrega de avultadas somas do tesouro real nos cofres da

    arquidiocese representaria o pagamento pelos danos causados pela perturbao que as

    medidas de D. Afonso II tinham causado sobre aqueles direitos da Igreja.

    De seguida, comenta criticamente a ausncia de informaes sobre os trs

    primeiros anos do reinado de D. Sancho II nos historiadores que o antecederam. Parece,

    afirma, que no viram neles mais do que o movimento ordinrio de um reino pacfico38 e,

    contudo, nos documentos desse perodo est, bem visvel, a existncia de uma grande

    agitao poltica. Sinnimo desta agitao a constante mudana de grandes senhores

    da aristocracia portuguesa nos principais cargos da cria. Essa acelerada sucesso de

    validos do rei naqueles cargos contrariava, para Herculano, o quadro tradicional

    observvel em reinados anteriores, onde os ministros do rei se mantinham nos cargos

    durante muito tempo. A que se deve esta mudana na ocupao dos cargos pblicos?

    legitimidade. O mesmo se passa com as bulas Ex Speciali e Siquam horribile de Gregrio IX ou a Grandi non

    immerito, de Inocncio IV, onde no existe qualquer referncia concordata entre o rei de Portugal e o clero

    nacional. Existe, ainda, outro documento arquivado na Mitra de Braga, cpia datvel do sculo XIII, e que tem

    anexado o documento do Apndice 15 da parte 4 da Monarquia Lusitana, o que aumenta a veracidade sobre a

    existncia de tal documento de composio. Contudo Alexandre Herculano na sua nota concordata levanta a

    possibilidade de este documento ter sido forjado depois do desembarque em Lisboa do conde de Bolonha. Jos

    Mattoso acrescenta que Sousa Costa publicou a concordata atravs de um exemplar existente nos Arquivos da

    Torre do Tombo (Cf., IANTT, Mitra de Braga, cx 1, n 81), que supe ser a cpia do sc XIII de que fala

    Herculano. Conferiu-a com a cpia do sc XVII dos Rerum Memorabilium, Livro II. Pode ainda ver-se o artigo

    de MADAHIL, A. G. da Rocha, "O Cartulrio Seiscentista da Mitra de Braga Rerum Memorabilium", in

    Boletim Cultural (da Cmara Municipal do Porto), 31 (1968), pp. 92-107, onde se v que muitas das cpias no

    pertencem a Lousada.

    38 Cf., HERCULANO, Alexandre, Histria de Portugal II, p. 358.

  • 51

    Herculano atribui-a aos factos ocorridos durante a menoridade do rei, onde o

    estado pueril do prncipe era causa dessa vertiginosa alternncia de nobres em cargos

    pblicos. Alm do problema levantado pelo estado pueril de D. Sancho, o autor refere a

    existncia de tenses e dios entre a nobreza do reino e os antigos validos de D. Afonso

    II, agora tutores do pequeno rei.

    A ausncia de um poder forte, como tinha sido o de D. Afonso II, levava a que os

    senhores lanassem mo dos mais variados processos para alcanarem os seus objectivos,

    atirando o reino para um estado de desordem. As referncias turbulncia social daqueles

    primeiros tempos do reinado e s causas que as precipitaram esto dificultadas pela

    escassez de documentao para aquele perodo, mas essa ausncia, pode tambm ser

    demonstrativa de um estado fraco e desorganizado, onde os normais procedimentos da

    chancelaria so uma das principais vtimas39.

    Para ele cabe ao clero, em especial aos seus notveis, o principal papel na

    perturbao da ordem pblica. nesta estrutura eclesistica que os tutores de D.

    Sancho e o prprio rei encontram as maiores resistncias. As tentativas de pacificao

    que definem os incios do reinado de D. Sancho II so alcanadas custa de grandes

    concesses por parte da estrutura rgia Igreja e aos seus prelados e que acabam, num

    39 Quer Jos Mattoso, nas suas notas crticas ao trabalho de Herculano (Cf., HERCULANO, Alexandre,

    Histria de Portugal, II, nota [1], p. 543), quer Maria Joo Violante Branco (Ibidem, p. 95) desmontam a tese

    defendida por Herculano e seus seguidores de que teria existido uma tutoria institucionalizada. Nada na

    documentao disponvel faz pressupor que existisse um conjunto de validos que rodeassem o rei e o

    influenciassem nas suas decises, para alm do que era comum na documentao dos reis que o antecederam e

    at daquele que lhe vai suceder. Tais posies vo ao encontro do que j havia sido enunciado por Lus

    Gonzaga de Azevedo (Cf., AZEVEDO, Lus Gonzaga de, Histria de Portugal, pref. e rev. de Domingos

    Maurcio dos Santos, vol. 6, Lisboa, Ed. Biblon, 1944) ao comentar de forma muito crtica esta posio de

    Alexandre Herculano.

  • 52

    prazo mais longo, por abrir novas frentes de coliso. A dinmica de conflito que o clero

    apresenta face ao poder central, congrega em seu torno toda uma nobreza descontente,

    como Herculano bem expressa:

    Para se vingarem, os prelados no tinham s os raios de Roma, a

    que logo recorriam: tinham, tambm, os elementos de desordem que

    fermentavam no reino; tinham a poderosa alavanca de uma nobreza

    ambiciosa e descontente. vista do carcter turbulento e audaz dos

    dois prelados40, sobretudo do arcebispo, licito acreditar que foram

    eles que deram impulso, ao menos em parte, anarquia que se

    desenvolveu entre os bares do Norte e que, talvez por anos, afligiu

    o reino41.

    O quadro de perturbao poltica evidente para o autor e o rei parece passar de

    mo em mo entre as duas faces, desejosas de assegurar atravs da influncia praticada

    sobre ele o controlo do estado. neste sentido que Herculano considera este

    encarniamento sobre a posse do rei como um dos motivos mais evidentes da ecloso

    de conflitos civis. apresentado como um pobre mancebo, joguete dos principais

    senhores, incapaz sequer de discernir o que se passava no seu prprio reino, ao ponto de

    se considerar a possibilidade de que muitos documentos expedidos em nome de Sancho

    40 Refere-se ao arcebispo de Braga, D. Estvo Soares da Silva e a D. Soeiro, bispo de Lisboa.

    41 Cf., HERCULANO, Alexandre, Histria de Portugal II, p. 361.

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    II, serem de facto, documentos elaborados por aqueles que o dominavam, e dos quais o

    rei pouco conhecimento deveria ter.

    Afirma Herculano que este jovem rei mais parecia neto de D. Sancho I do que

    filho de D. Afonso II. Aps introduzir a questo da menoridade do rei como um dos

    aspectos provocadores da crise do reinado, aborda as capacidades de chefe militar de D.

    Sancho integradas no processo de expanso crist sobre o espao muulmano. o

    lanamento das campanhas ao Alentejo integradas numa conjuntura bem delineada, onde

    os problemas do complexo islmico peninsular so enunciados e contextualizados em

    especial com os avanos no terreno das coroas castelhana e a leonesa, desde os anos de

    1218 ou 1219. O padro de conquista crist parece caracterizar-se pela existncia de

    concertao entre os vrios reinos. O movimento de ocupao sistemtica da Estremadura

    espanhola entre-os-rios Tejo e Guadiana parece, quase sempre, combinar-se com os

    objectivos das hostes portuguesas, dirigidas por D. Sancho II42.

    Comea assim a anlise da famosa expedio a Elvas. A confirmao feita pelo

    papa em 1225 de D. Sancho II como rei de Portugal inicia a transio do prncipe para a

    idade adulta; o comando dos exrcitos rgios permitir-lhe-ia ser rei de facto, ao mesmo

    tempo que se subtraa ao abrao asfixiador dos ricos-homens que o tutelavam. A

    dinmica de cruzada defendida pelo poder papal, que se traduz no envio de missivas

    especiais a D. Sancho, e as aces vitoriosas de reis como Fernando III ou Afonso IX, e o 42 O autor afirma que o comando operacional das foras portuguesas recaa sobre Martim Anes, o antigo

    Alferes-mor e sobre o arcebispo de Braga. Sobre a coordenao entre o dispositivo militar portugus e os

    movimentos castelhanos, cita um documento publicado nos Extractos da Academia, (Santo Tirso, Gav. de Goim,

    n 8) ou em TUY, Lucas, Chronicon Mundi, ed. E. Scothus, Hispania Illustrata, vol. IV, Frankfurt, 1608, p. 114,

    que refere a presena de D. Martim S