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Autoficções ou escritas de si:
narrativas de Ricardo Lísias e Uma longa viagem, filme de Lucia Murat
Julia ScampariniUniversidade Federal Fluminense – UFF
juliascamparini@gmail.com
A mescla entre ficção e o que podemos chamar de discursos-verdade, como se
pretendem a biografia e o documentário, é hoje comum. Mesmo que tenha sido
experimentada há décadas, como o fez Fellini no cinema com seu Intervista (1987), ou
Silviano Santiago na literatura com o livro Em liberdade (1981), a mescla dos gêneros
já não é uma novidade estética, mas uma prática comum tanto na literatura como no
cinema. Tempos de identidade liquida (Bauman) manifestam-se na arte e concretizam
novas formas de se contar histórias. Dentro deste âmbito, interesso-me pelas escritas de
si, ou autoficções, ou narrativas autobiográficas, não importando por ora o termo que
nomeia este tipo de fenômeno de tão complexa classificação. O que tenho feito é
observar os textos escritos e os filmes que incluem seu autor entremeado à historia
contada na narrativa – o escritor, no caso da literatura, e o diretor, no caso do cinema –,
e as formas como sua presença ficcional/documental promovem jogos conceituais,
estéticos e discursivos na obra realizada.
Antes de entrarmos na análise propriamente dita do produtos de Ricardo Lísias e
Lucia Murat, é preciso dar algumas palavras sobre a autobiografia, o gênero canônico
da escrita do eu. Ainda que saibamos que nenhum recorte é objetivo, mesmo que se
trate da vida de uma personalidade conhecida, as biografias em geral inserem-se em um
regime de verdade inconstetado por seus leitores. Se escolho ler a biografia de Kurt
Cobain ou d’Os Borgia, é em busca de saber como de fato foi a vida daquele que me
causa curiosidade. Se prefiro a autobiografia de Lobão, músico brasileiro, quero
conhecer seu ponto de vista sobre fatos da história do rock no Brasil.
Também é preciso pensar sobre o documentário, gênero do cinema que, irmão
distante do jornalismo, busca o conhecimento sobre fatos ou personalidades através da
revisão de imagens de arquivo e de testemunhos, principalmente. Ancorado na
fotografia e no depoimento de pessoas diretamente envolvidas no caso tratado, gera em
quem assiste a expectativa de tradução de uma verdade pouco ou nada conhecida.
Imagens fotográficas são a representação mais próxima ao real, ainda que saibamos o
quanto podem ser manipuladas.
Mas tanto a autobiografia e o documentário são gêneros hoje híbridos,
constantemente permeados de elementos ficcionais, explícitos ou não. Da mesma forma,
a verdade que hoje se colhe de um romance, conto ou filme não passa somente pelo que
o imaginário produz entre obra e fruidor – verdades individuais – mas também por
ganchos com a realidade facilmente detectáveis. A realidade adentrou a ficção de
formas novas, e vice-versa, e neste momento interessa investigar o que a inclusão de
referências explícitas ao autor de narrativas literárias e fílmicas possibilita como
experiência estética ao leitor/espectador.
Antes ainda de proceder às análises, algumas palavras sobre a questão da autoria
de filmes. O cinema é arte coletiva, de linguagem sincrética, de materialidade hoje
virtual. As diversas presenças profissionais necessárias para a realização de um filme
confundem a noção de autoria, mesmo quando pensamos em um retorno do autor após
sua morte (Foucault, Barthes), mesmo depois do cinema de autor instaurado na segunda
metade do século XX e sobrevivente até hoje. Sem entrar neste momento no mérito da
questão, também aqui o autor de um filme é seu diretor, e assim será analisada a
presença deste na escolha da narrativa contada e no filme propriamente dito.
Ao se pensar em toda a rede produtora de um filme e se traçar um paralelo com a
rede produtora de um livro, a distância entre a ideia do escritor-autor e diretor-autor
diminui um pouco. As imagens técnicas promoveriam representações de outra ordem
com respeito à escrita, pelo número de envolvidos em seu processo, conforme já dito.
Mas se hoje a máquina de escrever foi substituída pelo computador, que também
trabalha com imagens técnicas, há o mesmo intermediário entre autor e obra (Flusser). É
na dinâmica entre autoria e relação com as novas possibilidades de imagem – visual e
conceitual – que centrarei minhas análises das autoficções literárias e fílmicas.
Na literatura, Klinger (2005) localiza as autoficções “no coração do paradoxo
deste final de século XX: entre o desejo narcisista de falar de si e o reconhecimento da
impossibilidade de exprimir uma ‘verdade’ na escrita.”. O retorno do autor coincide
com o retorno do real (Foster), mas um e outro são diferentes de então: a sensibilidade
do autor tanto se refere a uma poética quanto a uma afetividade do
próprio sujeito, ou seja, uma poética que identifica o autor do ensaio
com seu objeto; e o real não é mais objetivado, mas perpassado pela
psicanálise, que simboliza o real individualmente pela crença no
inconsciente.
Assim, as prosas de Ricardo Lisias surpreendem por seu caráter confessional. O
suicídio de André, amigo real que vira personagem homônimo, está presente em um
romance e em crônicas. O céu dos suicidas (2012) é um livro-homenagem ao amigo ou,
por outro ângulo, uma tentativa de autoexpurgação do sentimento de culpa que persegue
Ricardo Lísias, narrador em primeira pessoa. Apesar do mesmo nome, autor e
personagem não compartilham da mesma profissão: o Lísias real é escritor e o Lísias de
O céu dos suicidas é especialista em coleções – ainda que não tenha nenhuma – e não
gosta de literatura. Entre coincidências e divergências entre narrador e autor, o
personagem, tomado por uma forte dor pela morte do amigo, viaja, se isola, tenta
trabalhar, mas vai sendo consumido pelas noites não dormidas, pela ofensa a todos seus
possíveis clientes colecionadores, pela prisão da culpa por não ter dado ao amigo a
compreensão de que precisava. De fragmentos vai (se) reconstruindo memórias.
O fato de eu, ex-aluna da Unicamp, ter conhecido André e Ricardo nos tempos
da faculdade de Letras foi o que primeiramente me motivou a explorar o tema das
autoficções. Como é possível alguém fazer literatura a partir de um acontecimento real
compartilhado por tantos? Até que ponto isto é uma confissão, ou quando começa a
ficção? Ainda que estas perguntas não precisem ser respondidas, são o ponto de partida
para um investigação sobre um tipo de literatura que está ligada a temáticas como as
práticas de subjetividade, a relação entre autor e obra, a mescla de gêneros, os conceitos
de autoria, de representação, de realidade, e, por fim, a mídia. Ainda que neste momento
não sejam todos aprofundados, as possibilidades de pesquisa que tal fenômeno propõe
estão sendo investigadas.
O textos de Lísias para a revista Piauí (Divórcio, 2011, e A corrida, 2012) tratam
de outras situações que parecem reais – nestes casos, não sou testemunha de que
realmente aconteceram. O sentimento pelo fim do casamento é belamente metaforizado
por suas andanças pela cidade em carne viva. Sem pele, tudo doía. O que faz crer que
ele fala de um acontecimento pessoal é o conhecimento da vida e da morte de André,
rapaz estranho que conheci na faculdade. Ou seja, Lísias estabelece um campo literário
em que o leitor espera que o autor fale de si; lança uma curiosidade quase de reality
show, em que a relação com a vida real impulsiona o leitor a querer saber mais e mais.
Em A corrida, Lísias conta como começou a correr para suprimir a dor e as
noites mal dormidas após a separação do casamento que durou quatro meses. O tempo
sobrando e o físico sofrido foram preenchidos pela prática do jogging noturno, o que
levou o autor-personagem a participar da São Silvestre, tradicional maratona paulistana.
Curiosa por saber se mais este evento era verdadeiro, busquei seu nome na plataforma
social Facebook. Seu perfil é aberto, e a primeira foto que me apareceu foi a de Ricardo
Lísias, o “verdadeiro”, durante a São Silvestre.
Nada surpreendente, estando cientes de que estamos em tempos de
superexposição e de compartilhamento de vida real na vida virtual. Segundo Moriconi
(2005: 06), “O novo boom literário desde os anos 90 no Brasil caracteriza-se por
acontecer nos três circuitos fundamentais: o circuito mídiático (ou do mercado maior), o
circuito crítico (ou universitário, ou canônico), e o circuito da vida literária
propriamente dita.” Se a literatura atual ancora-se na rede, como sustenta Moriconi, a
literatura dialoga com a cultura e a comunicação, ampliando sua atuação para além do
campo literário. São tempos, portanto, em que é lícito questionar se podemos avaliar
literatura lançando mão de critérios estritamente literários.
Ricardo Lísias encaixa-se neste panorama, pois, além de escritor de romances,
escreve para revistas de cultura, como a Piauí, mantém uma postura crítico-política em
sua página no Facebook, e é responsável pela criação de uma revista impressa gratuita
que lança textos de novos autores, o Silva. Considerando as formas concebidas por
Moriconi, Lísias constrói seu personagem/personalidade pública através da circulação
literária, através da qual se mantém – quase como líder – ativo em um nicho de jovens
escritores, e através da comunicação virtual, onde acessa também seus leitores através
do compartilhamento de sua vida íntima. Citamos mais uma vez Moriconi:
A mais vistosa dessas transformações atinge o fulcro da noção clássica do
literário na modernidade. É que não se pode mais definir a essência do literário
como uso artístico da linguagem verbal ficcional. Não é mais isso que define
um texto como literário no mercado. O nicho do literário se complicou e
comporta a mescla entre o ficcional e o não ficcional. Esse deslizamento
prático e conceitual articula-se à profunda transformação que o caráter
eminentemente midiático da cultura infligiu sobre o estatuto do ficcional em
geral na economia total dos discursos na pós-modernidade. Se por um lado
sabemos que na sociedade midiatizada tudo, absolutamente tudo, é constructo
discursivo interessado, por outro lado, paradoxalmente, a evolução técnica faz
emergir uma sociedade e uma cultura da visibilidade total. (2005: 13)
Uma hipótese, que lanço mas não concluo aqui, é a relação entre a profusão do
documentário como gênero fílmico e sua influência, como documento, na literatura.
Para afirmar tal hipótese, seria necessário realizar uma genealogia da autoficção, e ao
mesmo tempo dar continuidade à genealogia do documentário empreendida por Nichols
(1991). Mas, de qualquer forma, observar como o aspecto documental da vida de um
autor (cujo acesso é hoje facilitado pela internet) tornou-se fundamental para uma certa
geração, leva a pensar no sentido de documento, ainda muito ligado à fotografia e à sua
impressão de realidade. As imagens técnicas, muito mais que documentais, manipulam,
pois que entre nós e seu autor há milênios de conceitos sobre o mundo, construídos
pelos saberes científicos, que nos distanciam de qualquer realidade pura. Há de se
conhecer esta linguagem, que muito mais do que documental, é manipuladora (Flusser).
Mas deixemos esta hipótese para um desenvolvimento futuro.
Uma longa viagem (2012), de Lucia Murat, é um documentário que recupera as
memórias da experiência da diretora na ditadura brasileira. Do que se espera da forma
clássica documental, são usadas imagens do arquivo e o testemunho, mas já aí ha uma
quebra: as imagens são do arquivo pessoal de Lucia, e o único testemunho é o de seu
irmão que esteve viajando pelo mundo para fugir dos golpes militares que aconteciam
no Brasil. Alternam-se a estes a narração da diretora, imagens emprestadas de amigos
que estiveram pelo mundo na mesma época do exílio de seu irmão (como imagens do
poeta Chacal, por exemplo), e a participação de um ator que, representando o irmão em
sua juventude, lê as cartas que na época escreveu para a mãe.
Assim, o filme intercala a narração de Lucia de sua vida, os depoimentos do
irmão, atualmente idoso e com perceptíveis sequelas físicas de uma época em que se
permitia tudo, e a atuação do ator Caio Blat em vestes e cenário dos anos 1960: as
imagens de então, emprestadas de amigos, são projetadas ao fundo e sobre seu corpo,
como se fossem imagens do irmão de Lucia, enquanto o ator passeia e gesticula sobre
elas lendo as cartas, muitas vezes dirigindo-se diretamente à câmera.
Lucia retoma um assunto histórico-político conhecido, discutido, retomado; mas
o faz através da própria história, pessoal e familiar, e lançando mão de artifícios atípicos
a um documentário, como a duplicação do irmão-personagem através do recurso da
encenação. A história dá lugar à rememoração, suscitando e alçando uma política da
memória que abre espaço para recriações pessoas de um tempo que se vê coletivo.
Assim, as imagens de arquivo não são todas reais, não são documento, mas adquirem
um status político-afetivo ao serem utilizadas nesta particular retomada de assunto.
Trata-se de apropriação de imagens, o que destituiria o valor documental do filme; mas
neste regime não se trata mais de uma busca pela verdade dos fatos, mas sim de um
recontar o ocorrido pelo viés da memória afetiva, pessoal e não linear, em detrimento da
cronologia lógico-causal da História.
Para além da narrativa que envolve Lucia e a própria família, a diretora investe
uma discussão acerca do gênero documentário enquanto tal. A mescla entre ficção e
realidade já é comum, mas o uso de imagens “falsas” que não pretendem ser
verdadeiras, a inclusão da encenação do irmão quando jovem – conferindo presença a
uma ausência de quase dez anos – e a vida das imagens no corpo deste ator nos fazem
lembrar o tempo inteiro que se trata de um filme: “esta é a história que quero contar”,
parece nos dizer a diretora.
Ricardo Lísias também fala da escrita em outra de suas autoficções. Incluído na
recém-publicada edição brasileira da Granta em português (2012), Tólia é um conto
sobre a própria desistência da atuação como ficcionista pelo convívio com Mestres do
Olho Interno que mergulham em seu Mundo Interior: algo entre o transcendente e o
humorístico reforçam a vocação de Lísias para a (auto)ficção. Em O céu dos suicidas,
ainda que seja um expert em coleções, o personagem refere-se à própria escrita, em uma
confusão entre o eu-autor e o eu-narrador. Ao escrever sobre si, parece ser difícil não
observar a própria atividade de criação.
O que acomuna estes dois artistas, além do fato de terem optado pela autoficção
como forma, é o exercício da subjetividade que colocam em jogo. A escrita de si dos
antigos, exercida para o autoconhecimento (Foucault), está sendo retomada pelos
contemporâneos; na verdade uma forma de cuidado de si vem sendo há muito colocada
em prática, vide a exploração midiática da necessidade de felicidade e o consequente
boom do gênero da autoajuda. Mas no caso deste escritor e desta cineasta, o exercício
da subjetividade vive em função da arte, dando potência a uma política da memória e
não fugindo de seu papel de promover beleza, reflexão ou, pelo menos, inquietação.
O que parece comum aos produtos destes artistas é a presença de dados biográficos ancorados em uma camada afetiva que aproxima ambos ao conceito de autoficção (Klinger 2007). A hipótese é a de que o impulso do afeto em detrimento da adequação ao modelo (documentário, ficção) abre espaço para processos de subjetivação nos moldes de Foucault: a vida como obra de arte deixa de ser metáfora e manifesta-se através da escrita de si. Ao estudar obras literárias e pictóricas e comentar filmes, Foucault chama atenção àquelas que “se pensam”, que refletem sobre os jogos interiores e exteriores a si próprias, e ao seu lugar no mundo. Os diversos formatos aqui referidos – autobiografia, ficção, documentário – são manuseados por estes autores de modo a construir escritas que privilegiam histórias do eu como trampolim para reconstruções da memória e catarses da alma para nós.
Para além da relação que se pode estabelecer entre o retorno do autor e oexibicionismo da cultura midiática, devemos também situá-lo no contexto discursivo dacrítica filosófica do sujeito, que se produziu ao longo do século XX, e que chegou até sua negação com o estruturalismo, o anúncio da “morte do autor” na literatura e da “morte do sujeito” na filosofia. Os textos do nosso corpus não se apresentam como expressão de uma singularidade dona de si mesma e da sua escrita, o que permite esboçar uma primeira hipótese: estes textos parecem responder ao mesmo tempo e paradoxalmente ao narcisismo midiático e à crítica do sujeito. Portanto, parece conveniente considerar estes textos a partir da categoria de “auto-ficção”, conceito que – redefinido aqui por nós - é capaz de dar conta desse paradoxo. Inventado em 1971 por Sergue Doubrovsky, o conceito de auto-ficção ainda carece de uma definição acabada e satisfatória. No presente capítulo, revisaremos as diferentes definições e chegaremos a uma própria. Segundo a hipótese que desenvolveremos, a auto-ficção se inscreve no coração do paradoxo deste final de século XX: entre o desejo narcisista de falar de si e o reconhecimento da impossibilidade de exprimir uma “verdade” na escrita.
e o maior interesse desta prática paradoxal que aqui definimos como auto-ficção é que ela cristaliza vários problemas epistemológicos e estéticos da contemporaneidade.
Mas antes de entrarmos na categoria de auto-ficção, é preciso em primeiro lugar,inseri-la no conjunto mais amplo dos discursos sobre o eu, que denominamos, seguindoFoucault, a “escrita de si”. Foucault mostra de que forma a escrita de si não é apenas umregistro do eu, mas – desde a Antigüidade clássica até hoje, passando pelo cristianismo da
Idade Média - constitui o próprio sujeito, performa a noção de individuo. O discursoautobiográfico, que se constitui na modernidade em continuidade com esse paradigma,como exacerbação do individualismo burguês, será o pano de fundo sobre o qual seconstrói e, ao mesmo tempo, se destaca o discurso da auto-ficção, que implica uma novanoção de sujeito.
Portanto, em segundo lugar se impõe revisar brevemente o alcance da críticaestruturalista à noção de autor, articulada – no pensamento de Foucault – com a crisefilosófica da noção de sujeito operada no século XX, através do postulado da “morte doautor”, em favor da “função autor”.Em terceiro lugar, é preciso discutir a hipótese (defendida especialmente por HalFoster) de que haveria, na arte e na crítica contemporâneas, um “retorno do autor”. Fosterenxerga o “renascimento do autor” no discurso do trauma: “In trauma discourse, the subjectis evacuated and elevated at once.”23 Segundo a perspectiva que defendemos aqui, épossível sustentar a hipótese de Foster, mas devemos levar em consideração asespecificidades deste retorno no terreno da literatura. Nos textos do nosso corpus, o autorque retorna não é o sujeito do trauma. Também não é o mesmo sujeito romântico,protagonista da cultura humanista, cuja morte sentenciara Foucault. Como veremos, a categoria de auto-ficção é um conceito capaz de dar conta do retorno do autor depois da crítica filosófica da noção de sujeito.
Resumindo, na passagem da cultura pagã à cultura cristã, o “conhece-te a ti mesmo”passou a modelar o pensamento de ocidente, eclipsando o “cuida de ti mesmo”, que era oprincípio que fundamenta a arte de viver da Antigüidade. Com a herança da moral cristã,que faz da renúncia de si a condição da salvação, paradoxalmente, conhecer-se a si mesmoconstituiu um meio de renunciar a si mesmo. A partir de então nossa moral, uma moral doascetismo, não parou de dizer que o si é a instância que se pode rejeitar. Inclinamo-nos, diz
Foucault, em princípio, a considerar o cuidado de si como qualquer coisa suspeita, imoral,como uma forma de egoísmo em contradição com o interesse que é necessário ter em relação aos outros ou com o necessário sacrifício de si mesmo.”.
não existe a forma moderna da literatura antes de que se possa falar deindivíduo no sentido moderno, mas também não existe este sem aquela.
pensar o sujeito da escrita depois da crítica estruturalistado sujeito, ou seja de sua descentralização, pois a desconstrução da categoria do sujeitocartesiano terá um efeito profundo na concepção da relação entre subjetividade e escritura.
Segundo a nossa hipótese, naatualidade já não é possível reduzir a categoria de autor a uma função. Como produto da lógica dacultura de massas, cada vez mais o autor é percebido e atua como sujeito midiático. Se alémdisso, o autor joga sua imagem e suas intervenções públicas com a estratégia do escândalo ou daprovocação, como é o caso de Vallejo e de Cucurto por exemplo, torna-se problemático afirmarainda que “não importa quem fala”.
A “sensibilidade” tanto se refere a uma poética quanto a uma afetividade do próprio sujeito,quer dizer, uma poética que identifica o autor do ensaio com seu objeto. Ensaio como autoetnografia,auto-exame: “É a arte que me conduz para dentro de mim e para o mundo, paraa ciência e para a religião, para o pensar e para o sentir, minha teoria e minha prática,possibilidade frágil, desesperada de alguma beleza. É por esse pouco de beleza que vivo.”
se contrapõem à espetacularização da intimidade, fazendo com que odesejo maior de auto-exposição se transforme numa possibilidade sutil da voz do sujeito nacrítica e na autobiografia
Segundo Hal Foster, o retorno do autor é uma virada significativa tanto na arte
contemporânea, como na crítica, nas quais ele coincide com o “retorno do real”.55 Naargumentação de Foster, o retorno do autor e o “retorno do real” não implicam nenhumavolta substancialista, uma vez que ele parte do conceito de “real” de J. Lacan, que o definecomo “aquilo que o sujeito está condenado a ter em falta, mas que essa falta mesmarevela”56. Para Lacan, o real (um evento traumático), seria aquilo não simbolizável, umafalta, uma ausência. Assim, na hipótese de Foster, através do discurso do trauma, a arte e ateoria contemporâneas continuam a crítica pós-estruturalista do sujeito. Desta perspectiva, o“retorno do autor” não se opõe, mas, pelo contrário, dá continuidade à crítica do sujeito,mostrando sua inacessibilidade. Esta constatação é coerente com a hipótese esboçadaacima, de que o retorno do autor seria uma crítica ao recalque modernista do sujeito daescrita. Porém não seria um retorno de um sujeito pleno no sentido moderno, mas haveriaum deslocamento: nas práticas contemporâneas da “literatura do eu” a primeira pessoa seinscreve de maneira paradoxal num quadro de questionamento da identidade. De
A diferença da nossa hipótese com a de Foster consiste em que no corpus estudadoprescindimos da noção de trauma. O termo auto-ficção é capaz de dar conta do retorno doautor pois ele problematiza a relação entre as noções de real (ou referencial) e de ficcional,55 Foster, Hal. The return of the real. The avant-garde at the end of the century. Cambridge and London: MITPress, 2001 [1996] p. 16856 Lacan, Jaques. O seminário. Livro XI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1985 [ 1964] p.5238assim como a tensão entre a presença e a falta - retorno e recalque - ainda que nãonecessariamente em relação com o discurso do trauma.
Autoficções ou escritas de si: narrativas curtas de Ricardo Lísias e Uma longa viagem, filme de Lucia Murat
Julia ScampariniPós-doutoranda pela UFF
Supervisor: Prof. Dr. Adalberto Müller Juniorjuliascamparini@gmail.com
No documentário Uma longa viagem (2011), Lúcia Murat aborda seu envolvimento político durante e depois da ditadura e apresenta, centralmente, a contemporânea experiência do irmão caçula pelo mundo. Entrevista-o e utiliza imagens de arquivo projetadas sobre um ator que faz seu papel, assim partindo o personagem-irmão em dois: ele próprio, hoje, e um representante de sua juventude. Lúcia opta por mesclar elementos ficcionais e documentais – uma tendência comum ao documentário contemporâneo – em um relato autobiográfico, a exemplo do que vem se verificando no Brasil desde filmes como Um Passaporte Húngaro (2001) e 33 (2003).
Ricardo Lísias tem seu trabalho literário bastante ancorado no relato de suas experiências pessoais. Dois de seus textos ficcionais para a revista Piauí tratam da culpa pela perda do amigo suicida André e da superação do fim do brevíssimo casamento através do esporte, e o conto Tólia (2012) parte do labor da escrita. Narrativas autobiográficas – também praticadas por Michel Laub, Paloma Vidal, Tatiana Salem – transcendem a narração de suas próprias histórias, é claro, mas travam um pacto autobiográfico com o leitor, que assume que o narrador-personagem é de fato inspirado diretamente em quem escreve, seja pela alusão a experiências conhecidas (o autor hoje está na mídia), ou por dados como terra natal e autorreferências desta ordem.
O que parece comum aos produtos destes artistas é a presença de dados biográficos ancorados em uma camada afetiva que aproxima ambos ao conceito de autoficção (Klinger 2007). A hipótese é a de que o impulso do afeto em detrimento da adequação ao modelo (documentário, ficção) abre espaço para processos de subjetivação nos moldes de Foucault: a vida como obra de arte deixa de ser metáfora e manifesta-se através da escrita de si. Ao estudar obras literárias e pictóricas e comentar filmes, Foucault chama atenção àquelas que “se pensam”, que refletem sobre os jogos interiores e exteriores a si próprias, e ao seu lugar no mundo. Os diversos formatos aqui referidos – autobiografia, ficção, documentário – são manuseados por estes autores de modo a construir escritas que privilegiam histórias do eu como trampolim para reconstruções da memória e catarses da alma para nós.