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Luanda F. G. da Costa
Curso Virtual “Educação para a Tolerância: Contribuições Psicanalíticas” – out a dez 2010 1
POR UMA EDUCAÇÃO PARA ALÉM DO NARCISISMO
Luanda Francine Garcia da Costa1
RESUMO: Nessa aula, tomaremos a questão do narcisismo
como via de articulação entre tolerância/intolerância de modo a
estabelecer conexões filosófico-psicanalíticas que apontem à
necessidade de uma educação que se direcione para além do
narcisismo.
“Por que eu sou a única outra pessoa que não pode me olhar nos olhos”
(Paulo César Pinheiro)2
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
É fato constatado: sozinhos não podemos olhar nossos próprios
olhos. Precisamos sempre de um outro, de um “não-Eu” para que
possamos nos enxergar e, assim, construir nossa imagem do Eu. O
olhar do outro fornece nossa própria consistência existencial - sozinhos
não nos vemos - o outro reflete uma imagem de nós e a partir de então,
constituímos e atestamos nossa existência no mundo.
No mito grego, Narciso fora um jovem que olhara seus olhos
através do espelho d’água, se apaixonara por sua imagem refletida no
rio e escolhera o caminho de se alienar em sua própria imagem,
afogando-se em si.
Entre o Ser e sua imagem refletida há um espaço, um vão, e por
que não dizer, um abismo que faz com que as duas instâncias não
1 Luanda F. G. da Costa é filósofa, educadora e psicanalista em formação.
2 Trecho da canção “A Trindade”.
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coincidam. Nesse espaço que equidista o Ser e sua imagem, “tudo pode
acontecer” em termos de deslocamentos e preenchimentos.
Paralelamente, ao nos propormos a busca de uma educação3 rumo à
tolerância (sabemos, tolerar é pouco – o mínimo – todavia, um mínimo
altamente necessário), situamo-nos similarmente, em um espaço, entre
uma coisa e outra. Isso significa que as duas instâncias – educação e
tolerância – não coincidem e que nesse espaço, muita coisa pode
acontecer. Assim, diante desta cisão, pensar numa educação para a
tolerância adquire a expressão reflexiva de um espelho d'água: como a
educação pode refletir tolerância?
Longe de fornecer fórmulas e respostas exatas, essa investigação
tem como propósito levantar algumas ideias e apontamentos que
possam contribuir com a busca de uma educação voltada à uma ética
que avance para além de nossos ideais narcísicos.
NARCISISMO, EU E IMAGEM
O termo narcisismo em psicanálise assume grande importância e
é empregado para designar um comportamento pelo qual um indivíduo
“ama a si mesmo”, tratando seu corpo do mesmo modo como se trata o
corpo de uma pessoa que esteja amando. Trata-se do mecanismo de
buscar a si mesmo como objeto de amor, sendo esse um processo
3 Tomaremos o termo “educação” não como sinônimo de escola/pedagogia, mas como meio pelo qual um ser
humano é inserido na cultura, um processo contínuo presente desde que o Ser chega ao mundo até o
momento que o deixa.
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constitutivo de todo ser humano. Sua importância se deve ao fato de ser
um meio fundante e de auto-preservação do Eu, e indicar uma primeira
fase necessária para a maturação da libido (energia sexual), a fim de
que esta posteriormente possa se deslocar para outros objetos sexuais
que não o próprio Eu.
Barthes4 ao discorrer sobre o momento em que nos sentimos
observados por uma câmera fotográfica, enfatiza o fato de nos
colocamos automaticamente a posar. Rubem Alves5 resume isso de
modo preciso:
“Olho para foto. Sofro. O fotógrafo me pegou distraído. Não saí
bem. Não me reconheço naquela imagem. Sou muito mais
bonito. Sofro mais ainda quando os amigos confirmam: ‘Como
você saiu bem!’ O que eles disseram é que sou daquele jeito
mesmo. Não posso reclamar do fotógrafo. Reclamo do meu
próprio corpo. Recuso-me a ser daquele jeito. É preciso ficar
atento. Que não me fotografem desprevenido. Se me perceber
sendo fotografado, farei pose. A pose é o sutil movimento que
faço com o corpo no intuito de fazê-lo coincidir com a
escorregadia imagem que amo e me escapa. A imagem que
amo está fora do corpo. Recuso-me a ser minha imagem
desprevenida. É preciso o movimento da pose para coincidir
com ela. Quero ser uma imagem bela”.
O que vemos na foto? O que ela retrata? Nós mesmos? Sim, mas
não. Vamos didaticamente, analisar por partes:
4 Roland Barthes, em “A Câmara Clara”.
5 Rubem Alves, em “Concerto para Corpo e Alma”, p. 31.
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1º - Não podemos afirmar que “vemos uma coisa”, e sim, que vemos
uma imagem. Para a psicanálise (e algumas correntes filosóficas), o
mundo que vemos é um mundo de imagens, ou seja, não temos acesso
ao que realmente possa ser uma “coisa em si”.
2º - Quem vê não são os olhos do corpo, quem vê é o Eu. Isso implica
considerar que o que enxergamos é visto a partir de uma instância
muito singular. É como se cada um tivesse os seus óculos particulares,
e com eles enxergasse o mundo de maneira única.
3º - Não obstante, o Eu percebe as imagens e elas se inscrevem no Eu.
O sujeito, portanto, em uma dimensão, é constituído por imagens, se
identifica com elas. “Não somos a imagem do espelho, isso é
absolutamente certo, mas, do ponto de vista do Eu, a imagem é o Eu”.6
4º - O que estamos chamando de “Eu” é uma substância imaginária. O
psicanalista Jacques Lacan dizia que o Eu pode ser entendido como
“uma cebola com cascas imaginárias”.7 Ou ainda, em termos da filosofia
de Nietzsche, como uma multiplicidade de personagens, vozes, facetas
e máscaras - uma por trás da outra.
5º - Contudo, nem todas as imagens são percebidas pelo Eu, mas
somente aquelas em que o Eu se reconhece. Reconhecer-se não quer
dizer que “isso é o mesmo que Eu”, mas que determinadas imagens
despertam um sentido intimamente ligado à nossa história, à nossa 6 Juan-David Nasio, em “O Olhar em Psicanálise”, p. 19.
7 Idem, p. 26.
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impressão do mundo, à nossa sensação, ao nosso ideal (como o Eu
gostaria de se reconhecer, a escorregadia imagem que o Eu ama e que
está fora do corpo).
Assim, temos que “não apenas o mundo não são coisas, não
apenas não são imagens, como também o mundo, para o Eu, são
apenas as imagens em que ele se reconhece”.8 É importante ressaltar
que nessa dimensão onde as imagens se imprimem no Eu, não
precisamos pensar - no imaginário as coisas se dão do modo como se
dão a ver. Isso implica a crença de que o modo como vemos as coisas,
são de fato, como elas são.
Quando não nos sentimos bem ao nos observarmos numa
fotografia (ou em um espelho), é em relação a um modelo ideal, ao ideal
imaginário, ou seja, àquilo que espero que Eu seja. Queremos amar a
nós mesmos através de imagens. Queremos nos reconhecer belos. Se
nos vermos belos (e por isso bons) no olhar do outro, esse outro será
aceito e amado.
O INTOLERÁVEL E O TOLERÁVEL DA IMAGEM
A canção diz que “Narciso acha feio o que não é espelho”.9 Sim é
verdade, mas pode achar feio o que também é espelho quando este
refletir sua imagem recusada, não aceita. O espelho mostra a face
oculta de Narciso, e isso lhe fere. Chamamos de “ferida narcísica” esse 8 Ibidem, p. 22.
9 Trecho da canção “Sampa”, de Caetano Veloso.
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sentimento dolorido causado pela queda de um ideal em que nos
apoiamos.
Posto isso, caminharemos agora por duas vias complementares:
a) Narciso acha feio o que não é espelho: Odeio aquilo que não se
parece com o que fui/ com o que sou/ com o que gostaria de ser.
Diante daquilo que confronta nosso narcisismo pela via da
diferença, a tendência à rivalidade se faz visível – ou Eu ou o Outro –
como se a existência de uma singularidade ameaçasse à outra, e
assim, não pudessem coexistir. A partir de então, abre-se uma disputa
pelo vencedor do ideal “melhor e mais correto”. Trata-se de uma
tentativa para apagar as diferenças do outro (e assim aniquilar o outro
em sua singularidade), de fazer um nivelamento do outro ao meu Eu (o
“correto”), de modo a negar o diferente (o “errado”) para afirmar o igual,
do Eu.
Sobre a questão da “repetição”, da sucessão de coisas “iguais”,
Freud deixa claro seu valor mortificante. A ausência de diferenças forma
uma linha única sem nuances e, deste modo, evitamos o desprazer das
tensões, mas ficamos amortecidos, posto que “somos feitos de modo a
só podermos derivar prazer intenso de um contraste”.10 É preciso que a
alternância aconteça para que possamos viver, “nada é mais difícil de
10 S. Freud, em “Mal Estar na Civilização”, p. 84
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suportar do que uma sucessão de dias belos”.11
b) Narciso acha feio o espelho que mostra sua feiúra: odeio aquilo que
se parece com uma parte que não gosto de mim.
Tudo que sou eu, gosto. Tudo que é “não-eu”, cuspo. Não aceito
porque me é “estrangeiro”, como um corpo estranho que rejeito dentro
de minhas entranhas. Detenhamo-nos então na explanação de Freud:
“A palavra ‘estranho’ parece nos remeter justamente ao oposto
do que é familiar; e somos tentados a concluir que aquilo que é
‘estranho’ é assustador precisamente porque não é conhecido
e familiar. Naturalmente, nem tudo que é novo e não familiar é
assustador, a relação não pode ser invertida. Só podemos
dizer que aquilo que é novo pode tornar-se facilmente
assustador e estranho; algumas novidades são assustadoras,
mas de modo algum todas elas. Algo tem de ser acrescentado
ao que é novo e não familiar, para torná-lo estranho”.12
Pois bem, algo tem de ser acrescentado ao novo para que este se
torne estranho. O que seria? Esse “algo” aparece como a imagem do
retorno do que fora reprimido outrora, ou seja, a categoria de estranho
(e por isso assustador) só se configura como tal, justamente por remeter
ao que é de conhecido, de velho, e há muito familiar. Trata-se de um
movimento de defesa, que “levou o Eu a projetar para fora aquele
material, como algo estranho a si mesmo”.13
11 Frase de Goethe citada por Freud. Idem.
12 S. Freud, em “O Estranho”, p. 239.
13 Idem, p. 253-254.
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O que de estranho, de novo e de mesmo o outro me traz? Quando
a imagem do outro é insuportável? O que vejo? O que de mim vejo
refletido de tão insuportável?
Notemos que aqui há uma virada: o estranho, só é estranho,
porque não nos é estranho. O estranho nos é familiar no inconsciente.
Assim, o ódio sentido pelo que é supostamente estranho e distante de
nós, é o ódio pelo que nos é mais familiar e mais próximo.
Há também uma outra forma de hostilização do outro que se
apresenta com sua face mais fria: a violência da indiferença à diferença.
Não se trata mais de não querer reconhecer que o outro é diferente e
querer igualá-lo ao Eu, mas de colocar o outro, já de antemão, em uma
posição de invisibilidade, onde esteja apagado, e assim, inexistente.
Como consequência, não é de se surpreender que diversas atitudes
intolerantes sejam vistas com indiferença, posto que o objeto para o
qual tais atos se dirigem, se encontre fora do campo de visão, fora de
qualquer laço, seja ele de amor ou de ódio.
EDUCAÇÃO NARCÍSICA: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO
Diante dessas abordagens sobre intolerância ao diferente,
podemos agora nos reportarmos à questão da educação dos filhos
propagada nos núcleos familiares. É óbvio dizer (e justamente por ser
óbvio, pouco visitado), mas a criança é um outro, um “não-Eu”, que não
vem ao mundo para ser uma mera reprodução dos pais. Por isso, a
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criança, desde bebê, ainda que dependente física e psicologicamente
de seus cuidadores, já é um ser com autonomia de escolha. O bebê tem
seus próprios desejos e os maneja de um jeito muito particular.
Não obstante, é comum a criança ser posta como um simples
prolongamento do Eu dos pais (ou cuidadores). A projeção narcísica dos
pais na criança faz desta, um objeto ideal (voltamos à questão dos
ideais). Atribuem a seus filhos todas as perfeições, reivindicam a eles
todos os privilégios que um dia tiveram que renunciar, os poupam de
restrições sociais e projetam-lhes uma gama de desejos frustrados:
“A criança deve satisfazer os sonhos e os desejos nunca
realizados dos pais, tornar-se um grande homem e herói no
lugar do pai, ou desposar um príncipe, a título de indenização
tardia da mãe. O ponto mais vulnerável do sistema narcísico, a
imortalidade do Eu, tão duramente encurralado pela realidade,
ganha, assim, um refúgio seguro abrigando-se na criança”.14
Pensar em uma educação guiada por esses moldes é pensar a
família como célula que educa para célula, e não para um organismo
inteiro - social. Ensimesmada, essa célula vai se corroendo dia-a-dia e,
parodiando Caetano Veloso, constrói dulcíssima prisão, mas não
encontra a mais justa equação. Na mesma ce(lu)la familiar, se retraem
todos, manifestando a educação do campo do fechado, do “sem poros”
para a alteridade. Quanto mais narcísica é a educação, mais o indivíduo
14 S. Freud, em “A Guisa de Introdução ao Narcisismo”, p. 110.
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se encolhe, dobra-se sobre si - nada entra, mas também nada sai - as
janelas ficam fechadas para receber a luz que emana do outro.
Segundo Freud, há um “conflito entre a família e a comunidade maior a
que o indivíduo pertence [...]. Quanto mais estreitamente os membros
de uma família se achem mutuamente ligados, com mais freqüência
tendem a se apartarem dos outros e mais difícil lhes é ingressar no
círculo mais amplo da cidade [...]. Separar-se da família torna-se uma
tarefa com que todo jovem se defronta.”15
Podemos afirmar que o ingresso dos indivíduos na sociedade é
um mal necessário. Mal porque implica o desprazer, o mal-estar oriundo
da necessidade de impor limites ao próprio desejo em função de um
coletivo, estranho e hostil. Necessário, porque, entre outras coisas, é na
vida em sociedade que o indivíduo poderá se desenvolver para além de
seu universo umbilical. De acordo com Aristóteles16, o ser humano é
um animal político por natureza, porque é um animal de linguagem.
Para o filósofo, somos seres que nos realizamos como cidadãos na vida
política da cidade (pólis). O simples viver junto, gregário, era para
Aristóteles algo importante, porém, ainda não diferia os homens de
algumas espécies de animais. Já o viver na pólis sim, posto que a
complexidade da organização política levaria aos homens o
desenvolvimento de novos modos de se relacionar, a fim de que não 15 S. Freud, em “Mal Estar na Civilização”, p. 108-109.
16 “A Política”.
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apenas vivessem, mas vivessem bem.
Quando nos propomos a vislumbrar uma educação que se
direcione para além do narcisismo (a expressão “para além” não deve
ser entendida como a tentativa de destruir o narcisismo, mas sim de
contemplá-lo em suas necessidades, de modo que estas não se
configurem como um “ponto final”), pensamos em uma educação que
impulsione o indivíduo a ir além do conhecido, do familiar, do privado.
Nesse sentido, vale lembrar a importância do pensamento de Hannah
Arendt17 a respeito das esferas pública e privada. De acordo com a
filósofa, a esfera privada diz respeito às necessidades individuais, já a
esfera pública, remete ao espaço em comum, à liberdade da ação em
conjunto, da manifestação política. As duas esferas se fazem
necessárias, mas a esfera privada precisa ser superada pela esfera
pública.
Quando o mundo privado é posto acima do público, há uma
suspensão ética do laço social (e político). Como ilustração, tomemos o
exemplo dos pais que esperam seus filhos saírem da escola com seus
carros parados em fila dupla. Essa é uma boa situação para
constatarmos a indiferença com a vida pública – apagada até a
inexistência. A crença de que sempre possa existir algo “acima de tudo”
faz com que os sujeitos se coloquem como exceções, acima da rede da
17 “A Condição Humana”.
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vida que enlaça à todos no estar no mundo – o individualismo (ou
narcisismo) quando elevado, coloca em risco todo o coletivo planetário.
Para Arendt, fugir na interioridade à procura de duração, precisão
e segurança é um caminho sem saída que conduz à autodestruição
narcísica. Uma sociedade pautada na intimidade da vida privada rouba
os homens sua faculdade e sua vontade de ultrapassar limites e
interromper processos automáticos. Essa capacidade política precisa da
distância narcísica, da diferença e da pluralidade encontrada na esfera
pública. Arendt propõe o cultivo de um “ethos da distância”, a fim de que
os indivíduos levem a sério a incomensurabilidade existente entre o eu
e o outro (o que impede sua incorporação narcisista). A aposta é que
esse cultivo da distância nas relações possa estabelecer uma relação
nova e somatória, onde o outro não mais apenas confirme o que em nós
já é existente, e sim, traga-nos o que é inexistente em nossa história,
em nosso presente e em nosso ideal. Através dessas relações que nos
levem para além de nossa própria descoberta no outro, seria possível a
invenção de novos “Eus”, por meio da observação dos diversos modos
de existência alheios.
Embora tenhamos a tendência de ver o outro como nossa
projeção, ou seja, através da lente do nosso narcisismo, ainda assim é
possível reconhecermos a existência, de fato, de um outro, que não se
configura apenas como nossa extensão. E ainda que não consigamos
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enxergar essa singularidade/alteridade, é possível reconhecermos que
ali existe um limite – do outro, e portanto, nosso. Deste modo, não é
preciso que haja laço amoroso para respeitar algo. Daí a o sentido da
tolerância: tolerar é o mínimo, e talvez o primeiro passo para que
possamos alçar novos modos de enxergar e se relacionar com o outro.
É necessário que a diferença não seja indiferente – ela tem que
fazer valer sua singular distinção. Dizer que somos todos um, não
significa afirmar que somos todos iguais. A proposta é que o outro seja
tratado realmente como estranho, e não como o estranhamente familiar.
Não é pelo direito à igualdade, e sim pelo direito à diferença que
precisamos nos educar. A questão aqui colocada não é a aspiração pela
superação das distâncias entre os seres, mas sim, pelo respeito,
admissão e manutenção dos distanciamentos. Note que para ler esse
texto, é necessário um espaço entre você e essas letras; Se a distância
for muito grande ou então quase nula, você não poderá indentificar o
que aqui se faz escrito. Do mesmo modo são marcardas nossas outras
relações: precisamos de diferenças e espaços para podermos perceber
e reconhecer a existência do outro, e a nossa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: EDUCAÇÃO, NARCISMO E REALIDADE
No centro de seus narcisismos, os indivíduos se encontram muito
bem instalados e confortáveis. Contudo, “o infantilismo está destinado a
ser superado. Os homens não podem permanecer crianças para
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sempre; têm de, por fim, sair para a ‘vida hostil’. Podemos chamar isso
de ‘educação para a realidade’”, diz Freud.18
Educação para a Realidade. O que podemos entender por esse
termo:
“A educação não prepara os jovens para a agressividade da
qual se acham destinados a se tornarem objetos. Ao
encaminhar os jovens para a vida com essa falsa orientação
psicológica, a educação se comporta como se se devesse
equipar pessoas que partem para uma expedição polar com
trajes de verão e mapas dos lagos italianos. Torna-se evidente,
nesse fato, que se está fazendo um certo mau uso das
exigências éticas. A rigidez dessas exigências não causaria
tanto prejuízo se a educação dissesse: ‘É assim que os
homens deveriam ser, para serem felizes e tornarem os outros
felizes, mas terão de levar em conta de que eles não são
assim.’”19
Gostaríamos de ser somente beleza, bondade e perfeição. Mas
não somos assim, e precisamos, no mínimo, tolerar a constatação da
realidade que abre feridas em nosso narcisismo - realidade de que
somos seres cindidos, divididos entre elevadas aspirações e “baixas”
inspirações. E, no que concerne a questão da presença do mal na
condição humana, como parte de sua própria constituição, ainda que
renegada, Freud faz a crítica:
“’As criancinhas não gostam’ quando se fala na inata inclinação 18 “Futuro de uma Ilusão”, p. 57
19 S. Freud, em “O Mal Estar na Civilização”, p. 137 (nota de rodapé).
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humana para a ‘ruindade’, a agressividade e a destrutividade, e
também para a crueldade. Deus nos criou à imagem de Sua
própria perfeição; ninguém deseja que lhe lembrem como é
difícil reconciliar a inegável existência do mal com Seu poder e
Sua bondade”.20
Não obstante, incluir o mal na estrutura humana não implica
resignação e nem prescrições de cartilhas que ensinem resoluções
certeiras. É preciso, pois, assumir a verdade do mal nas práticas
cotidianas e buscar modos criativos para lidar com sua presença, a fim
de que o pior não aconteça – a saber: a barbárie. Theodor Adorno21, fala
da necessidade de pensarmos uma educação que tenha como meta
evitar a barbárie. De acordo com ele, para que as experiências de
barbárie não se repitam, é preciso identificar e modificar as condições
que levaram à existência das mesmas. Um ato intolerante é sempre
precedido por outro ato, e temos a tendência de olhar para o que foi ou
para o que pode ser, mas não para as coisas em eminência de
acontecer (ou que estão acontecendo) – o mal muitas vezes é
imperceptível à nossa sensibilidade encapsulada, por isso, é necessário
atenção para identificar circunstâncias onde o mal se desenvolve
livremente. Desta maneira, para uma educação que evite o pior, é
necessário que haja espaço para a admissão da existência do mal e a
partir de então, que se criem os limites oriundos de posicionamentos
20 Idem, p. 124.
21 “Educação após Auschwitz”
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éticos dos sujeitos, para que o intolerável do mal, não seja por fim,
considerado indiferente e “tolerável”.
Educar almejando tolerância significa ir além da ordenação
narcisista tendo em vista a realidade do próprio narcisismo. Impossível
não causar feridas, não mexer no que Narciso não quer ver, não
balançar seus ideais. Para tanto, uma “educação para a realidade”
apontada por Freud, pode fornecer uma base sólida para que
caminhemos à uma organização social que ultrapasse o narcisismo.
Assim, educar para a realidade é levar em conta os limites do Eu, do
outro, da sociedade e do mundo (enquanto planeta), e também estar
ciente dos próprios limites da educação sem com isso resignar-se
diante do impossível: sempre restará em nós uma parcela de “natureza
inconquistável”. É necessário a aceitação de que coisas consideradas
como feias, más, sujas e destrutivas existam e que tenham os seus
lugares, sem que com isso, tenhamos que aceitá-las em todas as suas
formas de manifestações.
Que essa consciência do abismo entre o que somos e o que
gostaríamos de ser/ver, não sirva como pretexto à paralisia e a
desistência, mas sim, à exploração criativa de novas possibilidades
nesse interstício. Que continuemos buscando a construção de uma
ética educacional habitável, ou seja, menos divina/idealizada – e por
isso irrealizável – e sim, mais terrena, de modo a abranjer a realidade
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de nossas “imperfeições” sem no entanto, cair em levianos
conformismos. Que nos lancemos à tarefa de educarmo-nos, mesmo
sabendo do antagonismo irremediável entre nossas exigências internas
e as restrições da civilização. E que mesmo diante das dificuldades,
continuemos educando-nos para além do narcisismo.
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