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As relações entre política indigenista e repressão política a indígenas em Minas
Gerais durante a ditadura
Juliana Ventura de Souza Fernandes
VERSÃO PRELIMINAR – NÃO CONCLUÍDA
A partir dos anos 1960 vários veículos de imprensa e antropólogos passaram a
denunciar as condições de tratamento dos índios e esquemas de favorecimento de
grupos econômicos proeminentes. Foi assim que o Ministro do Interior, Albuquerque
Lima, criou em 1967 em Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o SPI.
Presida pelo Procurador Jader Figueiredo Correia, a Comissão de Inquérito do
Ministério do Interior percorreu mais de 16000 quilômetros pelos recônditos do Brasil,
visitando aproximadamente 130 Postos Indígenas e entrevistando dezenas de agentes do
Serviço de Proteção ao Índio (SPI)1. Como resultado, a equipe produziu um extenso
relatório de atividades, contendo inúmeras denúncias de corrupção financeira, relatos de
apropriações ilegais de terras indígenas e informes sobre graves violações de direitos
humanos praticadas contra diversas etnias. Dentre os crimes denunciados encontram-se
assassinatos individuais e coletivos, prostituição de índias, sevícias, trabalho escravo,
usurpação de trabalho indígena, apropriação e desvio de recursos provenientes de seu
patrimônio e cárcere privado2.
Na época, conforme sugere levantamento realizado em jornais, o Ministério do
Interior realizou uma coletiva de imprensa para apresentar alguns dos resultados das
investigações. Contudo, vários arquivos contendo documentos que serviram de base
para o inquérito de Figueiredo foram, de forma criminosa, incendiados pelo Ministério
da Agricultura, órgão que estava subordinado ao Serviço de Proteção ao Índio (SPI)3.
Acreditava-se que o relatório completo também teria sido perdido dessa maneira. O
Relatório Figueiredo, conforme ficou conhecido – estava desaparecido desde o final de
1968, quando Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais – São Paulo
1 DAVES, Shelton. Vítimas do Milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1978. 2 COMISSÃO DE JUSTIÇA E PAZ et all. Povos Indígenas e Ditadura Militar. Subsídios à Comissão
Nacional da Verdade, 2012. 3 Ibidem, p.9.
e a jornalista Laura Capriglione encontraram parte expressiva dele em uma pesquisa ao
acervo do Museu do Índio em 2013.
A “Lista de Indiciados do Relatório Figueiredo” contém os nomes de doze
funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) que, conforme sugeriram as
investigações de Figueiredo, deveriam ser exonerados e processados. A lista continha o
nome do Major-Aviador Luis Vinhas Neves, Diretor do Serviço de Proteção ao Índio.
Neves havia sido nomeado por Castelo Branco e contra ele pesava, além da acusação da
prática de tortura, a denúncia de extermínio de duas aldeias Pataxós na Bahia, por meio
da inoculação do vírus da varíola4. Outros inúmeros funcionários foram denunciados
pela prática de tortura.
Frente ao contexto denunciado pelo Relatório Figueiredo, a Fundação Nacional
do Índio, a FUNAI, foi criada em 1967 com o propósito de substituir o Serviço de
Proteção aos Índios na tarefa de ofertar “assistência” e “proteção” às populações
indígenas. Sua implantação fez parte de uma estratégia que visava recuperar a imagem
do Estado brasileiro em relação ao problema do indígena, tendo-se em vista a
divulgação dos conflitos que envolviam a invasão de suas terras, os desvios de recursos
por funcionários do SPI e as denúncias de violências sofridas pelos indígenas5,
veiculadas pela imprensa nacional e internacional.
A mudança institucional não alterou, contudo, o estatuto jurídico do indígena,
que permaneceu considerado como “passível de tutela” e “relativamente incapaz”6,
padrão que se perpetuava desde o estabelecido no Código Civil de 1916. O modelo
desenvolvimentista assumido pelo regime ditatorial contribui, em alguma medida, para
esclarecer a continuidade de práticas e métodos de gestão adotados pelo SPI,
exemplificada pelo investimento inicial da FUNAI em reequipar antigos Postos
4 Ibidem, p. 12. 5 BIGIO, Elias dos Santos. A ação indigenista brasileira sob a influência militar e da Nova República
(1967-1990). Revistas de Estudos e Pesquisas – FUNAI, v. 4, n. 2, p. 13-93, 2007 e CORRÊA, José
Gabriel Silveira. Tutela & Desenvolvimento/Tutelando o Desenvolvimento: questões quanto à
administração do trabalho indígena na Fundação Nacional do Índio. 2008. 274f. Tese (Doutorado em
Antropologia Social), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. 6 CORRÊA, José Gabriel Silveira. A proteção que faltava: o Reformatório Agrícola Indígena Krenak e a
administração estatal dos índios. Arquivos do Museu Nacional, Rio de Janeiro, v. 61, p. 129-146, 2003.
Indígenas (PI), órgãos de administração local ou regionalizados previstos pela estrutura
organizacional do Serviço de Proteção aos Índios7.
Dentre as propostas de trabalho apresentadas pela FUNAI no final da década de
1960, alguns Postos receberam destaque, com previsão de implantação de projetos
específicos, sobretudo para aqueles que serviriam como “suporte” às atividades estatais
de “ocupação” da Amazônia. Tratam-se aqui das áreas de execução das grandes obras
de infraestrutura, das rodovias, de ampliação da exploração mineração e da
agroindústria, sobretudo no Norte e Centro-Oeste do país.
O governo ditatorial buscando enfrentar os problemas econômicos existentes no
Brasil dos anos 1960 – principalmente a baixa capacidade de exportação do país e as
deficiências no sistema nacional de financiamento, que geravam efeitos negativos sobre
as finanças públicas e inflação, implantou uma série de reformas institucionais. Dentre
elas destacam-se, como discute Wilson Cano, “o amplo espectro de incentivos fiscais e
financeiros que passaram a ser concedidos às exportações e ao mercado de capitais”8.
Um dos setores mais beneficiados foi o agropecuário, com a implantação de um novo
sistema de crédito rural especialmente voltado para os setores exportadores
agroindustriais.
A equipe de Delfim Netto (1969-1974) deu prioridade à agricultura por vários
motivos. O primeiro deles referia-se ao elevado percentual que a alimentação
representava no custo de vida da população brasileira. O problema da inflação tenderia a
perdurar se a produção agrícola não acompanhasse minimamente a crescente demanda
gerada pelas rendas reais urbanas mais altas e pelo crescimento da população. Em
segundo lugar, dentro desse projeto, o Brasil precisava aumentar rapidamente suas
exportações e os produtos agrícolas seriam aqueles que mais facilmente poderiam ser
exportados em curto prazo. Por fim, o aumento da renda rural tenderia a conter o êxodo
para as cidades, cuja infraestrutura já estava sobrecarregada9.
7 CORRÊA, José Gabriel Silveira. Tutela & Desenvolvimento/Tutelando o Desenvolvimento: questões
quanto à administração do trabalho indígena na Fundação Nacional do Índio. 2008. 274f. Tese
(Doutorado em Antropologia Social), Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. 8 CANO, Wilson. Milagre Brasileiro: Antecedentes e Principais Consequências Econômicas. In 1964-
2004. 40 anos do Golpe; Ditadura Militar e Resistência no Brasil. 2004, Rio de Janeiro. Anais. Rio de
Janeiro, 7 Letras e FAPERJ, 2004. p. 226- 238. (p. 230). 9 SKIDMORE, Thomas. BRASIL: de Castelo e Tancredo (1964-1985). São Paulo: Paz e Terra, 1988.
A expansão da produção agrícola se vez no contexto da chamada modernização
conservadora a partir da transferência de contingentes populacionais de regiões rurais
pobres para o Centro-Oeste e parte da Amazônia10. A chegada desses novos colonos
esteve associada a conflitos com as populações indígenas locais, que resultaram na
expulsão dessas comunidades, em migrações forçadas e mortes11, como já observava em
1978 Shelton Davis em Vítimas do Milagre.
A política indigenista dialogou com essa perspectiva. Poderíamos lembrar, por
exemplo, que o primeiro curso de treinamento de técnicos em indigenismo realizado em
1970 pela FUNAI incluía conteúdos relativos à assimilação dos indígenas a dita cultura
nacional pela via da inserção no mercado de mão de obra rural ou na sua contenção
como campesinato. (Antonio Carlos de Souza Lima)
O uso do trabalho agrícola indígena e a implantação de ações de
“desenvolvimento econômico” foram bastante comuns, mesmo antes do período
ditatorial. Contudo, de acordo com João Pacheco de Oliveira, “a ideia de integração do
índio mediante a preservação de sua condição camponesa, que parece presente em
vários artigos do Estatuto do Índio é muito mais claramente realizada pela atuação da
FUNAI que pelo SPI” (1998). Essa foi uma das formas primordiais do exercício da
tutela indígena.
No caso de Minas Gerais, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), incapaz de
conter os conflitos fundiários entre indígenas e fazendeiros, já havia solicitado o auxílio
da Polícia Militar do estado, antes mesmo da criação da FUNAI, em meados da década
de 1960. Formalizado convênio entre os governos federal e estadual, um Destacamento
da Polícia foi instalado no interior do território indígena. Nos discursos oficiais, a
medida estaria associada à necessidade de “proteção” do indígena, uma vez que
“famintos” e “alcoolizados”, acabavam praticando assaltos e pilhagens nas fazendas da
10 CANO, Wilson. Milagre Brasileiro: Antecedentes e Principais Consequências Econômicas. In 1964-
2004. 40 anos do Golpe; Ditadura Militar e Resistência no Brasil. 2004, Rio de Janeiro. Anais. Rio de
Janeiro, 7 Letras e FAPERJ, 2004. p. 226- 238. (p. 233). 11 É o caso dos Xavantes,e Karajás, por exemplo, tal como analisado por Shelton Davis em Vítimas do
Milagre. DAVES, Shelton. Vítimas do Milagre: o desenvolvimento e os índios do Brasil. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1978.
região12. As primeiras atividades da PM mineira remontam ao ano de 1969 e tratam da
transferência de indígenas de diferentes etnias para o Posto Indígena Guido Maliere13
A atuação da AJMB, o órgão responsável pela administração dos Postos, agora
sob o comando da PM, buscou logo seu principal objetivo: por fim aos atritos entre
índios e não-índios nas áreas indígenas e seu entorno, que haviam se disseminado pela
década de 1960 com invasões e ataques. Para realizar esta espécie de (re)pacificação
(léxico que já vinha do repertório do SPI) a chefia da Ajudância passou a se ater a dois
eixos de ação: o controle das áreas e populações sob sua administração e o
desenvolvimento de atividades (econômicas), visando educar e manter os índios no
trabalho”14. (Aqui é interessante observar as tensões desse exercício tutelar entre ação
de cuidado e ao mesmo tempo pedagógica, que dialoga com tradições outras no trato do
indígena como missionárias).
O trabalho agrícola tinha como intuito garantir a educação/recuperação dos
indígenas que apresentavam o que se considerava “mau comportamento” (os índios
ditos ócio, alcoolismo) e também garantir a auto-suficiência dos postos indígenas
através da transformação dos tutelados em produtores agrícolas e dos postos em
unidades economicamente produtivas.
O exercício da tutela, que no caso de Minas Gerais foi realizado ao menos de
1967 a 1972 em estreita associação da FUNAI com a PM, pode ser definido como o
poder do Estado de circunscrever espaços e identificar e delimitar segmentos sociais
considerados desprovidos das capacidades plenas necessárias a dita vida cívica. Por esta
incapacidade relativa ou hipossuficiência, conforme o linguajar jurídico da época, esses
segmentos sociais foram considerados carentes de uma proteção especial e de uma
mediação ‘pedagógica’ que lhes compensasse a posição relativamente inferior em sua
inserção na comunidade política15.
Em suas atividades de “atração”, o poder tutelar criava postos indígenas com a
função de servirem de pontos de agregação (e porque não de segregação?), controlando
12 FREITAS, Ednaldo Bezerra. A Guarda Rural Indígena – GRIN: Aspectos da Militarização da Política
Indigenista no Brasil. In: Simpósio Nacional de História da ANPUH, XXVI, 2011, São Paulo. Anais
Eletrônicos do XXVI Simpósio Nacional de História da ANPUH. Disponível em:
http://www.ifch.unicamp.br/ihb/SNH2011/TextoEdinaldoBF.pdf. 13 A ORDEM A SE PRESERVAR 14 IDEM. 15 SOUZA-LIMA, Antonio Carlos. O exercício da tutela sobre os povos indígenas: considerações para o
entendimento das políticas indigenistas no Brasil contemporâneo. Revista de Antropologia. 2012.
e limitando sua circulação. Ao mesmo tempo, incluía coletividades e terras numa rede
nacional de vigilância e controle a partir de um centro de poder. A denominação aqui
não nos parece fortuita. Posto faz referência ao sistema hierárquico e à ação militar.
Nesse sentido, é interessante observar que “em sociedades surgidas de conquistas (no
sentido da conquista do território), como a nossa, a relação entre o controle de recursos
(primordialmente a terra) nos territórios conquistados ou unificados e o status que esses
grupos sociais que estavam presentes assumirão nessa sociedade são sempre um questão
para o Estado. Lembramos de Foucault (Segurança, Território e População) que destaca
que a estratégia de segmentação, via hierarquização e classificação torna-se uma das
principais formas de exercício de controle do Estado, já que de uma lado circunscreve
populações e de outro as integra na nação.
O paradoxo da tutela aqui, conforme discute Antonio de Souza Lima é de pra
que as populações indígenas tenham acesso a algum direito ou proteção básica foi a
autenticação da sua incapacidade para se tornarem cidadãos, com a necessidade de uma
agência estatal capaz de governá-los para isso representando-os politicamente” (p.
802).
Já no início da atuação da PM, em um relatório endereçado à FUNAI, o Capitão
da Polícia Militar, Manoel Pinheiro, enviava notícias sobre os “bem-sucedidos” feitos
da vigilância policial nas aldeias e sugeria que se criasse uma Guarda Indígena
Nacional, custeada pela FUNAI e treinada pela PM. Iniciaram-se discussões envolvendo
o órgão indigenista, o Governador de Minas Gerais, Israel Pinheiro e o Comandante da
Polícia Militar, Coronel José Ortiga. O sucesso dessas negociações conduziu à
organização da GRIN.
A Guarda Rural Indígena (GRIN) foi formalmente criada pela Portaria nº. 231
da Presidência da FUNAI, em 25 de setembro de 1969, tendo como principal objetivo a
constituição de uma milícia destinada ao policiamento das áreas reservadas aos
indígenas. Possuía também entre seus propósitos a manutenção da ordem interna nas
aldeias, a repressão dos deslocamentos de indígenas, a imposição de trabalhos e a
denúncia de indígenas considerados infratores a destacamentos da polícia16.
Capitão Pinheiro passou cerca de seis meses percorrendo aldeias e alistando
índios. Como critérios de escolha dos componentes da Guarda, levou em consideração a
16 CORREA, 2003. Op. Cit.
“capacidade de liderança” do indígena, seus laços familiares e costumes apropriados,
como recusa ao uso de bebidas alcoólicas. Quanto à seleção das etnias, seu critério foi
priorizar áreas indígenas em que houvesse conflitos fundiários mais contundentes. Os
futuros guardas indígenas receberiam fardamentos, armas e salário mensal,
correspondente a um salário mínimo regional, despendido pela FUNAI17.
A solenidade de formatura da primeira turma da GRIN aconteceu no Batalhão
Voluntários da Pátria, no Bairro Prado, Belo Horizonte, em cinco de fevereiro de 1970.
Estiveram presentes autoridades estaduais e federais, como o Ministro do Interior,
General José Costa Cavalcanti, o Governador de Minas Gerais, Israel Pinheiro, o Vice-
Presidente do governo Castelo Branco, José Maria Alkmin, o Presidente da FUNAI,
José Queirós Campos, o Comandante da 4ª Divisão de Infantaria, General Gentil
Marcondes, Secretários de Governo e o Comandante da Polícia Militar, Coronel José
Ortiga18.
Todas essas autoridades presenciaram o desfile de 84 indígenas de diferentes
etnias que, uniformizados, demonstravam seus recentes aprendizados em técnicas de
imobilização e torturas, notadamente, o pau-de-arara. Enquanto isso, seu idealizador,
Capitão Manoel Pinheiro, esclarecia aos presentes que o principal propósito da Guarda
Rural Indígena seria introduzir “ordem” e “disciplina” entre os índios. Após sua
implantação, a GRIN passou a patrulhar as aldeias de forma sistemática e aqueles
indígenas considerados “perigosos” sofreriam detenção.
Na prática, já em junho de 1970, o jornal “O Estado de São Paulo” noticiava que
“a apuração de atos de espancamento, arbitrariedade e insubordinação cometidos pela
recém-criada Guarda Indígena” seria o primeiro problema enfrentado pelo general
Bandeira de Melo, que logo assumiria a presidência da FUNAI. Antropólogos (CIMI)
denunciavam a implantação de um sistema policialesco no meio indígena, que difundiu
amplamente métodos de espionagem e delações19. Entretanto, como aborda o trabalho
de José Gabriel Correa, a FUNAI chegou a considerar a estratégia um sucesso, já que
17 FREITAS, 2011. Op. Cit. 18 FOLHA DE SÃO PAULO. Como a ditadura ensinou técnicas de tortura à Guarda Rural Indígena.
Ilustríssima. 11/11/2012. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2012/11/1182605-como-a-ditadura-ensinou-tecnicas-de-
tortura-a-guarda-rural-indigena.shtml 19 FREITAS, 2011. Op. Cit.
“estimulava o trabalho indígena, combatendo o ócio”20. A GRIN funcionaria até 1974,
tendo uma atuação decisiva para a implantação e manutenção de outro dispositivo da
política de repressão ao indígena: o Reformatório Agrícola Indígena Krenak.
O Reformatório Krenak, paradigma de programa de “recuperação” dos índios,
destinava-se, principalmente, aos indígenas que opunham resistência às ordens dos
administradores de aldeias ou que fossem considerados “desajustados socialmente”: os
que se envolviam em “desordens”, “ócio”, “vadiagem”, “embriaguez” e prática sexual
“inapropriada”. A tarefa da GRIN consistia principalmente em garantir que os indígenas
encarcerados seguissem a orientação do Reformatório: “fazer com que o índio visto e
tratado como problema viesse a se reeducar e ser um índio bom”21.
Enquanto a Guarda Rural Indígena foi composta por indígenas considerados de
“excepcional comportamento”, os indígenas avaliados como “delinquentes” foram
mantidos no Reformatório em regime de cárcere privado, sofrendo torturas e
confinamento em “solitária”, além de lhes serem impostas atividades agrícolas forçadas
realizadas sob forte controle da GRIN e da Polícia Militar. No Krenak, os indígenas
eram também impedidos de falar em sua própria língua e caso insistissem, recebiam
punições. Muitos não conheciam o português. Karajá, Maxakali, Pataxó, Xerente e os
próprios Krenak estão entre as etnias que tiveram membros presos no Reformatório
entre 1969-72 (94 pessoas).
A primeira vista, um recurso dessa magnitude de violência pode parecer uma
excepcionalidade nesse tipo de política tutelar aplicada às populações indígenas.
Porém, vale lembrar que o PIGM além de abrigar o Reformatório foi um dos pontos de
atração e aldeamento comumente utilizados em Minas Gerais durante a ditadura para
conter populações indígenas de diferentes etnias. Embora determinadas práticas
violentas, como a tortura, tenha se destinado aos índios propriamente presos, não se
pode dizer que práticas da disciplina militar e o trabalho agrícola forçado, por exemplo,
não fossem amplamente utilizados em relação a todos os aldeados. “Nos quase quatro
anos de funcionamento do reformatório concomitante ao do posto indígena, as duas
instituições que ‘deveriam’ respectivamente cuidar da reeducação dos índios
20 FREITAS, 2011. Op. Cit.
21 CORREA, 2003. Op. Cit.
delinquentes e prestar assistência a eles estiveram sob uma única orientação e
administração” (p. 129).
A questão em torno de que tipo de atividade era desenvolvido pela AJMB, se
policial ou assistencial, precisa ser complexificada. Apesar da execução das ações
tutelares terem estado a cargo de policiais militares e as tarefas incluirem atividades de
controle e vigilância, não se pode reduzir esta atuação a uma mera administração
policial dos índios. Documentos da época dão conta de que a polícia militar buscou
centrar e fundamentar sua ação em diretrizes e exemplos existentes na ação tutelar
estatal como um todo. O sargento da PM Antonio Vicente Segundo, por exemplo, que
foi chefe do PIGM e do reformatório, se interessou em participar do curso de técnico em
indigenismo da FUNAI em 1971. Ao mesmo tempo, a própria atividade tutelar
implicava ‘tarefas’ semelhantes a realizada pela polícia demonstrando a ambiguidade
presente na ação tutelar de proteger e punir indígenas – não apenas na sua dimensão
estatal, mas em todas as instituições que a exerceram.
A implantação da Guarda Rural Indígena trouxe um impacto relevante sobre a
organização social das comunidades indígenas localizadas em Minas Gerais, dados os
fluxos migratórios que incluíam povos do CO e NE. Poderíamos sugerir que a
implantação da Guarda significou uma espécie de substituição dos ritos tradicionais,
específicos entre si para cada uma delas, dessas comunidades pelos ritos militares,
marcados pela perspectiva de uma nova hierarquia e destinação de violência aos
“parentes” que provavelmente não teria lugar sem essa experiência intercultural, ao
menos não dessa forma22 (CITAR A NOTA).
No caso dos indígenas localizados no território mineiro no contexto da ditadura,
os parâmetros de autoridade se subverteram decisivamente. O corpo “sede” dessa
autoridade foi muitas vezes assumido por um elemento externo da comunidade – um
militar. Essa subversão esteve não apenas relacionada à suspensão da possibilidade de
que as práticas culturais indígenas fossem desenvolvidas no interior dos Postos, o que
caracteriza uma violência simbólica, mas especialmente ao emprego de uma violência
corporal sistemática, que violou gravemente direitos humanos fundamentais dos
22 Tal como Marshall Sahlins propôs para o caso da comunidade havaiana. Cf. SAHLINS, Marshall.
Metáforas Históricas e Realidades Míticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. (Conferência de 1981).
indígenas. O aspecto talvez mais significativo dessa experiência de violência se refere
ao fato dela ter sido aplicada, inúmeras vezes, por membros das próprias etnias.
A respeito dos impactos sociais e culturais da GRIN para as etnias indígenas,
Alceu Mariz, funcionário da FUNAI à época de sua implantação, declarou:
“Ele (Manoel Pinheiro) era da Polícia Militar, mas trouxe essa idéia (de criação
da Guarda Rural Indígena) para a FUNAI, no início da década de 1970 e
conseguiu implantar, por influências. Então a idéia era formar militares
indígenas. Foi uma experiência desastrosa, das mais infelizes porque subverteu
toda a ordem social do grupo, elementos que eram escolhidos por critérios que
nada tinham a ver com os critérios da organização social do grupo e já não
respeitavam ninguém, não respeitavam os líderes, ele mesmo se tornava um
líder, imbuído de autoridade. Evidentemente, isso trouxe violência, levou a uma
violência interna crescente.
[...] Tinha (prisão para índio). A área do Krenak, que tinha sido inclusive uma
doação da própria Polícia Militar, lá na região de Carmésia, a Fazenda Guarani,
virou prisão. Quando eu entrei na FUNAI, a Fazenda Guarani era uma área-
prisão, uma masmorra. Era horrível!”23.
Em depoimento ao Ministério Público Federal – Seção Minas Gerais, Sônia
Krenak, que se tornou cozinheira na Fazenda Guarani, relata:
“E: O capitão Pinheiro é que mandou vocês para a Guarani? Sônia: É. E os
Maxakalis também. Ele que “saiu” os índios [...]. E: Mas por que o capitão
Pinheiro fazia isso? Sônia: O Capitão Pinheiro fazia isso por causa dos
fazendeiros. Acho que ele ganhava dos fazendeiros. Os fazendeiros arranjava
advogado paga isso, pagava aquilo e ele ataca nós. Eles tinham tudo polícia!
Nós era pouco. Onde atacava morria um bocado [...]. Ali morreu Chico, morreu
um menino do (?). [...] E: E como era lá na Fazenda Guarani? Acho que os
índios achavam muito frio. Não tinha peixe, não tinha nada para comer. Era só
banana. Se eles trazia arroz nos comia. Se eles não trazia arroz, nos comia
banana. Nos passamos aperto. Tinha uma cadeião; você tá vendo a casa caída?
Tinha um cadeião. Se fugiu, sofria na mão deles. Era assim. Eles queriam fazer
coisa para judiar de índio. Quem saía fora, eles prendiam quem bebia”24.
Para que se evidencie o caráter não excepcional desse tipo de prática, retomo um
documento encontrado na Assessoria de Segurança e Informação, a ASI da FUNAI. Em
23 Depoimento de Alceu Cotia Mariz. 2002. Revista da FUNAI.
III. 24 Depoimento fornecido por Sônia Krenak ao Ministério Público de Minas Gerais. Inquérito Civil
Público nº 1.22.000.000929/2013-49. Ministério Público Federal. Procuradoria da República em Minas
Gerais.
06 de setembro de 1977, a ASI da FUNAI envia um Pedido de Busca ao seu
Departamento Geral de Operações. Trata-se de uma solicitação de informações a
respeito de conflitos de terra envolvendo Xacriabá e fazendeiros em Itacarambi, no
Norte de Minas. O documento questiona a veracidade de informações recebidas a
respeito desse conflito, com destaque para a afirmação “de que as pessoas que tem
tomado a iniciativa de defender os caboclos são taxados de comunistas e agitadores,
como era o caso do padre alemão Geraldo Nalbach”.
Como resposta ao chefe da ASI, solicita-se a “demarcação da reserva indígena
mesmo considerando que os remanescentes estão já bastante distanciados de suas
origens pré-colombianas” como forma de minimizar conflitos e se anexa uma carta-
relatório do antropólogo Romeu Sabará da Silva, que havia permanecido na área, para
Ney Land em dezembro de 1974. Romeu Sabará da Silva informa que “para o Delegado
de Segurança Pública parece ter-se tornado inconveniente a nossa participação porque a
equipe possui um espírito critico que rejeitava suas tentativas de manobrar conosco para
seus próprios fins”.
Silva também afirma que a CAUÊ, um grupo ligado à industrialização do
calcário, possui uma fazenda agro-pastorial, dentro da antiga área dos Xacriabá,
“montada dentro dos moldes das mais perfeitas e modernas empresas”. Além deste,
outros grupos importantes atuam na área, cujos nomes não podemos levantar, ligados à
criação de gado e outros ligados à exploração de madeira. Constituem eles atualmente,
afirma,problema mais sério que os pequenos posseiros devido ao poder econômico que
representam aliado a um poder político não menos expressivo envolvendo governo do
Estado, RURALMINAS, INCRA, SUDENE.
Ao fim, ele destaque que “em face da previsão de desencadeamento de violência
é que desaconselhamos utilizar a GRIN. (....) O delegado que muitas vezes condenou a
GRIN pensou nesta solução para a área”.
A partir desse relato é interessante observar a possível existência de articulações
envolvendo poder público e diferentes agências de Estado, com a anuência da Delegacia
de Segurança Pública. Nesse caso, embora os Xacriabá e seu território estivem sob
ameaça, foi aventada, se o antropólogo estiver correto, a possibilidade de que a GRIN
atuasse na resolução dos conflitos nos levando a pergunta “repressão para quem”?
Também não deixa de chamar atenção que embora o antropólogo rechace a mobilização
da GRIN nessa ação, o fato dele incluí-la em sua argumentação já nos fornece uma ideia
a respeito de seu lugar social e de alguma possibilidade de legitimação entre o meio
indigenista mais proprimamente dito.
Bem, para concluir, gostaríamos de destacar que a forma de exercício tutelar
durante a ditadura se fez em linhas de continuidade, que incluíam a rotulação
genericamente coletividades, adscrevendo-as a espaços e práticas distintos dos seus
originais e num novo trabalho de semiotização, como define Antonio de Souza Lima,
operado agora por um agência de governo voltada especificamente para o exercício
tutelar que reconhece e enquadra entre índios e não índios a partir de categorias
próprias ao Estado.
Precisamos considerar que a experiência de Minas Gerais em relação à tutela
indígena na ditadura não é sincronicamente particular quando pensamos nos projetos da
ditadura aplicados a outras áreas, e que diacronicamente também dialogo com outras
práticas de tutela indígena com outros aplicados principalmente no período republicano
(o que impõe complexidades a trabalho de um historiador preocupado com esse recorte
temporal).
Contudo, podemos formular a hipótese de que a experiência de Minas seja
emblemática no sentido de conferir à tutela indígena o caráter militar presente e
geralmente negligenciado na análise das sociedades contratualistas, como sugerido por
Foucault. Nesse sentido, a força militar não apenas territorializa, fixa em unidades
administrativas e impõe um controle centralizado a redes sociais mas também fixa
formas disciplinares particulares. Nesse sentido, o exercício de poder tutelar integra
elementos das sociedades de soberania quanto das disciplinares, difundido em
agências e na malha administrativa criando experiência limite como a GRIN e o
Reformatório.
Como projeto de Brasil, essas práticas discutidas, contribuíram uma forma de
integração das populações indígenas proposta a partir de sua redução a um
campesinato rural, monetarizando essas populações, destituindo suas especificidades
culturais e atribuindo a elas a genérica categoria de pobres/carentes de intervenção do
estado. Se essa prática foi recorrente anteiormente, a associação entre
desenvolvimentismo e ditadura lhe ofereceu contornos particulares, que contribuíram
para o lugar assujeitamento do indígena de mero destinatário de política pública