Aparentemente, torta

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Aparentemente, Torta

Ele ajeitava a gravata. Retirava e recolocava

os ternos nos cabides. Uma interminável

indecisão sobre qual lhe caberia melhor. A

cor já era definida: todos eram pretos. Cor

que contrastava com as sobrancelhas

torneadas e os olhos cor de carvão. Talvez

sua cor preferida condizia com seu estado

espiritual. Ou então um paralelo entre as

combinações do branco do camisão e a

negritude do restante. Sempre um passeio

entre a luz e a escuridão. Idas e vindas em

pólos positivos e negativos: onde a mente

se permutava numa eterna confusão entre

as indecisões e as decisões, as obsessões e

as concretizações, as paranóias e as

verdades. Saulo era um pouco menos e um

poucos mais, tudo misturado.

Escolheu o do meio. Aquele entre o mais

mofado e o que não usava há uns dois dias,

pois havia uma pequena mancha de creme

na borda da manga esquerda.

Lembrou da confeitaria do Seu Joaquim.

Lugar que tinha a proeza de fazer a melhor

torta com creme da cidade, segundo ele.

Para Saulo, lá as tortas eram divinamente

bem feitas. Tinham uma pitada de desejo e

um gosto inconfundível de repetição. Um

passeio no delicioso prazer de sentir o

crocante da massa estalar nos dentes e o

creme brincar de escorregador pela língua.

No fechar dos olhos, conseguia sentir amor.

Nem as conversas paralelas em volta o

diminuíam do momento. A torta o trazia

paz. Uma degustação do sabor de

reciprocidade. As únicas meias palavras

necessárias para conquistá-la eram: “Me vê

uma, por favor”. Nem precisava exibir seu

currículo para tê-la em mãos. Nem recitar

poemas ou escrever cartas de amor. Ele era

dela. Por um momento.

O estabelecimento ficava esmagado entre

dois casebres de frente para a rua e

mergulhado na sombra do gigante prédio a

sua frente. Saulo trabalhava naquele

prédio. Nos intervalos do serviço não se

preocupava em ser das fofocas das

secretárias e muito menos das reclamações

do pessoal do RH pelo excesso de trabalho.

Procurava por ela. A torta que amava.

Naquele dia, apesar da mancha

deliberadamente pequena, Saulo vestiu

aquele terno mesmo. Era um dos mais

caros. Ou um dos mais bonitos. Pelo menos

o que mais encaixava no seu gosto

excentricamente crítico.

Gostava de ser notado na rua. Gostava de

sugar suspiros e perguntas de onde

trabalharia aquele homem tão bem

produzido. Ser um pouco daquele que teria

a vestimenta dilacerada por mãos sedentas

de prazer. Um pouco daquele que teria os

braços, as pernas, as mãos e os pés

amputados em cada parte para satisfazer a

todas em cada canto e em cada reduto. Ou

até mesmo aquele que pudesse instigar

apenas uma, sem expoente ou dizima

periódica.

Mas era sempre o contrário.

Talvez o que mais caracterizava ou dava a

entender suas olheiras, seu olhar

despendido e sua voz grave e baixa, fossem

o seu descontrole quanto a sua autoestima.

Um olhar de uma estranha qualquer em

uma ocasião aleatória, seja festa, trabalho

ou até mesmo uma caminhada pela rua,

para ele acrescentava; uma outra qualquer

na rua não o olhar o diminuía. Nunca era

sempre soma. Mesmo sabendo que não

passava de um pensamento estupidamente

inútil. Partia sempre do principio de que o

inconquistável significava uma

maximização da solidão em sua vida. Talvez

o seu passado ou suas experiências em ter

no colo o abandono, o fizesse se juntar as

migalhas e não ser escolhido nem pelos

passarinhos.

Mas Saulo se arrumava. Da melhor ou da

pior, o importante é que sua maneira era

sobressalente.

Na quinta de manhã o sol ficara tímido

atrás das nuvens e os ventos receosos

tateavam as peles cobertas de uma camada

brilhante de suor. Fazia calor. Nem um

pouco sutil. Ainda sim, Saulo não podia

abandonar o smoking. Os ossos do ofício

mais pareciam fraturas expostas. Ele não

preteria seu estilo. Batalhava junto das

folhas dobradas para tentar

inusitadamente um movimento de

ventilador com suas mãos. Abanava-se

tanto a ponto de quase simular um vôo.

Nem que por pouco, se refrescava.

Nesse dia nem passara no serviço. Fora de

encontro aos braços do ápice dos seus dias,

do inevitável e tão compreendido espaço

que lhe preenchia os vazios ora físicos, ora

psicológicos. Amava aquela torta.

Sentou na mesinha de frente para a rua. A

que dava para ver os transeuntes na

calçada e congelar os olhos no vazio de sua

sombra projetada próxima a enorme porta.

Tirou o paletó. Desapertou a gravata.

Soltou alguns botões da blusa e por pouco

não foi confundido com um GoGo Boy. A

pele brilhosa, que era resultado de um

cuidado teimoso e por vezes sistemático.

Nem as mãos davam chances aos calos.

Perpendicular a sua mesa, na tangente

entre os ângulos do Balcão e do caixa,

haviam duas mulheres assentadas. Estavam

a caráter. Maquiadas da testa a ponta do

dedão do pé. Provavelmente escapuliram

da sapataria a poucas quadras dali para ir

devorar alguma torta ou simplesmente

tomar um Milk-shake.

De imediato se conteve. Não queria passar

a imagem de um depravado. Muito menos

tentar garimpar o coração ou o olhar das

moças com músculos não muito definidos.

Apertou novamente a gravata e pediu um

chá gelado enquanto a torta não ficava

pronta.

No teto acima da mesa onde se

encontrava, ficava um espelho entre as

mãos de dois anjos de barro. Olhou para

cima e por ali ficou.

Estacionou no reflexo de sua face um olhar

de dúvidas. Porque ser sem ser de fato o

incomodava. Num sentido de desconfiar de

sua capacidade e ao mesmo tempo se

empoçar constantemente na lama. Uma

bipolaridade que transitava em seu corpo

abusando do limite de velocidade. Se

aquelas mulheres estariam ou não o

olhando, ele não sabia. Toda vez que

direcionava seu olhar a elas, elas

simplesmente não estavam olhando. Nem

por uma vez chegou a pegar um olhar

criminoso e despistado. Elas não olhavam.

Era um fato. Um fato que corroia o seu

pensamento se a ele faltava algo. O que era

o algo que o faltava. Ou se não lhe faltava

algo. A torta é que não era.

Limpou sua testa encharcada e respirou

fundo. Olhou para baixo. Desenhou nos

seus lábios uma insatisfação e no peito um

batimento fraco, tardio, sem simetria.

Colocou os cotovelos desgastados na mesa

e preencheu seu rosto com suas mãos e

balançou devagar de um lado para outro.

Depois de um tempo, escutou alguém o

chamar. Pressentiu ser o garçom. Sem

retirar as mãos do rosto e de olhos

fechados, pediu que colocasse a torta na

mesa.

Retirou as mãos do rosto. Lá estava ela. Um

sorriso contido apareceu, mas era de

satisfação.

Colocou as mãos em cada extremidade e

agradeceu. Disse obrigado por ela ser o que

era. Ele não sabia a identidade do

sentimento. Ele não tinha nome. Mas não

andava disfarçado. Sabia que por dentro

ela tinha algo especial. Talvez um tempero

de gosto indecifrável. Uma receita feita sob

custódia da paixão. Saber que poderia

contar com seu sabor para retirar o amargo

dos dias, só retratava que seu doce era

feito por uma abelha rainha destinada só

para isso. Só para ele. Ele amava aquela

torta. Ela ser tão presente nos seus dias o

fazia amar cada vez mais aquele tempo

verbal.

Ao término, limpou novamente seu rosto

com suas mãos. Parecia banhado em

contentamento, inundado por um Tsunami

de amor e secado por um furacão de

romance. Era surreal sobre como aquela

torta tinha o poder sobre o seu ser. Era a

fogueira acesa no iglu de sua alma.

Foi até o balcão. Queria mais uma dose

daquilo tudo. Mais um pouco de esperança,

talvez. Mais um pouco de algo tão

persuasivo.

- Por favor, você poderia enviar mais um

pedido para a minha mesa?

- É só para o senhor ou também para a

moça que o está acompanhando?

Tiago Peçanha.