Post on 25-Aug-2020
IX Seminário Nacional do Centro de Memória - Unicamp
“Um Passeio além do Temp(l)o”
Experiências lúdico-midiáticas e agenciamento da história no “Jardim Bíblico” do
Templo de Salomão da IURD.
BIANCA FREIRE-MEDEIROS*
NATHALIA PEREIRA DA SILVA**
Resumo: O maior complexo evangélico do Brasil, conhecido como Templo de Salomão, foi
inaugurado em 2014, em São Paulo. Por ali passam, semanalmente, centenas de interessados
tanto nos serviços religiosos da IURD quanto em vivenciar a atmosfera das produções
audiovisuais da Rede Record, reproduzida no tour pago pelo “Jardim Bíblico”. Esse “passeio
além do tempo” reconta a trajetória da aliança dos homens com Deus, a partir de uma certa
narrativa do Êxodo do povo hebreu. Conduzido por uma figura de autoridade híbrida – o
sacerdote é pastor e guia -, o visitante percorre três edificações em que objetos variados ofertam
fruição concomitantemente pedagógico-religiosa e lúdico-midiática. Em diálogo com o
paradigma das mobilidades (Sheller e Urry) e com base num projeto de pesquisa
socioetnográfico, propomos examinar como a sobreposição entre cosmologias religiosas,
pactos narrativos próprios do turismo e estratégias de marketing originadas no campo do
entretenimento permitem novos agenciamentos da história. O resultado permite discutir como
cultura material, espaço e memória coletiva se entrelaçam nesse território onde a noção de
autenticidade ganha sentidos diversos.
Palavras-chave: Usos da história; Mobilidades turísticas; Memória coletiva
* Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). ** Bacharel em História pela Universidade de São Paulo (USP).
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Introdução
Nesta comunicação, apresentaremos alguns resultados preliminares de uma pesquisa
socioetnográfica que toma, como um de seus chãos empíricos, o passeio pelo Jardim Bíblico,
tour pago e guiado que faz parte do cardápio de atrações
oferecidas no Complexo do Templo de Salomão, da
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Neste
“passeio além do tempo”, a trajetória da aliança dos
homens com Deus é recontada a partir de uma certa
narrativa performada sobre o Êxodo do povo hebreu,
que ocorre entre três edificações. Nelas estão dispostos
artefatos diversos, que reproduzem não só uma certa
leitura da Bíblia, mas a atmosfera das novelas e
filmes da Rede Record.
Recorremos a visitas de campo,1 registro
fotoetnográfico, assim como análise de elementos das culturas visual e material, buscando
perceber em que medida uma experiência de fruição concomitantemente pedagógico-religiosa
e lúdico-midiática pode fornecer os meios para a realização daquilo que Maurice Halbwachs
entende como “condição essencial” para que a memória coletiva de um grupo seja moldada e
mantida: isto é, a transposição ativa dessa memória para uma materialidade que lhe empreste
sua forma. Para nos ajudar a entender a importância de uma memória coletiva impressa em uma
paisagem sacralizada, encontramos companhia valiosa em um texto do autor dedicado
especificamente à Terra Santa: La topographie légendaire des Évangiles en Terre Sainte: étude
de mémoire collective (1941).
1 O campo foi realizado em dois momentos: entre fevereiro e junho de 2017, cujos resultados preliminares foram
apresentados no 18o Congresso da SBS no GT de Sociologia da Cultura (Cf. Freire-Medeiros et al., 2017), e entre
fevereiro e março de 2019, quando cinco incursões a campo foram realizadas em diferentes dias da semana.
Logo oficial do passeio Fonte: página oficial do
Jardim Bíblico no Facebook
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O material de divulgação para o passeio antecipa o que a nossa pesquisa traz como
hipótese: não é possível compreender os fluxos de visitantes em direção ao Jardim Bíblico sem
levar em consideração as mobilidades midiáticas; e em especial, mas não apenas, a novela “Os
Dez Mandamentos”. É um primeiro exemplo de como esses universos – o das produções
midiáticas e a atração turística – se encontram e se informam mutuamente.
Propomos, assim, examinar brevemente como a sobreposição entre cosmologias
religiosas, pactos narrativos próprios do turismo e estratégias de marketing originadas no campo
do entretenimento permitem novos agenciamentos da história.
Mobilidades e memórias
O Complexo do Templo de Salomão (CTS) foi inaugurado em 2014 para abrigar a sede
principal da IURD. Está localizado no Brás, área central da cidade de São Paulo, onde intensa
atividade comercial e migratória é garantida por sistemas de mobilidades de várias ordens. A
obra durou quatro anos e, segundo dados da própria IURD, custou por volta de R$ 680 milhões
totalmente custeados por seus fiéis. A localização favorece a recepção de visitantes que chegam
Encarte de promoção do passeio Fonte: acervo fotoetnográfico
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tanto de metrô, quanto de carro. A proximidade com a Marginal Tietê, aliás, facilita o acesso
dos ônibus de caravanas de fiéis que chegam em excursões, principalmente aos domingos.
Enquanto território construído, ocupado e imaginado, o CTS seria impensável sem o
entrecruzamento dos sistemas de mobilidade (URRY, 2007), entre práticas e objetos que estão
em trânsito global e que pretendem se afirmar enquanto tais: entre pedras trazidas de Israel e
oliveiras importadas do Uruguai, diversos itens cumprem papel simbólico de destaque e são
elencados como moedas de prestígio. É essencial pensar também nos fluxos midiáticos, que
atravessam o cotidiano do CTS, tanto porque o espaço é constantemente divulgado como local
de peregrinação, como porque é usado como cenário em novelas e programas diários da Record.
Em seu conjunto, a convergência desses vários fluxos permite-nos tomar o CTS como
um ancoradouro, nos termos de Hannam, Sheller e Urry (2006): trata-se de uma infraestrutura
socioespacial de interação que é atravessada por circuitos de mobilidade. O passeio pelo Jardim
Bíblico, por sua vez, não é tomado aqui como um lugar de memória, como define Pierre Nora
(1993). Antes, nós o consideramos um espaço disputado, nos termos de Edward Bruner (2005),
ou seja, um lugar em que ocorrem rituais de interação entre diferentes atores sociais que, no
mercado do turismo, disputam a “autoridade de autenticar”.
A primeira edificação do passeio é uma estrutura em forma de cabana com uma série de
objetos e referências visuais – esfinges, deuses e pirâmides – que rapidamente nos transportam
para um Egito Antigo genérico, próprio das narrativas do Orientalismo de que fala Edward Said
(2007).
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Protegidos por uma redoma de vidro, alguns bonecos de cera em tamanho natural
reproduzem personagens da novela. Moisés, muito significativamente, fica ao lado de uma
réplica das tábuas com os dez mandamentos
e o cajado de Arão, que é o primeiro
sacerdote dos hebreus. Não se trata, porém,
de uma representação qualquer; Moisés foi
construído a partir do semblante de
Guilherme Winter, ator que interpreta a
personagem em “Os Dez Mandamentos”.
Espaço “Egito Antigo” Fonte: página oficial do
Jardim Bíblico no Instagram
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Os passeios são conduzidos por uma figura de
autoridade híbrida – guia e pastor – que incorpora a figura de um levita e, portanto, um
descendente de Arão. Essa figura bíblica é constantemente evocada pela IURD, e designa, por
exemplo, os auxiliares no culto, em uma clara evocação de personagens do Velho Testamento
ligadas à orientação espiritual. No passeio, esses levitas assumem o desafio de criar um sentido
de continuidade entre as práticas de culto hoje e aquelas que compõem a memória sobre o
Êxodo.
Boneco de cera representando Moisés em
postagem no Instagram
Fonte: página oficial do Jardim Bíblico no Instagram
Os sacerdotes ou “pastores-guia”
Fonte: página oficial do Jardim Bíblico
no Instagram
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O pastor-guia explica que está vestido “como sacerdote” porque “o passeio é temático”.2
Os espaços devem servir para que o visitante “tenha a impressão de que entrou na história”, no
caso, a história que se desenrola entre Êxodo e Levíticos, textos do Antigo Testamento que
estruturam o roteiro do Jardim Bíblico. Após a narração da saída dos hebreus do Egito,
seguimos para outro ambiente.
A segunda edificação que compõe o roteiro é o Tabernáculo. Na entrada , o pastor-guia
faz uma pausa e avisa que ali tinha início o “sacrifício para a remissão dos pecados”. O ritual
em questão começa a ser narrado e encenado ali e segue pátio adentro, contando com a
participação ativa dos visitantes. Como diria o pastor-guia, o Tabernáculo é “o primeiro templo
da Bíblia”, ou seja, primeiro espaço que intermediaria o pacto de sangue, fidelidade e
exclusividade entre hebreus e o Deus de Israel. É explicado que o templo foi construído porque
2 Esta e outras colocações, quando reproduzidas entre aspas, foram por nós gravadas durante os passeios. Para
evitar a identificação do sacerdote responsável pelo guiamento, e coerentes com a técnica de composite narrative,
combinamos as várias falas sem respeitar ordens cronológicas ou autoria.
Pastor-guia posando com visitantes no átrio
do Tabernáculo
Fonte: acervo fotoetnográfico
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“Deus falou: ‘Moisés, me faz um santuário, um tabernáculo, para que eu possa
habitar no meio de vocês...’ O templo (...) era o local onde as pessoas iriam para se
aproximarem de Deus. E como se aproximariam de Deus? Através de suas ofertas.”
As referências são apresentadas, portanto, como orientações de conduta e obrigações
religiosas. Mas como são ao mesmo tempo míticas e históricas, dependem, em última instância,
da capacidade de o pastor-guia atualizá-las no vocabulário do tempo presente que é,
inevitavelmente, encharcado de referências midiáticas. Por meio dessa tradução passado-
presente, acontece um trabalho de valorização das práticas de adoração que devem ser mantidas
pelos fiéis, independente do momento histórico. A oferta não é condição para se entrar na casa
de Deus hoje, mas se a história bíblica da IURD conta que a construção de templos agrada e a
oferta redime, qual fiel não gostaria de dar sua contribuição?
Dentro da tenda, o “Lugar Santo”, há a mesa dos pães, o menorah (candelabro de sete
pontas) e o altar do incenso. O “Santo dos Santos” guarda a maior preciosidade que o passeio
revela: a Arca da Aliança. O pastor-guia faz questão de notar que: “Tudo que nós vemos aqui,
nada é invenção nossa. Os sacerdotes, na época de Moisés, tinham a mesma visão que vocês
estão tendo agora.”
Apesar do esforço na reprodução minuciosamente fidedigna, o pastor-guia reconhece
que: “Nem tudo nós temos 100% exatamente o que era, porque tudo nós seguimos de acordo
com as Escrituras, mas ninguém estava lá para fotografar”.
O “Lugar Santo”
Fonte: vídeo oficial da música
“Jardim Bíblico” no Youtube
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Como argumenta Bruner (2015), não se trata de questionar se os itens são autênticos ou
não; a indústria do turismo é impensável sem que os sentidos atribuídos à autenticidade sejam
multiplicados. E se o turismo é, em qualquer circunstância, uma arena privilegiada para os jogos
de poder em torno da autenticidade, nas atrações patrimoniais, museais ou religiosas ela é
acentuada, uma vez que a autenticidade dependerá dos certificados que instituições tidas como
legítimas venham a atribuir às réplicas, cópias ou simulações.
Antes de chegarmos à última edificação – o Memorial de Jerusalém – passamos pelo
jardim das Oliveiras, que o pastor-guia ressalta ao lembrar que “assim como em Israel existe o
Gethsêmani, onde Jesus orava, nós temos aqui o nosso jardim também”. Com o Gethsêmani, o
jardim bíblico por excelência, temos um espaço que conecta diretamente a tradição judaica,
mas agora também o cristianismo.
Aprendemos com Halbwachs: é a partir da ação ativa de inscrição de elementos de
memória que um lugar pode ser percebido, vivenciado e consumido como sagrado. A memória
tem, portanto, a capacidade de transfigurá-lo e o tornar constantemente sublime aos olhos dos
peregrinos. É essencial, nos diz Halbwachs, que o fiel possa acessar sua fé no mundo material.
O local é uma “certeza sensível”, nele “o passado se torna, em parte, presente: é possível tocá-
lo, estar em contato direto com ele” (1941: 2), produzindo uma noção de permanência.
Jardim das Oliveiras
Fonte: Página oficial do Jardim Bíblico no
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O Memorial é um espaço estruturado como museu, onde réplicas de itens da cultura
judaica aparecem mais uma vez, agora feitos com detalhes mais elaborados e expostos como
relíquias, guardadas dentro de caixas de vidro. Antes de serem levados ao interior do museu,
porém, os visitantes assistem a um vídeo que traz, em 12 minutos, uma linha narrativa focada
nas consequências nefastas da idolatria e dos proveitos que a retomada da aliança monogâmica
– o Deus único e somente ele - traz a cada fiel.
O passeio termina na loja de suvenires, onde são vendidos livros e CDs de evangelização
da IURD, além de produtos diretamente ligados à tradição judaica. Muito próximo à saída, um
Museu do Memorial de Jerusalém
Fonte: Página oficial do Jardim Bíblico no Instagram
Sala de cinema para exibição do vídeo
Fonte: acervo fotoetnográfico
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monitor disposto na parede projeta, em loop, o videoclipe oficial do Jardim Bíblico que
condensa, numa estética bastante devedora das narrativas audiovisuais da Disney, os vários
fluxos míticos e midiáticos de que o trajeto guiado é feito.
Considerações finais
Não seria exagero dizer que, para a IURD, se trata menos de criar um ambiente que
provoque nostalgias de um passado bíblico, e mais de empregar os meios materiais e simbólicos
que orientem a ação de seus fiéis a partir de uma narrativa de origem - as ofertas diante do altar
entre elas.
Assim como no caso do Centro Cultural Jerusalém,3 os custos de construção e
manutenção do CTS são justificados pelo papel democratizador e mediador que esses espaços
cumpririam ao recriar um “pedaço da Terra Santa no Brasil”. Democratizador porque
viabilizam um lugar supostamente tão sagrado quanto aquele, porém mais acessível a todos os
fiéis; mediador porque o que se oferece não é apenas um conjunto de materialidades em
exposição, mas uma experiência de guiamento espiritual por meio do entretenimento mesclado
à fala pedagógica.
Como procuramos demonstrar, a IURD se vale de tecnologias de representação as mais
diversas para construir um cenário pedagógico, lúdico e inspirador; para seus fiéis e para
quaisquer visitantes, como eles fazem questão de ressaltar. Afinal, como nos assegurou uma
das recepcionistas: “aqui nós recebemos todo tipo de gente, independente de raça e credo. Já
veio budista, macumbeiro...”. Desses corpos que para lá confluem, talvez sejam os visitantes
vindos de Israel os que mais conferem prestígio ao passeio, por sua capacidade simbólica de
reforçar a posição ocupada pela IURD como detentora do vocabulário correto e das
materialidades necessárias para fazer a ponte entre as culturas evangélica e judaica.
3 Em 2008 foi inaugurado, junto à Catedral da fé em Del Castilho (Rio de Janeiro), o Centro Cultural Jerusalém.
Sob o slogan “Conheça a Terra Santa sem sair do Brasil!”, a atração é divulgada como um espaço para quem
deseja conhecer, “por meio da arte”, “a história da cidade de Jerusalém em um recorte histórico de 1000 a. C. a
70 d. C.” (http://centroculturaljerusalem.com.br/ Acesso em: abril, 2019).
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Bibliografia
AIRES, Gustavo Tiago. “Templo de Salomão: Entre turistas e fiéis”: Uma análise etnográfica
sobre a formação e mobilização de públicos. Relatório final de pesquisa (IC em Antropologia
Social). FFLCH, Universidade de São Paulo, 2018.
BRUNER, Edward M. Culture on Tour: Ethnographies of Travel. Chicago: University of
Chicago Press, 2005.
FREIRE-MEDEIROS, B.; MICHELINO, M.; ZERBINATTI, L. Os dez mandamentos de um
tour bíblico: Espiritualidade e entretenimento no Templo de Salomão”. In: 18o CONGRESSO
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HALBWACHS, Maurice. La topographie légendaire des Évangiles en Terre Sainte: étude de
mémoire collective. Paris: Pr. Univ. de France, 1941.
HANNAM, K.; SHELLER, M.; URRY, J. Editorial: Mobilities, Immobilities and Moorings.
Mobilities. v. 1, n. 1, pp. 1–22, march, 2006.
LARSEN, Jonas; URRY, John. The Tourist Gaze 3.0. London: Sage, 2011.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São
Paulo, n.10, p. 7-28, 1993.
SAID, Edward W. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007.
URRY, John. Mobilities. Cambridge: Polity Press, 2007.