Post on 14-Aug-2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS – UFSCar
BACHARELADO EM LINGUÍSTICA
DISCIPLINA: COMUNICAÇÃO E ESPAÇO PÚBLICO –
FÓRMULAS DISCURSIVAS
PROFª DRª LUCIANA SALAZAR SALGADO
“Acessibilidade”:
um baú de ‘boas intenções’ desgovernadas
Aluno (a): Maria Eugênia Carvalho | R.A.: 603139
Candidato à fórmula discursiva: ACESSIBILIDADE
Fevereiro – 2017
São Carlos
JUSTIFICATIVA
A escolha do candidato: uma justificativa multifatorial
O candidato à fórmula discursiva foi “acessibilidade”. O motivo da escolha se
deu pela própria recorrência da palavra que, ao longo do tempo, ficou mais em
evidência devido às mudanças sociais e históricas que ocorreram e têm ocorrido
recentemente. O principal exemplo disso é a criação da Lei nº 10.098/2000, conhecida
como “Lei da Acessibilidade”.
Isso se dá pelo despontamento de determinadas comunidades emergentes ou
grupo de pessoas que são o público alvo do desenvolvimento do que se entende por
acessibilidade. Além disso, quando se trata da prática de “acessibilizar” algo, trata-se
também da prática de “contabilizar” isso. Ou seja, é um processo que envolve muito
mais do que pedido ou direito, envolve questões políticas e econômicas.
Sabemos que, ao longo do período de coleta, não há como prever com exatidão o
resultado de uma pesquisa. Porém, deixo aqui algumas reflexões/hipóteses que me
impulsionaram na escolha desse candidato à fórmula:
o O que é acessibilidade? Seria construir rampas, separar um banco do ônibus para
idosos e grávidas, ter um assento direcionado para obesos, saber Libras básico?
o Quem precisa de acessibilidade? Pessoas com Síndrome de Down, surdos,
gestantes, idosos, obesos, cadeirantes? Pessoas que portam alguma deficiência?
o Que tipo de deficiência? Podemos englobá-los como um mesmo grupo de
“pessoas especiais”? São as mesmas “necessidades especiais”?
o Quem é o autor da acessibilidade: os “grupos especiais” ou os “produtores da
acessibilidade PARA os grupos especiais”?
o Que tipo de acessibilidade os grupos que não são “especiais” precisam?
CORPUS
Para a compilação do corpus, houve pesquisa no Google (site de busca), no
Portal FENEIS (Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos) e no site do
HandTalk, um tradutor automático de sites. Do Google, selecionei seis (06) notícias
para análise, das seguintes fontes: Câmara Municipal de Campinas, Câmara Municipal
do Rio de Janeiro, Correio do Povo, Portal Brasil, e Portal Educação. Além disso,
também fiz captura de tela da própria definição de acessibilidade que aparece no
Google.
Do site da FENEIS, fiz duas capturas de tela organizadas em um único arquivo
de imagem. E há uma foto de um cartaz do CREA – SP (Conselho Regional de
Engenharia e Agronomia do Estado de São Paulo), tirada na cidade de Botucatu – SP.
Como a foto do cartaz do CREA não ficou tão boa, fui pesquisar se havia a
imagem do mesmo cartaz na internet, e descobri que esse cartaz faz parte de uma
campanha intitulada “A maior deficiência é a indiferença”. E aquele cartaz da cidade de
Botucatu – SP era um dos dois cartazes da campanha. Conclusão: fiz o download dos
dois cartazes disponibilizados em PDF pelo próprio Portal CREA para analisá-los.
Além disso, a Lei da Acessibilidade poderia ter sido analisada também, afinal é
um grande palco de debate público. Porém, decidi trazer materiais que fossem mais
recorrentes do dia a dia, como notícias e campanhas, a fim de entender como a fórmula
estava circulando nesses outros veículos – tendo em vista que a lei foi um grande
disparador desse candidato. Ao final, o conteúdo da Lei foi importante para fazer as
Considerações Finais.
ANÁLISE DO CANDIDATO SEGUNDO AS PROPRIEDADES DA FÓRMULA
1. Caráter cristalizado
Sendo uma das primeiras marcas de uma fórmula discursiva, o caráter cristalizado
se materializa a partir dos discursos em uma sociedade, isto é, existem acontecimentos
históricos que dão luz a uma fórmula, trazendo a ela, a cada enunciação, um novo
significado. A repetição da fórmula garante o caráter cristalizado, e só por isso que ela é
reiterável. Ainda que haja variações da mesma, podemos verificar qual é a versão mais
predominante.
Como aconteceu a cristalização?
Para perseguir o nascimento da fórmula1, recorri a dois sites de jornais: ao Estadão
Jornal Digital, e à Folha de S. Paulo a fim de comparar os resultados. Filtrei notícias
1 Para evitar a repetição de “candidato à fórmula” toda vez que “acessibilidade” for referenciada, utilizei a
palavra “fórmula” diretamente. Mas é importante lembrar que, ao retomá-la como “fórmula” não afirmo
que, de fato, seja uma. É apenas uma estratégia de retomada para que a leitura não seja exaustiva.
sobre acessibilidade a partir de 1996 até 2000, em ambos os jornais. Afinal, se a Lei da
Acessibilidade foi aprovada em dezembro de 2000, podemos supor que, tempos antes,
esse tema já estava em debate. Depois, aumentei a margem de tempo para 2000 a 2010.
E por fim, pesquisei entre 2010 até fevereiro de 2017 (atualmente).
Fiz também uma estimativa de quantas notícias por ano circularam dentro dos
respectivos períodos. Segue os resultados abaixo:
Fonte Período Registros Estimativa
Estadão Jornal Digital
1996 – 2000 --- ---
2000 – 2010 613 60 notícias/ano
2010 – 2017 1697 240 notícias/ano
Folha de S. Paulo
1996 – 2000 92 23 notícias/ano
2000 – 2010 989 98 notícias/ano
2010 – 2017 1733 247 notícias/ano
Ou seja, as ocorrências só foram aumentando a partir do ano 2000. Apesar de
sabermos que não é possível precisar o “aniversário” da fórmula, podemos perceber em
que período ela eclodiu. A criação da lei foi, certamente, uma grande disparadora dessa
fórmula, pois, desde então, muito vem sido discutido, debatido e noticiado.
Variantes e pequenas fórmulas orbitais
No caso de acessibilidade, é possível verificar, a partir do corpus, que há as
seguintes variantes: acesso e acessível, funcionando, respectivamente como substantivo
sinonímico e adjetivo.
Porém, faço uma ressalva: acesso e acessibilidade podem ser sinônimos, porém, não
funcionam da mesma forma. Enquanto acessibilidade remete a um conceito mais
abstrato, acesso traz um sentido de realizado, concreto, materializado. Tanto que cabe
melhor dizer “O acesso ao transporte público por deficientes físicos tem crescido”, e
não “A acessibilidade ao transporte público por deficientes físicos tem crescido”. A
acessibilidade seria o projeto, e o acesso seria a realização desse projeto.
Para as fórmulas orbitais, fiz um mapeamento estatístico de ocorrências, a partir do
corpus.
FONTES FÓRMULAS ORBITAIS
empatia
inclusão/
inclusão
social/incluído/incluir
deficiência
mobilidade/
mobilidade
reduzida
pessoas deficientes/pessoas com
deficiência/pessoas portadoras de
deficiência/deficientes/portadores
de deficiência
Câmara
Municipal de
Campinas
--- --- --- 02 02
Portal
Educação
--- --- 01 12 21
Portal Brasil
--- --- --- 02 03
ICICT
(Instituto de
Comunicação
e Informação
Científica e
Tecnológica
em Saúde)
--- 03 09 01 13
Câmara
Municipal do
Rio de Janeiro
--- 01 --- --- 05
Correio do
Povo
03 02 --- --- 04
Cartaz do
Cadeirante
CREA
--- 01 --- --- ---
Cartaz
Acessibilidade
CREA
01 01 05 --- ---
HandTalk
--- 01 --- --- 01
Definição do
--- 01 --- --- 02
Por incrível que pareça, não houve nenhuma ocorrência de uma fórmula que pensei
que iria encontrar com grande frequência: “necessidades especiais”. Mas o próprio
corpus explica isso. Como são notícias e campanhas, o foco estava em promover ou
reportar algo, não em refletir sobre as “necessidades especiais” das “pessoas
deficientes”, isto é ou a notícia reportava um debate/evento, ou era campanha de
conscientização popular focando na cidadania, como foi o caso dos cartazes do CREA
(vaga de estacionamento).
2. Inscrição em uma dimensão discursiva
O uso da fórmula nos discursos é marcado pela história e pela sociedade. É o discurso
em ato, dentro dos seus respectivos contextos e conjunturas, que afirma o caráter
formulaico. Como Krieg-Planque explica, a noção de fórmula não se constrói através do
seu aspecto linguístico, mas sim, pela sua dimensão discursiva, presente nos usos e
sentidos adquiridos a partir dos mais diversos lugares de fala (KRIEG-PLANQUE,
2010).
Gatilho disparador
O principal fator que impulsionou a circulação da fórmula foi a criação da Lei nº
10.098/2000, pois, a partir do que se estabeleceu, outras áreas foram atingidas pela
fórmula e a colocaram em debate.
Onde aparece a fórmula em questão?
Olhando para o caráter formulaico de “acessibilidade”, podemos verificar que
essa fórmula ocorre em várias diferentes áreas de atuação humana: política, turismo,
ciência e tecnologia (desenvolvimento de pesquisas), educação, entretenimento, entre
outras. Vejamos isso através de dois exemplos retirados do corpus, pois constituem duas
pontas do espectro de áreas:
Fonte: ICIT (Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnologia em Saúde). Disponível em:
<https://www.icict.fiocruz.br/content/centro-de-estudos-debate-defici%C3%AAncia-funcionalidade-e-
acessibilidade>
Fonte: Correio do Povo. Disponível em:
<http://www.correiodopovo.com.br/ArteAgenda/Variedades/Exposicao/2016/9/598197/Exposicao-interativa-gratuita-
promove-debate-sobre-acessibilidade-e-empatia>
Embora ambas as notícias falem sobre debates, são debates partindo de lugares
totalmente diferentes. Enquanto o primeiro vem de um lugar de fala acadêmico e
institucional, o segundo é uma iniciativa de um artista visual em pareceria com um
produtora e uma audiodescritora.
Podemos ver, portanto, que desde ciência a entretenimento, a fórmula
“acessibilidade” está sendo constantemente debatida, visto que, pelo menos um dado de
cada área de atuação humana citada acima constitui o corpus total.
3. Referente social
Ser um referente social é ser “passagem obrigatória” dos discursos, em certo
período, dentro de uma comunidade, isto é, em um espaço de tempo, a fórmula é
conhecida por todos naquela sociedade. A principal característica dessa propriedade não
é qual posição os locutores terão perante a fórmula – visto que não é possível uma
fórmula passar despercebida – mas sim, que terão algum tipo de postura, seja confrontá-
la, afirmá-la, combatê-la ou defini-la. O importante, nesse caso, é circular a fórmula,
seja de um jeito ou de outro.
Como a fórmula tem circulado?
Dado que a Lei da Acessibilidade traz implicações para dentro da política, do
mercado de trabalho, da ciência, entre outros; posicionar-se em relação a essa fórmula
se mostra uma obrigatoriedade. Seguem dois dados retirados do corpus que comprovam
isso:
Fonte: Portal Brasil. Disponível em: < http://www.brasil.gov.br/turismo/2015/09/turismo-
debate-acessibilidade-para-pessoas-com-deficiencia>
Fonte: Portal CREA. Disponível em:
<<http://www.creasp.org.br/noticia/institucional/2016/11/16/acessibilidade/2280>
Se observarmos o primeiro dado, veremos que o Ministério do Turismo se viu na
obrigação de tornar o turismo acessível para pessoas com deficiência. Foi desenvolvido
um projeto somente com essa finalidade, chamado Projeto Turismo Acessível, que além
de disponibilizar vários arquivos para download, que vão desde cartilhas a folders de
campanhas, também disponibiliza um arquivo sobre o estudo do perfil do turista
deficiente.
Já no segundo dado, vemos o Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de
São Paulo (CREA-SP) fazendo campanhas de conscientização popular a respeito da
vaga de estacionamento exclusiva para cadeirantes. Ou seja, apesar do trabalho do
CREA não estar voltado diretamente para a mudança de imaginários na sociedade,
houve esse envolvimento justamente porque não foi possível passar despercebido pela
questão da acessibilidade: eles precisaram tomar partido.
4. Aspecto polêmico
Essa última propriedade permite entender os diferentes posicionamentos tomados
em relação à fórmula, ou seja, quais divergências trazem confronto, oposição, contraste.
Essa polêmica pode ser implícita ou explícita.
Para onde aponta o vetor semântico?
Por se tratar de um tema visto como “politicamente correto”, é difícil encontrar
um posicionamento que não seja favorável à “acessibilidade”. Em termos de aspecto
polêmico, é possível citar um único caso encontrado:
Fonte: Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.camara.rj.gov.br/noticias_avisos_detalhes.php?m1=comunicacao&m2=notavisos&id_noticia=11907#>
Jorge de Oliveira, representante da ONG Rede Cidadã, diz que apesar das cotas
para deficientes no mercado de trabalho, muitas empresas não os contratam. O motivo
disso? De forma branda, Jorge explicou que as empresas se justificam pela falta de
infraestrutura ou pela “cultura da empresa” não consentir tal contratação.
Devemos considerar também que esse posicionamento foi feito de maneira
indireta, pois a voz não é das empresas, mas fala por elas. Talvez essa estratégia de
discurso seja justamente para não causar polêmica a fim de que nenhuma empresa tenha
sua “imagem” afetada por tal posicionamento. Aliás, quais empresas são essas? Houve
um forte apagamento institucional nesse caso.
O maior grau de “polêmica” que encontrei foi esse. Os demais posicionamentos
foram positivos e favoráveis à acessibilidade, muito embora com conceitos, por vezes,
equivocados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ser ou não ser: eis a questão
Afinal, “acessibilidade” é uma fórmula discursiva? Através da análise do corpus,
o que fica evidente é que o sintagma em si não se caracteriza como fórmula, mas
adquire algumas propriedades dela ao ser colocado em determinados lugares. Isto é, não
é sempre que há polêmica ao retomar “acessibilidade”, e os sentidos entre tais
retomadas se assemelham consideravelmente.
Confusão semântica a bordo
Para a maioria dos lugares onde “acessibilidade” aparece, o sentido é logo o
acesso voltado ao deficiente físico. Há ainda outras aparições que misturam diferentes
conceitos e os englobam como se fossem tipos “deficiência”, quando na verdade, não
são. A proximidade dos lugares onde ocorrem os debates sobre grupos como: idosos,
gestantes, cadeirantes, cegos, surdos, etc., pode levar a agrupá-los como um mesmo
grupo. Porém, além de não demandarem o mesmo tipo de acessibilidade – daí a
problemática em generalizar “deficientes”, também não se encaixam em uma única
categoria.
Somando-se a isso, a generalização desses grupos também traz a dificuldade de
conceitualização, uma vez todos, inevitavelmente, tornam-se idosos em um período da
vida, mas não necessariamente todos se tornam deficientes físicos, por exemplo.
Onde estão os deficientes?
Não poderia deixar de dizer que, em praticamente todos os dados, os deficientes
tendem a ser tratados como dependentes, quase que como crianças, dóceis e domáveis.
Parece que a acessibilidade é uma atitude sempre vinda de outro, nunca do próprio
deficiente. Esse outro é aquele com quem se estabelece uma relação de hierarquia entre
o deficiente e quem produz a acessibilidade. Esse “outro” que determina o que fazer e
como fazer.
Entretanto, a acessibilidade é produzida para deficientes (seja a deficiência da
natureza que for). Mas na elaboração de projetos nunca vemos a presença deles como
colaboradores dessas propostas.
Lendo a bula
Apesar das boas intenções da maioria dos projetos voltados para a
acessibilidade, pois além das implicações da Lei, há pessoas que lutam em prol dos
deficientes, muitas das vezes, não há uma organização conceitual para que tais projetos
sejam feitos com mais qualidade.
Muitos conceitos ainda se confundem, não estão claros, enquanto outros são
mais evidenciados justamente por serem mais “visíveis”, tornando outros de igual
importância, opacos.
E, além disso, uma grande dificuldade enfrentada na concretização da
acessibilidade é o posicionamento – de superioridade ou seria cuidado? – entre quem
faz acessibilidade e quem precisa dela.
Encerro dizendo que a acessibilidade não é só uma ação de outrem, mas é,
sobretudo, uma ação que só pode ser executada com justiça e excelência a partir da
validação do deficiente: o principal alvo desse trabalho. Talvez sejamos nós que
precisemos ser “acessíveis” e dar espaço à fala de quem necessita ser escutado.
BIBLIOGRAFIA
KRIEG-PLANQUE, A. A noção de ‘fórmula’ em análise do discurso: quadro teórico e
metodológico. São Paulo: Parábola, 2010.
_____ . A fórmula “desenvolvimento sustentável: um operador de neutralização de
conflitos. In: Linguasagem, 19 ed., 2012.
MOTTA, A. R.; SALGADO, L. S. Fórmulas discursivas. São Paulo: Contexto, 2011.
ANEXOS
DropBox: Corpus (links e imagens)