Post on 23-Sep-2020
“A Negra de...” Ousmane Sembène tem voz e fala: narrativas negras de resistência
Natália Luiza de Souza1
Nelson Rosário de Souza2
A ‘Voz do Cinema Africano pelo próprio Cinema Africano’ sintetiza os ideais de Ousmane Sembène, cineasta senegalês considerado o fundador do cinema negro africano. No ano de 1960 têm início as lutas pela independência em grande parte do continente africano, período que marca também a movimentação de alguns cineastas africanos para a reconstrução de uma identidade nacional positivada da África. A intenção é compreender como ocorrem as disputas por representação, principalmente, a respeito da identidade nacional e da cultura africana nas filmografias. O objeto de análise é “A Negra de...”, filme de Sembène de 1966, e que tem como tema central a história de Diouana, uma jovem senegalesa que foi levada à França pelos patrões que a empregavam em Dakar. Observaremos as disputas discursivas usando como recurso metodológico a análise de conteúdo das falas e das imagens. As questões que orientam a investigação são: Como Ousmane Sembène se coloca frente às disputas discursivas por representação das culturas africanas tendo como pano de fundo a colonização, a exploração capitalista e a prática de resistência? Quais características da sua linha discursiva quanto ao processo de afirmação identitária e de reconstrução da cultura. Os principais teóricos que alicerçam esse debate são: Stuart Hall, Mahomed Bamba e Joel Zito de Araújo. Palavras-chave: cinema africano, pós-independência, disputas discursivas, identidade nacional e cultural.
Nas palavras de Ngugi Wa Thiong’o3 “quando Noun Bouzid fala que o cinema é
mais colonizador que o colonialismo, eu compreendo. A batalha de imagens é mais feroz,
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná. Integrante do Grupo de Pesquisa Midiaculturas, Poder e Sociedade. Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Comunicação Popular e Comunitária, pelo Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual de Londrina. Graduada em Serviço Social pelo Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina. Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES Email: natalia.luiza.souza@gmail.com 2 É professor titular da UFPR – com doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e estágio de pesquisa na ‘École Des Hautes Études En Sciences Sociales’ (Paris), no período de 1995-1996. É coordenador do GP Midiaculturas e do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid/Capes) em Sociologia. Graduação em Ciências Sociais pela UFPR, foi bolsista Capes (estágio pós-doutoral) na ‘Université Sorbonne Nouvelle Paris III’ (2012-2013) e atua nas áreas de sociologia e ciência política, com ênfase em sociologia da comunicação, comunicação política e estudos eleitorais. E-mail: nrdesouza@ufpr.br; nrdesouza@uol.com.br 3 Ngugi Wa Thiong’o é escritor queniano e está mencionando Noun Bouzid que é cineasta tunisiano.
a mais implacável e, o que é pior, é contínua”. (apud STOLLERY, 2013). A colonização,
enquanto um projeto político e ideológico, não só teve atuações dentro das esferas
materiais, mas também dentro dos paradigmas psicológicos, penetrando na mente dos
colonizados saberes e ações subordinados aos colonizadores. Como em diversos outros
campos, o cinema também foi utilizado para a perpetração dessa colonização das
mentes.
Descolonizar implica o processo de retomada de independência em todas as
esferas da vida, incluindo as práticas de pensar a própria existência, Stollery (2013),
interpretando o escritor queniano Thiong’o, denomina essas práticas de “descolonização
das mentes”. Essa ideia se mostra ainda mais relevante quando consideramos que a
relação entre a comunicação e a construção das representações são intrínsecas e
constitutivas de possíveis verdades. Logo é altamente questionável como as identidades
nacionais africanas estão sendo construídas, através das telas do cinema, quando o
continente africano foi um dos mais devastado pelo sistema colonialista.
O nosso objetivo geral nesse estudo é verificar como a identidade cultural, e
especificamente a identidade nacional africana são representadas através da
cinematografia africana, tendo em vista os processos de descolonização e a questão do
nacionalismo, em voga nas décadas de 1950 e 1960 neste continente.
Como afirma Frantz Fanon, interpretado por Souza (2010), no qual sintetiza bem
esses processos, a cultura nacional é um amplo esforço conjunto de um povo, no plano
do pensamento, para descrever, justificar e memorar as ações por meio do qual o povo
se sustenta, assim a cultura nacional nesses países subdesenvolvidos devem ser o
cerne das lutas pela libertação.
É dessa perspectiva que partimos para a elaboração dessa investigação e o intuito
é refletir como a identidade nacional da África Subsaariana4 são representadas nas
filmografias do cineasta senegalês Ousmane Sembène. Compreendemos que existem
inúmeras identidades nacionais que compõem a África Subsaariana, porém os estudos
destas nos revela aspectos profundos que aproximam esse conjunto de identidades
nacionais que constitui os estados africanos, daí a possiblidades de se tratar essa região
minimamente homogênea para as nossas considerações.
Inicialmente trataremos da identidade nacional e cultural e suas principais
características narrativas. Na sequência sobre o surgimento do cinema africano e as
escolas de cinema, com ênfase na escola francófona para evidenciar a relação entre a
França e o cinema desenvolvido em suas ex-colônias, em especial o de Ousmane
Sembène no Senegal. Encerramos com a análise da obra proposta e as considerações
devidas.
A identidade nacional e cultural tratadas neste artigo tem bases nos Estudos
Culturais. As identidades nacionais são formadas e reformadas no interior dos processos
de representação e são compostas por símbolos, ou seja, são discursos que organizam
as percepções do indivíduo e dão sentido as suas ações, que podem gerar um
sentimento de identidade e lealdade, estruturando assim um sistema de representação
cultural. Esses discursos geralmente estão contidos nas histórias que são contadas
sobre as nações e que permanecem na memória coletiva. (HALL, 2014)
As identidades nacionais são consideradas “comunidade imaginadas”, conceito
este cunhado por Benedict Anderson, que define que a nação nada mais é do que uma
comunidade limitada, soberana e, sobretudo, imaginada. Limitada por apresentar
fronteiras, independente de sua extensão. Soberana por conter um pluralismo. E
4 África Subsaariana, também denominada de África Negra, é a porção do continente que está localizada ao sul do Deserto do Saara, ao norte do deserto se encontra a porção da África denominada de branca.
imaginada por todos os membros que compartilham signos e símbolos comuns que os
fazem se sentirem pertencentes a um mesmo espaço imaginado comum, mesmo este
não se conhecendo. (ANDERSON, 2008)
Importante destacar que imaginadas nesse trabalho se iguala a ideia de criação e
não a concepções como invenção, contrafacção e falsidade. E o que diferencia e legitima
as comunidades imaginadas não é a oposição falsidade\autenticidade, mas as formas
que são imaginadas e os recursos utilizados. (ANDERSON, 2008).
Essas diversas formas de imaginar as comunidades, de construir suas narrativas
e discursos começa pela ideia de “narrativa da nação”. As narrativas da cultura nacional
contidas nas imagens, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais da nação são
contadas através da representação destes nas literaturas, nas artes, nas mídias, e
outros. São essas representações compartilhadas que dão sentido e significado à nação.
Outra característica das estratégias discursivas das identidades nacionais são as
origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade. Em outras palavras, os
elementos essenciais do caráter nacional são “imutáveis”, unificados e contínuos, apesar
de todas as dificuldades e adversidades que sua história possa atravessar. (HALL, 2014)
Outra característica é a “invenção das tradições” (termo concebido por Hobsbawm
e Ranger):
significam um conjunto de práticas, [...] de natureza ritual ou simbólica, que buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado” (HALL, 2014, p. 32).
Essas tradições parecem ser antigas, mas muitas vezes são recentemente
criadas e muitas vezes inventadas. (HALL, 2014). O “mito de origem” compõe esse
quadro narrativo, combinadas com as tradições imaginadas, transformam as confusões
e os desastres da história inteligíveis em comunidades organizadas. Essa desordem é
causada aparentemente pela confusão entre o tempo real e o tempo místico, no qual se
perde a própria localização da origem da nação. A maior contribuição do mito de origem
é de “fornecer uma narrativa através da qual uma história alternativa ou uma
contranarrativa, que precedem as rupturas da colonização, podem ser construídas. [...].
Novas nações são, então, fundadas sobre esses mitos” (HALL, 2014, p. 33).
O uso da palavra mito no plural se justifica na ideia de enfatizar que após a
colonização não emergiu uma única nação ou um único povo, mas surgiram muitas
culturas e sociedades tribais diferentes. Por fim, as identidades nacionais se baseiam
enganosamente na ideia da existência de um povo puro, original ou “folk”, uma vez que
esse povo, nas realidades do desenvolvimento nacional, são os que pouco ou nada tem
influência no exercício do poder. (HALL, 2014)
A meio de comunicação analisado nesta pesquisa é o cinema, especificamente o
cinema africano, diante disso a sua breve historicidade é necessária. A data de
surgimento deste cinema é de 1955, com a produção do curta-metragem “África sobre o
Siena” de Paulin S. Viyra e Mamadou Sarr, do Senegal. Porém, esse curta foi rodado em
Paris e não na África. Importante ressaltar que o continente africano já estava na mira
das lentes de estrangeiros bem antes dessa data, através das imagens produzidas e
difundidas quase exclusivamente por etnólogos europeus que tinham como objetivo
estudar a cultura, as pessoas e os costumes do continente africano e nesse aspecto
essas imagens eram atreladas a ideia de exóticos e estigmatizadas. (OLIVEIRA, 2016)
O desenvolvimento do cinema africano além de ocorrer tardiamente, se
comparados ao restante do mundo, possui inúmeros entraves e um deles era a falta de
estrutura como a escassez e a inacessibilidade á equipamento cinematográficos. Mais
rigidamente era a existência de leis que proibiam a realização de filmes, como o
conhecido “Decreto Laval” instituído em 1934 por Pierre Laval. Esse decreto estabelecia
que para realizar filmes era necessário obter autorização do Ministério das Colônias
Francesas5, que cabia ao ministro autorizar desde o roteiro até as pessoas envolvidas
no projeto, podendo vetar tudo aquilo que não fosse de encontro aos interesses da
colônia. (OLIVEIRA, 2016). Esse decreto era direcionado muito mais aos africanos, os
cineastas franceses tinham a liberdade e segurança garantida para continuarem
produzindo seus filmes6.
Mesmo que algum cineasta africano conseguisse de alguma forma produzir um
filme, ele era barrado na sua distribuição, pois duas empresas francesas, a Companhia
Africana Cinematográfica Industrial e Comercial (COMAICO) e a Sociedade de Exploração
Cinematográfica Africana (SECMA) controlavam a distribuição de filmes e os programas das
salas de cinema. Essas empresas dominariam a circulação e distribuição de filmes no Oeste
africano até 1970, isto é, o monopólio permaneceu mesmo após os processos de
independências dos países (OLIVEIRA, 2016).
É nesse quadro que surge o Festival Pan-Africano de Cinema e Televisão de
Ouagadougou7 – FESPACO8 – no ano de 1969 em Burkina Faso. A FESPACO é o
segundo maior festival de cinema africano em África, o primeiro foi a Jornada
Cinematográfica de Cartago em 1966, porém aquele festival se tornou já nas primeiras
edições o maior e mais conhecido do continente. (OLIVEIRA, 2016).
Como parte do festival ocorrem os fóruns de cinema, como o CODESRIA
(Conselho para o Desenvolvimento das Ciências Sociais em África) que é um espaço de
5 A França foi responsável pelo segundo maior império colonial do século XIX no continente africano, sendo sua extensão de aproximadamente 9 milhões de km². Os territórios dividiam-se em duas grandes federações: África Ocidental Francesa e a África Equatorial Francesa. A primeira foi fundada em 1895, tinha Dakar (Senegal) como sede do governo geral e era formada pelos atuais territórios do Senegal, Mali, Mauritânia, Burkina-Faso, Guiné, Costa do Marfim, Níger e Benin. A segunda foi instituída em 1910, tendo Brazzaville como governo geral e incluindo os atuais Estados do Chade, República Centro Africana, Gabão e República do Congo. Esse sistema de federações perdurou até 1960, quando esses territórios conquistam suas independências. (ROSSO e SCHUTZ, 2018) 6 Imprescindível destacar que estamos falando da relação especifica entre França e suas ex-colônias. Apesar dos sistemas de colonização serem parecidos, eles apresentam características distintas em seus processos. 7 Cidade-capital do país Burkina Faso. Antes da independência era chamado de Alto Volta. 8 A história do surgimento e do desenvolvimento da FESPACO se mescla com a própria história do surgimento dos cinemas africanos, pois ambos têm a finalidade de romper com os processos de colonização.
debate que visa diminuir a distância existente entre realizadores/as e intelectuais que
pensam os cinemas africanos. Interessante enfatizar a existência da conexão entre os
processos criativos e questões de ordem política, nesses debates, e não só políticas
para o audiovisual, mas políticas nacionais e transnacionais. Egito, Marrocos e África do
Sul são exemplos de países onde as iniciativas estatais no âmbito do cinema estão mais
consolidadas, e na direção de ampliar esse quadro, em julho de 2016, uma iniciativa da
Federação Pan-Africana de Cineastas (FEPACI) juntamente com a União Africana criou
uma comissão de cinema e audiovisual para elaboração de políticas de incentivo à
produção e circulação de filmes no continente. (OLIVEIRA, 2016).
Neste período de criação da FEPACI marca o início da organização política dos
cineastas de vários estados africanos. Em relação as cinematografias, no início dos
anos 1970, ocorre a expansão do cinema de “mégotage”, que aproximadamente pode
ser traduzido por mesquinho ou avarento. Essa é uma expressão utilizada por Ousmane
Sembène que tinha como foco a produção de filmes cujo objetivo era denunciar as
mazelas e indigências causadas pela dominação colonial. Para Sembène (2016), a maior
missão do cinema é denunciar e criticar os prejuízos sofridos aos africanos pela
exploração europeia. Este paradigma foi predominante nas primeiras décadas do cinema
africano e operou como um programa para o desenvolvimento das cinematografias. Em
síntese estava nascendo a primeira geração de cineastas africanos que se colocaram
atrás da câmera para falar e deixar a África falar por ela mesma. (apud OLIVEIRA, 2016)
Atualmente existem três escolas do cinema africano: a Lusófona, a Francófona e
a Anglófona9. A primeira escola se refere ao cinema desenvolvido nas ex-colônias
portuguesas que compreende territórios hoje pertencentes a Guiné-Bissau, Angola, São
Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Moçambique. O país que teve o cinema mais
9 Essa divisão foi elaborada pelo cineasta do Mali, Cheick Omar Sissoko, que foi ministro da cultura do seu país e hoje é secretário-geral da Federação Pan-Africana de Cineastas. (ARAÚJO, 2015)
desenvolvido foi Moçambique, através da ida de Jean Rouch, a convite do governo, para
trabalhar na formação da nova geração de cineastas locais. Os três cineastas expoentes
e emergentes desse período que participaram diretamente dessa formação são: João
Ribeiro, Sol de Carvalho e Licínio de Oliveira10. (ARAÚJO, 2015)
A escola Francófona tem influências sobre os territórios que foram colônias da
França, atualmente Senegal, Mali, Mauritânia, Burkina-Faso, Guiné, Costa do Marfim,
Níger e Benin. Nessa escola o expoente mais conhecido é Ousmane Sembène
considerado o pai do cinema moderno africano que influenciou uma geração inteira, isso
porque “Sembène foi aquele que montou as bases de um novo e moderno imaginário
sobre a África, com uma linguagem e uma estética própria”. (ARAÚJO, 2015, p.54). Essa
foi uma reação ao cinema realizado pelos irmãos Lumiére que inauguraram filmes
propagandísticos que difundiam valores coloniais e retratavam a África através de
imagens estereotipadas, como um continente primitivo, sem cultura e bárbaro. Outro
expoente dessa escola é Djibril Diop-Mambéty, também senegalês e é reconhecido e
aclamado pelo seu experimentalismo e por sua narrativa não linear, seu filme mais
expressivo é “Touki Bouki\Viagem da Hiena” de 1973. (ARAÚJO, 2015).
O cinema africano, em especial o francófono, passa por um grande dilema.
Primeiro apresentam um posicionamento político, segundo são financiados quase eu
exclusivamente pela França11 e terceiro alimentam o grande desejo de serem
reconhecidos e premiados nos festivais europeus. (ARAÚJO, 2105). Diante desse
impasse como realizar um cinema que se intitula político, que seja desvinculado do
sistema colonialista, quando o principal recurso vem exatamente do colonizador. Essa
10 Outros pertencentes a esta escola são: Zezé Gamboa, Sarah Maldoror, Ruy Duarte de Carvalho e Maria João Ganga em Angola; Flora Gomes em Guiné-Bissau; Leão Lopes, Mário Cabral, Mário Almeida, Tambla Almeida, César Schofild e Júlio Silvão em Cabo Verde. (ARAÚJO, 2015) 11 Na África 26 países tem o francês como língua oficial, totalizando 370 milhões de pessoas. No período pós-independência e do surgimento do cinema africano, período de 1963 a 1975, dos 185 longas-metragens produzidos no continente, 125 receberam apoio técnico e financeiro da França. (ARAÚJO, 2015)
foi uma grande empreitada realizada por Sembène, que criou algumas estratégias para
“driblar” essa questão. Isso será melhor observado no decorrer do artigo.
Na geração pós-Sembène esse problema foi resolvido com uma parcela de
cineastas fazendo cinema para atender mais o gosto popular como Cheick Fantamady
Camara, Mansour Sora Wade e Mousa Sène Absa. Outro grupo manteve a tradição de
um cinema político e alinhado ao pan-africanismo como Balufu Bakupa-Kayinda e
Moussa Touré. E outros mesclam a preocupação política motivadora com perspectivas
e temáticas modernas que dialoguem tanto à nível nacional como internacionalmente,
que são Abderrahmane Sissako e Mahamat-Saleh Haroum. (ARAÚJO, 2015)
A terceira escola é a Anglófona que tem a Nigéria e a África do Sul os países com
maior destaque. A indústria cinematográfica desenvolvida na Nigéria é denominada de
Nollywood, é a terceira maior do mundo, perdendo primeiramente para Hollywood dos
Estados Unidos e para Bollywood na Índia, e teve início nos anos 90. O cinema
desenvolvido na Nigéria é extremamente original no seu formato de produção e
distribuição dos filmes, e é a única cinematografia em África que é inteiramente
autossustentável. Em relação a produção são de baixa qualidade, a distribuição ocorre
principalmente na informalidade através da venda de DVDs e o conteúdo se assemelha
as histórias encontradas nas novelas produzidas no Brasil e no México, com narrativas
que se aproximam do cotidiano melodramático. A produção de filmes nesse país é de
mil obras por ano. A África do Sul é conhecida por ser o país mais premiado nos festivais
da Europa e da América do Norte, seus filmes são geralmente ficção e seguem uma
narrativa alinhada as regras hollywoodianas. (ARAÚJO, 2015)
Nesse bloco ainda há o cinema egípcio considerado o mais antigo no continente
datado do início do século XX, com a primeira projeção no dia 20 de junho de 1907. É
importante ressaltar que mesmo o cinema no Egito e no Marrocos terem surgido antes
do que no restante do continente, não retratavam a África subsaariana. É somente a
partir de Sembène que se cria o cinema negro africano, que coincide com uma ânsia de
elaborar uma imagem de África independente dos poderes colonialistas. (ARAÚJO,
2015)
É nessa relação do surgimento do cinema africano, com as lutas pela
independência e as tentativas de reconstrução de uma identidade nacional positivada
dos países do continente, que se enquadram o meu objetivo de compreender essa
dinâmica e seus desdobramentos. Embora saibamos da existência de inúmeras África e
inúmeras formas a maneiras de fazer cinemas, o nosso interesse nessa pesquisa tem
como foco analisar o filme “A Negra de...” de Ousmane Sembène. Essa escolha se deu
devido Sembène ser cineasta africano e ter uma trajetória significativa no
desenvolvimento do cinema africano, ele é de Senegal, país que tem expressões e
produções fílmicas bastante expressiva em termos numéricos, além de ser bastante
reconhecido pela crítica cinematográfica. (ARAÚJO, 2015).
Este filme foi o primeiro longa-metragem realizada por um cineasta africano em
África e que trousse em partes temas que se tornaram recorrentes na primeira geração
de cineastas pós-independência: crítica ao sistema colonial, crítica a nova burguesia
africana que se levantava, a vida urbana sob um olhar associado a valorização da
tradição e a crítica sobre a condição da mulher africana. (ARAÚJO, 2015).
A metodologia aplicada foi a análise de conteúdo com foco nos discursos.
Consideramos não apenas os elementos fílmicos, mas também os extrafílmicos, ou seja,
tanto os discursos manifestos nos filmes quanto o conjunto das relações que levaram ao
produto final12(BARDIN, 2009). Inicialmente realizamos uma descrição objetiva e suscita
do filme, em seguida elencamos os principais momentos discursivos (descrição) e as
principais imagens que sintetizam a obra.
12 O que estamos considerando como relações que deram resultado ao produto final são todos as informações que não estão contidas nos filmes, como contexto social, cultural, político, econômico e estético que em alguns momentos tomaremos como dados para análise.
No filme “A Negra de...”13 Sembène nos traz diversos elementos para se pensar
na dinâmica do pós-colonização. É uma obra de 1966 que foi rodado em Senegal e na
França. O filme tem como central a história de Diouana, uma jovem senegalesa que foi
levada à França pelos mesmos patrões que a empregavam em Dakar. Atraída com
promessas de ter uma boa vida, em um país primeiro mundista, pelas belas vestimentas,
os cafés e passeios, Diouana que trabalhava com babá vai para a França na perspectiva
de encontrar esse panorama, porém, quando em solo estrangeiro a relação com os
patrões ganha outras configurações iniciando o seu grande terror.
As primeiras cenas do filme é Diouana chegando a França, ela usa joias e está
vestida com roupas aos moldes europeus. Em Dakar Diouana usava roupas tradicionais
até conhecer a patroa e ela lhe doar suas roupas velhas. Um homem branco a espera
no porto e a leva até um apartamento. O diálogo é se ela tinha feito boa viagem e como
a França era boa. Sembenè brinca com a imaginação dos espectadores, pois a cena
abre inúmeras possibilidades para aquela mulher negra que está chegando de fora. A
indagação maior é: será que são um casal?
Nas cenas sequenciais o mistério é revelado através de questionamento que
Diouana faz a si mesma em pensamento, após duas semanas da França:
A cozinha, o banheiro, o quarto, a sala de estar, a copa. É tudo o que eu faço! Não vim à França pra isso! Como são as pessoas daqui? Todas as portas estão fechadas dia e noite. Noite e dia! Eu vim pra cuidar das crianças. Onde eles estão? Porque a madame grita comigo o tempo todo? Não sou cozinheira e nem faxineira.
A personagem foi à França, a convite da patroa, para desempenhar a função de
babá, tarefa essa já exercida por Diouana em Dakar. O homem da cena inicial que a
espera no porto para levá-la ao apartamento é seu patrão. Porém, ao chegar na nova
13 FICHA TÉCNICA: La Noire de... (A Negra de...); direção: Ousmane Sembène; produção: Senegal / França; ano: 1966; duração: 65 min.
residência não é bem essa realidade que ela encontra, e a antiga atividade
desempenhada por ela se transforma em limpar, cozinhar e lavar.
Essas primeiras reflexões da personagem nos revelam uma narrativa do quanto
a colonização em outros formatos permanece mesmo após a independência. A relação,
que em solo africano que era relativamente “amistosa”, entre Diouana e os patrões,
ganha outros contornos em solo estrangeiros, revelando uma superioridade do ex-colono
para com o ex-colonizado, que se intensifica nessa relação de patrão e empregado
presentes no filme. Essa dinâmica de superioridade se evidencia quando a capacidade
de fala e compreensão de Diouana em relação a língua francesa é posta em questão.
“Ela fala francês, ou só compreende, como os animais, por instinto”. Essa é a fala de
uma convidada dos patrões de Diouana durante um jantar. Aqui a língua é reverenciada
como um instrumento de dominação e a desumanização do individuo colonizado é mais
que evidente.
Em termos simples o filme transparece uma relação aberta de exploração dos
brancos contra negros, que no limite revela uma nova forma de escravidão. Isso fica
evidenciado quando Diouana trabalha para os patrões sem receber nenhum salário,
quando ela é privada indiretamente de se ausentar das dependências da residência,
quando a madame a ameaça dizendo que se ela não trabalhar ela não irá comer.
Sembéne escancara o racismo e o preconceito com a frase “posso te beijar? Eu nunca
beijei uma negra”, dito a Diouana por um amigo de seu patrão.
Apesar das primeiras cenas ser a personagem chegando na França, pois o filme
não se desenrola de forma cronológica, a história de Diouana começa já bem antes em
Dakar, capital do Senegal.
Em Dakar no intuito de colaborar com as despesas de casa, Diouana sai em busca
de emprego. Passa por diversas casas até ser orientada por um pretendente da
existência de uma praça central onde mulheres ficam à espera de possíveis patrões. É
nessa praça que Diouana fica afinco, dia após dia, na espera de um serviço, até ser
contratada como babá. Aqui Sembène retrata as mulheres africanas como potenciais
mercadorias, expostas em vitrines com a finalidade de serem compradas.
A narrativa sofre uma primeira virada, pois Diouana já na França começa a ter
consciência da sua situação, percebe a sua anulação enquanto pessoa, principalmente
quando em suas reflexões questiona o porquê a madame grita tanto com ela. Sente o
peso de estar longe da sua família, de estar distante dos seus referencias e de suas
raízes, e a única coisa que o faz transformar essas lembranças em ponderações é uma
máscara típica de sua aldeia, que ela presenteou os patrões e que se encontra
dependurada na parede do apartamento.
Essa máscara se torna bastante importante durante o filme. O que para os patrões
é somente um artefato étnico, para Diouana, no desenrolar da história vai ganhando
significado relevante. Esse objeto se transforma em uma ligação direta entre a
personagem e suas raízes culturais, é através dele que Diouana faz suas reflexões, e
essa peça lhe acompanha até o final do filme.
A reticencias presente no título do filme e mantidas nessa tradução deixa o público
um tanto inquietos, incluindo nós, pois a ideia de uma continuação é óbvia “A Negra de...”
pode ser um indicativo para se pensar que Diouana é a negra de onde? Ou de quem?
É nesse momento que o discurso sofre uma segunda virada e Diouana que antes
estava vislumbrada com a ideia de morar na França e consequentemente proporcionar
uma vida melhor para sua família, inicia o processo de resistência da sua atual situação.
A revolta se inicia quando a patroa pede para Diouana tirar os sapatos e ela os tira e
deixa jogado no meio da sala, uma manifestação clara, e possível para ela no momento,
contra a forma que estava sendo tratada.
A resistência, que se torna presentes na vida de Diouana desde o momento da
percepção da sua nova condição, a acompanha até o seu final trágico. Despida das
roupas que ganhará de sua patroa ainda em Dakar, ela arruma sua mala, pega a
máscara e sob a afirmação de que a patroa nunca mais irá gritar com ela, e nem mesmo
a ver mais, ela se direciona ao banheiro e se suicida.
A postura de Sembène nesta obra, através da personagem da Diouana, é colocar
em questão a condição dos imigrantes negros africanos no pós-independência. O
caminho percorrido pelo cineasta nesse filme não é exatamente o de reconstrução de
uma identidade nacional e cultural, mas é o de demonstrar seu processo de anulação. A
identidade africana consolidada vai perdendo suas características, se desmantelando
frente ao neocolonialismo. É dessa perspectiva que ele se coloca nesse processo
quando Diouana se encontra sem alternativas e acaba com a própria vida.
Interessante observar que mesmo a identidade nacional e cultural da personagem
ser algo consolidado, porém nunca perdendo de vista que esse processo é complexo e
está em constante transformação, Diouana, como muitos outros jovens africanos,
sonham com oportunidades diferentes e possivelmente melhores do que encontram em
seus países de origem. Mesmo que o filme em tela retrate a realidade da sociedade
senegalesa, através da história de uma jovem africana, refere-se também a um quadro
mais amplo que envolve a sociedade africana em geral: o processo de imigração.
A imigração africana possivelmente tem laços com o processo que envolve a
“descolonização das mentes”, defendida pelo escritor Ngugi Wa Thiong’o, mencionado
no início do artigo. Uma vez que o ideário de que tudo que é europeu é melhor, denúncia
que as mentes do colonizado ainda estão prezas aos do colonizador. E o cinema de
Sembéne vem nessa mão para gerar reflexões sobre esse aspecto e contribuir nessa
dinâmica de descolonização do pensamento.
Essa temática tratada no filme dentro do processo amplo de colonização e
resistência, tem como abrigo o âmbito doméstico, revelando formas mais sofisticadas do
neocolonialismo. A própria intenção do cineasta fica evidente no seu propósito de
valorização da cultura e dos motivos da imigração com as reflexões da personagem “o
que eu estou fazendo aqui? Porque estou aqui?” quando está se encontra já na França.
Esse movimento é perceptível através da máscara que acompanha a personagem ao
longo de todo o filme.
Aspectos extrafílmicos são importantes trazer à tona, como defende Bamba e
Meleiro (2012), para melhor compreender a dinâmica da narrativa de Sembène, pois
fatores contextuais incidem diretamente na organização discursiva do filme. Contribuem
também para entender as mudanças, a evolução das práticas cinematográficas dos
países africanos, a escolha de determinadas temáticas, imagens e sons utilizados.
“A Negra de...’ foi censurado pela política cinematográfica da França por conter
criticas à sociedade francesa e ao sistema colonialista, levando o cineasta a perder a
possibilidade de financiamento francês e tendo que bancar sua produção de forma
independente. Apesar dessa solução individual ser bem escassa, isso só foi possível,
como afirma Lima (2014), pelo fato de Sembène já ser um escrito reconhecido. Nesse
episódio a França não conseguiu vetar a produção deste filme, porém o controle veio
sobre a forma de distribuição, no qual ainda permanecia sobre influências francesas. De
modo geral a França se opunha a divulgação dos filmes africanos, caso estes continham
alguma forma de critica ao sistema colonial. Aqui se instala umas das causadas do
cinema negro africano ser pouco ou nada conhecido.
A decisão de Sembène em produzir independentemente seus filmes foi a solução
encontrada por ele frente a exploração francesa da cinematográfica africana, e mesmo
tendo as barreiras na distribuição, o cineasta incentivava a transmissão dos filmes em
ambiente abertos (fora das salas de cinema) que pudesse atingir ao máximo de pessoas
possíveis, no qual o principal objetivo era estimular debates após a sessão.
Sembène tinha uma forte ligação com o marxismo, inclusive explicitado por ele
em todas as oportunidades, como menciona Lima (2014). Porém, o cineasta afirmava
também que não partia diretamente dessa influência na realização de seus filmes.
Acreditava em um cinema revolucionário, mas não com caráter didático ou a
supervalorização do proletariado. O que realmente esperava era sensibilizar o público e
leva-los a ação, nas palavras do cineasta destacadas por Lima: “eu quero fazer um
cinema militante que cause um despertar nos expectadores. Ele não pode proporcionar
soluções prontas. No máximo, eu posso sugerir direções. Um filme só é útil se ele permite
debates entre os expectadores depois dele”. (SEMBÈNE, 2014, p. 67)
O cineasta senegalês demonstrava grande interesse em fazer um cinema no qual
possibilitasse um “abrir os olhos” do público alvo. Nesse sentido a chave para esse
processo era gerar a identificação dos expectadores com o filme. Assim, o retrato mais
fiel da realidade cultural da África, como parte da dinâmica da (re)construção da
identidade nacional, era imprescindível.
O cinema, para Sembène, se configurava como a arma perfeita na dinâmica das
lutas pela independência. Visto que grande parte da sociedade senegalesa eram
iletrados, este veículo de comunicação facilitava o diálogo com essa população, gerando
o sentimento de pertencimento e identidade comum.
REFERÊNCIAS
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