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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
AMANDA CAROLLO RAMOS DA SILVA
EMPODERAMENTOS E VULNERABILIDADES
Uma análise do discurso de psicólogos que atuam em Centros de Referência
de Assistência Social
CURITIBA
2015
AMANDA CAROLLO RAMOS DA SILVA
EMPODERAMENTOS E VULNERABILIDADES
Uma análise do discurso de psicólogos que atuam em Centros de Referência
de Assistência Social
Dissertação apresentada ao curso de Pós-graduação em Psicologia,
Departamento de Psicologia, Setor de Ciências Humanas, da
Universidade Federal do Paraná, como parte das exigências à
obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Orientadora: Prof.ª Dra.
Luciana Albanese
CURITIBA
2015
Catalogação na publicação
Biblioteca de Ciências Humanas e Educação - UFPR
Silva, Amanda Carollo Ramos da Empoderamentos e vulnerabilidades: uma análise do discurso de psicólogos que
atuam em Centros de Referência de Assistência Social. – Curitiba, 2015. 102 f. Orientador: Prof. Dra. Luciana Albanese
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Setor de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná.
1. Psicologia social - Curitiba. 2. Centros de Referência de Assistência Social
(CRAS). 3. Subjetividade. 4. Psicólogos – Bem estar social. 5. Empoderamento. I.Título.
CDD 302
“Hoje me sinto mais forte
Mais feliz, quem sabe
Só levo a certeza
De que muito pouco sei...”
Almir Sater e Renato Teixeira
AGRADECIMENTOS
À Luciana Albanese, professora orientadora, pela confiança depositada em mim, pela
segurança no processo de construção desta dissertação e presença nesta jornada;
À Nadia Maria Sacco Porres Lopes e à Jucelma Silveira Martinatto, pelo apoio incondicional
para que realizasse o mestrado e pela compreensão de todas as minhas “saídas” do trabalho;
Aos meus colegas de trabalho, em especial Auzenir Raimunda da Cruz Oliveira e Carlos
Adilson Lopes, e toda a equipe da Fundação de Ação Social, pelo convívio diário, entre
expectativas, alegrias e angústias;
À Eliane Cristina da Silva, pelo companheirismo e por ter encarado participar dos cinco
encontros do grupo de reflexão, ao meu lado;
Às psicólogas e assistentes sociais, que participaram da pesquisa, por acreditarem na minha
proposta e terem se colocado tão verdadeiramente nos encontros do grupo;
À Luiza Helena Raitz Cavallet, Denis de Freitas, Danielle Cadan e Ilana Cavichiolo, pelas
leituras, comentários e reflexões compartilhadas;
À professora Norma da Luz Ferrarini e à professora Neuza Maria de Fátima Guareschi, pelas
ricas contribuições no Exame de Qualificação;
À Mariangela Ronchetti de Resende, secretária do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da UFPR, pela prontidão nos atendimentos e paciência desde a inscrição no processo seletivo
do mestrado;
À CAPES, pelo apoio financeiro;
Aos meus pais, Celso e Vania, pelo incentivo ao meu desenvolvimento profissional e pela
torcida de sempre;
À minha irmã Bianca, pela compreensão da minha “presença ausente” durante a elaboração
deste trabalho, e pelas inúmeras leituras e revisões gramaticais;
Às queridas Carol, Claudia, Luisa, Francieli, Ivone, Márcia, Daiane, Marcela e Vanessa, pela
amizade e por me fazerem sair da rotina de estudos e trabalho;
Sem vocês, estes dois intensos anos não teriam se tornado leves! Minha gratidão!
RESUMO
A presente pesquisa teve como objetivo investigar as imagens de si e da prática profissional
configuradas no discurso de psicólogos atuantes em Centros de Referência de Assistência
Social (CRAS). O método eleito para a realização do estudo foi a Análise Institucional do
Discurso (AID) e os materiais analisados foram produzidos através de um grupo de reflexão,
realizado em cinco encontros, com psicólogas e assistentes sociais atuantes em CRAS. A
Fundação de Ação Social, gestora da Política de Assistência Social do município de
Curitiba/PR, foi coparticipante da pesquisa. Apesar de o foco estar relacionado ao profissional
da Psicologia, foram convidadas assistentes sociais para participar do estudo, pois ambas as
categorias profissionais têm atuado nas mesmas equipes e espaços. Considerando-se os
pressupostos da AID, imaginou-se que o encontro discursivo entre representantes de duas
profissões distintas poderia ser uma produtiva oportunidade para se investigar o objetivo
proposto, na medida em que o discurso do psicólogo também se afirma enquanto tal em
relação ao discurso de outros profissionais. Nos discursos analisados, evidenciou-se que as
psicólogas legitimam a subjetividade como objeto da Psicologia, porém, não se sentem
autorizadas a trabalhá-la no contexto da Assistência Social, uma vez que a relacionam à
prática da psicoterapia e este tipo de atendimento não é previsto no Sistema Único de
Assistência Social (SUAS). A imagem que configuram de si é de um técnico da área social,
que tenta manter suas supostas especificidades (decorrentes da formação acadêmica), mas que
não consegue sustentá-las no processo de atuação. Assim, a prática das participantes, no
discurso, se constroe frágil e mal delimitada, sinalizando um conflito entre legitimar e
desnaturalizar o fazer e o saber da Psicologia. Chegou-se a essa análise a partir dos
movimentos discursivos produzidos entre psicólogas e assistentes sociais, cabendo destacar
que eram também objetivos desta pesquisa delinear as imagens produzidas no discurso das
assistentes sociais sobre a atuação dos psicólogos e evidenciar as interfaces entre as duas
categorias profissionais. Verificou-se, então, que as assistentes sociais corroboram o discurso
das psicólogas, identificando como atribuição destas últimas o trabalho com a subjetividade.
Entretanto, embora até certo momento tanto as psicólogas, como as assistentes sociais,
tenham buscado demarcar as especificidades de sua categoria profissional, o que se
evidenciou no decorrer das discussões foi uma aproximação das posições assumidas, a qual se
dá numa tensão: ora se veem enquanto profissionais da sua área de formação, ora se veem
enquanto agentes da Política. Deste modo, devido às demandas, ambas as categorias
profissionais revestem-se de uma identidade de “técnico”, assujeitando-se, assim, à Política -
fazem o que tem que ser feito, indo além (ou aquém) daquilo que supõem ser suas formações.
As participantes diferenciam a politicagem da Política, esforçam-se para seguir as normativas
do SUAS e realizam o trabalho pensando na superação de vulnerabilidades e no
empoderamento dos usuários. Consideram, todavia, que fazem mais assistencialismo do que
Assistência Social de fato. Algo que chama a atenção reside, pois, no fato de as participantes
se colocarem como desempoderadas, vulneráveis e sem autonomia na atuação. Tais
características são pertinentes aos usuários da Assistência Social: pessoas que estão em
situação de vulnerabilidade e risco. Há, portanto, uma identificação entre profissionais e
clientela. Diante dos resultados delineados, torna-se, pois, importante redimensionar o
conceito de subjetividade, ampliar a discussão sobre a atuação interdisciplinar e proceder
revisões curriculares nos cursos de formação, com vistas a aprofundar o debate sobre as
possibilidades do trabalho do psicólogo na Assistência Social.
Palavras-chave: psicologia social; CRAS; subjetividade; empoderamento; vulnerabilidade
social.
ABSTRACT
This research aimed to analyze the discourse of psychologists who work in Social Assistance
Centers, investigating which images about themselves and about professional practice were
set. The research data were produced from a reflection group, in five meetings, attended by
three psychologists and three social workers. The speeches were analyzed according to the
Institutional Discourse Analysis method. The Fundação de Ação Social, which is the Social
Assistance Policy manager in Curitiba city, was co-participant of this research. Although the
focus is related to the psychologists, the social workers were also invited to take part in the
study, because the two professional categories have been working together. Considering the
elected method, the discourse meeting of representatives from both categories would be a
productive opportunity to investigate the proposed objective, as the psychologist discourse is
stated in relation with others professionals‟ discourse. Although psychologists legitimize
subjectivity as Psychology object in the discourses, they do not feel authorized to work it out
in the Social Assistance context. They relate subjectivity to clinical practice, and this kind of
attendance is not expected to the Social Assistance Policy. The image, set for themselves, is
that an expert in the social area, that tries to maintain claimed specificities (which were
developed from academic formation), although they are not sustained during the
psychologist‟s practice. Thus, the participants‟ performance, built in discourse, is fragile and
not defined, indicating a conflict between legitimate and denaturalize the Psychology
knowledge and work. We came to this analysis from the discursive movements between
psychologists and social workers that were identified. It is important to indicate that
identifying the images produced in the social workers‟ discourse about psychologists‟ practice
and the interfaces between the two professional categories were also objectives of this
research. It was verified that the social workers corroborate the psychologists‟ discourse,
identifying the subjectivity as Psychology attribution. Even though psychologists and social
workers tried to mark the specificities of each professional category, it was observed an
approach of the taken position. Sometimes, they see themselves as professionals in their
academic formation area, in other times, they place themselves as Policy agents. Considering
the work demands, both categories incorporate a technical identity, being submissive to the
Policy – they do what must be done, going further (or below) from what their academic
formations assume. The participants differentiate politics from Policy, strive to follow the
SUAS regulations and do their job in order to overcome vulnerabilities and to empower the
Policy users. They consider, nevertheless, that they do more welfarism than real Social
Assistance. Something that stands out is the fact that the participants place themselves as
disempowered, vulnerable and without autonomy at work. These characteristics are also
relevant to the Social Assistance users: people who are in vulnerability and risk. Therefore,
there is an identification among professionals and users. The presented results show that is
important to reset the subjectivity concept, increase the discussion about interdisciplinary
performance and proceed the curriculum review, in order to broaden the debate of
psychologists‟ possibilities in Social Assistance area.
Keywords: social psychology; CRAS; subjectivity; empowerment; social vulnerability.
LISTA DE SIGLAS
AID – Análise Institucional do Discurso
CEAPPE – Centro de Assessoria e Pesquisa em Psicologia e Educação
CFP – Conselho Federal de Psicologia
CFESS – Conselho Federal de Serviço Social
CF 88 – Constituição Federal de 1988
CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social
CRAS – Centro de Referência de Assistência Social
CREAS – Centro de Referência Especializado em Assistência Social
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
FAS – Fundação de Ação Social
LOAS – Lei Orgânica de Assistência Social
MDS – Ministério do Desenvolvimento Social
NOB-SUAS - Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social
NOB-RH/SUAS – Norma Operacional Básica de Recursos Humanos/ Sistema Único de
Assistência Social
PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PNAS – Política Nacional de Assistência Social
PNI – Política Nacional do Idoso
PSB – Proteção Social Básica
PSE – Proteção Social Especial
SUAS – Sistema Único de Assistência Social
UFPR – Universidade Federal do Paraná
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 12
2 REVISÃO DE LITERATURA ......................................................................................... 19
2.1 DE UMA PSICOLOGIA ELITISTA E INDIVIDUAL RUMO A UMA PSICOLOGIA
VOLTADA AO COMPROMISSO SOCIAL: BREVE HISTÓRICO DA PSICOLOGIA E
FORMAÇÃO ACADÊMICA ............................................................................................... 19
2.2 PSICOLOGIA NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL ...................................... 23
2.2.1 POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL ........................................ 23
2.2.2 ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NA ASSISTÊNCIA SOCIAL .............................. 30
3 MÉTODO .......................................................................................................................... 36
3.1 A BASE CONCEITUAL DO MÉTODO: ANÁLISE INSTITUCIONAL DO
DISCURSO ........................................................................................................................... 36
3.2 PROCEDIMENTOS ...................................................................................................... 40
3.3 OS PARTICIPANTES E O CONTEXTO DA ATUAÇÃO ......................................... 42
4 OS DISCURSOS E UMA POSSÍVEL ANÁLISE ........................................................... 45
4.1 DO “EU SINGULAR” PARA O “NÓS INDIFERENCIADO” ..................................... 47
4.1.1 O ingresso - “Onde eu tô?” ...................................................................................... 47
4.1.2 A atuação – “E aí, como que a gente vai fazer isso?” .............................................. 51
4.1.3 A relação com o assistente social – “Das dificuldades que a gente tem pra delimitar
o que é meu, o que é seu, o que é nosso.” ......................................................................... 56
4.1.4 A relação com outros profissionais – “O serviço vai continuar sendo feito por quem
está ali.” ............................................................................................................................. 60
4.1.5 Ser técnico X Ser psicólogo/ assistente social - “Todo mundo é técnico, mas cada
um na sua especificidade...” .............................................................................................. 63
4.2 EMPODERAMENTOS E VULNERABILIDADES ..................................................... 66
4.2.1 Entre adaptar-se e iniciar revoluções – “Para quem você reivindica?”.................... 66
4.2.2 Poder, empoderamento ou a falta de... – “Que relação é essa de empoderamento
dentro da instituição?” ....................................................................................................... 68
4.2.3 As vulnerabilidades... – “Você acaba praticamente lutando sozinha.” .................... 72
4.2.4 Entre a Política e a política... – “Não vamos poder fugir disso.” ............................. 74
5 DISCUSSÃO ..................................................................................................................... 78
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 88
7 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 92
8 APÊNDICES ..................................................................................................................... 99
8.1 Atividades realizadas no Grupo de Reflexão .................................................................. 99
8.2 Organograma da Fundação de Ação Social .................................................................. 101
8.3 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido .............................................................. 102
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 - Composição de equipe de referência dos Centros de Referência de Assistência
Social - CRAS...........................................................................................................................28
TABELA 2 - Caracterização das participantes da pesquisa......................................................43
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 - Organograma da Fundação de Ação Social.......................................................100
12
1 INTRODUÇÃO
Os psicólogos, cada vez mais, têm ampliado os campos de sua atuação, deixando de
atuar unicamente nos espaços em que historicamente vinham se inserindo – clínica, escola e
organizações. A implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) em 2005, e a
aprovação da Norma Operacional Básica de Recursos Humanos (NOB-RH/SUAS) em 2007,
foram os marcos da entrada do profissional na área da Assistência Social. O psicólogo, a partir
de então, passou, formalmente, a compor as equipes técnicas dos serviços ofertados pela
Política de Assistência Social, ao lado dos assistentes sociais. A abertura deste campo para a
Psicologia trouxe um novo cenário para os profissionais, que passaram a atuar em uma área
até então pouco explorada, com referências técnicas e práticas diversas das usuais.
O papel do psicólogo no SUAS está em construção. Diferente da prática clínica, em
que o trabalho é comumente individual e particularizado, na Política de Assistência Social, o
psicólogo tem como principal atuação o acompanhamento psicossocial de famílias
(orientação, encaminhamentos, cadastro em programas sociais, visitas domiciliares, entre
outros), priorizando o trabalho coletivo. Outra diferença marcante entre as duas práticas é a
clientela. Enquanto a psicologia clínica ainda se volta para um público com maior poder
aquisitivo, no SUAS, o psicólogo lida com usuários que estão em situação de vulnerabilidade
social, decorrente da pobreza e da fragilização de vínculos e pertencimento social. As
demandas com que o psicólogo se depara são complexas - as questões a serem trabalhadas
esbarram nos aspectos material, educacional e habitacional – e exigem do profissional uma
intervenção fora do escopo da clínica tradicional. Para a Psicologia esse contexto é
relativamente novo. E pode ser considerado gerador de angústias para o psicólogo, não só
pelo território em que atua – naturalizado como inóspito - mas também por não ficar
evidenciado neste ambiente o que é específico da Psicologia. A legislação e documentos
publicados pelo MDS – Ministério do Desenvolvimento Social – e pelos Conselhos
Profissionais orientam o trabalho, mas não estabelecem diferenças entre a atuação do
psicólogo e a do assistente social. Ambos profissionais são enunciados como “técnicos de
referência”. Apesar de não haver uma distinção definida, de acordo com Andrade e
Romagnolis (2010), para a Psicologia, em geral, “direcionam-se demandas que dizem respeito
às questões emocionais e às relações familiares, ficando para o serviço social as questões de
encaminhamentos, acesso e orientações sobre direitos, benefícios e documentos.” (p. 612)
Depreende-se que há uma busca da compartimentação do saber, em que cada profissão atende
13
em sua suposta especificidade. Segundo tais autoras, o assistente social estaria com sua
atenção voltada para o social e o psicólogo para questões emocionais.
Ramminger (2001) aponta que há uma confusão de papeis dentro da Assistência
Social, e grande parte das vezes esta é alimentada pelo próprio psicólogo, que não diferencia
sua prática neste contexto, esquecendo que sua intervenção passa pela “escuta”, independente
do local em que esteja. Questiona se o profissional realmente tem atuado na direção do
rompimento com o assistencialismo, pois o que se vê, não raras vezes, é a projeção das
necessidades deste para os usuários, tentando atendê-los a partir de ideais da classe média.
Talvez, segundo Ramminger (2001), esta seja uma explicação para a pouca participação da
comunidade em atividades propostas pelas equipes. Nem sempre o planejamento dos serviços
acontece de forma a atender os interesses dos usuários, mas sim ao que a equipe, revestida de
pré-conceitos, considera importante para aquele público.
A ideia popular a respeito da atuação do psicólogo é a de que o profissional faz
psicoterapia e aplica testes. Na Política de Assistência Social, tais atividades não são
previstas. O escopo de sua atuação é diferente do que é popularmente conhecido. Contudo, de
acordo com estudos realizados, percebe-se que o psicólogo repete modelos de atuação
tradicionais, mesmo estando em um contexto diverso. Os manuais de atuação neste campo
orientam as equipes para o trabalho com famílias, porém, a execução não é devidamente
discutida e planejada. Também são recomendadas atividades articuladas, contudo, as
condições para a realização, em geral, são precárias. Dessa forma, as ações acabam sendo
pontuais, descontínuas e descontextualizadas. (OLIVEIRA et al., 2011)
Segundo Yamamoto e Oliveira (2010), a atuação do psicólogo no SUAS exige a
criação de novos conhecimentos e novas posturas para lidar com o contexto em que está
inserido. A Psicologia, de acordo com tais autores, deve ajustar-se para que o trabalho nesta
Política adquira as especificidades necessárias e se diferencie da atuação em outros campos.
No entanto, como não há uma norma clara de “como fazer” a Psicologia na Assistência
Social, o profissional faz uso da prática que supostamente tenha melhor domínio. (MACEDO
et al., 2011)
Andrade e Romagnolis (2010) trazem a questão de os manuais de orientações técnicas
indicarem que o trabalho dos profissionais do CRAS – Centro de Referência de Assistência
Social - deva ser pautado ora pela interdisciplinaridade, ora pela transdisciplinariedade. Esta
última se refere ao abandono que os diferentes profissionais envolvidos devem fazer de suas
especificidades para a criação de um campo de saber autônomo e próprio. Segundo as
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autoras, essas propostas são entendidas como confusas pelos trabalhadores da Política, e
acabam muitas vezes gerando o efeito inverso: cada disciplina volta para o que é específico de
sua formação.
Em relação à atuação do psicólogo na área social, o profissional deve atuar explorando
e difundindo suas potencialidades, a fim de mudar o estereótipo predominante de que o
psicólogo apenas aplica testes e faz psicoterapia. De acordo com Casas (2004), “Se (...) nós
não somos pro-ativos, nossa tarefa fica delimitada pela demanda. Então a identidade do
psicólogo da intervenção será estritamente a que atribuam a ele aqueles que a contratarem.”
(p. 44) Torna-se importante, assim, a reflexão do profissional sobre seu papel na Assistência
Social, a fim de se empoderar deste lugar e construir sua prática neste contexto. Mas será que
esta reflexão tem ocorrido? Os psicólogos têm empenhado esforços para configurar uma
atuação diferenciada no SUAS?
A presente pesquisa surge, pois, de inquietações quanto à inserção do psicólogo em
uma área não tradicional da Psicologia e os efeitos desta em seus modos de subjetivação. O
psicólogo se reconhece como tal quando atua no contexto de Políticas Públicas, em especial
na Assistência Social? Como o psicólogo tem construído sua prática profissional no SUAS?
Que imagens de si são produzidas? Quais conceitos e teorias fundamentam o profissional para
esta atuação?
As questões elencadas nasceram a partir da experiência desta pesquisadora neste
campo de atuação, agora, tão difundido entre profissionais da Psicologia, porém igualmente
desconhecido por nós. Em 2012, fui convocada por um concurso público para assumir o cargo
de psicólogo na prefeitura de Curitiba. Somente na data da nomeação soube que iria atuar em
um CRAS na periferia da cidade. O processo de adaptação foi permeado por um choque de
realidade. O primeiro grande impacto foi o de me deparar “a olho nu” com a realidade de
grande parte da população brasileira - situações de extrema pobreza, população semi-
alfabetizada, condições precárias de habitabilidade, saúde e higiene. Esta realidade parecia tão
distante de mim e, de repente, estava inserida neste contexto, no qual teria que dar conta de
desenvolver um trabalho como profissional de Psicologia. Este foi o segundo impacto. Como,
enquanto psicóloga, devo agir? Qual o meu papel nessa comunidade? Quais minhas
atribuições? Apropriei-me aos poucos da Política Nacional de Assistência Social, das
legislações e dos serviços. Considero que ainda estou neste processo de apropriação da PNAS
e principalmente de compreender como a Psicologia tem se configurado neste contexto.
Conforme fui avançando e construindo meu exercício profissional no SUAS, outras
15
indagações surgiram: Qual a especificidade do trabalho do psicólogo no CRAS? O que
diferencia minha atuação da do assistente social? E junto a estas perguntas, a sensação de que
o que estava fazendo naquele local podia ser qualquer “coisa”, menos Psicologia. Não
conseguia ver a Psicologia no atendimento social, nas visitas domiciliares, no planejamento
de atividades socioeducativas e reuniões de equipe. Talvez tudo isto tenha se revelado pela
minha própria inexperiência profissional. Mas uma fatalidade estava posta: a graduação em
Psicologia havia me preparado minimamente para atuação em uma área que não a clínica, a
escola ou a empresa. Essas inquietações em relação à profissão no contexto da Assistência
Social transformaram-se neste estudo.
Na literatura encontram-se algumas pesquisas relacionadas à temática da identidade
profissional (Mazer & Melo-Silva, 2010; Sípole, 1991; Bock, 1999) e à atuação do psicólogo
nas políticas públicas (Yamamoto et al., 2001; Dimenstein, 1998; Araujo, 2010; Silva, 2011;
Oliveira, 2011; Sobral & Lima, 2013). Mazer e Melo-Silva (2010) realizaram um estudo, do
tipo estado da arte, com a intenção de mapear e analisar a produção brasileira sobre o tema
identidade do psicólogo. Afirmam que poucos estudos têm sido realizados nesta temática, se
considerado o número de trabalhos localizados (27 trabalhos entre artigos, dissertações de
mestrado, teses de doutorado, capítulos de livros e resumos em anais, datados de 1991 a
2008). Na discussão, Mazer e Melo-Silva (2010) colocam a construção da identidade
profissional se iniciando com a escolha da profissão e pela formação acadêmica. A identidade
se constrói ao longo da atuação profissional, com as atividades desempenhadas, que levam à
incorporação de um papel. Contudo, não necessariamente se torna estática. A identidade,
como processo que é, pode ser repensada.
De acordo com Sípole (1991 apud Mazer & Melo-Silva, 2010), “a identidade do
psicólogo é frágil, mal delimitada e se encontra em processo de construção [...]” (p. 289) A
autora aponta a necessidade de mudanças nos currículos dos cursos de Psicologia, da
realização de pesquisas sobre a prática profissional e de se ter um olhar mais real e
contextualizado sobre a profissão. Yamamoto et al. (2001) trata sobre os novos espaços
ocupados pelo psicólogo, e indica que a atuação nestes recorre às práticas tradicionais. O
mesmo aponta Dimenstein (1998) quando se refere à prática do psicólogo nas Políticas
Públicas de Saúde, em especial nas Unidades Básicas de Saúde, em que acontece uma
transposição do modelo de atuação na clínica para o setor público.
Segundo Mazer e Melo-Silva (2010), ser psicólogo relaciona-se a uma busca constante
dos contornos identitários. Bock (1999) afirma que apesar de a identidade encontrar-se em
16
um constante movimento, ainda hoje o psicólogo reflete uma identidade restrita, voltada para
o elitismo. Aponta que o desafio para a Psicologia no século XXI é construir uma profissão
voltada para o atendimento da maioria da população brasileira.
Araujo (2010) realizou um estudo, com base na Psicologia Social Crítica, sobre a
prática profissional de psicólogos que atuam em CRAS do estado de São Paulo. O título da
dissertação de mestrado da pesquisadora, “...Mas a gente não sabe que roupa deve usar”, já
evidencia a percepção do psicólogo sobre sua atuação na Assistência Social. O profissional
está disponível para o trabalho, mas não tem claro qual seu papel. Usando a analogia descrita
pela participante de sua pesquisa, seria a mesma sensação de ter sido convidado para uma
festa, porém, não se sabe que roupa usar para ocasião. O psicólogo aceitou o convite de ir
para a Assistência Social, todavia, não sabe muito bem o quê fazer.
As pesquisas de Silva (2011), Oliveira (2011) e Sobral e Lima (2013) que também
tratam da atuação do psicólogo na Política de Assistência Social confirmam a recorrência do
profissional à prática clínica, sendo o atendimento individual mantido ainda como referência
do trabalho, apesar de a Política ditar o contrário.
Diante dos questionamentos, motivações e dados elencados, apresentamos o problema
da presente pesquisa: Que imagens de si e da prática profissional o psicólogo que atua em um
Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) configura em seu discurso?
O objetivo geral da investigação foi analisar os modos de subjetivação no discurso de
psicólogos atuantes em Centros de Referência de Assistência Social, investigando que
imagens de si e da prática profissional eram configuradas. Dentre os objetivos específicos
elencaram-se: analisar como os psicólogos constroem, em seus discursos da prática
profissional, sua atuação no Sistema Único de Assistência Social; identificar as contribuições
da formação em Psicologia reconhecidas para a atuação neste contexto; delinear as imagens
produzidas no discurso dos assistentes sociais sobre a atuação dos psicólogos nos Centros de
Referência de Assistência Social e evidenciar as interfaces estabelecidas entre as duas
categorias profissionais.
O método eleito para a realização do estudo é a Análise Institucional do Discurso
(AID), proposta por Marlene Guirado (2010), que pretende estudar os modos de
subjetivação1. Dentro desta proposta, a subjetividade é compreendida como produto de uma
relação de tensão entre assujeitamento e resistência na ordem dos discursos socialmente
instituídos. Para a AID, a subjetividade não constitui uma essência, e sim um efeito das
1 A Análise Institucional do Discurso será aprofundada no capítulo do Método.
17
relações discursivas, ou, em outras palavras, das relações de poder que se dão no discurso.
Assim, mais do que se falar de um sujeito, cabe atentar-se aos modos de subjetivação.
Compreender a subjetividade relaciona-se, pois, à forma que os sujeitos objetivados
apropriam-se dessa objetivação. (RIBEIRO em GUIRADO; LERNER, 2007) Para tanto, o
que o método propõe é que se atente aos jogos de relações, interlocuções e posições que se
fazem ver no discurso, sem desconsiderar a implicação do próprio pesquisador neste contexto
(VALORE em GUIRADO; LERNER, 2007). Na construção desta pesquisa, buscou-se, então,
analisar como os processos institucionais se presentificam no discurso dos psicólogos que
atuam no SUAS, o que embasa sua prática profissional, o que se legitima ou se subverte neste
processo.
Os materiais analisados foram produzidos através de um grupo de reflexão, em cinco
encontros, com psicólogas e assistentes sociais atuantes em Centros de Referência de
Assistência Social. As participantes eram colegas de trabalho, porém, atuavam em diferentes
equipamentos. Os encontros versaram sobre a atuação e a construção da prática profissional
na Assistência Social. A Fundação de Ação Social (FAS), gestora da Política de Assistência
Social do município de Curitiba/PR, foi co-participante da pesquisa. Apesar de o foco deste
estudo estar relacionado ao profissional da Psicologia, foram também convidadas assistentes
sociais para participar da pesquisa, pois ambos os profissionais têm atuado nas mesmas
equipes e espaços. Além disto, considerando-se os pressupostos da AID, imaginou-se que o
encontro discursivo entre duas categorias profissionais distintas poderia ser uma produtiva
oportunidade para se investigar o objetivo proposto, na medida em que - supôs-se - o discurso
do psicólogo também se afirmaria enquanto tal em relação (de oposição, igualdade,
complementaridade, etc.) ao discurso de outros profissionais. Por fim, dada a concepção de
discurso com a qual trabalhamos, considerou-se que, nos próprios encontros do grupo de
reflexão, à medida que se posicionavam, as participantes estavam constituindo a sua
subjetividade e a imagem que têm de si e do outro.
Este estudo faz-se relevante visto que a Política de Assistência Social tem
oportunizado cada vez mais a inserção de psicólogos neste campo de trabalho. Conforme
apontou Macedo et al. (2011), no ano de 2011 o Brasil contava com 6.022 psicólogos
distribuídos entre 7.607 CRAS. No Censo SUAS de 2013, foram registrados 7.883 CRAS
ativos em todo o território nacional, compostos por 23.113 técnicos de nível superior, sendo
que destes 8.975 são psicólogos. (BRASIL, 2013) Em 2014, estes números aumentaram para
8.088 CRAS, 25.871 técnicos de nível superior e 9.507 psicólogos. (BRASIL, 2014) Tais
18
dados representam o crescente ingresso de profissionais da Psicologia nesta área. Além disto,
há que se considerar que embora pesquisas, a partir de diferentes métodos, venham sendo
realizadas a fim de elucidar as práticas neste contexto, poucas tratam sobre a questão da
imagem que o psicólogo constrói de si e de sua atuação. Mais especificamente, pelo viés da
Análise Institucional do Discurso, não foram localizados estudos que tratam deste tema.
Pretende-se, dessa forma, fomentar reflexões sobre a atuação do psicólogo em
contextos diversos dos usuais, especialmente nos quais a interdisciplinaridade é premissa, e
discutir sobre a formação profissional, de modo a oferecer subsídios para a construção da
carreira de profissionais na Assistência Social. Pretende-se também promover discussões
sobre as interfaces entre as atuações das categorias profissionais de psicólogos e de assistentes
sociais.
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2 REVISÃO DE LITERATURA
2.1 DE UMA PSICOLOGIA ELITISTA E INDIVIDUAL RUMO A UMA PSICOLOGIA
VOLTADA AO COMPROMISSO SOCIAL: BREVE HISTÓRICO DA PSICOLOGIA E
FORMAÇÃO ACADÊMICA
A Psicologia foi regulamentada como profissão em 1962. Dois anos depois, em 1964,
foi sancionada lei regulamentar atribuindo funções específicas para a categoria. Dentre elas,
estavam: diagnóstico psicológico, orientação e seleção profissional, orientação
psicopedagógica e solução de problemas de ajustamento. O psicólogo também poderia atuar
na direção de serviços de Psicologia em órgãos públicos ou privados ou na assessoria técnica
destes, na docência de disciplinas de Psicologia, na supervisão de profissionais e discentes,
realização de perícias e pareceres psicológicos. (SOUZA, 2011)
Neste mesmo ano, 1964, instalou-se no Brasil a ditadura militar e este fato histórico
“rebateu no processo de formação e exercício profissional e impediu que a temática social
fosse inserida nos currículos.” (CPF, CFESS, 2007, p. 20) A história da Psicologia foi
marcada por despolitização, alienação e elitismo, o que favoreceu a configuração da imagem
do psicólogo que “só faz Psicoterapia”. O psicoterapeuta, realizando um trabalho individual,
na clínica, não seria “ameaçador”, considerando o contexto político vivenciado no período.
Segundo Souza (2011), a produção de conhecimento e a construção das ciências sempre
estiveram submissas à política, à ideologia e à economia. Com a Psicologia não foi diferente.
Ao psicólogo cabia a clínica individual, avaliação psicológica, acompanhamento de
dificuldades escolares e atividades de consultoria e recrutamento e seleção. Adequava-se,
assim, às necessidades políticas vigentes. (SCARPARO & GUARESCHI, 2007)
Segundo Bock (2009), a Psicologia pouco tem contribuído na transformação das
condições de vida desiguais do Brasil. A tradição desta ciência é marcada pelo compromisso
com o interesse das elites, sendo uma profissão voltada “para o controle, a categorização e a
diferenciação.” (BOCK, 2009, p. 16) A Psicologia se instituiu como uma ciência e profissão
conservadoras, isenta de um debate de transformação social. De acordo com Furtado (em
BOCK, 2009), o conhecimento psicológico não é colocado a serviço de uma mudança social.
Fazendo um resgate histórico da Psicologia no país, desde a colonização do Brasil, as
ideias psicológicas emergentes (produzidas pela Igreja e por intelectuais) tinham o caráter de
controle de comportamentos e de condutas morais: o domínio dos indígenas; o controle das
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mulheres e das crianças. No século XIX, com a mudança do Brasil de Colônia para Império,
também houve a mudança do interesse aos quais as ideias psicológicas atendiam: a
higienização da sociedade. Objetiva-se um coletivo livre de desvios e desordem. (BOCK,
2009).
Já no século XX, com a industrialização, a Psicologia foi requerida para a seleção de
trabalhadores e, com as guerras, para o desenvolvimento de testes psicológicos. No âmbito da
educação, surgiram teorias do desenvolvimento, que embasavam o trabalho pedagógico.
(BOCK, 2009)
Este recorte histórico reflete como aconteceu o desenvolvimento da Psicologia como
uma ciência e profissão voltadas para controlar, higienizar e categorizar.
Em 1988, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) fez um levantamento traçando as
características do perfil do psicólogo brasileiro. A pesquisa demonstrou que a profissão era
predominantemente feminina (85%), jovem (73% a 90% com faixa etária entre 22 e 30 anos),
concentrada em centros urbanos, mal-remunerada e com exercício em período parcial. Em
1994 e 2003 foram realizados outros levantamentos pelo CFP e os dados colhidos indicam
que poucas mudanças aconteceram no perfil profissional da categoria. A Psicologia ter se
tornado uma profissão feminina, como apontou Rosemberg (1984), está relacionado à
possibilidade de conciliar o trabalho doméstico e a maternidade à atuação profissional.
O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP) realizou pesquisa
semelhante em 1995, e dentre os resultados constatou-se que a maioria dos psicólogos atua
em consultórios particulares, demonstrando que a atuação do profissional não alcança as
classes menos favorecidas. (BOCK, 2009)
Na década de 1970, têm-se os primeiros registros do uso da Psicologia em
comunidades. Dentre as atividades desenvolvidas, estavam: promoção de reuniões e
discussões sobre as necessidades da população, incluindo levantamentos sobre condições de
vida e deficiências nos setores educacional, cultural e de saúde; oferta de atendimento
psicológico gratuito e participação em mobilizações sociais. (FREITAS em CAMPOS, 1996)
Neste período, psicólogos, preocupados com a saúde pública, também passaram a desenvolver
uma prática relacionada à prevenção da saúde mental. (LANE em CAMPOS, 1996) A
Psicologia, porém, teria se voltado a um projeto de compromisso social a partir do final dos
anos 80, com a entrada do psicólogo no serviço público de saúde. De acordo com Amendola
(2014), a transferência de psicólogos dos consultórios para outros segmentos de atendimento à
população, como o terceiro setor e o serviço público, ocorreu, dentre outros fatores, devido à
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restrição do mercado psicológico privado e ao aumento de profissionais disponíveis. Por ser
um processo relativamente recente, o debate da relação entre Psicologia e Políticas Públicas
precisa ainda avançar. Inclusive a própria graduação em Psicologia deixa a desejar neste
quesito. A formação do psicólogo ainda é distante da realidade brasileira: não há uma
formação sólida em Psicologia Social (CALEGARE, 2010) e existem poucos projetos de
extensão que aproximem a Psicologia das comunidades. (GUEDES et al., 2009)
De acordo com Dimenstein (2000), os cursos de Psicologia negligenciam o
conhecimento de aspectos sociais, históricos, políticos e ideológicos, que definem tanto a
prática do psicólogo, quanto a realidade em que atuam. O estudante, assim, tem uma
formação profissional acrítica e apolítica, próxima aos valores hegemônicos da ideologia
individualista e distante do social. Os currículos privilegiam o modelo clínico liberal e a
psicoterapia individual, limitando o entendimento do que é a atuação do psicólogo, e a
representação que a sociedade tem do profissional. Esse fato, segundo Dimenstein (2000),
“[...] constitui num entrave para o exercício de atividades em novas áreas que envolvem
atividades para as quais o psicólogo não foi preparado [...]” (p. 104). Os profissionais, em sua
maioria, reproduzem acriticamente métodos e procedimentos.
Fica evidenciado o descompasso entre a formação e a atuação de psicólogos nos
diversos contextos. Os profissionais são formados e ficam “presos” a modelos
descontextualizados – isto é, independente do ambiente do trabalho, o psicólogo leva consigo
o atendimento clínico e individual como modelo de atuação (SCARPARO & GUARESCHI,
2007). Souza (2011) afirma não ser necessário rejeitar a clínica, mas superar o “olhar
individual”, incluindo a concepção social na formação dos profissionais.
Para Martínez (em BOCK, 2009), algumas características importantes para atuar como
psicólogo são: sensibilidade humana e social, sentido de justiça, solidariedade e capacidade de
assumir posições. A formação acadêmica, no entanto, preocupa-se com a apropriação de
conteúdos curriculares e habilidades, e pouco com a formação do psicólogo enquanto sujeito.
Não há estratégias, na academia, que promovam o desenvolvimento de recursos subjetivos
para uma prática socialmente comprometida.
Há a valorização do psicólogo enquanto profissional liberal e autônomo, e estas
características definem a profissão para o público externo (DIMENSTEIN, 2000). Por isso e
pelas razões já citadas, possivelmente, o trabalho na área social não tem sido a escolha mais
frequente entre os profissionais (SCARPARO & GUARESCHI, 2007). No entanto, é uma
área que vem se ampliando e absorvendo cada vez mais psicólogos. De acordo com Reis e
22
Guareschi (2010), os profissionais optam pelas políticas públicas mais pela dificuldade em
montar e sustentar um consultório e pela escassez de vagas, do que por encantamento pela
atuação ou pelo real compromisso da Psicologia com o coletivo.
Ferrarini e Camargo (2012) realizaram um estudo com estudantes de graduação a fim
de investigar os sentidos da Psicologia. Para os futuros profissionais psicólogos, há uma
consciência da redefinição da profissão de um serviço centrado em atendimento individual
para a atuação em outros contextos, como escola, organizações e comunidades. O psicólogo
passa a ser visto intervindo em questões sociais, atuando em equipes multidisciplinares, na
prevenção, e tendo como clientela a população usuária dos serviços públicos. Apesar disto, os
estudantes reconheceram que a formação acadêmica não oferece subsídios para articular
teoria e prática ou para a atuação no contexto social.
A psicologia clínica tradicional apresenta-se como a principal e a mais consistente área da psicologia,
capaz de oferecer procedimentos e instrumentais claros para o trabalho de diagnóstico e de intervenção
do psicólogo em diferentes contextos de atuação. Parece que esse descompasso alicerçou-se no terreno
da formação do psicólogo. Observa-se que os alunos afirmam não se sentirem instrumentalizados e
capacitados para lidar com esse horizonte que se abre a partir da perspectiva social e relativista, não
encontrando subsídios nem na teoria, nem na prática, o que parece dificultar ainda mais a percepção do
que venha a ser psicologia. (FERRARINI & CAMARGO, 2012, p. 717)
Percebe-se que há uma contradição entre o discurso acadêmico e a inserção
profissional dos psicólogos recém-formados. Os graduandos se sentem inseguros quando têm
que intervir em situações práticas e, muitas vezes, não recorrem à teoria como referência, mas
sim à experiência pessoal ou ao bom-senso. Tal situação sugere que as abordagens estudadas
na graduação não têm sido levadas para a prática, como orientadoras da atuação profissional
(FERRARINI & CAMARGO, 2012). O curso de Psicologia tem se orientado mais para o
discurso da Psicologia, e pouco para “o fazer Psicologia”. (FERRARINI, CAMARGO &
BULGACOV, 2014)
Pela fala dos próprios graduandos, revela-se uma dúvida sobre a identidade
profissional e o lugar da profissão, “ficando a impressão da psicologia como um lugar de
incertezas, como um “lugar do não saber” e, na prática psicológica, como um “não saber o
que fazer”. (FERRARINI & CAMARGO, 2012, p. 717)
Nos setores públicos, a fragilidade da formação é observada quando os profissionais
estão formados e já atuando. Há uma demanda de trabalho no âmbito das políticas sociais,
para as quais os profissionais não se sentem preparados. A atuação só é possível se o
profissional for receptivo a outros saberes, aos imprevistos e à aprendizagem continuada. É
necessário deixar os modelos convencionais de atuação, transformando as práticas
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unidisciplinares em relações interdisciplinares. Assim, o profissional “assume autoria da
construção da sua prática profissional, revisando conceitos e marcas identitárias”.
(SCARPARO & GUARESCHI, 2007, p. 107)
Também, segundo Guirado (2010), é preciso considerar qual lugar o psicólogo ocupa
naquela instituição. Em um contexto, que não a clínica, será a partir deste entendimento, que o
profissional se reconhecerá e será reconhecido pelos demais agentes e pela clientela.
Poder-se-ia dizer que esse lugar lhe confere um campo de visão e de visibilidade no imaginário daquela
instituição; e, ao mesmo tempo e ato, o âmbito discursivo possível do serviço que poderá prestar.
(GUIRADO, 2010, p. 47)
Enfim, o histórico da Psicologia a fez uma ciência direcionada para a clínica
individual e pouco voltada para o social. Apesar das demandas de trabalho estarem
reconfigurando as práticas dos psicólogos, os cursos de formação não têm reconhecido e
atrelado a atuação efetiva ao discurso acadêmico. Grande parte dos cursos de Psicologia
mantêm uma estrutura curricular tradicional. (CALEGARE, 2010) Assim, os profissionais
sentem-se despreparados e questionam sua posição dentro das instituições.
Um desses novos campos de atuação demandados ao psicólogo é a Assistência Social.
Especificamente em relação à inserção nesta área, de acordo com Nery (2009), “prevalece
ainda, do ponto de vista da formação no nível de graduação, uma precária, ou mesmo
inexistente, preparação dos futuros profissionais a serem inseridos nesse campo.” (p. 114). No
próximo capítulo será abordada a Política de Assistência Social e a prática do profissional de
Psicologia neste contexto.
2.2 PSICOLOGIA NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
2.2.1 POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
A Assistência Social é uma política recente no Brasil. Somente a partir da Constituição
Federal de 1988, em seus artigos 203 e 204, foi colocada como direito dos cidadãos a ser
assegurado por políticas públicas. A Assistência Social passou, então, a fazer parte do tripé da
Seguridade Social, ao lado da Saúde e Previdência Social. Assim, pela legislação, deixou de
ter o caráter de mera benemerência e filantropia, passando a ser um direito garantido à
população que dela necessita.
24
Em 1993, há um marco: a aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS),
que estabelece a organização e oferta de serviços da Assistência Social, previstos na CF 88.
No Capítulo I – Das Definições e Dos Objetivos é disposto:
Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de Seguridade Social não
contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de
iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas.
Art. 2º A assistência social tem por objetivos:
I- a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II- o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III- a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV- a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua
integração à vida comunitária;
V- a garantia de 1 (um) salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao
idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua
família.
Parágrafo único. A assistência social realiza-se de forma integrada às políticas setoriais, visando ao
enfrentamento da pobreza, à garantia dos mínimos sociais, ao provimento de condições para atender
contingências sociais e à universalização dos direitos sociais. (BRASIL, 1993)
Durante a década de 1990, contudo, poucas mudanças efetivas aconteceram no âmbito
da seguridade social. Apenas em 2004, com a promulgação da Política Nacional de
Assistência Social (PNAS), houve um reordenamento nas práticas de Assistência Social. Sua
operacionalização, a partir daí, passou a ser através do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS), cuja gestão é descentralizada e participativa, integrando os três entes federados,
sociedade civil organizada e políticas sociais e econômicas. A PNAS traz a materialidade do
conteúdo da Assistência Social como sustentação do Sistema de Proteção Social do país no
âmbito da Seguridade Social, normatizando em todo o território nacional os padrões dos
serviços em nomenclatura, qualidade de atendimento, indicadores de avaliação e resultado e
eixos estruturantes. (BRASIL, 2005a)
A visão inovadora que embasa a PNAS é “pautada na dimensão ética de incluir “os
invisíveis”, os transformados em casos individuais, enquanto são parte de uma situação social
coletiva [...]” (BRASIL, 2005a, p. 15). Entende que a família, e suas circunstâncias, são
fatores determinantes para proteção e autonomia do indivíduo. Tal Política foi construída a
partir de uma perspectiva da realidade que entende que, apesar das necessidades, a população
tem potencialidades passíveis de serem desenvolvidas. O foco deve ser na identificação de
“forças”, e não de “fragilidades” que acometem a vida dos usuários. Os riscos e
vulnerabilidades devem ser conhecidos, mas também é suposta a possibilidade de enfrentá-
los. (BRASIL, 2005a)
25
Tudo isso significa que a situação atual para a construção da política pública de assistência social
precisa levar em conta três vertentes de proteção social: as pessoas, as suas circunstâncias e dentre elas
seu núcleo de apoio primeiro, isto é, a família. A proteção social exige a capacidade de maior
aproximação possível do cotidiano da vida das pessoas, pois é nele que riscos, vulnerabilidades se
constituem. (BRASIL, 2005a, p. 15)
A Assistência Social tornou-se aliada ao desenvolvimento humano e social, deixando
de ser apenas “provedora” de necessidades. Sua intenção é desenvolver as famílias e os
indivíduos para que tenham acesso a seus direitos e a bens e recursos. Para tal, o SUAS adota
como eixos a matricialidade sociofamiliar e a territorialização. O trabalho a ser realizado tem
como foco a família articulada e contextualizada a seu ambiente. O Estado, desta forma, faz-
se presente na vida das famílias e do território. (BRASIL, 2005a)
A proteção social, um dos alvos da PNAS, é entendida como “toda intervenção pública
que objetiva ajudar indivíduos, domicílio e comunidades a administrar riscos ou apoiar os
cronicamente pobres” (VAITSMAN et al., 2009, p. 733). O conceito trazido por Di Giovanni
(1998) para proteção social são formas
institucionalizadas que as sociedades constituem para proteger parte ou conjunto de seus membros. Tais
sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o
infortúnio, as privações [...] (DI GIOVANNI, 1998 apud BRASIL, 2005a, p. 31)
Através da Política de Assistência Social, as demandas dos usuários2 são legitimadas e
os segmentos mais vulneráveis da sociedade, incluídos no sistema de proteção social,
compreendendo este espaço como direito, e não assistencialismo. A proteção social deve
garantir: “segurança de sobrevivência (de rendimento e autonomia); de acolhida; de convívio
ou vivência familiar”. (BRASIL, 2005a)
A estratégia de atuação na Assistência Social, na Proteção Social, está hierarquizada
em Proteção Social Básica e Proteção Social Especial. No presente trabalho teve-se como
foco a Proteção Social Básica, que objetiva a prevenção de situações de risco, por meio do
desenvolvimento de potencialidades, e o fortalecimento dos vínculos familiares. O Centro de
Referência de Assistência Social (CRAS) é o equipamento executor desta Proteção, e
2 Os usuários da Política de Assistência Social são assim caracterizados: “Cidadãos e grupos que se encontram
em situações de vulnerabilidade e risco, tais como: famílias e indivíduos com perda e fragilidade de vínculos de
afetividade, pertencimento e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural
e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no acesso às demais
políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de violência advinda do núcleo familiar,
grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e
alternativas diferenciadas de sobrevivência que podem representar risco pessoal e social.” (BRASIL, 2005a, p.
33)
26
considerado como a “porta de entrada” do usuário para os serviços da Assistência Social. Está
localizado nas regiões de maior índice de vulnerabilidade3 social.
A NOB-SUAS estabelece a organização dos CRAS conforme número de famílias nele
referenciadas:
I- até 2.500 famílias;
II- de 2.501 a 3.500 famílias;
III- de 3.501 até 5.000 famílias. (BRASIL, 2012, p. 21)
A capacidade de referenciamento de um CRAS está relacionada ao número de famílias
no território, à estrutura física da unidade e à quantidade de profissionais que atuam na
unidade, conforme NOB-RH. (BRASIL, 2012)
O direcionamento do trabalho no CRAS, realizado eminentemente em grupos, visa ao
fortalecimento das famílias para que acessem aos direitos sociais e se tornem assim
protagonistas de suas vidas. (BRASIL, 2009) Para tal, sua execução prevê a articulação com
as demais políticas públicas (Previdência, Saúde, Educação, etc.), de forma que os programas
ofertados sejam amplos e preventivos, cumprindo o papel de promover o acesso dos cidadãos
aos direitos sociais. (CFP/CFESS, 2007)
Os serviços ofertados podem ser analisados em três vertentes: 1- Serviços
socioeducativos (geracionais, intergeracionais, com famílias, dentre outros); 2- Benefícios, no
qual se incluem programas de transferência de renda (bolsa família, por exemplo), benefícios
eventuais (como o subsídio alimentar); 3 – Programas e Projetos: capacitação e promoção da
inserção produtiva; geração de trabalho e renda; programas de enfrentamento à pobreza;
programa de enfrentamento ao trabalho infantil. (BRASIL, 2006)
Apesar de diversos serviços acontecerem, o cerne da atuação nos CRAS é o serviço de
Proteção e Atendimento Integral à Família – PAIF, que consiste no trabalho social com
famílias, buscando sua proteção integral. Seu direcionamento é para ações coletivas, visando
ao exercício de direitos e a construção de novos projetos de vida. (BRASIL, 2009) O PAIF,
instituído nas ações de Assistência Social desde o ano de 2004, acontece necessariamente nos
CRAS, não podendo ser terceirizado ou, em outras palavras, executado por unidades
conveniadas ao poder público. (BRASIL, 2005b)
3 Por vulnerabilidade entende-se as circunstâncias em que os indivíduos ou famílias não possuem capacidades
para enfrentar situações de crise decorrentes de insuficiência de renda, de não satisfação das necessidades
básicas ou da violação de direitos. (Cadernos de Assistência Social; NUPPAS, Trabalhador, 2006 apud SOUZA,
2011, p. 84)
27
O CRAS atua com famílias e indivíduos em seu contexto comunitário, visando a orientação e o
convívio sociofamiliar e comunitário. [...] Na proteção básica, o trabalho com famílias deve considerar
novas referências para compreensão dos diferentes arranjos familiares, superando o modelo único
baseado na família nuclear, e partindo do suposto de que são funções básicas das famílias: prover a
proteção e a socialização dos seus membros; constituir-se como referências morais, de vínculos afetivos
e sociais; de identidade grupal, além de ser mediadora das relações dos seus membros com outras
instituições sociais e com o Estado.
[...] qualquer forma de atenção e, ou, de intervenção no grupo familiar precisa levar em conta sua
singularidade, sua vulnerabilidade no contexto social, além de seus recursos simbólicos e afetivos, bem
como sua disponibilidade para se transformar e dar conta de suas atribuições.
São considerados serviços de proteção básica de assistência social aqueles que potencializam a família
como unidade de referência, fortalecendo seus vínculos internos e externos de solidariedade, através de
protagonismo de seus membros e da oferta de um conjunto de serviços locais que visam a convivência,
a socialização e o acolhimento, em famílias cujos vínculos familiar e comunitário não foram rompidos,
bem como a promoção da integração ao mercado de trabalho. (BRASIL, 2005a, pp. 35 - 36)
A família é entendida como espaço primário e privilegiado para proteção e
socialização, portanto, deve ser cuidada. A noção de família que embasa a PNAS é a de: “um
conjunto de pessoas que se acham unidas por laços consaguíneos, afetivos e, ou, de
solidariedade.” (BRASIL, 2005a, p. 41)
O modelo de família nuclear não é mais referência na contemporaneidade.
Considerando a família como uma entidade formada por laços de afeição, se torna possível
pensar em diversos arranjos familiares como, por exemplo, famílias que se constituem apenas
de avós e netos, famílias com filhos naturais e adotados, família homossexual e família
monoparental, na qual convivem apenas pai e filhos ou mãe e filhos. Mesmo com as
transformações que a “família” vem sofrendo, ela continua como a instituição que orienta o
desenvolvimento humano, construindo relações de afeto e possibilitando aprendizagens.
Segundo Souza (2011), o importante é considerar que o valor não está na organização da
família, mas “sim na qualidade que ela tem no desempenho de suas funções de proteção aos
seus membros.” (p. 82)
Todos estes novos arranjos estão presentes na realidade brasileira e alguns em maior
número, como a família monoparental e mais especificamente aquela em que a mãe trabalha,
mantêm a casa e cuida dos filhos. A interação de diversos fatores tanto sociais, culturais,
econômicos quanto peculiares ao grupo familiar, determina a organização da família. E todos
estes fatores devem ser considerados no planejamento e execução do trabalho social. Dentre
as diretrizes metodológicas do PAIF estão: “Valorizar as famílias em sua diversidade, valores,
cultura, com sua história, problemas, demandas e potencialidades” e “Potencializar a função
de proteção e de socialização da família e da comunidade”. (BRASIL, 2005b, p. 17 -18)
Assim, pode-se afirmar que os serviços ofertados no CRAS tem como objetivo a
defesa da convivência familiar (tendo como referência a concepção de família como
28
pluralidade de arranjos ou fases que apresentam vulnerabilidades e potencialidades distintas),
em busca do fortalecimento do convívio e da proteção de seus membros. Tais serviços
deverão cumprir o papel de mediar as relações entre o indivíduo e sua família e comunidade,
contribuindo para a manutenção/construção de relações afetivas e de solidariedade.
Para a implantação e execução de todas as atividades desenvolvidas nos CRAS, é
necessária uma equipe de profissionais qualificada. No ano de 2007 foi publicada a Norma
Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS (NOB-RH/SUAS), com os princípios e
diretrizes da gestão do trabalho na área da Assistência Social, englobando trabalhadores,
órgãos gestores e executores e entidades de assistência social. Este é um marco importante,
pois a qualidade dos serviços prestados pela rede socioassistencial está diretamente
relacionada a quem os executa, sua capacitação para o trabalho e incentivo para a
permanência nesta área. É também de grande relevância para este estudo especificamente,
visto que é a partir da publicação de tal documento que o profissional da Psicologia aparece,
oficialmente, compondo as equipes mínimas dos serviços ofertados pela política de
Assistência Social.
Em relação à Proteção Social Básica, o número de profissionais que compõe as
equipes dos CRAS varia conforme a quantidade de famílias referenciadas àquele
equipamento. A tabela abaixo, apresentada pela NOB-RH, traz a composição da equipe.
Tabela 1
Composição de equipe de referência dos Centros de Referência de Assistência Social
– CRAS para a prestação de serviços e execução das ações no âmbito da Proteção
Social Básica nos municípios.
Pequeno Porte I Pequeno Porte II Médio, Grande, Metrópole e DF
Até 2.500 famílias
referenciadas
Até 3.500 famílias
referenciadas A cada 5.000 famílias referenciadas
2 técnicos de nível
superior, sendo
um profissional
assistente social e
outro preferencialmente
psicólogo.
3 técnicos de nível
superior, sendo
dois profissionais
assistentes sociais
e preferencialmente
um psicólogo.
4 técnicos de nível superior, sendo
dois profissionais assistentes sociais,
um psicólogo e um profissional que
compõe o SUAS.
2 técnicos de nível
médio
3 técnicos nível
médio 4 técnicos de nível médio
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Nos CRAS de pequeno porte, nível I, onde há até 2.500 famílias referenciadas, em
relação aos profissionais com ensino superior, são previstos dois técnicos de nível superior,
sendo um assistente social e o outro preferencialmente psicólogo. Nos de pequeno porte, nível
II, são três técnicos, sendo também um preferencialmente psicólogo. A partir da leitura da
NOB-RH/SUAS, entende-se que deve haver obrigatoriamente assistentes sociais nas equipes
e preferencialmente psicólogos, em detrimento a outros profissionais, como pedagogos ou
terapeutas ocupacionais, apesar de não citados. Entende-se, através da tabela, que apenas em
CRAS com 5.000 famílias referenciadas a presença do psicólogo é obrigatória.
Este panorama se alterou com a publicação da Resolução nº 17/2011 do CNAS, que
ratificou a composição da equipe de referência para os serviços do SUAS definida pela NOB-
RH. Nesta, os profissionais psicólogos passam a compor obrigatoriamente as equipes, tanto
da Proteção Social Básica quanto da Proteção Social Especial. Através desta Resolução,
também são listadas as categorias de ensino superior que poderão atender às demandas dos
serviços socioassistenciais, considerando a necessidade de estruturação e composição, a partir
das especificidades do território. São elas: Antropólogo, Economista Doméstico; Pedagogo;
Sociólogo; Terapeuta ocupacional e Musicoterapeuta.
Sobre o perfil dos técnicos, o Guia de Orientação Técnica SUAS – nº 1 lista os
conhecimentos necessários para a atividade profissional no CRAS. Dentre eles, são citados:
CF 88; LOAS/1993; ECA/1990; PNAS/2004; PNI/1994; Política Nacional de Integração da
Pessoa com Deficiência/1989; NOB-SUAS; Leis, decretos e portarias do MDS; Fundamentos
sobre o trabalho social com e para famílias, seus membros e indivíduos e Trabalho com
grupos e redes sociais. Em relação às competências, são listadas as capacidades de:
- executar procedimentos profissionais para escuta qualificada individual ou em grupo, identificação de
necessidades e oferta de orientações a indivíduos e famílias, fundamentados em pressupostos teórico-
metodológicos, éticos e legais;
- articular serviços e recursos para atendimento, encaminhamento e acompanhamento das famílias e
indivíduos;
- trabalhar em equipe;
- produzir relatórios e documentos necessários ao serviço;
- participação, que visem o fortalecimento familiar e a convivência comunitária. (BRASIL, 2005b, p.
11)
Apesar de ter sido promulgada há 11 anos, a Política Nacional de Assistência Social
está sendo implantada e ajustada. E, como veremos a seguir, o papel do profissional da
Psicologia caminha nessa mesma direção.
30
2.2.2 ATUAÇÃO DO PSICÓLOGO NA ASSISTÊNCIA SOCIAL
O psicólogo, agente das políticas públicas, segundo Gonçalves (em BOCK, 2009),
deve atuar na direção de: “resgatar o homem de seus medos, de sua introjeção, torná-lo
saudável, em condições de participar da transformação da realidade que o oprime.” (p. 293)
Na Política de Assistência Social, de acordo com as Referências Técnicas de Atuação do(a)
Psicólogo(a) no CRAS/SUAS, publicada em 2008 pelo Conselho Federal de Psicologia, o
psicólogo “tem como finalidade básica o fortalecimento dos usuários como sujeitos de
direitos e o fortalecimento das políticas públicas” (p. 22). Em seu exercício profissional no
CRAS, o psicólogo tem como objetivo último a prevenção de situações de risco e superação
da vulnerabilidade social. Sua atuação deve ter como foco a prevenção e “promoção de vida”,
priorizando as potencialidades e valorizando os aspectos saudáveis dos usuários e do
território, sem por isso deixar de considerar os aspectos ligados às vulnerabilidades. A
efetivação destas premissas deve ocorrer através do trabalho realizado no fortalecimento dos
vínculos familiares e na promoção de autonomia e empoderamento dos sujeitos, através da
intervenção do profissional pelos serviços, programas e projetos ofertados pela Proteção
Social Básica, pautados no compromisso ético e político de garantia de direitos.
As atividades desenvolvidas no CRAS estão voltadas para o alívio imediato da pobreza, para a ruptura
com o ciclo intergeracional da pobreza e o desenvolvimento das famílias. Os psicólogos no CRAS
devem promover e fortalecer vínculos sócio-afetivos, de forma que as atividades de atendimento gerem
progressivamente independência dos benefícios oferecidos e promovam a autonomia na perspectiva da
cidadania. (CFP, 2008, p. 24)
O psicólogo deve propor atividades no âmbito social, pautando-se na compreensão
subjetiva dos fenômenos coletivos. O profissional realiza atendimentos individuais e coletivos
às famílias, mas o trabalho em grupos deve ser priorizado. A “escuta qualificada” às
demandas dos usuários é ofertada e, a partir dela e do diagnóstico do território, é que as ações
de enfrentamento às desigualdades e de fortalecimento da cidadania devem ser propostas.
(CFP/CFESS, 2007) O psicólogo, em sua prática, não deve patologizar ou categorizar “as
pessoas atendidas, mas buscar compreender e intervir sobre os processos e recursos
psicossociais, estudando as particularidades e circunstâncias em que ocorrem.” (CFP, 2008, p.
22)
O documento “Referências Técnicas de Atuação do(a) Psicólogo(a) no CRAS/SUAS”
elaborado pelo Conselho Federal de Psicologia traz diretrizes para a atuação do psicólogo nos
serviços e programas do CRAS, que são transcritas a seguir:
31
» desenvolver modalidades interventivas coerentes com os objetivos do trabalho social desenvolvido
pela Proteção Social Básica e Proteção Social Especial (média e alta), considerando que o objetivo da
intervenção em cada uma difere, assim como o momento em que ele ocorre na família, em seus
membros ou indivíduos;
» facilitar processos de identificação, construção e atualização de potenciais pessoais, grupais e
comunitários, de modo a fortalecer atividades e positividades já existentes nas interações dos
moradores, nos arranjos familiares e na atuação dos grupos, propiciando formas de convivência familiar
e comunitária que favoreçam a criação de laços afetivos e colaborativos entre os atores envolvidos;
» fomentar espaços de interação dialógica que integrem vivências, leitura crítica da realidade e ação
criativa e transformadora, a fim de que as pessoas reconheçam-se e se movimentem na condição de co-
construtoras de si e dos seus contextos social, comunitário e familiar;
» compreender e acompanhar os movimentos de construção subjetiva de pessoas, grupos comunitários e
famílias, atentando para a articulação desses processos com as vivências e as práticas sociais existentes
na tessitura sóciocomunitária e familiar;
» colaborar com a construção de processos de mediação, organização, mobilização social e participação
dialógica que impliquem na efetivação de direitos sociais e na melhoria das condições de vida presentes
no território de abrangência do CRAS;
» no atendimento, desenvolver as ações de acolhida, entrevistas, orientações, referenciamento e
contrareferenciamento, visitas e entrevistas domiciliares, articulações institucionais dentro e fora do
território de abrangência do CRAS, proteção pró-ativa, atividades socioeducativas e de convívio,
facilitação de grupos, estimulando processos contextualizados, auto-gestionados, práxicos e
valorizadores das alteridades;
» por meio das ações, promover o desenvolvimento de habilidades, potencialidades e aquisições,
articulação e fortalecimento das redes de proteção social, mediante assessoria a instituições e grupos
comunitários;
» desenvolver o trabalho social articulado aos demais trabalhos da rede de proteção social, tendo em
vista os direitos a serem assegurados ou resgatados e a completude da atenção em rede;
» participar da implementação, elaboração e execução dos projetos de trabalho;
» contribuir na elaboração, socialização, execução, no acompanhamento e na avaliação do plano de
trabalho de seu setor de atuação, garantindo a integralidade das ações;
» contribuir na educação permanente dos profissionais da Assistência Social;
» fomentar a existência de espaços de formação permanente, buscando a construção de práticas
contextualizadas e coletivas;
» no exercício profissional, o psicólogo deve pautar-se em referenciais teóricos, técnicos e éticos. Para
tanto, é fundamental manter-se informado e atualizado em nível teórico/técnico, acompanhando as
resoluções que norteiam o exercício;
» na ação profissional, é fundamental a atenção acerca do significado social da profissão e da direção da
intervenção da Psicologia na sociedade, apontando para novos dispositivos que rompam com o
privativo da clínica mas não com a formação da Psicologia, que traz, em sua essência, referenciais
teórico-técnicos de valorização do outro, aspectos de intervenção e escuta comprometida com o
processo de superação e de promoção da pessoa;
» os serviços de Psicologia podem ser realizados em organizações de caráter público ou privado, em
diferentes áreas da atividade profissional, sem prejuízo da qualidade teórica, técnica e ética, mantendo-
se atenção à qualidade e ao caráter do serviço prestado, as condições para o exercício profissional e
posicionando-se, o psicólogo, enquanto profissional, de forma ética e crítica, em consonância com o
Código de Ética Profissional do psicólogo. (CFP, 2008, pp. 33 – 35)
Com a NOB-RH/SUAS e a Resolução 17/2011 do CNAS, fica estabelecido que
psicólogos e assistentes sociais, dentre outros profissionais, compõem as equipes do SUAS. A
previsão é que ambos trabalhem de forma conjunta, objetivando uma atuação interdisciplinar,
que atenda as demandas individuais e coletivas, porém, respeitando as especificidades de cada
profissão. De acordo com orientação do CFP/CFESS (2007):
32
A construção do trabalho interdisciplinar impõe aos(às) profissionais a realização permanente de
reuniões e debates conjuntos de planejamento a fim de estabelecer as particularidades da intervenção
profissional, bem como definir as competências e habilidades profissionais em função das demandas
sociais e das especificidades do trabalho. Balizados pelos seus Códigos de Ética, Leis de
Regulamentação e Diretrizes Curriculares de formação profissional, assistentes sociais e psicólogos(as)
podem instituir parâmetros de intervenção que se pautem pelo compartilhamento das atividades,
convivência não conflituosa das diferentes abordagens teórico-metodológicas que fundamentam a
análise e intervenção da realidade e estabelecimento do que é próprio e específico a cada profissional na
realização de estudos socioeconômicos, visitas domiciliares, abordagens individuais, grupais e
coletivas. (p. 39 – grifos nossos)
O fato de o trabalho ser realizado em equipe não deve omitir a definição das
responsabilidades e competências de cada profissional e suas atribuições. Psicologia e Serviço
Social apresentam pressupostos teórico-políticos diferentes, contudo, possíveis de diálogo, de
modo a se complementarem para o enfrentamento das situações cotidianas que se apresentam
no exercício profissional. Nery (2009) coloca que é necessário “identificar as contribuições
específicas de cada área profissional, sem diluir as particularidades de cada uma,
estabelecendo possíveis nexos entre Psicologia e Serviço Social” (pp. 145 - 146).
Conforme orientação do CFP e CFESS (2007), apesar da discussão sobre definição de
papeis entre os profissionais, deve-se evitar a fragmentação do usuário da Assistência Social.
O CFP (2008) prevê ainda que a relação do psicólogo “com a equipe e o usuário deve pautar-
se pela parceria, pela socialização e pela construção do conhecimento, respeitando o caráter
ético conforme determina o Código de Ética Profissional do psicólogo.” (p. 33)
Além de interdisciplinar, a atuação do psicólogo deve ser intersetorial. Para que os
objetivos do trabalho do CRAS sejam alcançados, faz-se premente a articulação dos serviços
com as demais políticas públicas. De acordo com o CFP (2008), também é de grande
relevância a aproximação da equipe do CRAS com projetos e ações já existentes no território.
A articulação com as redes intersetorial e socioassistencial, mesmo sendo prevista, é ainda um
desafio a ser superado. (CFP, 2008)
Alguns estudos vêm focalizando a atuação do psicólogo no SUAS. Araujo (2010),
através de dados coletados a partir de entrevistas com profissionais que atuam em CRAS,
observou que os psicólogos atuantes nesta área percebem que suas práticas e funções ainda
estão em processo de construção. Observou igualmente uma tensão entre psicólogos e
assistentes sociais neste contexto, ora por estes ocuparem uma posição “privilegiada”,
restando ao psicólogo um lugar de coadjuvante no serviço, ora pelo estranhamento de quando
o psicólogo assume uma atividade que idealmente seria de domínio do assistente social. Nery
(2009) traz a diferenciação entre Serviço Social e Assistência Social. A Assistência Social
refere-se à Política Social e a práticas relacionadas a esta. O Serviço Social é uma disciplina
33
das ciências humanas, que analisa e problematiza a “questão social”, e cujo campo de trabalho
a que majoritariamente se vinculou foi o da Assistência Social. Assim, o trabalho social ficou
debutado aos assistentes sociais. Serviço Social e Assistência Social não são coincidentes,
“embora desde a origem da profissão, os (as) assistentes sociais atuem no desenvolvimento de
ações sócio-assistenciais, assim como atuem nas políticas de saúde, educação, habitação,
trabalho, entre outras”. (CFP & CFESS, 2007, p. 15)
Silva (2011), em sua dissertação de mestrado, ao estudar a atuação do psicólogo no 3º
setor, identificou que o profissional assistente social é o principal responsável pelas ações
realizadas, sendo o psicólogo acionado quando aquele não consegue resolver o “problema”. O
psicólogo teria, então, o papel de “apagar incêndio”, sendo convocado no momento em que o
assistente social não consegue “dar conta” da situação. Fica explicitada no estudo a existência
de um jogo de poder, onde o assistente social seria o monopolizador das ações, dificultando a
efetivação de um trabalho intersetorial. Também fica evidenciada a recorrência do psicólogo a
modelos clínicos para atuação neste contexto.
Os dados trazidos por Araujo (2010) e Silva (2011) de que os psicólogos estariam em
“segundo plano” na atuação na Política de Assistência Social, corroboram com o ponto
levantado por Souza (2011), em sua tese de doutorado:
Vimos que, de forma geral, nossa intervenção no campo social esteve sempre marcada por uma
presença secundária e submissa nas instituições sociais, seja como auxiliares de medicina e da
psiquiatria (higienização e disciplinarização), ou aos professores e à pedagogia (psicometria para a
“normalidade”), ou aos patrões e à burguesia (psicometria para a efetividade produtiva), pois, se
supostamente tínhamos uma ciência neutra, universal e detentora de um saber científico sobre o
homem, poderíamos, então, por meio da emissão de laudos e diagnósticos, por exemplo, orientar e
contribuir para a atuação e o trabalho de outros profissionais. (pp. 74 - 75)
Seguindo o raciocínio de Souza (2011) e das demais pesquisas citadas, na Assistência
Social, os psicólogos estariam atuando de forma a complementar aos assistentes sociais. Este
é o sentimento entre os profissionais da Psicologia, apesar de não haver formalmente esta
diferenciação entre as categorias.
Oliveira et al. (2011) também confirma o dado trazido por Silva (2011) e Yamamoto et
al. (2001) em relação à prática clínica do psicólogo no contexto da Assistência Social, sendo
esta relacionada ao mesmo tempo à zona de conforto do profissional e à garantia de uma
especificidade dentro da equipe. Na pesquisa realizada com psicólogos atuantes em
equipamentos da região metropolitana de Natal/RN, identificou que os profissionais têm
executado as atividades previstas pela Política, contudo, de forma não planejada, não contínua
e descontextualizada, mantendo o atendimento individual como referência.
34
Sobral e Lima (2013), através de estudo realizado com psicólogos que atuam em
CRAS no Sergipe, apontam uma dissociação entre as práticas declaradas por estes
profissionais e a imagem que se tem do que outros psicólogos fazem neste mesmo local de
trabalho. Quando falam de si, os psicólogos afirmam estar atuando conforme atividades
previstas para o contexto da Assistência Social, contudo, ao falarem dos colegas que atuam
em outros equipamentos, relatam que estes ainda têm um viés clínico. Sobral e Lima (2013)
entrevistaram também usuários atendidos por psicólogos nos CRAS, para os quais estes
profissionais estão lá para solucionar problemas emocionais, com base na conversa. A
imagem é a de um orientador ou conselheiro. Os autores concluem, portanto, que as práticas
realmente efetivadas relacionam-se à representação social da profissão: há um choque entre o
que está previsto nos manuais para atuação do psicólogo no SUAS e o que dela espera a
sociedade.
No estado do Paraná, no ano de 2013, foi realizada uma pesquisa junto aos psicólogos
atuantes no SUAS. Foram entrevistados, através de questionário, 44 psicólogos, sendo que
destes 26 atuavam em CRAS. Compunham o questionário perguntas abertas sobre
identificação pessoal/ profissional; atividades desempenhadas na atuação; dificuldades no dia-
a-dia do trabalho e recursos técnicos da Psicologia utilizados no exercício profissional no
SUAS. Butture, pesquisadora responsável pelo estudo, aponta o perfil dos profissionais que
participaram da coleta de dados. Em geral, são psicólogos em início de carreira – a grande
maioria teve a formação em Psicologia entre 2 e 5 anos e tem atuado no SUAS há um período
de um a dois anos. A autora coloca este dado como relevante para análise dos relatos: são
profissionais recém-chegados na Assistência Social. Em relação às atividades executadas
pelos psicólogos dos CRAS, a mais citada pelos participantes (81%) foi o “Planejamento/
Execução/ Responsabilidade pelo Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos”.
Também foram citadas: Orientação psicológica/ psicossocial; realização de palestras;
participação na rede de proteção e respostas à demanda do Conselho Tutelar. Sobre os
recursos técnicos utilizados, foram mencionados: Técnica de intervenção de grupos, escuta
técnica, entrevista, encaminhamentos e atendimento individual, sendo que as abordagens
teóricas da Psicologia, que embasam a prática, citadas pelos profissionais, são Psicologia
Sistêmica, Psicanálise, Psicologia Social, Psicologia Social-comunitária e Psicologia Sócio-
histórica. Dentre as dificuldades levantadas, foram citadas: Desvalorização/desconhecimento
da Psicologia; Confusão/indefinição de papeis; Dificuldade no trabalho interdisciplinar; Falta
de capacitação; Falta de equipe/ recursos humanos. (BUTTURE, 2013)
35
A partir dos resultados apresentados, pode-se conjecturar que os psicólogos têm
exercido atividades e utilizado recursos próprios para o contexto da Assistência Social.
Contudo, as dificuldades levantadas remetem ao sentimento de falta de identidade
profissional. A autora coloca que a atuação do psicólogo, independente do contexto em que
esteja inserido, deve ter como o foco o objeto de intervenção da Psicologia (subjetividade,
psique, inconsciente, comportamento ou self). Pensando na Assistência Social, que prevê a
atuação interdisciplinar, o psicólogo deve também ter como premissa os objetivos da Política:
“a promoção de mudanças que universalizem direitos e atenuem as desigualdades sociais”,
conforme aponta Butture (2013). Continua afirmando que cada categoria profissional tem sua
contribuição, conforme a competência de sua formação - e ao psicólogo compete a escuta do
social e do individual. Apesar das especificidades das profissões, indica que todos devem
atuar em prol de um objetivo comum. Conclui apontando a necessidade de rever conceitos e
técnicas construídos pela Psicologia e questionando o sentimento de falta de identidade
expresso pelos psicólogos. Lança a questão se seria a atuação interdisciplinar, a falta de
método para o trabalho ou ainda a formação, que não tem permitido que tais profissionais se
sintam apropriados deste lugar na Assistência Social.
Diante de todo o levantamento bibliográfico realizado somado à experiência
profissional desta pesquisadora na área da Assistência Social, percebem-se algumas questões
importantes: o psicólogo está em processo de apropriação/construção do seu lugar no SUAS;
apesar de haver orientações sobre como deve ser a atuação, o psicólogo não foi capacitado em
sua formação para assumir este lugar. Tais constatações dão margem para que a Psicologia
esteja realmente em um segundo plano dentro da Assistência Social, já que não é claro para o
profissional qual o seu papel naquele ambiente. Sem compreender sua atuação perante a
comunidade, estaria o psicólogo de fato atuando na superação das vulnerabilidades sociais e
no fortalecimento de vínculos? Estaria promovendo a inclusão social e o acesso dos usuários
aos direitos sociais? Ou, por não entender seu papel, estaria atuando de forma a manter o
status quo? Essa é a discussão trazida por Souza (2011), que aponta a necessidade de os
psicólogos superarem práticas que legitimam e mantem a exclusão dos usuários.
Torna-se urgente a superação da racionalidade cínica que permeia o trabalho do psicólogo nas políticas
públicas e que (re)produz reconhecimentos perversos que (re)põem a exclusão (Lima, 2010) e que a
práxis efetiva nessas circunstâncias esteja orientada para a luta contra o sofrimento ético-político que é
gerado pela desumanização das relações sociais advindas da desmesura de poder e de nossas
estruturações sociais perversas. (SOUZA, 2011, p. 164)
36
3 MÉTODO
3.1 A BASE CONCEITUAL DO MÉTODO: ANÁLISE INSTITUCIONAL DO DISCURSO
A Análise Institucional do Discurso - AID, proposta por Marlene Guirado (2010), é
considerada tanto uma intervenção em Psicologia, quanto um método de pesquisa. Em sua
construção, Guirado dialoga com a psicanálise de Sigmund Freud, a filosofia de Michel
Foucault, a sociologia de Guilhon Albuquerque e a análise de discurso de Dominique
Maingueneau. Os conceitos mais importantes para esta proposta, que serão detalhados a
seguir, são: Instituição, Discurso e Sujeito.
O significado de Instituição é o proposto pelo sociólogo Guilhon Albuquerque, que a
entende como o “conjunto de relações sociais que se repetem e, nessa repetição, legitimam-
se” (GUIRADO, 2010, p. 45). A legitimação ocorre como efeito de reconhecimento da
naturalidade do instituído e de desconhecimento da relatividade das verdades produzidas. A
instituição nos coloca como atores em cena, e, segundo Guirado (2010), é a nossa ação que
faz a instituição, reproduzindo-a e legitimando-a. Exemplificando com o contexto da
Assistência Social, que é o campo desta pesquisa: os profissionais que trabalham no SUAS
são atores institucionais, e à medida em que atuam, repetem práticas, constituem e legitimam
a instituição “Assistência Social”.
É a partir de Guilhon Albuquerque que se introduz a noção de se fazer um “recorte da
realidade”, abandonando a pretensão de compreender o total da instituição. Busca-se entender
as relações institucionais concretas, em seus efeitos ideológicos, políticos ou econômicos, não
mais entendendo as instituições “como entidades abstratas, centrais e dominadoras [...]”
(GUIRADO, 1987, p. XII) Nesta perspectiva, toda instituição se apropria de um objeto
institucional, sobre o qual reivindicará o monopólio de legitimidade. Esse objeto tem caráter
imaterial e sua apropriação é permanente, assim como sua desapropriação pelas instituições
não concernentes a ele. Tomando a Psicologia como exemplo pode-se pensar que seu objeto
institucional é a subjetividade, ou seja, são os psicólogos os profissionais autorizados a
tratarem de questões de cunho emocional. Pensando na Política de Assistência Social, seu
monopólio está na oferta de serviços socioassistenciais a famílias que se encontrem em
situação de vulnerabilidade social. O que parece estar em disputa no SUAS, como será
discutido no decorrer deste trabalho, não é o objeto institucional em si, mas sim a
reivindicação de monopólio entre os profissionais sobre os serviços executados. Outra
37
importante questão, que será discutida, é a negociação do profissional da Psicologia, que tem
a subjetividade reconhecida como objeto institucional, mas que ao atuar no SUAS, deve
considerar também o objeto da Política de Assistência Social.
Discurso, para a AID, não é a simples comunicação ou fala, mas é tomado como “ato,
dispositivo, instituição, que define, para um determinado momento histórico e para uma
região geográfica, as regras da enunciação” (GUIRADO, 2010, p. 46). Este conceito vem de
Michel Foucault, filósofo francês. É no discurso e por ele que “o jogo de forças
poder/resistência se exerce e a produção de um saber ou verdade se faz concreta”
(GUIRADO, 2010, p. 46).
O discurso, segundo Foucault (1996), não é livre ou aleatório, mas segue determinadas
ordenações e regras para ser aceito. Discurso é “ação”, não mera transmissão de pensamento.
Se estou “falando”, estou “fazendo”, isto é, estou agindo e, a partir desse agir estou
demarcando “lugares”. Guirado (2010) afirma:
[...] que o discurso é controlado por procedimentos de exclusão, separação, classificação
falso/verdadeiro; que o discurso é controlado pelos procedimentos de sua produção e de sua circulação;
controlado em sua dimensão de causalidade, acontecimento. (GUIRADO, 2010, p. 16)
O discurso representa ao mesmo tempo a linguagem, o que é dito, e o lugar de onde é
dito. O discurso objetiva o mundo, tornando o próprio homem um sujeito objetivado.
Concomitante à objetivação, produz-se a subjetivação, como efeito. “Isso significa que ao
objetivar o homem, o dispositivo também o subjetiva por meio dos modos de subjetivação.”
(RIBEIRO em GUIRADO; LERNER, 2007, p. 253). A “subjetivação” refere-se a esse
movimento do discurso, em que um sujeito, ou uma experiência de si, pode ser reconhecido/a
como tal.
Abordar discurso para Foucault obrigatoriamente nos remete ao conceito de poder
trazido por este autor, que difere das hierarquias, leis ou do Estado. Para ele, o poder se
produz em todas as relações, é imaterial, móvel e onipresente.
O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares. [...]
Sem dúvida, devemos ser nominalista: o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma
certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa
sociedade determinada. (FOUCAULT, 1999, p. 89)
O poder não é algo que se tenha ou se adquira, mas se refere a uma situação
estratégica, a partir da qual se exerce. As relações de poder estão intrinsecamente relacionadas
a outras relações (econômicas, de conhecimento, sexuais) – ambas se produzem mutuamente.
38
Ao mesmo tempo são intencionais e não subjetivas, ou seja, são ações dotadas de
intencionalidade estratégica, que pressuporá um ganho. (FOUCAULT, 1999)
Onde há poder há necessariamente resistência, e é em função desta que o poder se
exerce. Os pontos de resistência são múltiplos, estão presentes em toda a parte e não estão em
posição de exterioridade ao poder. Não é possível um ser analisado sem o outro. Pelo
contrário, para Foucault (1999), é nessa correlação de forças que o poder deve ser analisado.
Esta forma de poder aplica-se à vida cotidiana imediata que categoriza o indivíduo, marca-o com sua
própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos
reconhecer e que os outros têm que reconhecer nele. É a forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos.
Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua
própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que
subjuga e torna sujeito a (FOUCAULT em RABINOW & DREYFUS, 1995, p. 235)
O filósofo conduz seus trabalhos de forma a colocar as relações de poder como ponto
chave para a análise da subjetividade. Pode-se dizer que, para Foucault, o poder é produtor de
individualidade – é nas relações de poder que o sujeito se constitui. As relações de poder
implicam necessariamente a possibilidade de resistência, que não se encontra em posição de
exterioridade. Tais relações, que são intencionais e não subjetivas, não acontecem senão em
função de uma gama de pontos de resistência. O poder deve ser pensado como “verbo”, e não
enquanto “substantivo”, pois ao mesmo tempo em que é exercido nas relações, as produz.
Retomando os conceitos fundamentais para a AID, o sujeito, a partir das descrições
sobre Instituição, Discurso e Poder apresentadas, é entendido como “uma organização
singular, histórica, de um espetacular entrecruzamento de discursos, enunciações, matriciadas
em relações institucionais”. (GUIRADO, 2010, p. 135) Neste aspecto, a AID diferencia-se da
concepção foucaultiana e da Análise do Discurso (escola francesa), para as quais o sujeito é
mero efeito de discursos ou, antes, uma função enunciativa. Segundo Guirado, embora seja
constituído nas/pelas práticas discursivas (ou relações de poder), o sujeito é também
singularmente constituído, devido aos diferentes “assujeitamentos” e “resistências” que fazem
sua história. Assim, ao mesmo tempo em que os discursos ditam ao sujeito como ele deve ser,
pensar e agir consigo e com os outros, o sujeito também constitui esses discursos e os
reordena, de modo particular, em função de sua história de vínculos e dos lugares neles
ocupados. E, deste modo, a subjetividade e a identidade são constituídas. (VALORE em
GUIRADO & LERNER, 2007)
Guirado (2010) traz a metáfora do “sujeito-dobradiça” com o objetivo de ilustrar a
relação entre as condições de produção do discurso e os efeitos de subjetivação, que
39
acontecem de forma simultânea. Por meio deste dispositivo, é enunciada a objetivação e a
subjetivação. O sujeito é produzido nas práticas discursivas, mas não deixa de ser singular,
pois constrói e movimenta sentidos nesta produção. O sujeito legitima ou subverte práticas e
lugares subjetivos no discurso, e, ao mesmo tempo, sua subjetividade vai se constituindo. O
sujeito produz (ou re-produz) os discursos.
A autora coloca que a singularidade só pode ser apreendida quando se leva em
consideração seu processo de constituição, tendo a ciência dos efeitos das relações
institucionais (reconhecimento e desconhecimento), dos lugares e do modo de articulação de
duas práticas instituídas e da legitimação e naturalização dos discursos.
Segundo Guirado (2010), o conceito de “sujeito-dobradiça”:
Enuncia simultaneamente as condições de produção do discurso e os efeitos de subjetivação e, com
isso, viabiliza uma analítica da subjetividade. Cria-se com ele a condição e a possibilidade de escuta de
um falar de si. (p. 158)
O objeto a ser estudado, através da AID, são “as relações, mas não aquelas
imediatamente observáveis, e sim, tal como percebidas, imaginadas, por aqueles que
concretamente as fazem” (GUIRADO, 2010, p.48). Então, privilegia-se não o fato em si, mas
os afetos e as representações envolvidas no acontecimento e o modo como são configurados
no dizer.
Guirado (2000) dialoga com Maingueneau, apropriando-se do conceito de discurso
como cena enunciativa, que é entendida como o contexto em que a fala é produzida, incluindo
os atores que a constroem e as regras instituídas de enunciação (para este determinado
contexto). O discurso é “ato dispositivo”, em cuja análise se acentua o modo de dizer, ao
invés do dito. A cena é considerada um dos níveis de análise do gênero discursivo, que se trata
de um “quadro que permite apreender e interpretar um enunciado”. (GUIRADO, 2000, p. 80)
No presente trabalho, o gênero discursivo é de uma pesquisa acadêmica, na qual
pesquisadoras e participantes, cada qual, exerceu sua função enunciativa, de acordo com as
condutas esperadas para tal contexto. E é a partir destes papeis – pesquisador e participante -
reconhecidos e colocados em relação, que as palavras tomaram sentido. O significado que se
depreende, segundo Guirado (2000), é uma construção que considera todo o modo de
produção do discurso.
Tomando o conceito de Foucault, o discurso é entendido como acontecimento, ato,
prática. A AID preocupa-se não só com o conteúdo, mas como este é dito, e em qual contexto
foi produzido. O modo como os sujeitos se colocam, o quê ou como enunciam, constituem a
40
imagem que fazem de si e do outro. E “nessa enunciação – no movimento de
apropriação/sujeição de/a um saber sobre si que o objetiva – que um sujeito, ou uma posição
de sujeito irá se constituir.” (VALORE em GUIRADO & LERNER, 2007, p. 237). E, dessa
forma, é configurada uma “identidade” ou um “saber de si”.
Na cena enunciativa, uma das perspectivas pelas quais se procedeu a análise (como
explicitado), a pessoa a quem se fala também está presente no discurso, seja pela expectativa
que produz em quem fala, seja pelos sentidos que atribui ao que o outro diz ou pelo
reconhecimento de que faz parte do dispositivo discursivo. (GUIRADO, 2000)
Os discursos produzidos no contexto desta pesquisa foram analisados, considerando
que, ao se colocarem, as participantes estariam legitimando ou subvertendo práticas
institucionais e lugares subjetivos. E, nesse movimento, estariam constituindo a imagem de si,
enquanto profissionais. Levar-se-á em conta que aquilo que foi falado/vivenciado foi
igualmente dirigido à pesquisadora, psicóloga e trabalhadora da mesma Instituição e que,
assim sendo, também estava implicada na relação. Por conseguinte, a pesquisadora em
questão participou da construção da cena enunciativa juntamente com os participantes.
A seguir serão detalhados os procedimentos da pesquisa.
3.2 PROCEDIMENTOS
Os materiais analisados nesta pesquisa foram produzidos a partir da realização de um
grupo de reflexão com psicólogas e assistentes sociais.4
O grupo de reflexão, diferente das entrevistas individuais, é uma técnica de interação
grupal. Na presente pesquisa, o objetivo foi produzir discursos sobre que imagens de si e da
prática profissional os psicólogos que atuam nos CRAS configuram. Optou-se por esta técnica
por supor que a discussão em grupo, através do debate aberto e acessível a todos os
participantes, facilita a formação de ideias, produzindo informações com mais profundidade e
riqueza de detalhes. Também por entender que os discursos produzem subjetividades e
legitimam práticas e lugares subjetivos. No grupo, ao falarem de si, os participantes
demarcam posições.
Apesar de o foco principal deste estudo estar relacionado ao profissional da
Psicologia, entendeu-se como relevante a participação de assistentes sociais no grupo de
4 A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Setor de Ciências da Saúde da UFPR em
29/08/2014. CAAE: 34137414.0.0000.0102.
41
reflexão, visto que as duas categorias profissionais têm atuado no mesmo espaço, compondo a
mesma equipe de trabalho. Uma das prerrogativas do trabalho na Assistência Social é a
atuação interdisciplinar e entende-se que a configuração da subjetividade do psicólogo é
permeada pela relação com o assistente social (e demais profissionais da equipe). Além disto,
partindo dos pressupostos da AID, supôs-se que o encontro discursivo entre duas categorias
profissionais seria um momento profícuo para se investigar o objetivo proposto, visto que o
discurso do psicólogo também se afirma enquanto tal em relação ao discurso de outros
profissionais. É nas/pelas relações discursivas que a imagem de si se constitui.
Foram realizados cinco encontros, um por semana, com duração média de duas horas
cada, nos meses de outubro e novembro de 2014. As atividades realizadas em cada encontro
estão descritas no Apêndice 8.1. O local utilizado foi uma sala no Centro de Assessoria e
Pesquisa em Psicologia e Educação (CEAPPE) do Setor de Ciências Humanas da UFPR. O
centro dispõe de ambientes com poltronas e mesas que são usualmente destinadas a atividades
de entrevistas de atendimentos psicológicos e de pesquisa. O local assegura a privacidade e o
sigilo, e é externo à atividade profissional dos participantes.
O papel da pesquisadora foi o de “moderar” o grupo, isto é, introduzir e direcionar os
pontos de discussão, promovendo a participação dos presentes. Seu papel foi o de manter o
foco sobre os interesses do estudo, buscando aprofundar determinadas questões que surgissem
na discussão grupal. Neste processo, houve a colaboração de uma mestranda em Psicologia
que auxiliou na coordenação do grupo.
Antes do início das atividades do grupo, no primeiro encontro, foram apresentados os
objetivos da pesquisa e firmado um “contrato” grupal com a finalidade de se estabelecer o
sigilo entre os participantes. Foi entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(Apêndice 8.3), e após as assinaturas, deu-se início às atividades, que tiveram seus áudios
gravados e posteriormente transcritos.
A pesquisadora responsável realizou todas as atividades relacionadas à produção do
material, incluindo a coordenação do grupo de reflexão, a transcrição de áudio e a análise. A
pesquisadora é colega de trabalho dos participantes da pesquisa e, em determinados
momentos, durante os encontros do grupo ou mesmo na análise do material, houve
dificuldade em manter a posição de pesquisadora sem que emergisse a servidora da instituição
- que também vivencia, embora talvez de outras formas, situações como as trazidas pelos
participantes. Cabe ressaltar, contudo, que este fato não comprometeu os resultados desta
dissertação, à medida que o método da AID considera a cena enunciativa e a implicação do
42
pesquisador em sua configuração. Além disso, os discursos foram também analisados pelo
grupo de pesquisa em Análise Institucional do Discurso da Universidade Federal do Paraná,
composto pela professora orientadora deste trabalho e demais mestrandos, que não estão
vinculados à Assistência Social e tampouco se relacionam com as participantes da pesquisa.
3.3 OS PARTICIPANTES E O CONTEXTO DA ATUAÇÃO
Participaram dos encontros do grupo de reflexão seis profissionais, três psicólogas e
três assistentes sociais, que atuam na Fundação de Ação Social (FAS)5, em território
pertencente a uma mesma Regional administrativa do município de Curitiba/PR. Esta não será
identificada por questões éticas, mas se considera importante expor alguns dados sobre a
realidade local, a fim de caracterizar o contexto de atuação das participantes.
O território é caracterizado por predominância de crianças e jovens, taxa de
alfabetização inferior se comparado ao índice da cidade de Curitiba e também rendimento
médio dos domicílios inferior, se comparado a outras Regionais. É caracterizada pela alta
vulnerabilidade social, pela criminalidade, por serviços básicos insuficientes e pela ausência
de centros comerciais e atividades econômicas significativas. Violência, uso e tráfico de
entorpecentes e famílias residindo em condições insalubres e irregulares também são marcas
da região. Segundo a percepção da própria comunidade, é um local inseguro para se viver.
(CURITIBA, 2014)
A supervisora da Regional foi responsável por indicar os servidores que participaram
da pesquisa. Todas as participantes atuavam na Fundação há mais de dois anos e
desempenhavam atividades diretamente relacionadas a atendimento ao público usuário da
Assistência Social. O critério utilizado pela supervisora foi a amostragem por conveniência.
Foi dado preferência à indicação dos servidores que atuavam em jornada de 30 horas
semanais e que não estavam em cargos de chefia. Na época em que o grupo de reflexão foi
realizado, havia quatro psicólogas e treze assistentes sociais atuando na Regional que
atendiam a esse perfil. Uma das psicólogas não aceitou o convite e as três assistentes sociais
convidadas aceitaram participar dos encontros.
Uma das assistentes sociais pôde participar apenas do primeiro encontro, pois foi
convidada a assumir um cargo de coordenação, o que a impossibilitou de continuar
participando do grupo. Com a saída dessa participante, uma outra assistente social, que
5 Um organograma parcial da instituição é apresentado no Apêndice – item 8.2.
43
atendia aos critérios acima relacionados, foi convidada e ingressou no grupo a partir do
terceiro encontro. A tabela 2 traz características das participantes.
Tabela 2
Caracterização das participantes da pesquisa
CARACTERIZAÇÃO DAS PARTICIPANTES DA PESQUISA
Participante6 Profissão Tempo de Formação
Tempo de Atuação na Assistência
Social
Patrícia Psicóloga 9 anos 4 anos e 11 meses
Camila Psicóloga 11 anos 6 anos
Letícia Psicóloga 18 anos 3 anos
Juliana Assistente Social 4 anos 1 ano e 6 meses
Maria Assistente Social 20 anos 15 anos
Adriana Assistente Social 10 anos 6 anos
Paula Assistente Social 21 anos 20 anos
As participantes, todas do sexo feminino, tinham idades entre 32 e 50 anos, e eram
graduadas em Psicologia/ Serviço Social há uma média de 12 anos e meio e 15 anos,
respectivamente. As psicólogas atuavam na Política de Assistência Social, em média, há 4
anos e meio, e, as assistentes sociais há 12 anos (uma das assistentes sociais atuava há um ano
e meio e as outras duas há 15 e 20 anos). As participantes tinham pós-graduação em áreas
como: Famílias e Políticas Públicas, Gestão de Políticas Públicas, Psicologia Hospitalar e da
Saúde e Direito Aplicado ao SUAS.
Todas demonstraram interesse em participar dos encontros, e estes foram um espaço
importante para a reflexão sobre a atuação na Assistência Social. O clima foi descontraído e,
de modo geral, harmonioso. Durante a execução das atividades, antes e depois da discussão,
as participantes conversavam sobre temas diversos e amenidades.
No primeiro encontro, antes mesmo de iniciar a gravação do áudio, logo após a
explicação dos objetivos e funcionamento da pesquisa, as participantes já começaram a falar,
exprimindo seus anseios, frustrações e modos de atuação na Assistência Social.
Demonstraram que o tema precisava ser discutido.
Em um dado momento, o grupo de reflexão tornou-se quase que um grupo terapêutico,
em que as frustrações profissionais e as dificuldades enfrentadas eram compartilhadas. Mas
houve uma discussão importante sobre a atuação no CRAS e sobre a construção da imagem
de si, enquanto profissional. Pelo retorno recebido das participantes, os encontros propiciaram
6 Todos os nomes são fictícios a fim de preservar a identidade das participantes.
44
reflexão sobre a atuação profissional e sobre o fazer na Assistência Social. Então, ao mesmo
tempo em que houve a contribuição para a pesquisa, pode-se dizer que houve também certo
avanço nas práticas destas profissionais pela reflexão que tiveram durante a participação dos
encontros. Conforme fala de uma das participantes:
[...] eu nunca pensei tanto sobre o que eu tava fazendo na FAS, como nesses cinco encontros. Porque
você vai entrando no bolo, no negócio e quando você vê, não tem tempo pra pensar. [...] Então eu acho
que assim, tava me fazendo falta. Três anos depois, repensar o que quê tava fazendo. Então, acho que
nesse sentido pra mim foi muito proveitoso. Não só no te ajudar, mas eu acho que a gente tirou
bastante proveito. E o fato de a gente repensar aqui, até porque você tem que explicar o que você tá
fazendo, acho que refletiu no próprio fazer, né, na própria atuação. Você olhar pro teu objeto de ação
de um jeito diferente, né. Que ele não é a fonte da sua frustração... Pra mim foi muito proveitoso.
45
4 OS DISCURSOS E UMA POSSÍVEL ANÁLISE
A análise dos discursos das participantes foi subdividida em dois temas: “Do “eu
singular” para o “nós indiferenciado”” e “Empoderamentos e Vulnerabilidades”. Estes estão
interligados, e a divisão proposta é meramente didática para efeitos de apresentação dos
resultados. Chegou-se a estes temas, em decorrência dos movimentos identificados nos
discursos, à luz da análise e dos objetivos propostos. O primeiro pretendeu demonstrar o
processo pelo qual as especificidades da formação e atuação, sustentadas pelas participantes,
se diluíram, tornando-as, assim, “técnicas de referência”. O segundo, por sua vez, estando
psicólogas e assistentes sociais na mesma posição, propôs-se a evidenciar a imagem que as
profissionais fazem de si na atuação.
Antes de aprofundar os temas de análise, cabe fazer uma demarcação sobre os lugares
de onde as participantes da pesquisa falam e para quem falam, já que para a AID, a cena
enunciativa é um dos níveis considerados na análise. Já existia entre as participantes e a
pesquisadora, anteriormente à realização da pesquisa, conforme sinalizado, um vínculo
profissional. Nos encontros do grupo de reflexão, a pesquisadora assumiu-se como tal, apesar
de ser também psicóloga e colega de trabalho das participantes. Mesmo que a situação
exigisse a postura de pesquisadora, os demais papeis concorriam durante as discussões.
A Psicologia explica isso, né, Amanda? (Maria)
A gente fala, fala, né, quem vai tirar as conclusões é você... (Juliana)
Havia entre as participantes a expectativa de que a “psicóloga” explicasse e que a
“pesquisadora” chegasse a conclusões. Ao mesmo tempo, havia a expectativa de estarem entre
colegas, e que todas ali fizessem parte de uma mesma comunidade discursiva – ou seja, o que
era dito era entendido por todas, sem necessidade de explicações adicionais. Como exemplo,
pode-se mencionar o fato de que as participantes falavam utilizando siglas próprias da área da
Assistência e referiam-se a termos que não eram explicados, afinal, todas vivenciavam o
mesmo contexto. Também se referiam de forma recorrente a pessoas não presentes no grupo,
gestores e outros servidores do convívio, elegendo-os, na maioria das vezes, como
“dificultadores” do trabalho desenvolvido por elas. Percebeu-se que, repetidamente, uma
participante iniciava a fala, porém, não a terminava. A continuidade da fala estava
46
pressuposta. Muitas vezes, uma participante finalizava a fala da outra. Foram recorrentes os
usos dos termos “né”, “sabe?” e os risos entre elas, demonstrando concordância no que era
dito. Também foi bastante utilizada a expressão “a gente”, principalmente em relação à
execução do trabalho, traduzindo que a atuação é comum entre elas.
Tendo isto em vista, o processo dos cinco encontros exigiu da pesquisadora um
distanciamento do papel de servidora da instituição e um olhar diferenciado sobre as
discussões, questionando e desnaturalizando algumas posições das participantes, embora, em
alguns momentos, esta distância não tenha sido mantida. A pesquisadora foi colocada também
como colega de trabalho.
Pegando o teu exemplo7 [referindo-se à pesquisadora], quando a gente começou a acompanhar os
convênios, até então não se acompanhava ou se acompanhava daquele jeito [tom irônico] e de repente
vem lá de cima: “Agora é de vocês, se virem!” Quando você pegou [referindo-se à pesquisadora], tava
cheio de erros, dos CRAS passando as coisas pra você. (Letícia)
Em dado momento, uma das assistentes sociais participante relembrou o fato de ter
assumido, em decorrência de remanejamentos, a vaga de técnico de referência no CRAS,
anteriormente ocupada pela pesquisadora: “Eu vivi muito isso, porque eu fui ficar no lugar da
Amanda, né”.
A atuação da pesquisadora colaboradora foi fundamental, principalmente nas situações
em que a pesquisadora estava “envolvida”. Foi de especial importância pelo fato de não estar
familiarizada com a Assistência Social e fazer questionamentos, que propiciaram maiores
explicações e fomentaram as discussões.
De forma geral, o que se observou, durante os encontros, foi a concordância entre as
participantes nos diversos temas abordados nas discussões. Em poucas situações houve
posicionamentos divergentes. Como o grupo foi coeso, determinadas falas poderiam ter sido
feitas por qualquer uma das participantes, demonstrando um nivelamento nas posições
assumidas. Apesar de em alguns momentos, uma ou outra participante ter se destacado nas
discussões, pode-se dizer que estas atuaram como “porta-voz” do grupo. A fala acabou não
sendo de uma pessoa, mas sim representativa de todas ali presentes. Tornou-se uma árdua
tarefa fazer uma diferenciação entre a posição do psicólogo e a posição do assistente social,
sendo mais coerente abordar em alguns subtemas de análise a posição do técnico que atua no
CRAS. Foi interessante observar no 5º encontro, durante a atividade proposta, o não
reconhecimento das participantes no que haviam dito em encontros anteriores: “Mas não
7 Os grifos, realizados pela pesquisadora, objetivam destacar alguns trechos relevantes para a análise.
47
necessariamente foi eu que falei isso, né?”, “Eu que falei isso?”. Dessa forma, pode-se pensar
no discurso do grupo, e não das participantes isoladamente.
Feitas estas considerações, convida-se, agora, o leitor a acompanhar os discursos e a
análise construída a partir deles, pensando que esta é uma possibilidade dentre tantas outras.
4.1 DO “EU SINGULAR” PARA O “NÓS INDIFERENCIADO”
Neste capítulo, serão abordados os discursos referentes ao ingresso no CRAS, à
atuação neste contexto e à relação com os assistentes sociais e demais profissionais que
compõem a equipe. Na análise, identificou-se que o processo vivenciado pelas participantes
no decorrer dos encontros do grupo de reflexão e o processo que vivenciaram no trabalho na
Assistência Social se assemelham. No início dos encontros, assim como no momento da
chegada das profissionais no CRAS, estava evidenciado o “eu” - as participantes se remetiam
à primeira pessoa – denotando suas singularidades e particularidades. No decorrer das
discussões, tal como no processo de adaptação e entrosamento com trabalho, equipe e
instituição, foi-se configurando um “nós” indiferenciado. Não falavam mais apenas por si ou
por sua categoria profissional, mas falavam como servidores públicos ou “agentes da
Política”. As especificidades dos psicólogos e dos assistentes sociais sustentadas nos
primeiros encontros, assim como supostamente faz um profissional recém-chegado no SUAS,
foram se diluindo até que as participantes passassem a se reconhecer como “técnicos”. O
psicólogo, com sua especificidade, tornou-se um profissional da área social, impessoalizado e
homogeneizado ao contexto em que atua. É esse movimento, dentre outros, que se pretende
demonstrar a seguir.
4.1.1 O ingresso - “Onde eu tô?”8
Com relação ao ingresso na área de Assistência Social, as participantes situam o
seguinte:
Pra mim foi o que surgiu. [...] tava procurando emprego e foi o primeiro que deu certo... Não conhecia
muito da área... mas eu acabei gostando. (Patrícia)
8 As expressões e palavras entre aspas no capítulo da análise de dados representam termos utilizados pelas
participantes durante os encontros do grupo de reflexão.
48
[...] eu saí prestando todos os concursos que apareciam [...] e foi aqui me chamou.[...] eu tinha
curiosidade de conhecer Curitiba, e eu não conhecia, outra também de conhecer a área social, então,
casou tudo e deu certo de eu vir. (Camila)
Pode-se pensar, através do discurso das psicólogas, que a entrada destas profissionais
na Assistência Social se deu como uma oportunidade de colocação profissional ou por
curiosidade sobre a área social, e não a partir de um desejo genuíno ou por uma escolha pela
área. Tal fato também é confirmado por Letícia:
Aí, ok, fiz um concurso pra prefeitura, eu não lembro de ter feito concurso pra FAS. E aí, quando a FAS
me chamou, eu ainda levei um susto. A menina falou: “Você fez concurso para a FAS.” E a minha
primeira pergunta foi: “Fiz? Não lembro. Eu não lembro de ter feito este concurso. Enfim, daí eu fui pra
FAS. (Letícia)
A participante se coloca numa posição de não escolha da FAS. A escolha foi pela
prefeitura, não pela Assistência Social. No terceiro encontro do grupo de reflexão, reafirma:
Já contei essa história, quando eu cheguei, viraram pra mim: “Você fez o concurso pra FAS!” Eu falei:
“Fiz?” Porque eu tinha certeza que tinha feito pra Prefeitura, não pra FAS... (Letícia)
A imagem que as profissionais constroem de si mesmas, no discurso, começa se
delinear antes mesmo de chegarem ao local de trabalho: a expectativa, a escolha (ou não
escolha) e o acaso que estavam presentes no ingresso na instituição, e que acompanham,
como será apresentado no decorrer desta análise, a configuração da subjetividade das
participantes.
Sobre a chegada no CRAS e os sentimentos deste momento colocam:
E... foi muito bom, porque a equipe toda era nova, a gente tava entrando juntos [...] foi muito gostoso,
assim... foi muito bacana porque o trabalho todo foi construído junto. (Patrícia)
Então, caí de pára-quedas aqui e... [...] meu primeiro dia no CRAS não deu pra definir... porque, assim,
quando eu cheguei o CRAS não existia... tava sendo construído...[...] Foi bem complicado. (Camila)
Pra mim foi o dia mais tumultuado [...] chegar no CRAS foi depois de uma grande disputa por espaço,
já começou assim. (Letícia)
Os sentimentos em relação a essa chegada divergiram entre as participantes:
satisfação, incertezas, disputas. A satisfação por atuar como psicóloga e construir o trabalho
em uma equipe nova; a incerteza de chegar em um lugar desconhecido e em construção; a
disputa com outros psicólogos do lugar em que cada um atuaria. Tais sentimentos foram
acompanhados de expectativas e frustrações a respeito do território onde atuariam, pois o
local de trabalho era desconhecido:
49
[...] era um lugar horrível, horrível [...] sem condição nenhuma, não tinha água, não tinha estrutura pra
fazer o trabalho com as crianças e... eu me vi em uma cidade que não conhecia, é... e assim, num bairro
longe, que não é o mais bonito [risos]. (Camila)
Além de ter que lidar com esse lugar “horrível” e desconhecido, foi preciso lidar com
a equipe de trabalho, com as expectativas envolvidas a respeito da atuação do psicólogo
naquele contexto, demarcar um lugar no espaço, e ao mesmo tempo ir se apropriando da
“sopa de letrinhas”, como se referiu Patrícia às siglas utilizadas na Assistência Social.
Percebe-se, aqui, também uma divergência entre as experiências das participantes. Na equipe
em que Letícia ingressou, havia uma expectativa muito grande de sua chegada, pois
anteriormente havia passado outros profissionais da Psicologia pelo CRAS. Patrícia estava em
um local em que todos eram novos, então, a equipe toda estava se formando. Camila, por sua
vez, foi compor um CRAS em que já havia uma psicóloga atuando e “ninguém sabia o que
fazer” com ela, afinal, era uma profissional a mais, tendo a impressão de que não era esperada
por aquela Regional.
No discurso de Letícia, depreende-se a demarcação do seu lugar como psicóloga no
CRAS com a acolhida que a equipe fez: receberam-na com um “kit escritório”, uma mesa e
uma plaquinha “Psicóloga da FAS” – ela tinha um lugar para chamar de “seu”. Essa recepção
da equipe possibilitou que emergisse a “psicóloga”, diferenciando-se dos demais, marcando
sua atuação, enquanto profissional de Psicologia. E como ela própria relatou, muitas vezes,
em outros equipamentos, “não tinha nem mesa”, isto é, os espaços eram compartilhados entre
os profissionais. A materialidade do acolhimento que Letícia teve, “receber um lugar”,
impactou também no lugar que ocupou dentro daquela equipe. Não é só ter uma mesa para
trabalhar, mas também poder ser a psicóloga do CRAS. A Psicologia foi legitimada e aceita
naquele lugar. Ao mesmo tempo em que a participante afirma esse reconhecimento, também
expressa:
[...] você não sabe porque você tá ali, o que você tem que fazer... (Letícia)
Apesar de a psicóloga ter sido bem acolhida pela equipe, não estava claro como
deveria ser sua atuação naquele equipamento. O relato das psicólogas participantes da
pesquisa, sobre esse momento inicial na Assistência Social, permite-nos pensar sobre como a
recente entrada dessa categoria profissional no SUAS, é geradora de dúvidas, ante ao
desconhecido ou idealizado, e não se encontra bem amparada. Não só o território era
desconhecido pelas participantes, mas o seu papel dentro do CRAS também poderia ser assim
50
considerado. E isso pode ser remetido à formação acadêmica em Psicologia. Sobre a relação
entre a graduação e a atuação no CRAS, Patrícia coloca:
E [...] fica tudo muito confuso. Porque a gente aprende muito forte sobre isso [psicologia clínica] na
faculdade e chega ali [no CRAS] você tem que encaminhar, encaminhar, encaminhar...
[...]
[...] a gente é bem pobre de Psicologia Social lá na universidade. E daí, eu acabei fazendo essa pós que
me ajudou bastante, né... (Patrícia)
A formação acadêmica dos psicólogos, através do discurso da participante, privilegia a
área clínica, sendo “pobre” em Psicologia Social. E isso causa estranheza na atuação na área
da Assistência Social, pois o que foi “fortemente” ensinado na faculdade não pode ser
aplicado no cotidiano de trabalho das participantes.
Cabe ressaltar que em ambos os trechos, Patrícia utiliza a expressão “a gente”, ou seja,
não fala apenas por ela, fala pela classe dos psicólogos. Ao se posicionar, está legitimando a
verdade de que psicólogos não são formados para atuar com as classes menos favorecidas. A
Psicologia, profissão historicamente elitizada, é farta de conteúdos de Psicologia Clínica, e
“pobre” em assuntos de Psicologia Social.
Sobre as referências que utilizam para a atuação, as participantes sinalizam:
Juliana – MDS [Ministério do Desenvolvimento Social]. Cartilha.
Patrícia – A primeira coisa que a gente lê é o Protocolo [do CRAS] quando chega, né...
Letícia – Na verdade, pra mim foi bem difícil, né...até pela formação, pelo trabalho na saúde... É, então,
assim, entender... até pela falta de experiência mesmo na área, experiência teórica mesmo. Porque como
eu disse a gente tinha muito pouco [de Psicologia Social na faculdade]... É... Então, assim, pra mim... as
primeiras questões assim foram pra prestação de concurso mesmo, você correndo atrás de referencial
teórico pra poder dar conta daquela listinha pequena [tom irônico].
Interessante notar que as participantes citam como referência para o trabalho
documentos do MDS, cartilhas e protocolos específicos da área de Assistência Social. As
psicólogas não se referem a abordagens ou teorias psicológicas. Relatam ter tido um contato
mais próximo com a área social e com os referenciais teóricos nos estudos de preparação para
o concurso público ou através de pós-graduações. A busca por cursos complementares, visto
como comprometimento pelas participantes, parece ter sido uma tentativa de suprir a falta de
embasamento teórico para atuação no SUAS.
Analisando os discursos das assistentes sociais, em geral, estas demonstram terem sido
bem recebidas nas equipes e não terem tido receios quanto às suas atribuições dentro do
CRAS. Não foram evidenciadas dúvidas, frustrações ou temores na chegada à instituição,
diferenciando-se dos discursos das psicólogas. Relaciona-se isto, talvez, ao fato de já estar
51
naturalizado que o lugar de trabalho dos profissionais do Serviço Social é na área de
Assistência Social, em contextos socialmente menos favorecidos. A escolha por esta atuação
foi natural, já tinham experiências prévias e receberam influência de professores de faculdade,
diferenciando-se mais uma vez das psicólogas, que tiveram uma formação “pobre” na área
social.
4.1.2 A atuação – “E aí, como que a gente vai fazer isso?”
Sobre a atuação da Psicologia na Política de Assistência Social, mais especificamente
no CRAS, as participantes situam:
[...] cada um que passou por aqui fez de um jeito. Então, você não tem diretriz [...] A gente precisa de
capacitações específicas, né, para o trabalho técnico, né, não é para a gestão, não é para entender a
Política. [...] Na parte técnica, eu acho que a gente não tem uma supervisão, a gente não tem um
direcionamento técnico, a gente não tem nada que dê esse embasamento, principalmente na Psicologia.
[...] Porque, de fato, fica muito no pessoal, né. Eu entendo dessa forma, eu atuo dessa forma, a Camila
entende de uma forma, atua de uma forma, a Patrícia também. (Letícia)
[...] é como se não tivesse um parâmetro e... não tem nada, fica tudo muito solto. (Patrícia)
Mas, assim, falta o direcionamento técnico da atuação mesmo de psicólogo. (Camila)
Na visão das participantes, a atuação do psicólogo não é bem definida, não havendo
modelos ou direcionamento técnico. Cada profissional atua conforme o seu entendimento,
dando um caráter pessoal ao modo de se trabalhar.
Falta, falta, faltam modelos, faltam vínculos, falta uma série de coisas. E aí, como que a gente vai fazer
isso? Com base em que ideia a gente vai fazer isso? (Letícia)
Quando é que a gente vai ter esta estrutura mínima do que é o serviço, e aonde a gente se insere nele?
(Letícia)
Nos trechos acima, as participantes colocam-se numa posição passiva no sentido de
esperar um direcionamento do trabalho, que venha de fora e uniformize a atuação. Se faltam
os referenciais, questionam como deve ser executado o trabalho e onde o profissional se
insere. No entanto, mesmo com todas essas faltas:
[...] a gente vai fazendo, né, porque no fundo, no fundo a gente sabe aquilo que a gente tem que fazer
[...] Você é... tenta criar, né, dentro desse monte de informação, você tenta criar um parâmetro. (Letícia)
Apesar de ser consenso entre as participantes de que não há orientações claras, as
52
profissionais executam o serviço porque “no fundo” sabem o que têm que fazer. Há um
contrassenso nas falas, pois se as profissionais sabem minimamente o que têm que fazer, é
devido às referências existentes. Todavia, possivelmente tais referências não estejam
disponíveis da maneira esperada pelas participantes. Assim, a partir desse “monte de
informação”, resolvem a “falta” criando um escopo de atividades que seriam de competência
da Psicologia. Nesse sentido, passam a ter uma posição ativa, de co-construtores da
Assistência Social, entretanto, parecem não perceber isto.
As profissionais, ao ingressarem na instituição, recebem uma descrição de cargo, com
suas atribuições. No caso das psicólogas, este documento é amplo, abrangendo atividades
diversificadas, dentre elas: “Orientar e encaminhar indivíduos para atendimento especializado
e/ou preventivo”; “Atender crianças, adolescentes e adultos que necessitem de atendimento
psicológico”; “Orientar pais e responsáveis, sobre processos de integração em unidades
sociais e programas de atendimento específicos, a crianças e adolescentes”; “Realizar
diagnóstico psicológico, utilizando-se de entrevista, para fim de e/ou prevenção ou
encaminhamento de pacientes com problemas de ordem existencial, emocional e mental”;
“Participar de programas de ação comunitária”; “Planejar e coordenar grupos operativos entre
funcionários e/ou comunidade”; “Realizar atendimento sócio/educativo aos usuários quanto
ao aproveitamento dos benefícios dos programas sociais”. Apesar de ser previsto o
atendimento psicológico, o formato clínico não é mencionado. As participantes entendem que
trabalhar a subjetividade não é objetivo da instituição FAS, e aí surge a questão: “qual é a
atuação do psicólogo que não trabalha com a subjetividade?”, conforme trecho transcrito a
seguir:
Letícia – [...] eu fui, gente, eu fui perguntar na Sede qual o meu limite pra não cair no atendimento
terapêutico. Porque não sei. Eu sei que com uma orientação eu não vou mudar a vida daquela pessoa.
Então, eu, na minha ignorância, vamos tentar montar um plano de ação. Primeiro que trabalhar
subjetividade não é função da Ação Social. Começa por aí. E aí qual é a atuação do psicólogo que não
trabalha com a subjetividade?
Camila – Só te interrompendo 2 minutos, mas assim a confusão é tão grande que... acho que hoje tão
assim um pouquinho menos pior... Quando eu entrei na FAS, a gente não podia, a orientação da
gerência é que o psicólogo não podia atender de porta fechada, individual, porque tava fazendo terapia.
[...]
Camila – Porque tá com a porta fechada, é terapia?
Nesta fala está explícito que, para as participantes, a subjetividade é o objeto da
Psicologia e esta só poderia ser trabalhada por meio da psicoterapia. Sendo a subjetividade
supostamente negligenciada no SUAS, questionam como se dará a atuação do psicólogo neste
contexto.
53
Aí eu virei pra coordenadora: “Que tipo de acompanhamento?” Porque se eu não posso trabalhar a
subjetividade, se eu não sei o que foi trabalhado nesses grupos terapêuticos, que acompanhamento eu
vou fazer com essa criança?
[...]
E aí o que que eles [FAS] entendem por atendimento clínico... é isso, você fechar a porta e escutar a
pessoa, individualizado e com orientações específicas de subjetividade. (Letícia)
O psicólogo e o trabalho com a subjetividade são associados à psicoterapia e ao
atendimento clínico individual. Está naturalizada entre as profissionais e a sociedade, em
geral, a associação entre Psicologia e clínica; consequentemente, a subjetividade legitima-se
como objeto de trabalho do psicólogo. E, talvez, para as participantes, o fato de não ser
objetivo da Assistência Social trabalhar com a subjetividade cause a sensação de “falta de
direcionamento” do trabalho do psicólogo nessa área e gere dúvidas em relação aos limites
para que o atendimento não se torne terapia.
[...] Tem todo uma vertente ali que a gente vai tá sempre pisando em ovos. “Ah, isso é terapia ou isso
não é...” [Risos] E a gente ainda não tem uma coletivização pra dizer que a gente tá trabalhando com
grupos. A gente cai na orientação individualista, então, fica complexo.” (Letícia)
Pode-se pensar que as “faltas” e dúvidas das participantes em relação ao trabalho
dentro do CRAS reflita uma situação não só pertinente a essa Política, mas a todos os campos
não tradicionais da Psicologia, e nos quais o profissional se insere. Em tais condições, parece
estar naturalizada a impossibilidade de direcionar a subjetividade para outro tipo de atuação
que não seja a psicoterapia. Assim, sem saber para onde direcioná-la, o profissional também
“perde o rumo” de sua própria imagem como psicólogo.
Dentre as atividades citadas e executadas pelas participantes, as que mais se
destacaram foram: orientação familiar, acompanhamento e planejamento do Serviço de
Convivência e Fortalecimento de Vínculos, visita domiciliar, acompanhamento da Rede de
Proteção e processo seletivo do Adolescente Aprendiz. Contudo, estas não são de competência
exclusiva do psicólogo. Podem ser executadas por ele ou outros técnicos de nível superior
(assistente social ou pedagogo). E na execução dessas “mil atividades em único dia”, a
subjetividade do usuário fica “penduradinha, assim, na porta”.
Parece que há um conflito entre legitimar e desnaturalizar o fazer e o saber psicológico
na Assistência Social. Não é previsto o atendimento clínico, que seria o natural para as
participantes, e a consequência, de acordo com elas, seria a subjetividade ser deixada de lado.
A participante, ao se deparar com sua atuação no CRAS, se questiona:
Gente, onde eu caí? Como que eu vou dar conta disso? (Letícia)
54
Letícia, mesmo, “dá conta” e continua:
Porque daí você vai, dá mais uma orientação, né.. Mas assim o trabalho... aquela questão de pendurar o
subjetivo pra mim é muito forte, né... Porque você não consegue num plano de ação, “Eu vou trabalhar
esse subjetivo.” Então, assim, você fica mascarando o subjetivo em forma de questões objetivas, né [...]
Então, a gente acaba coisificando o subjetivo, né... E aí você dá conta de pelo menos minimizar aquela
repercussão que você causou num atendimento. (Letícia)
Em sua atuação, as psicólogas fazem uma negociação entre o campo de trabalho,
Assistência Social, e seu suposto objeto, subjetividade. Um dos instrumentos utilizados no
trabalho com as famílias é o plano de ação, em que são estabelecidas estratégias, metas e
contrapartidas a fim de que o usuário supere supostas vulnerabilidades. Neste processo, o
“subjetivo” é “mascarado” em questões “objetivas”, ou seja, o “subjetivo” é “coisificado”. As
participantes posicionam-se que a perspectiva da Psicologia é mantida, considerando que a
forma de se trabalhar a subjetividade é adaptada.
Ao referirem-se à atuação, as participantes utilizam de forma recorrente o verbo “ter
que”.
“Olha você tem que levar o filho na escola, você tem...” Aquela coisa do “você tem”, né, alertando
sobre os direitos e os deveres... (Patrícia)
É... de chegar e dizer pro sujeito o que ele tem que fazer, né, [...] E... e aí a gente tenta dizer pra ele que
ele tem que ter autonomia, e se empoderar da própria vida. [...] Você faz orientação. (Letícia)
É uma cobrança com a equipe: “tem que fazer, tem que fazer, tem que fazer...” (Paula)
O “ter que fazer” remete à uma diretividade e objetividade, e também a uma questão
de obrigação. O trabalho na Assistência Social se baseia em legislações e é direcionado para a
garantia de direitos. Assim, o “ter que” fica naturalizado no cotidiano tanto dos profissionais
quanto dos usuários. Os profissionais são cobrados pelo que tem que fazer, e estes, por sua
vez, cobram os usuários, que são atendidos. O querer dos usuários é sobreposto pelo dever e
pelo querer da Política. Cabe aqui questionar: os usuários desenvolverão autonomia e
empoderamento ao receberem “ordens” dos profissionais?
Outro termo bastante utilizado é o “encaminhar”:
[...] E chega ali você tem que encaminhar, encaminhar, encaminhar... E você quer encaminhar...
(Patrícia)
[...] Por isso que eu falei que ninguém sabe pra onde encaminhar, são situações graves que a gente não
consegue... [...] E aí a gente tenta encaminhar não sei pra onde, aí a gente tenta passar pra outros
serviços... (Camila)
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As crianças vão ser encaminhadas para o CRAS e CREAS para acompanhamento. (Letícia)
Entende-se pelos trechos destacados que o encaminhar é o resultado do trabalho - o
atendimento gera um encaminhamento. Encaminhar pode significar “ensinar o caminho a”,
“guiar”. E é essa a “obrigação” das profissionais: “você tem que encaminhar”, ou seja, dar a
direção ao usuário. Contudo, conforme posição de Camila, em certas ocasiões não se sabe
“pra onde encaminhar”.
O “encaminhar”, pode ser pensado em comparação ao “reter”, típico do psicólogo da
área clínica, que, em sua atuação, desenvolveria um trabalho de médio/longo prazo. O “ter
que encaminhar” soaria como algo mais próprio do assistente social pela diretividade e
objetividade. Parece haver entre as psicólogas uma tensão entre o desejo de reter o usuário –
onde entendem que seria possível trabalhar a subjetividade - e o dever de encaminhá-lo. As
participantes não reconhecem a subjetividade como envolvida no ato de “encaminhar”.
Uma expressão recorrente, principalmente na fala de Letícia, é o “dar conta”:
[...] a gente não dá conta das famílias que a gente atende no território [...] (Letícia)
Colocar em Serviço de Convivência? Não vai dar conta da demanda de atendimento que ela tá
precisando nesse momento. (Letícia)
Porque, assim, eu sei que elas esperam que eu vá lá dar conta de um contexto que eu nem presenciei,
porque elas mexeram num ponto que... [...] Você não viu qual foi a conversa, você não sabe o que
aquela pessoa contou ali na sala, né, você sabe que a pessoa que tava daria conta daquilo muito bem [...]
Mas, assim, eu não tô criticando a atitude dela... é muita responsabilidade você chegar lá pra dar conta
de um contexto que você desconhece, né. (Letícia)
[...] Porque a gente não vai dar conta, a gente não vai mandar prender o sujeito, né. A gente tem que dar
conta daquela criança. [...] Por que eu vou suscitar uma coisa que eu sei que não vou dar conta?
(Letícia)
Entende-se que há uma expectativa de que as profissionais e o Serviço em si deem
conta das situações e casos atendidos, mas parece que a participante não vê essa
correspondência. Usa mais a expressão no sentido de negação, “não dar conta”, do que na
afirmação. Nem “a gente”, nem o Serviço “dão conta”. É interessante notar que essa
conotação também está presente na fala dos usuários:
Esses dias a gente tava, eu e a assistente social, conversando sobre uma frase que virou recorrente no
atendimento por conta disso que a Camila trouxe: “Ai, tem 12 anos, mas eu não dou mais conta”. [...]
Né, então, assim, a mãe trás e não dá conta. (Letícia)
O usuário chega para o atendimento com uma demanda a qual “não dá conta” e atribui
ao profissional a responsabilidade de resolvê-la. O psicólogo e os Serviços do CRAS são
56
colocados em uma posição de solucionadores de problemas. Contudo, a expectativa dos
usuários, pelo discurso das participantes, não é atendida. O profissional também “não dá
conta”. Usuário, profissional e Serviço não resolvem a situação demandada e, nesse sentido,
ficam na mesma posição: a “desAssistência”.
4.1.3 A relação com o assistente social – “Das dificuldades que a gente tem pra delimitar o
que é meu, o que é seu, o que é nosso.”
No discurso das participantes, depreende-se que há uma tentativa de delimitar funções
e competências que seriam do psicólogo e do assistente social, diferenciando-as
principalmente pelo suposto objeto adotado por cada categoria profissional.
“Isso não me pertence mais. Isso já é da subjetividade, e quem cuida da subjetividade é o psicólogo, eu
cuido da materialidade.” (Letícia referindo-se à fala de uma colega assistente social)
Entre as participantes, há o consenso de que questões materiais são dirigidas para
atendimento do assistente social, já situações subjetivas ou de cunho emocional são
encaminhadas ao psicólogo. Novamente, a subjetividade é legitimada pelas profissionais
como objeto da Psicologia. Neste trecho entende-se que esta não é negligenciada na atuação
das participantes, pois reconhecem-na e dão os encaminhamentos necessários. Se a
subjetividade aparece no atendimento, quer dizer que ela não fica só “penduradinha na porta”.
As participantes demonstram que, quando estão em atendimento, e percebem que a
demanda do usuário já não pode ser atendida por ter ultrapassado a sua competência,
convocam o profissional de outra formação para dar continuidade ao trabalho. Exemplificam
com a situação de quando o usuário traz uma demanda emocional. Patrícia até brinca que, no
CRAS onde atua, a regra é: “Chorou, chama o psicólogo.”. A mesma lógica é adotada
quando o psicólogo está em atendimento e o usuário está em busca de algo material – o
Serviço Social é acionado.
Essa divisão, contudo, não é tão clara assim. Letícia relata ter ficado com “medo”
quando percebeu que nem os Conselhos de Psicologia e Serviço Social têm um entendimento
comum com relação às atribuições dos profissionais no SUAS. Assim, não seria uma questão
local, de Regional ou da FAS, mas algo muito maior, visto que os órgãos responsáveis por
orientar a atuação também ainda não teriam clareza das delimitações das funções de cada
categoria dentro do CRAS.
57
Apesar de haver diferenças de visão entre os profissionais, em decorrência da própria
formação, e de haver a tentativa de delimitar qual seria a competência de cada um, se
presentifica no discurso das participantes a falha na estrutura de recursos humanos da
instituição.
[...] nem todos têm Psicologia, já começa por aí. Daí acaba que o assistente social tem que fazer esse
papel, muitas vezes. (Paula)
Porque é aquela coisa de lidar com as emoções da pessoa, eu não tenho essa competência de saber lidar.
Eu posso até ouvir, posso até aconselhar, mas eu não sei lidar, não sei dar um desfecho, não sei
encaminhar [...] Então, às vezes, eu fico um grande tempo ouvindo, porque eu sinto que aquilo faz bem
pra eles, eles narrarem toda a história... (Juliana)
Nesse caso, eu posso resolver isso, eu não sou psicóloga... o psicólogo vai ter um outro olhar sobre a
situação, né. (Juliana)
Nas equipes em que há psicólogos e assistentes sociais trabalhando juntos, estes
demonstram conseguir delimitar as atividades, conforme o que seria competência específica
de cada profissional. Em muitos equipamentos, todavia, não há profissionais da Psicologia.
Nestes locais as profissionais do Serviço Social tentam suprir a falta do psicólogo, procurando
fazer uma escuta diferenciada no atendimento social, ou delimitam até onde podem ir com
aquele usuário. As assistentes sociais posicionam que o psicólogo tem um olhar distinto.
Ao mesmo tempo em que as assistentes sociais negam a capacidade de fazer uma
escuta psicológica, na ausência do profissional da Psicologia, “camuflam-se” na tentativa de
um atendimento mais completo às demandas do usuário. Então, a postura e a atuação dos
assistentes sociais tornam-se confusas, dando à Maria a sensação de que na Política de
Assistência Social “Não é só a Psicologia que tá muito confusa... o Serviço Social também tá
confuso”.
As assistentes sociais sentem que de certa forma devem fazer o trabalho do psicólogo,
na sua falta. E nesta ausência do profissional, entre as assistentes sociais, fica evidenciada
uma imagem mitificada de que o psicólogo teria a solução de todos os problemas.
Juliana - Então, nossa, se a gente tivesse um psicólogo aqui, ele ia conseguir, né... [...] Então, são coisas
que às vezes pra gente... Não vou me meter a psicólogo, porque é uma coisa que não me cabe.
Pesquisadora – Mas nesse caso específico, o que você acha que, se tivesse uma psicóloga no CRAS, o
que ela faria de diferente?
Juliana – Eu acho que uma conversa com ele sobre a situação dele aí... [...] E... um psicólogo já não
passaria por um constrangimento desse, ia conversar com ele...
Letícia – Será?
Juliana, no caso relatado, entende que o psicólogo teria mais preparo para realizar o
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atendimento e que este profissional não passaria pelo “constrangimento” que ela passou. No
entanto, Letícia, que é psicóloga, questiona. Será mesmo que o psicólogo conduziria de forma
diferente? A posição de Letícia, em forma de questionamento, sinaliza que possivelmente não.
As psicólogas, apesar de desenvolverem praticamente as mesmas atividades que os
assistentes sociais ou atuarem em conjunto com estes, entendem que há atribuições
específicas do Serviço Social e não a executam, mesmo na ausência daqueles. A avaliação
socioeconômica e a concessão de benefícios, segundo Letícia, seriam exclusivas do assistente
social.
Especificando mais, o que eles fazem é a avaliação socioeconômica, né... E a avaliação socioeconômica
é uma atribuição do Serviço Social. Então, assim, pra concessão de benefícios, teoricamente, é
necessário fazer a avaliação socioeconômica. Então, quando chega nessa parte de fazer a avaliação
socioeconômica, fazer essa liberação de subsídio alimentar, qual é a minha autoridade, enquanto
psicólogo, pra fazer um serviço que é específico da assistente social? (Letícia)
As psicólogas relatam, contudo, já terem feito concessão de benefícios em dado
momento. Camila coloca:
É, porque teve uma época em que todo mundo era técnico... eu fico até parecendo uma matraca
repetindo, mas é que me marcou... Porque todo mundo era técnico, todo mundo tinha que fazer tudo.
Então, os psicólogos faziam atendimento social, se precisasse liberava benefício. (Camila)
A sensação das psicólogas participantes, nestas situações, é de frustração, de estar
desrespeitando o colega assistente social, de não ter a devida competência para tal. Camila
nessas situações pensa: “Eu não me formei pra isso!” Parece que fica muito claro para as
representantes da Psicologia o que não é de sua alçada. E através desse saber o que “não é”, é
que as participantes vão tateando os limites de atuação:
[...] Avaliação social o psicólogo nunca vai fazer, né... A concessão de benefícios sou extremamente
contrária... Quando fala assim: “Mas você pode lá dar uma bolsa família... um vale-transporte... você
pode ir lá fazer concessão de benefício alimentar!” Não!... né... “Ah, mas a família tá lá, pedindo e não
tem assistente social...” Então, coloca isso pra pessoa responsável, não sou eu que tenho que ir lá fazer
uma coisa que não é da minha competência, né. [...] A minha escuta é a escuta da Psicologia [...]
(Letícia)
Não é que você vai atender tudo, tudo o que a pessoa trouxer. Se ela falar assim: “Tô precisando de uma
cesta, de um Disque.” “Então, você tem que falar com o profissional que vai te liberar isso.” (Camila)
Ao mesmo tempo em que Letícia posiciona que o psicólogo “nunca” vai fazer
avaliação social e que é “extremamente contrária” a este profissional fazer concessão de
benefícios, as três participantes, que representam a Psicologia, afirmam já terem executado
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tais atividades: “[...] Tem coisas que a gente acaba fazendo...”. Pode-se pensar que as
psicólogas ficam entre a resistência e a sujeição. Resistem a assumir um trabalho do assistente
social, mas, muitas vezes, cedem e “acabam fazendo”.
No discurso das participantes se presentifica a ideia de que anteriormente “tudo” era
responsabilidade do assistente social, e com a entrada de outros profissionais, aquele teve que
“abrir mão” daquilo que fazia ou dividir as atividades com pessoas de outras áreas. A
percepção de Letícia, quando entrou, era de que o que estava de sobrecarga para o assistente
social ou o que ele não queria executar, era direcionado ao psicólogo. Assim, o contexto é
entendido como natural para o assistente social, enquanto para psicólogo seu lugar ainda está
em processo de construção.
No terceiro encontro do grupo, a atividade proposta era que as assistentes sociais
elencassem as atribuições das psicólogas, e vice-versa:
Pesquisadora - E vocês, psicólogas, pensam nas atividades do assistente social, tá? [Distribuição do
material]
Letícia – Tudo? [Risos]
[Execução da atividade]
Juliana – Querem mais folha? [referindo-se ao grupo das psicólogas]
As próprias participantes, de ambas as categorias, legitimam que o Serviço Social tem
o domínio do trabalho no CRAS e que, por sua vez, tem mais atribuições que a Psicologia
neste contexto. Na consigna da atividade realizada, Letícia questiona se as psicólogas, grupo
do qual ela participa, teriam que realmente descrever “tudo” o que o assistente social faz. Na
sequência, Juliana, assistente social, pergunta se as psicólogas queriam mais uma folha sulfite
para continuarem listando todas as atividades do Serviço Social. As falas tiveram tom de
brincadeira e vieram acompanhadas de risadas, mas, estas sutilezas confirmam que haveria
um “monopólio” do assistente social sobre o trabalho no CRAS.
Por terem sido responsáveis por “tudo”, parece que há entre as participantes a ideia de
que os assistentes sociais poderiam “dar conta” de todas as demandas, e que poderiam sim
executar uma escuta das emoções trazidas pelos usuários. Uma das psicólogas participantes
relata ter sido chamada pela colega assistente social a dar continuidade no atendimento de um
caso, porém, esta diz:
[...] você sabe que a pessoa [assistente social] que tava, daria conta daquilo muito bem, e muito melhor
que você, né, pelo conhecimento que ela tem do que tava acontecendo...
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Contudo, se a assistente social convocou a psicóloga é porque foi detectado algo do
subjetivo – e subjetividade, pela lógica das profissionais, se direcionaria à Psicologia. O fato
de a participante acreditar que a assistente social “daria conta” da situação revela uma
imagem de que, primeiro, o assistente social tem que ser capaz de suprir todas as demandas; e,
segundo, de que a Psicologia efetivamente não se diferencia nesse ambiente. Tanto o
assistente social, quanto o psicólogo podem atender àquela situação.
Nos discursos, identificou-se que cada equipe de CRAS define quais serão as
atribuições do assistente social e do psicólogo. Cada equipamento tem uma organização
própria, apesar dos serviços ofertados serem os mesmos. E, exceto a atividade de avaliação
social e concessão de benefícios, fica uma divisão tênue entre a atuação dos profissionais,
dificultando uma delimitação entre o que seria de responsabilidade de cada profissional. Essa
situação é expressa na fala de Juliana:
[...] das dificuldades que a gente tem até pra delimitar mesmo o que que é meu, o que que é seu, o que
que é nosso, né... (Juliana)
Ainda sobre essa relação com os assistentes sociais, Letícia coloca:
Porque a minha orientação vai ser direcionada pra um aspecto e a do assistente social vai ser pra outro...
e acaba sendo que os dois tão juntos fazendo a mesma coisa, às vezes com a mesma família. (Letícia)
[...] o psicólogo quase não pergunta... [Risos] [...] a gente tem esse entrave no... quando eu começo a
perguntar, eu começo a me sentir invadindo, porque a gente tem essa questão de não invadir o discurso,
de fazer a escuta, de, né, pontuar menos do que escutar, enfim... e as meninas não... já é da profissão [do
assistente social] o questionar... (Letícia)
Existem atividades que são executadas por ambos, psicólogos e assistentes sociais, o
que diferenciaria um do outro, conforme já apontado, seria a perspectiva adotada por cada
categoria profissional na situação. A forma de intervenção característica da profissão também
seria outro diferenciador: as psicólogas procuram, pela própria formação, fazer uma escuta a
partir do que é trazido pelo sujeito, sem “forçar” a fala. Já as assistentes sociais costumam
questionar sem tantas hesitações. Mas ambos têm um objetivo comum.
4.1.4 A relação com outros profissionais – “O serviço vai continuar sendo feito por quem está
ali.”
É previsto que assistentes sociais e psicólogos componham obrigatoriamente a equipe
técnica do CRAS. Porém, outras categorias profissionais podem ser convocadas a compor o
61
quadro de recursos humanos do equipamento. Em relação a profissionais de ensino superior,
as participantes referem-se também ao pedagogo, presente em alguns CRAS. Sobre essa
relação, Letícia situa:
E assim eu acho que hoje a maior dificuldade não tá nem sendo na relação da Psicologia com a
Assistência Social [...] Meu maior problema é com a Pedagogia. (Letícia)
As profissionais se posicionam como sendo mais difícil a relação com o pedagogo,
que entre assistentes sociais e psicólogos, pois estes últimos têm encontrado um entrosamento
e reconhecido limites de atuação.
Apesar da dificuldade de definição entre as atribuições de cada profissão, há o
entendimento por parte das assistentes sociais de que os outros profissionais executam
atividades, que seriam de sua competência.
Eu vejo que tem tanto psicólogo, quanto pedagogo, fazendo várias coisas que eram de atribuição do
serviço social... (Maria)
Tá surgindo outras profissões, psicólogo social, o educador social, que dentro desse contexto, eles se
acham os assistentes sociais, né. (Juliana)
O “tudo”, anteriormente citado, foi dividido entre os profissionais. E ao mesmo tempo
em que as assistentes sociais reconhecem a contribuição das outras profissões, sentem-se
ameaçadas pela perda de espaço. Através do discurso das assistentes sociais, entende-se que o
monopólio do Serviço Social sobre os serviços socioassistenciais entra em xeque.
Parece que a priori há o entendimento de que todo o serviço na Assistência Social
seria debutado ao assistente social. Com a entrada de outras profissões, o trabalho é
compartilhado, mas não de forma uniforme nos CRAS. Este é dividido conforme a
disponibilidade de profissionais, não havendo atividades peculiares ou específicas de cada
categoria, mas existindo atividades mais propícias de serem desenvolvidas por uma ou outra
profissão.
Letícia – Eu acho que aqui tem coisas que não é da minha competência.
Patrícia – Ah sim, mas tem coisas que a gente acaba fazendo...
[...]
Pesquisadora – Me parece que vocês concordam que o Serviço de Convivência é um serviço mais
voltado pro psicólogo.
Letícia – Aí eu não sei. Porque quando você tem um pedagogo dentro da unidade, isso complica...
acaba sendo trabalho dele...
Pesquisadora – Então, mas algumas unidades têm pedagogo, outas não, outras não tem psicólogo... e
aí?
Maria – E outras nem psicólogo, nem pedagogo.
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Pesquisadora – E aí?
[...]
Maria – E é difícil... e o grupo tem que funcionar independente se você tem ou não esse profissional,
você tem que dar conta desse grupo. Então, por isso que eles funcionam, né, com quais pessoas forem,
tem que tá funcionando.
[...]
Letícia – É nesse sentido que eu falo, assim... que a gente deveria respeitar as atribuições de cada
profissão...
As participantes acreditam que se “deveria” respeitar as atribuições de cada profissão.
A conjugação do verbo denota que as competências não têm sido respeitadas. Letícia resiste e
se posiciona: “tem coisas que não é da minha competência.” Contudo, devido à questão
estrutural, independente de quem atua no equipamento, os serviços têm que acontecer. E
Patrícia se assujeita: “mas tem coisas que a gente acaba fazendo...” E conclui: “fica essa
bagunça, né, que todo mundo faz tudo e acaba fazendo tudo... Porque se não tiver o pedagogo,
vai ser o psicólogo ou o assistente social com o seu olhar fazendo aquilo ali, aquela tarefa...”.
Apesar de uma mesma atividade poder ser realizada por técnicos de diferentes
formações, fica evidenciada na execução do trabalho a diferença de perspectiva adotada por
cada profissional:
[...] porque a Psicologia escreve de um jeito... isso é nítido assim... você pega um Conselho [requisição
de Conselho Tutelar] respondido por uma assistente social, você sabe que foi respondido pelo assistente
social, você pega um respondido por um pedagogo, você sabe que foi respondido pelo pedagogo...
(Letícia)
A atividade descrita no trecho acima pode ser dirigida a qualquer um dos técnicos do
equipamento – assistentes sociais, psicólogos ou pedagogos. Todavia, o resultado final do
trabalho não será o mesmo, pois cada profissional imprimirá as características de sua
formação na elaboração do relatório.
Em se tratando da equipe de trabalho, as participantes também se referem aos
educadores sociais – profissionais de ensino médio.
Quando, de repente, essa atribuição foi dada para um educador. (Juliana)
Tanto é que tem CRAS que quem faz o Adolescente Aprendiz é o educador. (Maria)
Estes não são considerados “técnicos”, mas algumas atividades que em determinados
locais são executadas por profissionais de ensino superior, em outros são atribuídas aos
educadores.
Maria – Vocês podem não acreditar, mas em Y [nome da cidade], assistente social faz Cadastro Único.
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Camila – Eu já fiz Cadastro Único.
Maria – Não existe educador social [em Y]...
Da mesma forma, relatam que, em algum momento, atividades pertinentes aos
educadores já foram ou são desenvolvidas pelos técnicos. Maria utiliza a expressão “vocês
podem não acreditar” para dizer que em alguns locais os técnicos também fazem a entrevista
do Cadastro Único do Governo Federal, que dá acesso aos benefícios sociais. Fica
pressuposto que esta não é uma atividade natural e legítima para o assistente social.
Através do discurso das profissionais, entende-se que não existem regras e
especificidades no trabalho na Assistência Social. Cada equipamento tem uma organização
própria e faz a delimitação e direcionamento das atividades, conforme os profissionais
disponíveis. Não importa por quem é realizado, mas sim que o trabalho seja feito. Letícia
coloca um questionamento pertinente:
Porque assim, quando a gente tá dentro de uma instituição, a gente vai buscar uma instituição que é
multiprofissional, você uma hora não vai ser atendido pelo profissional que é da competência daquele
atendimento? Então, assim, porque na Assistência Social tem que ser diferente? É esse o meu
questionamento enquanto profissionalismo desse serviço. (Letícia)
4.1.5 Ser técnico X Ser psicólogo/ assistente social - “Todo mundo é técnico, mas cada um na
sua especificidade...”
Os profissionais de ensino superior, em sua maioria assistentes sociais e psicólogos,
são referidos como “técnicos”. A esse respeito, Letícia situa:
Todo mundo é técnico. E aí as especificidades de cada técnico acabam sendo negligenciadas. (Letícia)
Por serem “técnicos”, diferenciam-se dos educadores e agentes administrativos, mas
pouco se diferenciam entre si, apesar de terem formações diferentes.
Parece que as participantes revestem-se de uma identidade de “técnico”, pertencente à
instituição - e não de assistente social ou psicólogo. As profissionais, quando chegam à
Assistência Social, têm que se moldar ao que é ditado por esta Política. Não importa a
formação, importa que se adequem ao previsto. Sobre a atuação, Letícia coloca:
[...] não necessariamente você, o serviço como um todo teve uma atuação. (Letícia)
Mas há um processo de transição, há uma flexibilidade nessa questão “ah, é meu, é teu, é nosso”. Pra
mim é do CRAS. Até porque a gente não sabe quanto a gente vai ficar lá. (Letícia)
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Mas não é o psicólogo, tem que ser o Serviço, porque cada um vai contribuir com o seu olhar...
(Letícia)
Para a participante, não é a atuação de cada uma, mas a do serviço como um todo, que
traz resultados. Através do discurso, percebe-se que há dificuldade em mensurar o impacto do
trabalho, dando o mérito ao equipamento, e não a si próprias. Não só o mérito, mas a
atividade ou o caso atendido seriam do CRAS, e não dos profissionais envolvidos. O mesmo
pode se falar a respeito do vínculo: o vínculo do usuário aconteceria com o equipamento
CRAS, e não com os profissionais que lá atuam e o atendem. Aqui há a ideia de que as
pessoas são propriedade do Estado, e os profissionais, “servidores”, têm que estar realmente
disponíveis para servir os interesses públicos (ou políticos).
Apesar de todos serem técnicos, cada formação, segundo Letícia, possibilita um tipo
de olhar sobre o fenômeno:
Eu acho assim todo mundo é técnico, mas cada um na sua especificidade, né. (Letícia)
Então, assim,... e é diferente, o olhar é diferente, as orientações são diferentes, e a gente não pode negar
isso. (Letícia)
As diferenças entre psicólogas e assistentes sociais são marcadas de forma recorrente
no discurso das participantes. A atuação entre elas acontece em conjunto, mas afirmam que
hoje é possível definir algumas atribuições de cada técnico, sendo esta divisão vista como
algo positivo, e não podendo ser negada. A partir do reconhecimento dessas diferenças,
algumas atividades são dirigidas para um ou outro profissional.
Porque todo mundo era técnico, todo mundo tinha que fazer tudo. Então, os psicólogos faziam
atendimento social, se precisasse liberava benefício. (Camila)
As participantes posicionam-se como se “hoje” estivessem em uma situação melhor no
que diz respeito às especificidades de cada profissão dentro da Assistência, se comparado ao
“antes”.
Porém, essas diferenças nem sempre são sustentadas, pois com a demanda de trabalho,
e muitas vezes, com a falta de quadro de recursos humanos completo, “o serviço tem que ser
feito, independente de quem faz.” E, assim:
[...] acaba nem sendo o papel do psicólogo, o papel do assistente social... É você enquanto agente da
Política... Né... Que faz o trabalho do outro sem se questionar se o trabalho é do outro, porque tem que
ser feito... (Letícia)
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Então, assim, é... a gente está sempre meio que se adaptando ao que vem ali de... demanda. (Letícia)
E como agentes da Política, todos “apagam incêndios”. Mesmo que se possa pensar
em uma divisão de tarefas, isso não pode ser tido como regra imutável, pois cada equipamento
vive uma situação, com número e categorias de profissionais diferentes. Assim, psicólogo e
assistente social podem sim executar as mesmas atividades, o que diferencia é o entendimento
que cada um terá diante do “fogo”. O que parece unânime entre as participantes é que a
concessão de benefícios seria uma atribuição exclusiva do Serviço Social, porém, as
psicólogas afirmam já ter assumido tal atividade em algumas ocasiões.
Pode-se pensar, através dos discursos analisados, que as participantes ora se veem
enquanto profissionais da sua área de formação, ora se veem enquanto agentes da Política. Até
certo momento são psicólogas ou assistentes sociais, demarcam suas atribuições e atuação,
sabem o que é ou não de sua competência. Há a tentativa de manter as diferenças e
especificidades de cada profissional. Mas, devido às demandas, acabam se sujeitando à
instituição e à Política, fazem o que têm que ser feito, indo além de suas formações. Patrícia,
na representação da imagem de si, enquanto profissional, resume:
Tá meio confuso porque... porque está confuso...
Isto é, a imagem profissional que tem de si está confusa, porque o trabalho também
está.
O dilema parece estar entre se reconhecer como agente da Política ou como psicólogo/
assistente social. Assumir-se como técnico permite a execução de todas as atividades
pertinentes para o profissional de ensino superior. Assumir-se psicólogo ou assistente social
implica a compartimentação do saber e, em consequência, das atividades realizadas no CRAS,
o que nem sempre é possível. É nesse movimento que as participantes demonstram estar. Na
prática, apesar de haver distinções entre as profissões, e as participantes reforçarem tais
diferenças, colocam-se como juntas no processo de construção da atuação profissional na
Assistência.
Agem como “agentes da Política” – e, independente de ter ou não o profissional que
supostamente teria a competência para o desenvolvimento das atividades, o serviço tem que
ser ofertado e realizado. Passam a se reconhecer como servidores públicos e agentes da
Política de Assistência Social, não tanto como psicólogos ou assistentes sociais.
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4.2 EMPODERAMENTOS E VULNERABILIDADES
Neste capítulo, o foco será demonstrar como as participantes se veem enquanto
profissionais do SUAS – as imagens que fazem de si na atuação, as questões de poder ou da
falta dele e as vulnerabilidades em que se colocam. No desenvolvimento deste texto, assim
como já sinalizado, será analisado que profissionais e usuários se identificam: os profissionais
se posicionam como vulneráveis e sem autonomia, tal como supostamente são os usuários da
Assistência Social.
Cabe ressaltar que, nesta análise, não se pretende delinear posicionamentos específicos
de psicólogos ou de assistentes sociais. Como demonstrado no capítulo anterior, o profissional
com sua especificidade “tornou-se” o técnico, servidor da Política Pública de Assistência
Social. Assim, a imagem que as participantes constroem de si na atuação é comum a ambas as
categorias.
4.2.1 Entre adaptar-se e iniciar revoluções – “Para quem você reivindica?”
“Mas vamos acompanhar o ritmo do rio aí pra que a gente não morra afogado.” (Juliana)
Sobre a configuração da imagem de si, as participantes enunciam:
[...] eu acho que construção de papel é sempre uma escalada, uma hora você sobe, outra hora você tem
que recuar e repensar com o outro. (Letícia)
E é uma coisa que tá em construção, que a gente não sabe, é uma porta que está se abrindo. (Patrícia)
[...] que é um sobe e desce, às vezes tá nas alturas, às vezes... que é coisa do trabalho. (Patrícia)
As participantes se veem em um processo tal como uma escalada, entre “altos e
baixos” ou um “sobe e desce”.
Dentre as características que as profissionais citam como inerentes para atuação no
SUAS estão: responsabilidade, comprometimento, resiliência e flexibilidade. A resiliência é
colocada como importante para lidar com as frustrações do dia-a-dia. As profissionais se
colocam como tolhidas no trabalho, não adiantando se esforçar ou querer fazer algo além do
“quadrado”. Há “algo” que bloqueia e limita o trabalho das profissionais.
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Não adianta você lutar, porque você vai perder...
[...]
A gente sabe que não vai acontecer... o trabalho vai ficar podado, né... [...] Puxa vida, tô fazendo, mas
tô patinando, né, tô patinando. (Paula)
[...] eu entendo que nesse momento político, nessa situação, assim, é fazer aquilo dentro das tuas
limitações, porque você tentar ir além daquilo, vai te angustiar e vai prejudicar, você como pessoa,
como ser humano, com tuas debilidades emocional, física e tudo mais, né... (Juliana)
Mesmo que avaliem e entendam o contexto, e “joguem conforme a bola”: “Você vai
dar a cara no muro.” Ainda assim são persistentes, e como diz Maria: “Eu não desisto. Eu tô
dessa forma, eu sempre estive assim...” Referem-se a uma força – proveniente de uma
instância política superior – que as torna impotentes.
Na atividade realizada no 5º encontro, Maria foi solicitada a responder a seguinte
pergunta: “Qual o maior desafio no seu trabalho hoje? Que estratégia você pode utilizar para
superá-lo?”
[...] Eu coloquei aqui que o desafio é minha atuação perante ao desafio institucional, porque a gente só
atua conforme o quê tá posto, né. [...] Então no caso específico da FAS, falando, o que que eu cheguei à
conclusão, no meu caso, eu tenho que me adaptar. Porque eu sozinha não mudo. (Maria)
Considera que não tem autonomia para promover mudanças, então, a estratégia que
adota é a adaptação. Letícia complementa a resposta:
Acho que a gente acaba tendo esse discurso da conivência, pra não criar atrito, pra você não se indispor.
Então, você se adapta, você se torna conivente com algumas situações, sabe... Não é só sentir, Maria,
acho que você sabe que tá errado, que precisa de mudança, só que às vezes você se sente desprotegido,
né, no sentido de iniciar revoluções, de buscar... é... Sabe? Agregar pessoas naquilo que te incomoda
também, e que conversando, você percebe que incomoda a todos também, não é só a você. Mas como
que você agrega, como que você junta, pra quem você reivindica? Então, nesse sentido, acho que é um
problema institucional sim. (Letícia)
Há um movimento entre “se adaptar” e “iniciar revoluções”, porém, as participantes
acabam se sujeitando ao instituído, adaptam-se, por se sentirem desprotegidas.
E quando, por ventura, essa adaptação não acontece, a “força superior” entra em ação
provocando mudanças:
Ao invés de você tentar mudar, mudam você, né. Você vai para um outro lugar, né. O incomodado que
se retire. (Letícia)
Você tá um entrave mesmo, então, vai pra outro lugar. (Juliana)
A sensação de Juliana é: “a gente faz o mínimo possível dentro do local que a gente
trabalha.” Também se frustra quando percebe que outras profissões acham que podem fazer o
68
papel do assistente social. Letícia, no entanto, se questiona:
[...] qual é a minha autoridade, enquanto psicólogo, pra fazer um serviço que é específico da assistente
social? (Letícia)
Posiciona-se contrária a desenvolver tarefas do assistente social. Sente, contudo, que o
quê lhe é atribuído teria o objetivo de “tirar a sobrecarga” do assistente social. “O que eu não
quero fazer, você faz!”. Paula, assistente social, posiciona sua visão sobre a atuação do
psicólogo:
Eu acho não uma perda... mas eu vejo assim, sabe... é jogar fora, não sei nem se é o termo correto pra
usar, um profissional tão rico que não pode tá fazendo coisas a mais no CRAS, entende... (Paula)
A participante percebe uma limitação do trabalho do psicólogo dentro da Assistência
Social e avalia que o profissional, com sua formação e atuação, poderiam contribuir de mais
formas. Maria representa o contexto de seu trabalho como um lixão, que remete à pobreza e,
simbolicamente, ao que está errado. E isso vai de encontro com a imagem de Paula sobre o
psicólogo no SUAS: o psicólogo foi “jogado fora”. Contexto, clientela e profissionais
identificados.
4.2.2 Poder, empoderamento ou a falta de... – “Que relação é essa de empoderamento dentro
da instituição?”
É bastante recorrente no discurso das participantes questões de poder.
Eu visto meu jaleco, meu super jaleco da FAS e vou lá salvar o sujeito. (Letícia)
A imagem do profissional, vestido com o jaleco azul, na Kombi com o slogan e sigla
da FAS, representa o servidor empoderado, que “tem que” entrar no domicílio do usuário, sem
ser convidado, e dizê-lo o que deve fazer – como se o profissional fosse um super-herói,
detentor do saber, prestes a salvar o sujeito. Letícia continua:
[...] porque a gente sabe que aquele jaleco e aquela Kombi branca com aquelas três letras escrita na
porta pára uma rua, né. Tipo assim, vai todo mundo pro portão... (Letícia)
O poder não se restringe ao profissional, mas à instituição. O poder está na Kombi, no
jaleco azul, e também no servidor, que representam e constituem a instituição, e “param uma
69
rua”.
O suposto poder da instituição também é confirmado por outras Políticas, como
Educação e Saúde, que encaminham usuários para se inserirem em serviços da FAS, como se
fosse a solução dos problemas.
Que o contraturno é a salvação, né. [tom irônico] A escola não dá conta, a Saúde não dá conta, manda
pro contraturno da FAS, né. (Letícia)
Nessa situação, a participante afirma e ao mesmo tempo contradiz, com seu tom
irônico, que o contraturno é a “salvação”. Percebe-se, através do discurso, que ao mesmo
tempo em que os profissionais naturalizam esse poder, também o questionam:
Quem sou eu pra dizer que aquilo ali não é trabalho... (Juliana – referindo-se à usuária que é cuidadora
de carro)
Quem sou eu pra dizer que a Secretaria X tem que ir até a casa dela, porque ela não tem condições de ir
até a Secretaria. (Letícia)
Ora reconhecem estar em uma posição de poder e influência na vida dos usuários,
legitimando essa ação. Ora questionam esse lugar – “Quem sou eu para dizer isso?”, e
posicionam-se de forma modesta, reconhecendo que o usuário tem um saber e outras
instâncias políticas também.
Referem-se à impotência diante da resolução de situações de atendimento. Talvez pela
própria imagem relatada acima, do “super-profissional”, os usuários, que aceitam essa
idealização, chegam com demandas, as quais não serão resolvidas pelos servidores. A FAS
pode não ser a salvação.
Então, ao mesmo tempo que a gente cobra a família pra que ela faça um monte de coisa, na hora que ela
vem: “Eu preciso da sua ajuda.”, a gente também não pode fazer nada. (Letícia)
E aí, tem situações assim que... assim eu atendo muito, mãe que chega lá e fala: “Meu filho de 12 anos,
eu não dou mais conta. Ele só fica na rua à noite, e volta pra casa e tá fazendo coisa. Simplesmente eu
não sei o quê fazer.
[...]
E aí, a impotência da família justamente acaba passando pro profissional... e aí fica essa confusão...
[...]
E a gente não sabe mais o que fazer. Então, assim, tudo o que não sabe vou mandar pra frente como se
isso fosse solucionar. E aí vem essa questão de família, porque a gente vê casos... e assim, que às vezes
o problema tá maior que... mais na sociedade e tá refletindo na própria família. Então, aí a gente não
sabe o que fazer e quer mandar pra frente. (Camila)
Não é porque você trouxe aqui, que eu vou conseguir resolver, até porque eu não tenho esse poder.
(Letícia dirigindo-se à usuária que esteve em atendimento no CRAS com o filho)
70
Nos trechos acima, pode-se pensar em uma aproximação entre técnicos e usuários:
ambos sem poder para solucionar as questões que surgem. Os técnicos se posicionam tal
como os usuários: “Eu não tenho esse poder”. E como “a gente não pode fazer nada”, a
solução é “mandar pra frente”, ou seja, encaminhar para outras instâncias que supostamente
teriam o poder de resolver. Profissionais e usuários recorrem a mesma tática: a mãe, que “não
dá mais conta” do comportamento do filho, “passa o problema” para os técnicos do CRAS.
Estes, por sua vez, em casos que “não sabem o que fazer”, “mandam pra frente”, isto é,
também repassam o problema. A Assistência Social, nesses casos, se torna uma
“desAssistência”,
Quando questionadas sobre o entendimento do conceito de “empoderamento” na
atividade realizada no 2º encontro, as respostas escritas pelas participantes foram: “Às vezes
atrapalha”; “Informação, ação, coletivo”; “Objetivos X força”; “Vontade de fazer,
“Autoridade”, reconhecimento”; “Orientar, através da escuta qualificada e levar a família ou o
sujeito refletir e escolher para a vida a melhor escolha, encaminhar”; “Divergência, distância”.
O processo de empoderamento dos usuários é uma das premissas do trabalho na Assistência
Social, isto é, a atuação deve ser pautada na promoção de autonomia e superação de
vulnerabilidades que os usuários estejam vivenciando.
[...] Porque eu lembro de uma história de muito tempo atrás, [...], de uma psicóloga do CRAS X [nome
do CRAS], que ela fez um grupo comunitário no CRAS e daí eles foram assim, realmente foram se
empoderando e tal, e começaram a identificar um monte de coisa, a reivindicar asfalto lá, e começaram
a pedir coisa, mas assim coisas... seus direitos, né... Aí acabou o grupo. “Tem que acabar!”.
Simplesmente. “A gente acaba o grupo, porque agora eles estão incomodando.” Porque eles estão se
empoderando e tão cobrando coisas... (Camila)
Apesar de ser objetivo da Assistência Social o empoderamento do usuário e/ou
comunidade, quando este se efetiva, nem sempre é bem visto. O empoderamento incomoda.
Através dos posicionamentos, o empoderamento não tem apenas essa conotação de
ação direcionada ao usuário. É entendido pelas participantes menos como um processo que
beneficia e que é planejado para a emancipação dos usuários, e mais como algo presente nas
relações hierárquicas da instituição, relacionado à “autoridade”. Há uma inversão. Maria
posiciona-se:
Bom, eu vou colocar uma questão do empoderamento primeiro... que eu acho que depende do que você
tá falando... é o empoderamento pra usuário, né, ou é empoderamento dentro da instituição que você
trabalha, da equipe, da chefia, né, que relação é essa de empoderamento dentro da instituição, como a
FAS? Eu vou um pouco além. Não penso muito na relação de empoderamento do usuário... pra mim é
um contexto maior, isso é uma coisa que eu queria colocar. (Maria)
71
O empoderamento da instituição, também entendido como o poder das chefias, torna
as participantes impotentes:
[...] o pensamento de gerência, de coordenação, que diz simplesmente: “Não!”, né... Aí, eu penso que
acaba sempre nisso. [...] “Não, tal coisa não dá. Ponto.” Né. (Juliana)
Pesquisadora – O que seria dar a cara no muro?
Juliana – Pra mim seria a impotência de você querer realizar, vamos dizer assim, um projeto, né.
“Vamos desenvolver isso aqui dentro do CRAS? Vamos fazer um serviço assim, assim, assado?” Né...
“Ah, não, nós temos que levar pra gerência, daí a gerência vai levar pra não sei quem...” “Não, isso não
pode ser...” Aí volta a resposta: “Isso não pode ser...” Mas por que que não pode? Então, por que que
não te chama: “Vamos discutir, se nesse caminho isso aqui não pode... Mas vamos adaptar esse teu
projeto pra uma outra situação aqui...” Então, eu... E também outra, você às vezes ir contra o
pensamento de gerência, de coordenação, que diz simplesmente: “Não!”, né... Aí, eu penso que acaba
sempre nisso...
E daí a família vai lá pra gerência e, né, vai pedir atendimento... e a gerência ainda faz atendimento, aí
vai na casa, sem ao menos consultar o que vocês fizeram ali: “A fulana tá aqui reclamando que não
ganha nada, que não...” Nem ligam pra gente dizendo o que que... se a gente prestou um atendimento,
que era o mínimo... Se eu vou pisar no território dela: „Você já atendeu essa família?‟ A gente faz isso, a
gente tem essa obrigação de ir lá, não simplesmente: “Vocês não atenderam a família. Deixa eu ver,
deixa eu ir lá... Eu que sou a melhorzona, eu vou lá e faço.” [Risos] (Patrícia)
As participantes trazem decisões de chefias, que passam por cima do trabalho do
técnico ou simplesmente barram um projeto idealizado pelo profissional, sem explicações. As
chefias, empoderadas, deixam os técnicos impotentes. Mas, estas, podem ter outro papel,
conforme se observa na fala de Maria:
É... eu tinha estudado com a [nome], que é, era a coordenadora lá. E eu conhecia a supervisora da
Regional [...]. Então, aí eu cheguei e tinha a supervisora, a coordenadora, que tinha estudado comigo e a
gerente tinha estudado comigo também, entendeu? Então, eu acho que assim, não sei, ninguém me
mandou pro CRAS Y [CRAS com localização mais distante]. (Maria)
As chefias, ao mesmo tempo em que podem “barrar”, podem também facilitar
caminhos ou conceder vantagens a alguns. Maria considera que não ter sido alocada no CRAS
mais distante da Regional deveu-se ao fato de já conhecer previamente as gerências. Assim,
os relacionamentos também são indicativos de poder dentro da instituição.
As participantes, que representam os servidores de “ponta” e que não estão em cargos
de coordenação, se posicionam mais como impotentes e vulneráveis às chefias, à instituição e
às mudanças políticas. Aqui cabe uma reflexão: Se um dos objetivos da atuação no CRAS é
empoderar o usuário da Assistência Social, como esse processo será efetivado por um
profissional que se vê impotente e sem autonomia?
72
4.2.3 As vulnerabilidades... – “Você acaba praticamente lutando sozinha.”
Os usuários da Assistência Social são assim caracterizados “cidadãos e grupos que se
encontram em situações de vulnerabilidade e risco (...)” (BRASIL, 2005a). O CRAS, sendo a
porta de entrada para os serviços ofertados pela Política de Assistência Social, conta com
equipe de profissionais que trabalharão em prol da superação das situações que levaram estes
usuários a procura do serviço. No segundo encontro, as participantes assim definiram o termo
“vulnerabilidade social”: “Falta de tudo, dificultador”; “apatia, resiliência, conformismo”;
“exposição de uma fraqueza ao todo, fragilização da autonomia do ser”; “situação de pobreza
ou risco em que o sujeito está exposto seja pela baixa escolaridade, exclusão social”;
“conceito amplo, trabalho constante”.
Pode-se analisar que as participantes, assim como os usuários, se colocam em posição
de vulnerabilidade.
[...] Então, caí de pára-quedas aqui e... quando meu primeiro dia no CRAS não deu pra definir... porque,
assim, quando eu cheguei o CRAS não existia... tava sendo construído... e... também eu fiquei, eu
cheguei na Regional e ninguém sabia o que fazer comigo... porque parece que foi uma pessoa a mais
que eles não esperavam. Todos os CRAS já tinham psicólogos. Então, eles me deixaram na Regional
esperando por uma semana, sem saber o que fazer. (Camila)
[...] E outra coisa, assim, que é da gestão é que assim o modo de tratar as pessoas... tá muito difícil:
“Dane-se a pessoa.” Quer dizer, não é uma pessoa, é a coisa, que fica indo de lá pra cá, eles ficam
jogando. (Camila)
No primeiro trecho, a participante fala de si e de sua experiência na chegada à
instituição. No segundo, critica a forma como os usuários têm sido tratados, recebendo
diversos encaminhamentos, “indo e vindo”. Apesar de se referirem a públicos diferentes, os
trechos têm o mesmo sentido: ambos, servidores e usuários, ficam vulneráveis, podendo ser
jogados de um lado pro outro.
Juliana - Tá, mas enfim, quando de repente, esses dias surgiu um boato lá que precisava de uma
assistente social lá [em outro CRAS], eu soube que meu nome já foi questionado. Como?
Letícia – É porque você queria... foi o que aconteceu comigo quando a Camila saiu. [Risos]
Juliana – Mas, gente, agora que eu já tô aqui há tantos meses, tô com a experiência do território, vai me
mandar pra outro lugar? Aí, eu vou pegar a fama de que eu não paro em lugar nenhum.
Juliana e Letícia complementam, no trecho acima, a questão da mobilidade e a
possibilidade de, enquanto profissionais, serem remanejadas do local de trabalho mesmo que
esse não seja o desejo. Estão à mercê da instituição.
A vulnerabilidade aparece também se relacionando aos referenciais teóricos e
73
orientações técnicas para a atuação:
Na verdade, pra mim foi bem difícil, né... até pela formação, pelo trabalho na Saúde... É, então, assim,
entender... até pela falta de experiência mesmo na área, experiência teórica mesmo. Porque como eu
disse a gente tinha muito pouco... (Letícia)
Você viu que todas as pessoas que vem falar pra nós falam de uma forma diferente? Como que a gente
tem que tratar... E isso não dá uma confusão na gente enquanto técnico também... Porque vem um e fala
de uma forma. Lá mesmo aconteceu isso. O primeiro falou de uma forma, aquela menina falou de uma
outra forma. (Maria referindo-se aos cursos de capacitação)
[...] Então, assim, não tem um consenso, não tem um cabedal teórico para você falar assim: “É por aí
que a gente tem que trabalhar, né...” Posso divergir desse autor ou do outro, mas, não tem uma linha
específica de atuação... [...] É... a gente está sempre meio que se adaptando ao que vem ali de... de...
de...demanda. (Letícia)
A formação escassa na área social, no caso das psicólogas, a falta de referências e de
uma fala uniforme trazem uma vulnerabilidade teórica e de como agir na atuação. E não se
trata apenas de uma falta teórica:
[...] E aí, houve um choque pra mim muito grande, né, porque quando você pensa em estrutura de
serviço, você tem muito do... das coisas organizadas. E a sensação que eu tenho é que a FAS está
sempre em um processo de mudança. Então, ela nunca se constrói, nem fisicamente, nem politicamente,
então, assim o primeiro impacto pra mim foi ter que lidar com as questões que são da própria
instituição, né, é... de como que você percebe esta instituição que vai ser teu empregador, né, que vai
direcionar o seu trabalho, se... a sensação que eu tinha era de que ela não tava pronta. Não pronta no
sentido de... que eu acho que o serviço na área social nunca tá pronto, mas assim não tem uma estrutura,
não tem um fluxo, não tem, né, ainda mais pra uma profissão que, por mais que eu fui super bem
acolhida, era assim: “ah, cada um que passou por aqui fez de um jeito.”. Então, você não tem diretriz,
você não tem, né... (Letícia)
A falta de “estrutura”, “fluxo” e “diretriz”, trazida por Letícia e confirmada pelas
demais participantes, também pode ser analisada pelo viés da vulnerabilidade. Por não haver
tais direcionamentos, “cada um que passou por aqui fez de um jeito”, e isso não é visto de
forma positiva pelas profissionais. Colocam-se em posição de sujeição ao que vem (ou que
não vem).
A vulnerabilidade também aparece na relação com a equipe de trabalho:
[...] Não se tem aquilo de ver mesmo o empoderamento, a emancipação da pessoa e tudo aquilo. Então,
isso gera um stress muito grande na gente dentro do ambiente de trabalho. Você acaba praticamente
lutando sozinha, porque você não tem... porque às vezes até o entendimento da pessoa, da chefia
imediata, não é o teu pensamento... quer dizer, não é um pensamento da Política de Assistência Social,
né... E isso é uma coisa que... que te abate muito. (Juliana)
Exato, só você revisa... “E aí, porque que quer? Tá buscando o que?” Então, esse próprio
questionamento do seu posicionamento enquanto profissional às vezes dentro do grupo acaba sendo
mal visto e malquisto, porque parece que você tá ali questionando o trabalho do outro, porque você
quer o lugar do outro, né... (Letícia)
74
As participantes colocam conflitos de entendimento sobre a atuação de forma
consoante ao que é previsto pela Política de Assistência Social e o sentimento de estarem
“sozinhas”, visto que colegas de trabalho e/ou chefia nem sempre têm a mesma visão. Têm a
imagem de que o trabalho é uma “luta”, uma “batalha”, na qual estão sempre “vencendo as
dificuldades, as barreiras, os empecilhos do dia-a-dia”.
A gente tem que lutar, né... (Letícia)
É bastante recorrente nos discursos as questões políticas e as vulnerabilidades
decorrentes das mudanças de gestão:
[...] mas o problema foi que eu cheguei numa época complicada é... de... eleição. Eles já vieram com
algumas imposições pra gente, eu não aceitei... (Camila)
[...] Quando, por que assim, você é novo, quando você acha que agora vai, então, vem a mudança da
gestão e tudo emperrou de novo, né, novo fluxo, novo olhar pro serviço, então, começa tudo de novo,
então, dá sempre essa sensação de que não se estrutura pra se começar. Você vai se estruturando no
meio do caminho, assim... (Letícia)
Letícia – [...] E hoje, depois de 3 anos, acho que a gente tem um pouco mais definido o que que é da
competência de cada um. Mas entra naquilo, muda o coordenador, muda o funcionamento...
Paula – De supervisor, gerente...
Letícia – Muda tudo... Então, aquela organização que já estava estabelecida, entra um outro profissional
e aquilo que já tava mais consolidado, flui de novo. Então, assim, a gente tá sempre naquela coisa da
autoavaliação a cada 4 anos. Ou conforme a necessidade da instituição.
Referem-se à eleição como “época complicada” e à mudança de gestão como algo que
emperra o serviço. Os profissionais e o andamento do trabalho ficam vulneráveis a cada
alteração da chefia.
Instabilidade política, falta de referenciais teóricos e de uniformidade na atuação,
diferentes entendimentos sobre o trabalho dentro da equipe, remanejamentos imprevistos – as
participantes se colocam submetidas a essas vulnerabilidades, e as encaram com “apatia,
resiliência, conformismo” e com a “autonomia fragilizada”.
4.2.4 Entre a Política e a política... – “Não vamos poder fugir disso.”
No discurso das participantes se presentificam duas “políticas”: a Política Pública de
Assistência Social e a política enquanto politicagem e manutenção do assistencialismo. Na
atividade realizada no 2º encontro, as participantes descreveram o que entendiam por
“Assistência Social”:
75
Bom, a primeira folha que eu peguei foi “Assistência Social”, daí eu coloquei algumas palavras que a
gente sempre escuta com relação à Assistência Social, que é a questão da: “mudança, conhecimento,
historicidade e eu coloquei entre aspas “vontade”. É, a segunda pessoa colocou “visa orientar as
pessoas sobre seus direitos para que o sujeito seja protagonista”. Direitos, política, politicagem
[terceira pessoa]. Política pública essencial em trabalho de CRAS [quarta pessoa]. E a última pessoa
colocou “Efetivação de direitos, autonomia e empoderamentos”. (Letícia)
Através do trecho acima, é possível analisar que a visão das profissionais sobre a
Assistência Social está consoante à Política. Porém, já denunciam que esta é permeada pela
política.
[...] Então, assim, é... são questões, assim, que acho que vão além da teoria, porque como a Camila
colocou a teoria tá ali, a gente até tem acesso a ela, mas como que é que se converte esta teoria em uma
prática? É, quando você tá no meio da prática, muda todo um modo de pensar, como é que você lida
com isso que agora não dá? Então, acho que é um constante... ir e vir, né, lidar com essa frustração de
que você construiu um caminho, nesse momento, não, quem sabe daqui a 4 anos a gente retoma, né.
(Letícia)
[...] Eu acho que o problema tá realmente na questão da Política de Assistência Social, que efetivamente
não é feita... Nós fazemos e eu já falei, infelizmente, nós fazemos assistencialismo, pura e
simplesmente. O momento político é esse, e a gente tem que fazer o que, a gente tem que dar a cesta
básica praquela pessoa, porque ela achou isso e ela tá com fome. Não importa que ela tenha uma
situação lá que a gente avaliou e que não é... Você vai manter o ano todo aquela família porque... Se a
gente não der, ela vai lá na prefeitura, ela vai lá na fulana, ela vai lá na ciclana, e você tem que dar, você
tem que suprir essa necessidade... Quer dizer, a avaliação técnica, se você for pegar dentro da Política,
você acaba fazendo só pura e simplesmente o assistencialismo. (Paula)
A Política, que deveria pautar a prática, parece ficar apenas na teoria. As participantes
acabam tendo que se sujeitar à política, não conseguindo efetivar a Política de Assistência
Social. Paula continua:
É uma coisa que já vem de cima, né. Quem tá nos cargos acima do nosso, digamos, de repente tem uma
visão totalmente diferenciada, né. E a gente... uma avaliação, digamos, uma avaliação social, você vai,
você tá vendo essa situação... “Não, essa situação, eu não libero, porque eu vejo que...” “Mas, puxa
vida, olha, é uma idosa, né...” Minha avaliação técnica. E daí quando de repente a pessoa que está
acima de você, em um cargo acima do seu, e diz: “Faça”, cai por terra tudo o que você tem... e isso
infelizmente é da instituição, é o momento que a instituição tá vivendo, é o momento político que a
instituição tá vivendo... (Paula)
Há uma dissonância entre avaliação e posição do técnico e a orientação de quem ocupa
cargos superiores ao do técnico. A avaliação técnica acontece conforme a Política, porém, o
trabalho sofre interferências de pessoas que estão “acima”, e acaba sendo feito de acordo com
a política. A equipe técnica se sujeita às ordens políticas, e tem a sensação:
76
Puxa vida, tô fazendo, mas tô patinando, né, tô patinando. Aquelas famílias que a gente atende ali que
recebem Bolsa Família, e que a gente vê que são famílias que teriam capacidade de tarem aí se
empoderando realmente da sua vida, tarem trabalhando, tarem estudando, sabe, elas não vão... E a gente
não pode fazer nada, você não pode fazer um relatório: “Cancela esse bendito do Bolsa Família, porque
a família não precisa receber, ela tem que crescer, que faz 10 anos, faz 5, 6 anos que ela tá recebendo, e
ela não vai pra frente...” Por quê? Porque a gente acaba mantendo essas famílias, sabe. Então, o
discurso que você tem que fazer essa família se empoderar não existe. Existe sim o discurso que a gente
tem que deixar aquela família ali presa na Assistência, dependente da Assistência. Não é isso que a
gente tem que fazer, esse é o meu pensamento, né, como assistente social. Não é isso que tenho que
fazer. Eu tenho que fazer com que essa família cresça, que ela caminhe sozinha, não vai... pode ser que
lá na frente, ela caia de novo, mas a gente vai tá lá pra: “agora, né, a gente vai dar um suporte de
novo...” Mas que ela vá pra frente, não que ela fique refém dos nossos benefícios... sabe... (Paula)
O estar “fazendo” e o estar “patinando” refere-se à atuação que não é efetiva, segundo
a visão de Paula. Ao invés de empoderar os usuários, o trabalho desenvolvido mantem as
famílias dependentes do serviço, e o vínculo com a dependência é mantido. Ou seja, o serviço
vai na “contramão” do que é previsto.
[...] eu não posso fazer o que eu realmente acho que é o correto, tô dentro de um quadrado e que se eu
pulo, se eu faço alguma coisa além daquele quadrado, que é o que eu acho que eu deveria fazer, na
melhoria de condição, fazer aquela pessoa realmente caminhar sozinha, de não ficar na dependência da
Assistência, porque eu já falei no último encontro, pra mim, eu não faço Assistência Social, eu faço um
assistencialismo, né. Que a pessoa me pede uma cesta básica, e se eu avalio que não é o caso de tá
liberando: “Não, você tem que liberar. Você tem que fazer isso, você tem que fazer aquilo. (Paula)
Há uma outra vulnerabilidade presente: atuar conforme a política, tendo a ciência de
que essa não é a previsão da Política. Aqui cabe uma questão: onde está o poder do técnico em
se posicionar?
Letícia - E aí ninguém se posiciona [...]
Pesquisadora – Eu fiquei lembrando agora do empoderamento da semana passada, né... Cadê o
empoderamento, cadê o posicionamento?
Paula – [...] Isso que eu digo, a gente acaba se calando, algumas pessoas se calam, porque “se eu falar,
vou ficar mal vista ou vou ficar visada ou vai vir uma repressão de alguma forma, então, deixa eu ficar
quietinha, porque se vier o Serviço vou ter que aceitar, mesmo querendo ou não.” Quer dizer, então, aí a
gente... acaba se frustrando... [...] E tem que realmente ir se adaptando. Realmente é o que a Maria falou, se a gente fosse realmente
fazer um trabalho Político, do assistente social dentro do CRAS, no meu ponto de vista, seria um pouco
diferente do que a gente faz hoje, que é o assistencialismo, né. Mas aí você vai lá, vai ficar batendo de
frente com chefia? Quem é queimado é você. Daí: “Aquela lá é encrenqueira. Aquela lá nas reuniões só
leva cortada. (Paula)
O posicionamento é não se posicionar, não há embate, há silêncio: “a gente acaba se calando”.
O técnico se coloca como vulnerável à política e desempoderado: “Não posso fazer o que é correto”.
Camila, quando se recusou a participar de um evento político, teve a seguinte consequência:
77
[...] o resto dos 4 anos seguintes eu fui barrada em tudo o que queria fazer... remanejamento, trabalho,
iniciativa de qualquer coisa. E aí, quer dizer, a questão política acaba interferindo diretamente no teu
trabalho e no teu desenvolvimento. (Camila)
A participante entende que a posição assumida afetou seu trabalho e desenvolvimento
profissional. O posicionamento, de acordo com o discurso das participantes, é visto com maus
olhos pela instituição. Então, é mais prudente “se calar”. Outra reflexão pertinente: Como o
profissional, calado, apático e que se vê como um “boneco manipulado” (sentimentos trazidos
por Paula), vai promover a autonomia nos usuários?
[...] Daí, eu fico me questionando assim, como é que eu empodero alguém a lutar por direitos se eu
aceito as perdas de direito como se fosse norma, não é nem natural, né... é norma... Não adianta você
lutar, porque você vai perder... Então, é... e isso me angustia, né... [...] Você não tem um direcionamento
interno, né, por mais que você leve pra frente, esse pra frente às vezes não chega nem na Regional.
(Letícia)
Técnicos e usuários, mais uma vez, identificados.
78
5 DISCUSSÃO
A presente pesquisa teve como ponto de partida a seguinte pergunta: Que imagens de
si e da prática profissional o psicólogo que atua em um Centro de Referência de Assistência
Social (CRAS) configura em seu discurso? Os discursos produzidos nos encontros do grupo
de reflexão juntamente com os referenciais teóricos estudados permitem esboçar uma resposta
a essa questão e a tantas outras que surgiram no percurso deste trabalho.
O objetivo inicial da pesquisa foi analisar os modos de subjetivação no discurso de
psicólogos que atuam em CRAS. O foco era essa categoria profissional, principalmente pelo
fato de a pesquisadora pertencer a essa classe e por ter experienciado o trabalho na Assistência
Social. As dúvidas que impulsionaram a pesquisa nasceram de uma vivência muito própria e
pessoal, mas que não se restringem a ela. Pode-se arriscar dizer que tais inquietações são
características para os profissionais da Psicologia que atuam no SUAS.
A Análise Institucional do Discurso, método eleito, não pressupõe hipóteses – apesar
disso, a pesquisadora tinha certas expectativas sobre o estudo. A produção dos dados
analisados ocorreu através de encontros grupais, e ter promovido discussões em grupo, e não
entrevistas individuais, pode ter alterado a “rota” de expectativas. Mesmo havendo um
direcionamento de atividades por parte da pesquisadora, houve um empoderamento do grupo
no sentido de ele próprio conduzir as discussões, tanto que, em certos momentos, estas
tomaram rumos inimagináveis. Os encontros tornaram-se inclusive um espaço para as
participantes compartilharem frustrações. Pode-se dizer que o grupo de reflexão proporcionou
uma riqueza de dados, indo muito além do hipotetisado pela pesquisadora. Assim, apesar do
ponto inicial ter sido a constituição da subjetividade do psicólogo, o resultado não é restrito a
esse profissional, mas se estende a uma categoria maior: a do servidor público da Política de
Assistência Social.
Uma das perguntas que nortearam o trabalho foi: “Qual a especificidade do trabalho
do psicólogo no CRAS? O que diferencia sua atuação da do assistente social?” Para respondê-
la, pode-se retomar o documento “Referências Técnicas de Atuação do(a) Psicólogo(a) no
CRAS/SUAS” elaborado pelo CFP.
A prática profissional do psicólogo junto a políticas públicas de Assistência Social é a de um
profissional da área social produzindo suas intervenções em serviços, programas e projetos afiançados
na proteção social básica, a partir de um compromisso ético e político de garantia dos direitos dos
cidadãos ao acesso à atenção e proteção da Assistência Social. A partir da interface entre várias áreas da
Psicologia, estas ações estão sendo construídas numa perspectiva interdisciplinar, uma vez que vão
constituindo várias funções e ocupações que devem priorizar a qualificação da intervenção social dos
trabalhadores da Assistência Social. (CFP, 2008, p. 32)
79
O psicólogo, no SUAS, é considerado um profissional da área social e sua atuação
segue os serviços previstos pela Política Nacional de Assistência Social e suas normativas. O
psicólogo “tem como finalidade básica o fortalecimento dos usuários como sujeitos de
direitos e o fortalecimento das políticas públicas” (CFP, 2008, p. 22). Em seu exercício
profissional no CRAS, tem como objetivos a prevenção de situações de risco e a superação da
vulnerabilidade social - alcançados através do fortalecimento de vínculos familiares e da
promoção de autonomia e empoderamento dos usuários. Nos documentos orientadores é
repetido que o trabalho do psicólogo deve ser condizente com a PNAS, mas não são
apresentadas atribuições específicas para este profissional. Através da leitura dos documentos,
é possível concordar com a posição de Letícia: os Conselhos não explicitam o que seria
competência exclusiva de cada profissional.
Por meio de atuação interdisciplinar o(a) psicólogo(a) pode atender a crianças, adolescentes e adultos,
de forma individual e/ou em grupo, priorizando o trabalho coletivo, possibilitando encaminhamentos
psicológicos quando necessário, desenvolvendo métodos e instrumentais para atendimento e pesquisa
com um olhar para o grupo familiar. As ações devem ser integradas com outros(as) profissionais dentro
do serviço, bem como com outros serviços visando o trabalho em rede. (CFP & CFESS, 2007, p. 33)
Em relação às atividades desenvolvidas pelas psicólogas, estas condizem parcialmente
com o preconizado pelas orientações técnicas, visto que o trabalho coletivo ainda não é
priorizado: “A gente ainda não tem uma coletivização pra dizer que a gente tá trabalhando
com grupos. A gente cai na orientação individualista.” É mantida a lógica do atendimento
individual, ratificando o resultado apontado por Oliveira et al. (2011). Contradiz tal pesquisa,
no entanto, no que tange à manutenção do atendimento clínico. As participantes afirmam não
atuar desta forma, e sim no sentido de prestar orientações aos usuários e às famílias.
Confirmam, assim, a orientação técnica do CFP (2008) à medida que rompem com a
intervenção pautada na psicologia clínica, mas não com a formação da Psicologia.
As profissionais legitimam a subjetividade como o objeto da Psicologia, mas
relacionada à psicoterapia. Questionam “qual é a atuação do psicólogo que não trabalha com
a subjetividade?”, já que esta não é o foco da Assistência Social. Demonstram não reconhecer
que a subjetividade dos usuários possa ser trabalhada em um contexto que não o clínico e
surgem, então, dúvidas sobre os limites para que a atuação se diferencie da terapia. Não sendo
previsto este tipo de atendimento na Assistência Social, as profissionais tentam adaptar a
forma de se trabalhar a subjetividade, moldando-a à atuação no SUAS. As participantes
parecem concebê-la e naturalizá-la como sendo algo da ordem interior do sujeito. Não
demonstram, por exemplo, ter uma perspectiva de subjetividade constituída socialmente. Isso
80
pode ser relacionado à formação acadêmica que tiveram, “pobre” em Psicologia Social e farta
em conteúdos do modelo clínico, restringindo, de acordo com Dimenstein (2000), o
entendimento do que seria a atuação do profissional, e de qual seria sua conduta. A academia
formou psicólogas clínicas, cuja clientela é composta por pequena parcela da população – a
elite, que pode pagar pelos serviços. A formação em Psicologia negligenciou o atendimento à
grande parte da sociedade - os pobres. E isso vai ao encontro do que afirma Calegare (2010):
há uma lacuna na formação em Psicologia Social dentro dos cursos de graduação.
Retomando outra importante questão que esteve presente na construção deste trabalho:
“Quais conceitos e teorias fundamentam o profissional para esta atuação?”, pode-se afirmar
que as participantes têm como base documentos do MDS, Cartilhas e Protocolos próprios da
Política de Assistência Social. Não se referem a teorias ou abordagens psicológicas. Este dado
corrobora com o estudo de Ferrarini e Camargo (2012) com graduandos de Psicologia: os
profissionais, muitas vezes, não têm articulado as teorias estudadas na graduação com a
prática profissional.
Conforme aponta Calegare (2010), uma boa formação, seja na graduação ou em pós-
graduações em Psicologia, propicia sustância à atuação do profissional comprometido com a
transformação social. No caso das psicólogas participantes, foram os cursos de especialização
que asseguraram um maior direcionamento para a prática no CRAS. Apesar de terem
comprometimento com o trabalho, as profissionais se colocam numa posição de não escolha
pela Assistência Social. Segundo Scarparo e Guareschi (2007) e Reis e Guareschi (2010) a
área social está se ampliando e absorvendo psicólogos, apesar de não ser a opção mais
desejada entre os profissionais. Isso pode ser identificado no discurso das participantes, que
ingressaram na Assistência Social não devido a um compromisso social, mas pela necessidade
de estarem inseridas no mercado de trabalho.
De acordo com as psicólogas, a atuação desta categoria profissional no SUAS não é
bem definida, não havendo modelos ou direcionamento técnico. Atuariam, assim, conforme o
seu entendimento, dando um caráter pessoal ao modo de se trabalhar, como se o saber fosse
da pessoa, e não do profissional. Ferrarini e Camargo (2012) apontam que há a impressão,
entre os graduandos, da Psicologia como um lugar de “incertezas”, do “não saber” e da prática
como um “não saber o que fazer”, recorrendo ao bom-senso, muitas vezes, e não a teorias
como referencial. Conforme analisado, esta situação não é pertinente apenas aos estudantes de
Psicologia. Os profissionais, que atuam no SUAS, também compartilham desse sentimento.
O fazer da Psicologia no CRAS está marcado pela obrigatoriedade, objetividade e,
81
possivelmente, pela não resolutividade. Os profissionais “têm que encaminhar”, isto é, dar a
direção aos usuários. A “praticidade” e diretividade da atuação dificultam a percepção de que
a subjetividade também possa ser trabalhada em um atendimento social. As psicólogas
colocam-se mais na posição de “não dar conta”, ou da “desAssistência”, do que de fato de
solucionadoras de demandas trazidas pelas famílias.
Sobre a atuação do Serviço Social, o documento orientador situa o seguinte:
As competências específicas dos(as) assistentes sociais, no âmbito da política de Assistência Social,
abrangem diversas dimensões interventivas, complementares e indissociáveis: 1. uma dimensão que
engloba as abordagens individuais, familiares ou grupais na perspectiva de atendimento às necessidades
básicas e acesso aos direitos, bens e equipamentos públicos. Essa dimensão não deve se orientar pelo
atendimento psico-terapêutico a indivíduos e famílias (próprio da Psicologia), mas sim à
potencialização da orientação social com vistas à ampliação do acesso dos indivíduos e da coletividade
aos direitos sociais; [...] (CFP & CFESS, 2007, p. 27)
Ambos assistentes sociais e psicólogos podem fazer atendimentos individuais ou em
grupo. A diferença explicitada nos trechos acima é que o assistente social atuaria no
atendimento às necessidades básicas e o psicólogo nos encaminhamentos psicológicos,
quando necessário. Os próprios documentos dos Conselhos promovem a dicotomia entre
materialidade e subjetividade. É colocado que o assistente social “não deve se orientar pelo
atendimento psico-terapêutico (próprio da Psicologia)”, e, a partir dessa orientação, pode-se
entender que tal atividade seria própria dos psicólogos. Realmente é. Porém, não para o
profissional que atua no campo da Assistência Social:
[...] em casos de identificação de demandas que requeiram ações e serviços não previstos nestes
aparatos normativos, como, por exemplo, o acompanhamento clínico de natureza psicoterapêutica, o
profissional de Psicologia deve acessar outros pontos da rede de serviços públicos existentes no seu
território de abrangência ou no plano municipal, com vistas à efetivação dos direitos dos usuários a
serviços de qualidade e à devida organização das ações promovidas pelas políticas públicas de
Seguridade Social. (CFP, 2008, p. 30)
» na ação profissional, é fundamental a atenção acerca do significado social da profissão e da direção da
intervenção da Psicologia na sociedade, apontando para novos dispositivos que rompam com o
privativo da clínica mas não com a formação da Psicologia, que traz, em sua essência, referenciais
teórico-técnicos de valorização do outro, aspectos de intervenção e escuta comprometida com o
processo de superação e de promoção da pessoa; (CFP, 2008, p. 35)
A natureza do trabalho na Assistência Social não se coaduna com a prática clínica,
apesar de processos subjetivos estarem presentes. Em casos que demandam o
acompanhamento terapêutico, as profissionais da Psicologia encaminham para serviços de
outras políticas públicas encarregadas de fazer tal atendimento. Reafirma-se que o
82
atendimento clínico não é previsto para a atuação do psicólogo no CRAS, contudo, este
profissional pode manter uma perspectiva diferenciada, própria de sua formação.
Em relação ao “atendimento às necessidades básicas”, previsto para o assistente social,
este condiz com o posicionamento das participantes quando se referem à avaliação
socioeconômica e à concessão de benefícios como exclusivas do Serviço Social. Estas estão
diretamente ligadas ao suprir necessidades básicas, como, por exemplo, conceder o subsídio
alimentar.
Os posicionamentos evidenciados na pesquisa estão de acordo com dados do estudo de
Nery (2009): a tentativa de divisão do trabalho entre psicólogos e assistentes sociais remete a
uma cisão entre subjetividade e objetividade, como se o profissional da Psicologia acessasse
apenas o mundo subjetivo, enquanto o Serviço Social somente as necessidades concretas de
sobrevivência. As participantes legitimam esta divisão – demandas emocionais são tratadas
pelo psicólogo, enquanto demandas “materiais” são encaminhadas pelo assistente social. No
entanto, na prática nem sempre esta lógica é mantida: as psicólogas afirmaram, por exemplo,
já terem realizado a concessão de benefícios, atividade específica do Serviço Social. As
assistentes sociais, por sua vez, na ausência do psicólogo, se “camuflam” e fazem um
atendimento de escuta, quando demandado pelo usuário.
Sobre a atuação de psicólogos e assistentes sociais, os Conselhos de Psicologia e de
Serviço Social orientam:
Balizados pelos seus Códigos de Ética, Leis de Regulamentação e Diretrizes Curriculares de formação
profissional, assistentes sociais e psicólogos(as) podem instituir parâmetros de intervenção que se
pautem pelo compartilhamento das atividades, convivência não conflituosa das diferentes abordagens
teórico-metodológicas que fundamentam a análise e intervenção da realidade e estabelecimento do que
é próprio e específico a cada profissional na realização de estudos socioeconômicos, visitas
domiciliares, abordagens individuais, grupais e coletivas. (CFP & CFESS, 2007, p. 39)
Os profissionais “podem” compartilhar atividades de acordo com o que é “próprio e
específico” para cada profissão. Pressupõe-se, a partir do documento, que há especificidades
para psicólogos e para assistentes sociais. Porém, o uso do verbo “podem” deixa margem para
se pensar que não há obrigatoriedade no compartilhamento de atividades. Não fica explícito o
que seria próprio de cada profissão nas atividades citadas: “estudos socioeconômicos, visitas
domiciliares, abordagens individuais, grupais e coletivas”, apenas se entende que é possível
que ambos os técnicos se responsabilizem por elas. Como já exposto, as participantes
diferenciam a avaliação socioeconômica e a concessão de benefícios como atribuições
exclusivas do Serviço Social. As demais atividades podem ser assumidas por ambos.
83
Posicionam-se, inclusive, que às vezes psicólogos e assistentes sociais, da mesma equipe,
estão realizando o mesmo trabalho, com a mesma família. Fica uma certa indiferenciação. Os
dados trazidos nos estudos de Araujo (2010), Silva (2011) e Souza (2011) de que a Psicologia
estaria em “segundo plano” na atuação na Política de Assistência Social se confirmam no
sentido de as participantes psicólogas reconhecerem e legitimarem que as assistentes sociais
podem se responsabilizar por todas as atividades. As profissionais da Psicologia, por sua vez,
configuram suas atribuições pelo reconhecimento do que não seria de sua alçada e, sendo,
portanto, responsabilidade do assistente social. Dessa forma, a atuação do psicólogo no SUAS
poderia ser entendida como complementar a do Serviço Social.
Os Conselhos ainda orientam:
O trabalho em equipe não pode negligenciar a definição de responsabilidades individuais e
competências, e deve buscar identificar papéis, atribuições, de modo a estabelecer objetivamente quem,
dentro da equipe multidisciplinar, encarrega-se de determinadas tarefas. (CFP & CFESS, 2007, p. 41)
Reafirma-se a atribuição de responsabilidades individuais dentro da equipe, todavia,
sem especificar objetivamente quais as competências de cada profissional. A equipe deve se
organizar e “instituir parâmetros de intervenção”. Essa lógica adequa-se ao que é trazido no
discurso das participantes: cada local de trabalho tem uma organização própria e direciona as
atividades, conforme disponibilidade de profissionais. Nas equipes compostas apenas por
assistentes sociais, estes “darão conta” de todas as demandas, inclusive das emocionais. Nas
equipes compostas por psicólogos e assistentes sociais, haverá divisão das atividades, mas não
existe uma atribuição exclusiva do psicólogo.
Pode-se notar que, no contexto estudado nesta pesquisa, existem equipes técnicas
compostas apenas por assistentes sociais, mas não há equipes apenas com psicólogos. A
Psicologia não será a única categoria profissional de ensino superior a compor uma equipe de
CRAS. É como se o psicólogo fosse prescindível, já o assistente social não – apesar da
Resolução nº 17/2011 do CNAS prever que psicólogos componham obrigatoriamente as
equipes do SUAS. Essa constatação confirma o estudo de Silva (2011) sobre a atuação do
psicólogo no 3º setor, no qual identificou que o assistente social seria o principal responsável
pelas atividades, sendo o psicólogo acionado quando aquele não consegue resolver
determinada situação. Ratifica-se o domínio do Serviço Social, sendo a Psicologia
complementar. Isso, porém, neste estudo, não é causador de tensão entre os profissionais,
conforme apontado na pesquisa de Araujo (2010). As participantes da presente pesquisa
posicionam que anteriormente “tudo” era de responsabilidade do assistente social e que,
84
agora, este, com a entrada do psicólogo e de outros profissionais, está tendo que compartilhar
atividades. A tensão estaria sim entre os assistentes sociais e demais categorias profissionais –
psicólogos, pedagogos e educadores sociais, ao se sentirem ameaçados pela suposta perda de
espaço. Silva (2011) coloca ainda que o psicólogo teria o papel de “apagar incêndio”, isto é,
entraria em ação quando o assistente social não conseguisse “dar conta” da demanda. No
entanto, sobre isso conclui-se, no presente estudo, que não seria apenas o psicólogo
“apagando fogo”, mas todos os profissionais do CRAS.
Uma das participantes coloca que o discurso de que “todos são técnicos, todos
atendem e dão conta da demanda” seria uma forma de minimizar um problema institucional,
que é a falta de recursos humanos. Porém, diante da análise dos documentos orientadores,
percebe-se que este não pode ser entendido como uma questão local. Os próprios documentos,
ao não diferenciar claramente as competências de psicólogos e assistentes sociais, nivelam as
profissões.
Retornemos às perguntas: “Qual a especificidade do trabalho do psicólogo no CRAS?
O que diferencia sua atuação da do assistente social?” A especificidade pode ser a perspectiva
(ou, o “olhar” – expressão utilizada pelas participantes) da Psicologia. Exceto isso, pode-se
afirmar que há certa igualdade nas profissões, quando se pensa na Política de Assistência
Social. É interessante apontar que, na instituição, ambas as categorias profissionais têm o
mesmo salário e recentemente passaram a atuar com a mesma carga horária (30 horas
semanais). Só este dado objetivo indica um nivelamento entre as profissões, que é confirmado
através do estudo mais aprofundado, como estamos realizando nesta pesquisa.
Letícia compara o atendimento prestado pela Assistência Social com o de outras
políticas públicas e instituições multiprofissionais. Quando se vai a um hospital, por exemplo,
o usuário que busca atendimento médico, é atendido pelo profissional competente e
responsável em dar os encaminhamentos à demanda apresentada – o médico. Já no CRAS, o
usuário, que busca o atendimento social, será atendido pelo técnico de referência, que poderá
ser assistente social, psicólogo ou pedagogo. Apesar de os serviços do SUAS serem
multiprofissionais tal como os de um hospital, todos os profissionais ocupantes de cargos de
ensino superior podem executar, de modo geral, as mesmas atividades e prestar o mesmo tipo
de atendimento. Pode-se refletir, a partir desta constatação: a Política de Assistência Social
prescinde de interdisciplinaridade nas equipes? Os usuários demandam situações aos
profissionais, e resolvê-las torna-se mais importante do que de fato “por quem” foi resolvido.
Em termos práticos, não importa, para o usuário, se foi o psicólogo, o assistente social ou
85
outro profissional que o atendeu. Seria mais profícuo, para este contexto, em vez de
interdisciplinaridade, pensar em transdisciplinaridade?
Outras questões importantes orientaram este trabalho: “O psicólogo se reconhece
como tal quando atua no contexto de Políticas Públicas, em especial na Assistência Social?
Que imagens de si são produzidas?”
As participantes demarcam diferenças entre psicólogos e assistentes sociais de forma
recorrente. Então, é possível que o profissional da Psicologia se veja como tal, contudo, em
conflito entre seu suposto objeto e contexto de atuação: a subjetividade é transposta para o
trabalho no CRAS, mas tem que ficar “pendurada na porta”. Além disso, a demanda de
trabalho exige que os profissionais assumam atividades, que não são entendidas como de sua
competência. Em situações como esta, se veem como “técnicos” ou “agentes da política” – se
sujeitam à instituição e à Política, com o intuito de suprir a necessidade do poder público. As
participantes ora se veem enquanto profissionais da sua área de formação, ora se veem
enquanto agentes da Política. Ora se veem empoderadas, ora se veem vulneráveis. Até certo
momento são psicólogas ou assistentes sociais, demarcam suas atribuições e posições, sabem
o que é ou não de sua competência. Há a tentativa de manter as diferenças e especificidades
de cada profissional. Mas, devido às demandas, estas acabam se diluindo. Os profissionais se
assujeitam, fazem o que têm que ser feito, indo além (ou aquém) de suas formações - “O
serviço tem que ser feito, independente de quem faz.”.
[...] acaba nem sendo o papel do psicólogo, o papel do assistente social... É você enquanto agente da
Política... Né... Que faz o trabalho do outro sem se questionar se o trabalho é do outro, porque tem que
ser feito... (Letícia)
Nery (2009) traz a perspectiva do servidor público enquanto executor de determinada
política pública, com a função social de garantir que os direitos sejam assegurados aos
cidadãos. É, pois, nesse sentido que as participantes se reconhecem como técnicas do SUAS,
tendo que lidar com as diversas demandas que chegam até o CRAS. Pode-se retomar aqui a
discussão proposta por Guirado (2010) sobre a importância de se considerar o lugar ocupado
pelo profissional na instituição, e a partir dele o entendimento e reconhecimento do serviço
que prestará. É a posição de “técnico” que é debutada e assumida pelas participantes, mesmo
que em determinados momentos haja resistência.
Enquanto agentes da Política, tanto psicólogas, quanto assistentes sociais,
consideraram ser importante a formação contínua e a busca por capacitação para o trabalho na
Assistência Social. Há o entendimento de que se não há busca pelo aprendizado, o
86
profissional não está capacitado para atuar conforme as normativas do SUAS. Isso vai ao
encontro do que é orientado pelos Conselhos:
A qualidade na atuação profissional implica na realização de educação permanente em Assistência
Social e destinação de recursos para a supervisão técnica permanente. A carga horária de trabalho deve
assegurar tempo e condições para o(a) profissional responder com qualidade as demandas de seu
trabalho, bem como reservar momentos para estudos e capacitação continuada no horário de trabalho,
além de garantir apoio ao(a) profissional para participação em cursos de especialização, mestrado ou
equivalentes, que visam a qualificação e aprimoramento profissional. (CFP & CFESS, 2007, pp. 44 -
45)
Ao mesmo tempo em que as participantes concordam sobre a importância desse
aprimoramento profissional, entendem-no como um risco, à medida que o conhecimento
possibilita um questionamento e uma proposta de revisão de práticas. Posicionam-se que, em
certas ocasiões, é mais prudente ficar no “feijão com o arroz do dia-a-dia”, a fim de evitar que
o conhecimento se torne um problema dentro do local de trabalho. O conhecimento que
parece ser valorizado por elas é o da Política de Assistência Social, em contradição às práticas
da “política”, que estariam relacionadas ao assistencialismo, ao “dar” e ao “suprir”,
negligenciando o desenvolvimento da autonomia e do empoderamento dos usuários.
Apesar de valorizarem a Política, colocam o assistencialismo como muito presente na
atuação. Defendem mudanças nas práticas, mas se sentem sem autonomia e poder para
promovê-las. E isso vai de encontro ao que preveem os Conselhos:
No que se refere à autonomia do trabalho, as condições objetivas de estruturação do espaço
institucional devem assegurar aos(às) profissionais o direito de realizar suas escolhas técnicas no
circuito da decisão democrática, garantir a sua liberdade para pesquisar, planejar, executar e avaliar o
processo de trabalho, permitir a realização de suas competências técnica e política nas dimensões do
trabalho coletivo e individual. (CFP & CFESS, 2007, p. 44)
Pelo trecho acima, entende-se que a autonomia do profissional estaria assegurada,
porém, no dia-a-dia isso não estaria acontecendo. As participantes se esbarram em vários
níveis de dificuldade, dentre elas, relação com as chefias, com equipe de trabalho e com a
politicagem, tornando-as caladas e apáticas. As profissionais vivenciam, assim, a
vulnerabilidade.
O Código de Ética do Psicólogo, em seus princípios fundamentais, prevê:
VII. O(a) psicólogo(a) considerará as relações de poder nos contextos em que atua e os impactos dessas
relações sobre as suas atividades profissionais, posicionando-se de forma crítica e em consonância com
os demais princípios deste Código. (CFP, 2005, p. 7)
87
As participantes consideram as relações de poder, mas não se posicionam de forma
crítica, pelas “forças externas”, ou níveis de dificuldade, em que esbarram. Como o
profissional, que se sente como um “boneco manipulado”, vai se posicionar criticamente?
Psicólogas e assistentes sociais se colocam tal como os usuários da Assistência Social:
vulneráveis, sem autonomia e desempoderados. O “eu singular” que se tornou o “nós
indiferenciado” pode também contemplar o usuário, já que estes e os profissionais passam a
estar identificados. Há uma homogeneização entre agentes da Política e clientela. E, diante
desta constatação e dos demais pontos aqui elencados, cabe mais uma reflexão: Qual a
efetividade do trabalho dos servidores que atuam no SUAS? E retoma-se a questão levantada
por Souza (2011): teriam os profissionais superado práticas que mantêm a posição excludente
dos usuários? As participantes não mensuram de fato o impacto de suas ações, e demonstram
terem dificuldades em reconhecer seus méritos. A falta de apropriação dos propósitos do
trabalho rebate, segundo Nery (2009), em um cotidiano demarcado por frágil resolutividade e
impacto para a população. Assim, a instituição que concretiza o direito do usuário, é ao
mesmo tempo a que limita o alcance dessa proposição.
Retomando, enfim, o problema de pesquisa: “Que imagens de si e da prática
profissional o psicólogo que atua em um CRAS configura, em seu discurso?” Pode-se afirmar
que, nesta pesquisa, as psicólogas configuram de si uma imagem de profissional vulnerável
tanto no que diz respeito à atuação e seu embasamento, quanto às relações institucionais
vivenciadas. Colocam-se como empoderadas em relação aos usuários até que estes
apresentem demandas para as quais as profissionais também não “dão conta”. A prática das
participantes, no discurso, se constroe frágil e mal delimitada, visto que não se mantêm, no
cotidiano de trabalho, especificidades para a Psicologia e as profissionais não conseguem
efetivamente marcar as diferenças em relação aos assistentes sociais. Rompem com práticas
clínicas, mas não com a perspectiva da subjetividade, assumida por várias teorias da
Psicologia, no contexto clínico. E talvez isso seja consequência do conflito entre legitimar e
desnaturalizar o fazer e o saber da Psicologia. Não autorizam que a subjetividade entre na sala
de atendimento, mas também não lhe permitem sair do ambiente. Assim, o lugar da
subjetividade, e, ao mesmo tempo, da Psicologia na Política de Assistência Social, é
“pendurada na porta”.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo nasceu a partir de angústias e dúvidas desta pesquisadora, psicóloga
que atuava em CRAS, a respeito de sua prática na Assistência Social. Muitas perguntas
nortearam esta pesquisa, e tantas outras surgiram no processo de sua construção. Considero
que os objetivos propostos foram alcançados, apesar de finalizar com a sensação de que muito
há a ser investigado nesse novo campo de atuação dos psicólogos. Não se pretendeu com esta
pesquisa fazer generalizações, o resultado que aqui se chegou refere-se a uma amostra restrita
de como os profissionais se posicionam em relação ao trabalho desenvolvido nos CRAS de
Curitiba/PR. Há que se demarcar também que o município pesquisado tem uma ampla rede de
serviços socioassistenciais. Todas as participantes atuam em uma mesma Regional
administrativa do município, e possivelmente se atuassem em outras regiões da cidade, os
resultados seriam diferentes (ou não).
Teve-se como objetivo geral, nesta pesquisa, analisar os modos de subjetivação no
discurso de psicólogos atuantes em Centros de Referência de Assistência Social, investigando
que imagens de si e da prática profissional são configuradas. Apesar de o foco ser
profissionais da Psicologia, as imagens de si e da prática profissional produzidas estendem-se
à categoria de assistentes sociais, a qual, como vimos, teve representantes no grupo de
reflexão. As diferenças sustentadas pelas participantes nos primeiros encontros diluíram-se em
seu decorrer: psicólogas e assistentes sociais não falaram por si ou por sua categoria
profissional, mas se colocaram juntas, como servidoras públicas ou agentes da Política.
Mesmo que se possa pensar em uma divisão de tarefas, psicólogo e assistente social, de modo
geral, executam as mesmas atividades, o que se pode diferenciar é a perspectiva de cada
profissional. O que parece unânime entre as participantes é que a concessão de benefícios
seria uma atribuição exclusiva do Serviço Social, porém, as psicólogas afirmam já ter
assumido tal atividade em algumas ocasiões.
Nos discursos analisados, pode-se concluir que psicólogas e assistentes sociais se
colocam nas mesmas posições: desempoderadas, vulneráveis e sem autonomia na atuação.
Tais características também são pertinentes aos usuários da Assistência Social: pessoas que
estão em situação de vulnerabilidade e risco social. O trabalho no SUAS objetiva a superação
dessas situações, por meio do desenvolvimento de potencialidades, para que se tornem, assim,
protagonistas de suas vidas. Percebe-se que as profissionais se sentem tal como os usuários.
Em vez de se posicionarem e promoverem mudanças, adaptam-se ao instituído. Em vez de
89
desenvolverem uma atuação pautada na autonomia, assujeitam-se às ordens instituídas (que
vão além das ordens das chefias, mas se referem num sentido mais amplo à ordenação do
discurso). Cabe, assim, questionar se a atuação tem atingido seus objetivos. Psicólogos e
assistentes sociais, que não se veem como protagonistas em seu trabalho, estariam de fato
atuando na superação das vulnerabilidades sociais e no fortalecimento de vínculos de sua
clientela? Como o processo de empoderar o usuário seria efetivado por um profissional que se
vê impotente?
Dentre os objetivos específicos pretendeu-se analisar como os psicólogos constroem,
em seus discursos da prática profissional, sua atuação no Sistema Único de Assistência Social
e identificar as contribuições da formação em Psicologia reconhecidas para a atuação neste
contexto. As psicólogas participantes da pesquisa assumem a subjetividade como objeto da
Psicologia e tentam transpô-la para o trabalho no CRAS, mesmo não conseguindo reconhecê-
la, em um contexto que não o clínico. E isso pode ser relacionado à formação acadêmica que
tiveram, “pobre” em Psicologia Social - a academia formou psicólogas clínicas. Pode-se
afirmar que as participantes não consideram que a graduação as preparou para a atuação nesta
Política Pública, por isso investiram em formação continuada e especializações. Inclusive, a
escolha (ou não escolha) pela área remete à imagem de si enquanto profissionais, que
começou a ser construída na graduação. Também está relacionada à representação social da
profissão, marcada pela ideia do profissional autônomo, que atua na clínica fazendo
atendimentos individualizados.
Tem-se que considerar que a Política de Assistência Social no Brasil é relativamente
nova – o SUAS completou 10 anos em 2015. É natural que os currículos do curso de
Psicologia estejam em fase de adaptação. Assim, embora a amostra desta pesquisa seja
limitada, confirmaram-se dados obtidos em outros estudos, o que exige sinalizar a
importância da revisão dos currículos, no sentido de articular teoria e prática, de preparar os
profissionais para atuação interdisciplinar e, sobretudo, de ratificar a posição da Psicologia
como ciência e profissão comprometida com questões sociais. Proceder apenas a revisão
curricular, contudo, não basta. É imprescindível que sejam provocadas discussões junto a
profissionais, estudantes, docentes e gestores de Políticas Públicas para sensibilização sobre o
tema e, principalmente, para que se redimensione a visão sobre a subjetividade, em contextos
outros que não o clínico e como algo que é produzido na relação entre o individual e o social.
Assim, a atuação da Psicologia na Assistência Social poderá se localizar e avançar.
90
As participantes diferenciam a “política” da “Política”, esforçam-se para seguir as
normativas do SUAS e realizam um trabalho pensando na superação de vulnerabilidades e no
empoderamento dos usuários. Consideram, porém, que fazem mais assistencialismo do que
Assistência Social de fato. Afirmam que nem sempre conseguem realizar o trabalho conforme
entendem que seja o correto. Justificam que isso acontece por divergências de pensamento de
colegas de trabalho ou chefias e/ou por questões políticas, e, dessa forma, o trabalho fica
“tolhido”: “Tô fazendo, mas tô patinando.”. A situação apresentada contradiz o que é previsto
pelos documentos orientadores: o abandono do assistencialismo. Parece não haver resistência,
mas sim assujeitamento dos profissionais, da população e das Políticas Públicas à “política”.
Também foram objetivos desta pesquisa delinear as imagens produzidas no discurso
dos assistentes sociais sobre a atuação dos psicólogos nos CRAS e evidenciar as interfaces
estabelecidas entre as duas categorias profissionais. Nos equipamentos em que atuam ambos,
psicólogos e assistentes sociais, as participantes conseguem desenvolver o trabalho em
conjunto, direcionando as demandas emocionais e materiais, respectivamente, aos
profissionais de competência. Na ausência do psicólogo, as assistentes sociais se colocam na
posição de suprir a falta deste profissional, procurando fazer a escuta do usuário, e enaltecem
a função da Psicologia: “Então, nossa, se a gente tivesse um psicólogo aqui, ele ia
conseguir...”. Ao mesmo tempo, contudo, veem como limitador o fato deste não poder fazer o
atendimento clínico neste ambiente. O psicólogo é enunciado, pelas assistentes sociais, como
um profissional importante para a equipe do CRAS, mais como um parceiro no
desenvolvimento de atividades e na realização de atendimentos, e menos como alguém que
ameaça o lugar do Serviço Social. As participantes colocam dificuldades na relação com
pedagogos e com educadores sociais, mas não com psicólogos – talvez por estarem frente a
estes profissionais, e não desejarem um embate. E, efetivamente, não houve embates entre as
categorias profissionais de psicólogos e assistentes sociais, pois, conforme mencionado,
colocaram-se juntos no processo de atuação e construção da Política de Assistência Social.
Algumas reflexões, para as quais ainda não temos resposta, surgiram a partir deste
trabalho. As participantes pressupõem diferentes condutas para psicólogos e assistentes
sociais nos atendimentos. Mas, será que de fato as lentes da Psicologia e do Serviço Social
divergem quando se está na prática da Política de Assistência Social? Seria a subjetividade
monopólio de trabalho do psicólogo? E a materialidade do assistente social? Como os
profissionais de diferentes formações, que têm pressupostos teórico-político diferentes,
atingem o mesmo objetivo proposto pela Política? Como os agentes da Política e usuários
91
visualizam o empoderamento e a superação das situações de vulnerabilidade social? Como
mensurar os resultados subjetivos do trabalho técnico no SUAS? A subjetividade tem mesmo
que ficar “pendurada na porta”? Tais questões dariam margem a novos estudos. Sendo assim,
este trabalho não se esgota. Pelo contrário, traz inspiração para continuidade e
aprofundamento dos delineamentos e alcances da Política de Assistência Social.
Enquanto pesquisadora e psicóloga do SUAS, encerrar a presente dissertação
representa uma ressignificação do papel da Psicologia nas Políticas Públicas, e, porque não,
também um alívio, ao vislumbrar novos olhares e possibilidades. Posso dizer que evolui
enquanto profissional na elaboração desta pesquisa, seguindo possivelmente o mesmo
caminho das participantes: comecei com expectativas de definir as particularidades e
especificidades da Psicologia, mas durante as análises passei a compreender a dimensão e a
responsabilidade de ser servidor público. Antes de ser psicólogo, assistente social, pedagogo
ou educador social, todos são agentes da Política, que estão em seus equipamentos para
“servir o público” e assegurar os direitos sociais dos cidadãos. A base para a atuação deve ser
sim as diretrizes do SUAS. As perspectivas diferenciadas, adotadas por cada profissão,
poderão, e devem, emergir na operacionalização dos serviços, programas e projetos. O
objetivo final, no entanto, será o mesmo para todos os profissionais.
Hoje me sinto mais empoderada e menos vulnerável, e espero que este trabalho possa
contribuir, assim como colaborou com minha formação e atuação, para reflexões de
profissionais, docentes e gestores da Assistência Social sobre as práticas nas Políticas
Públicas.
92
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99
8 APÊNDICES
8.1 Atividades realizadas no Grupo de Reflexão
Os encontros se desenvolveram da seguinte forma:
1º Encontro: O tema proposto ao grupo foi a chegada dos participantes no SUAS,
invocando as impressões deste momento de início de carreira profissional neste contexto.
Buscou-se promover uma discussão, a partir deste tema, sobre a questão da formação
profissional, pensando no trabalho que deve ou deveria ser realizado na área social. As
perguntas norteadoras deste encontro foram: 1) “Como foi o processo de chegada/ingresso no
CRAS?”, 2) “Qual o papel da graduação nesse ingresso na área social?” e 3) “Em quais
referências se baseia a atuação do psicólogo e do assistente social no CRAS?”. Foi proposta
uma atividade que teve a intenção de promover a reflexão sobre essas questões e iniciar a
discussão. Foi solicitado que os participantes resgatassem os sentimentos do seu primeiro dia
de trabalho no CRAS e representassem-nos através de um desenho. Quando todos
terminaram, os participantes compartilharam suas representações e sentimentos. Foram
lançadas as perguntas norteadoras do encontro com o intuito de fomentar a discussão.
2º Encontro: Foram trabalhados alguns conceitos que permeiam a atuação dos
técnicos no CRAS, a partir da noção que foi trazida por cada participante. A discussão foi em
torno das palavras “família”, “empoderamento”, “vulnerabilidade social”,
“interdisciplinaridade”, “Psicologia”, “Assistência Social”, entendendo que estas seriam
temas geradores da reflexão grupal. A pergunta norteadora foi: “O que você entende por
[...]?”. A atividade proposta para iniciar a discussão foi: cada participante recebeu uma folha
sulfite contendo uma das palavras acima descritas. O objetivo foi que cada um descrevesse
qual o entendimento daquela palavra. Todas as folhas passaram por todos os participantes.
Antes de repassar a folha, o participante dobrava o campo onde tinha escrito para que os
colegas não vissem o entendimento do outro sobre aquela palavra. Quando as folhas passaram
por todos e retornaram para os participantes de origem, cada um “abriu” a sua folha, leu em
voz alta a descrição dos conceitos e iniciou-se a discussão.
3º Encontro: Relacionou-se especificamente à prática profissional e à relação do
profissional com a equipe técnica, em especial entre o psicólogo e o assistente social. As
100
perguntas norteadoras deste encontro foram: 1) “O que fazem o psicólogo e o assistente social
em um CRAS?” e 2) “Qual a relação entre as atividades desenvolvidas pelo psicólogo e as
desenvolvidas pelo assistente social?”. Como atividade para promover a discussão sobre o
tema, os participantes foram divididos em dois grupos: o grupo dos psicólogos e o grupo dos
assistentes sociais. Cada grupo recebeu uma folha sulfite em branco e deveriam descrever as
atividades que a outra categoria profissional desenvolve. Ou seja, o grupo dos psicólogos
descreveu as atividades que os assistentes sociais executam, e vice-versa. A partir da atividade
buscou-se explorar qual o entendimento que os participantes têm do que seria sua
competência no CRAS, se há alguma especificidade na atuação, qual a intersecção entre as
profissões e a imagem que psicólogos tem dos assistentes sociais, e vice-versa.
4º Encontro: Tratou da construção da identidade profissional e qual a imagem
psicólogos e assistentes sociais fazem de si na atuação. As perguntas norteadoras deste
encontro foram: 1) “Que imagem você tem de si, enquanto psicólogo/assistente social?” e 2)
“Quais características o profissional deve ter para atuar em um CRAS?”. Foram
disponibilizadas revistas e materiais artísticos diversos e solicitado que os participantes
fizessem uma representação de sua imagem enquanto profissionais. A atividade teve a
intenção de propiciar a discussão sobre como os participantes têm construído a identidade
profissional na atuação em CRAS.
5º Encontro: Foi o último encontro, teve caráter conclusivo e avaliativo. Foi feito um
resgate dos temas trabalhados nos quatro encontros anteriores e a atividade realizada teve a
intenção de esclarecer alguns itens abordados previamente. Cada participante recebeu uma
folha sulfite contendo uma fala sua transcrita de encontros anteriores, seguida de uma
pergunta. Cada um recebeu uma folha com transcrição e pergunta diferentes. Quando todos
terminaram de responder por escrito, iniciou-se a discussão. Como finalização, foi solicitada
uma avaliação, por escrito, sobre o processo do Grupo de Reflexão.
101
8.2 Organograma da Fundação de Ação Social
Nos encontros do grupo de reflexão, as participantes citam e se referem às chefias a
que estão subordinadas. Assim, apresentamos um organograma parcial da Fundação de Ação
Social para melhor entendimento do leitor. Cabe ressaltar que este organograma é apenas um
esquema representativo, não é oficial e não se refere ao todo da instituição.
Figura 1. Organograma parcial da Fundação de Ação Social
A FAS é presidida por pessoa indicada pelo prefeito de Curitiba. Em geral, é a
primeira-dama quem assume este cargo. Esta nomeia nove supervisores regionais, que se
reportam diretamente à Presidência e às superintendências executiva e de planejamento. O
supervisor de regional responde por toda a administração dos serviços e equipamentos da FAS
de seu respectivo território. O supervisor nomeia dois gerentes, um para gerência dos serviços
de Proteção Social Básica (a que os CRAS estão referenciados) e um para a dos de Proteção
Social Especial (a que o CREAS está referenciado). Cada equipamento (aqui nos referimos a
CRAS e CREAS apenas) tem um coordenador, que é escolhido pelo supervisor, em conjunto
com o gerente. Os servidores destes equipamentos, neste organograma representados pelas
letras T (técnicos de ensino superior) e E (educadores sociais), respondem diretamente para o
coordenador do CRAS/ CREAS. Este, por sua vez, reporta-se ao gerente de PSB/PSE, que
está subordinado ao supervisor.
102
8.3 Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Nós, Amanda Carollo Ramos da Silva e Luciana Albanese Valore, pesquisadores da Universidade
Federal do Paraná, estamos convidando você, servidor público – trabalhador do SUAS - a participar de
um estudo intitulado “A identidade do psicólogo no Sistema Único de Assistência Social – Análise do
discurso de profissionais que atuam em Centros de Referência de Assistência Social”. Tal pesquisa se
faz relevante visto que a Política de Assistência Social tem oportunizado cada vez mais a inserção de
psicólogos neste campo de trabalho. Pretende-se, com ela, fomentar reflexões sobre a identidade do
psicólogo em contextos diversos dos usuais e discutir sobre a atuação e formação profissional do
psicólogo, de modo a subsidiar a construção da carreira de tais profissionais na Assistência Social,
além de promover discussões sobre as interfaces entre as atuações das categorias profissionais de
psicólogos e de assistentes sociais.
O objetivo geral desta pesquisa é analisar os modos de subjetivação no discurso de psicólogos atuantes
em Centros de Referência de Assistência Social, investigando os elementos que embasam a construção
da identidade e da prática profissional. Dentre os objetivos específicos, está analisar a percepção dos
assistentes sociais sobre a atuação dos psicólogos nos Centros de Referência de Assistência Social e as
interfaces entre as duas categorias profissionais.
a) Caso você participe da pesquisa, você deverá comparecer no Centro de Assessoria e Pesquisa
em Psicologia e Educação (CEAPPE) para participar das atividades do grupo focal, que
acontecerão em 5 encontros, de aproximadamente 2 horas cada.
b) Alguns dos riscos relacionados ao estudo pode ser o resgate de sentimentos e percepções sobre
si, enquanto profissional, o que poderá causar certo desconforto. Caso isso aconteça, você terá a
garantia de receber acompanhamento psicológico pelas pesquisadoras responsáveis nas
dependências do Centro de Assessoria e Pesquisa em Psicologia e Educação (CEAPPE-UFPR),
se assim o desejar.
c) Os benefícios esperados com essa pesquisa são: proporcionar reflexões sobre o exercício da
profissão, possibilitando a configuração de novas imagens sobre si, enquanto profissional,
traçando a continuidade de sua carreira. No entanto, nem sempre você será diretamente
beneficiado com o resultado da pesquisa, mas poderá contribuir para o avanço científico.
d) As pesquisadoras Amanda Carollo Ramos da Silva, psicóloga, e Luciana Albanese Valore,
psicóloga docente da UFPR, responsáveis por este estudo, poderão ser contatadas no endereço
Praça Santos Andrade, 50, sala 216, telefone: 3310-2644, das 9h às 17h, de segunda à sexta-feira
para esclarecer eventuais dúvidas que você possa ter e fornecer-lhe as informações que queira,
antes, durante ou depois de encerrado o estudo. Em outros dias e horários, poderão ser
contatadas através do celular 9859-7920 ou pelo e-mail amandacarollors@gmail.com.
Comitê de ética em Pesquisa do Setor de Ciências da Saúde da FUFPR
Rua Pe. Camargo, 280 – 2º andar – Alto da Glória – Curitiba-PR –CEP:80060-240
Tel (41)3360-7259 - e-mail: cometica.saude@ufpr.br
Rubricas: Participante da Pesquisa e /ou responsável legal_________ Pesquisador Responsável________
Orientador________Orientado_________
103
e) A sua participação neste estudo é voluntária e se você não quiser mais fazer parte da pesquisa
poderá desistir a qualquer momento e solicitar que lhe devolvam o termo de consentimento livre
e esclarecido assinado.
f) As informações relacionadas ao estudo poderão ser conhecidas pela orientadora e pela mestranda
colaboradora da pesquisa. No entanto, se qualquer informação for divulgada em relatório ou
publicação, isto será feito sob forma codificada, para que a sua identidade seja preservada e
mantida a confidencialidade. As atividades desenvolvidas no grupo de reflexão serão gravadas,
respeitando-se completamente o seu anonimato. Tão logo transcrita a entrevista e encerrada a
pesquisa o conteúdo será desgravado ou destruído.
g) As despesas necessárias para a realização da pesquisa não são de sua responsabilidade, exceto
pelas despesas relativas ao seu deslocamento até o CEAPPE. Pela sua participação no estudo
você não receberá qualquer valor em dinheiro. Se considerar que a participação no estudo
acarretou algum tipo de desconforto ou desordem psicológica, você terá a garantia de receber
acompanhamento psicológico, sem custos, pelas pesquisadoras responsáveis, nas dependências
do Centro de Assessoria e Pesquisa em Psicologia e Educação (CEAPPE-UFPR).
h) Quando os resultados forem publicados, não aparecerá seu nome, e sim um código.
Eu, _____________________________________________________________, li esse termo
de consentimento e compreendi a natureza e objetivo do estudo do qual concordei em participar. A
explicação que recebi menciona os riscos e benefícios. Eu entendi que sou livre para interromper
minha participação a qualquer momento sem justificar minha decisão e sem que esta decisão sem
qualquer prejuízo para mim. Fui informado que serei atendido sem custos para mim se eu apresentar
algum problema, conforme relacionado no item “g”.
Eu concordo voluntariamente em participar deste estudo.
_________________________________
Assinatura do participante de pesquisa
Curitiba, ____/____/_____
_________________________________
Assinatura do Pesquisador
Comitê de ética em Pesquisa do Setor de Ciências da Saúde da FUFPR
Rua Pe. Camargo, 280 – 2º andar – Alto da Glória – Curitiba-PR –CEP:80060-240
Tel (41)3360-7259 - e-mail: cometica.saude@ufpr.br
Rubricas: Participante da Pesquisa e /ou responsável legal_________ Pesquisador Responsável________
Orientador________Orientado_________