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AS AES AFIRMATIVAS E OSPROCESSOS DE PROMOO DA IGUALDADE EFETIVA
JOAQUIM BENEDITO BARBOSA GOMESFERNANDA DUARTE LOPES LUCAS DA SILVA
Srie Cadernos do CEJ, 2486
N os ltimos tempos, tm sidopropostos, no CongressoNacional, diversos projetos delei visando introduo, no Direito bra-sileiro, de algumas modalidades de
ao afirmativa. Esses projetos, apre-
sentados por parlamentares das mais
diversas tendncias ideolgicas,2 em
geral buscam mitigar a flagrante desi-gualdade brasileira atacando-a naquilo
que para muitos constitui a sua causa
primordial, isto , o nosso segregador
sistema educacional, que tradicional-
mente, por diversos mecanismos, sem-pre reservou aos negros e pobres em
geral uma educao de inferior quali-
dade, dedicando o essencial dos recur-
sos materiais, humanos e financeiros
voltados educao de todos os bra-sileiros, a um pequeno contingente da
populao que detm a hegemonia po-
ltica, econmica e social no Pas, isto
, a elite branca. Outros projetos, con-
cebidos no louvvel af de tentar re-mediar os aspectos mais visveis e po-
liticamente incmodos da nossa triste
iniqidade, tentam combater a desi-
gualdade e a discriminao em seto-
res especficos da atividade produtiva,instituindo cotas fixas para negros nes-
se ou naquele setor da vida scio-eco-
nmica.
Esses projetos, como se sabe, vi-
sam a instituir medidas compensat-rias destinadas a promover a implemen-
tao do princpio constitucional da
igualdade em prol da comunidade ne-
gra brasileira.
O tema de transcendental im-portncia para o Brasil e para o Direito
brasileiro, por dois motivos. Primeiro,
por ter incidncia direta sobre aquele
que seguramente o mais grave de
todos os nossos problemas sociais (oqual, curiosamente, todos fingimos ig-
norar), o que est na raiz das nossas
mazelas, do nosso gritante e enver-
gonhador quadro social ou seja, os
diversos mecanismos pelos quais, aolongo da nossa histria, a sociedade
brasileira logrou proceder, atravs das
mais variadas formas de discriminao,
excluso e ao alijamento dos negros
do processo produtivo conseqente eda vida social digna. Em segundo lu-
gar, por abordar um tema nobre de Di-
reito Constitucional Comparado3 e de
Direito Internacional, mas que , curio-
samente, negligenciado pelas letras ju-rdicas nacionais, especialmente no
mbito do Direito Constitucional.
Assim, neste despretensioso ensaio
tentaremos examinar (ainda que sem a
reflexo de longue haleine que o temarequer) a possibilidade jurdica de intro-
duo, no nosso sistema jurdico, de
mecanismos de integrao social larga-
mente adotados nos Estados Unidos sob
a denominao de affirmative action(ao afirmativa) e na Europa, sob o
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nome de discrimination positive (discri-
minao positiva) e de action positive
(ao positiva).
Trata-se, com efeito, de tema qua-se desconhecido4 entre ns, tanto em
sua concepo quanto nas suas mlti-
plas formas de implementao. Da a
necessidade, de nossa parte, de algu-
mas consideraes acerca da sua gne-se, dos objetivos almejados, da proble-
mtica constitucional por ele suscitada,
das modalidades de programas e dos
critrios e condies indispensveis a
sua compatibilizao com os princpiosconstitucionais.
1 AO AFIRMATIVA E PRINCPIO DA
IGUALDADE
A noo de igualdade, como cate-
goria jurdica de primeira grandeza, teve
sua emergncia como princpio jurdico
incontornvel nos documentos constitu-cionais promulgados imediatamente
aps as revolues do final do sculo
XVIII. Com efeito, foi a partir das experi-
ncias revolucionrias pioneiras dos EUA
e da Frana que se edificou o conceitode igualdade perante a lei, uma cons-
truo jurdico-formal segundo a qual a
lei, genrica e abstrata, deve ser igual
para todos, sem qualquer distino ou
privilgio, devendo o aplicador faz-laincidir de forma neutra sobre as situa-
es jurdicas concretas e sobre os con-
flitos interindividuais. Concebida para o
fim especfico de abolir os privilgios t-
picos do ancien rgime e para dar cabos distines e discriminaes baseadas
na linhagem, no rang, na rgida e imu-
tvel hierarquizao social por classes
(classement par ordre), essa clssica con-
cepo de igualdade jurdica, meramenteformal, firmou-se como idia-chave do
constitucionalismo que floresceu no s-
culo XIX e prosseguiu sua trajetria
triunfante por boa parte do sculo XX.
Por definio, conforme bem assinala-do por Guilherme Machado Dray, o prin-
cpio da igualdade perante a lei consis-
tiria na simples criao de um espao
neutro, onde as virtudes e as capacida-
des dos indivduos livremente se pode-riam desenvolver. Os privilgios, em
sentido inverso, representavam nesta
perspectiva a criao pelo homem de
espaos e de zonas delimitadas, sus-
ceptveis de criarem desigualdades ar-tificiais e nessa medida intolerveis.5
Em suma, segundo esse conceito de
igualdade que veio a dar sustentao
jurdica ao Estado liberal burgus, a lei
deve ser igual para todos, sem distin-es de qualquer espcie.
Abstrata por natureza e levada a
extremos por fora do postulado da
neutralidade estatal (uma outra noo
cara ao iderio liberal), o princpio daigualdade perante a lei foi tido, durante
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muito tempo, como a garantia da
concretizao da liberdade. Para os pen-
sadores e tericos da escola liberal, bas-
taria a simples incluso da igualdadeno rol dos direitos fundamentais para
se ter esta como efetivamente assegu-
rada no sistema constitucional.
A experincia e os estudos de di-
reito e poltica comparada, contudo, tmdemonstrado que, tal como construda,
luz da cartilha liberal oitocentista, a
igualdade jurdica no passa de mera
fico. Paulatinamente, porm, susten-
ta o jurista portugus Guilherme Macha-do Dray, a concepo de uma igualda-
de puramente formal, assente no prin-
cpio geral da igualdade perante a lei,
comeou a ser questionada, quando se
constatou que a igualdade de direitosno era, por si s, suficiente para tor-
nar acessveis a quem era socialmente
desfavorecido as oportunidades de que
gozavam os indivduos socialmente pri-
vilegiados. Importaria, pois, colocar osprimeiros ao mesmo nvel de partida.
Em vez de igualdade de oportunidades,
importava falar em igualdade de condi-
es. Imperiosa, portanto, seria a ado-
o de uma concepo substancial daigualdade, que levasse em conta em sua
operacionalizao no apenas certas
condies fticas e econmicas, mas
tambm certos comportamentos inevi-
tveis da convivncia humana, como o caso da discriminao. Assim, assi-
nala a ilustre Professora de Minas Ge-
rais, Carmen Lucia Antunes Rocha, con-
cluiu-se, ento, que proibir a discrimi-
nao no era bastante para se ter aefetividade do princpio da igualdade
jurdica. O que naquele modelo se ti-
nha e se tem to-somente o princpio
da vedao da desigualdade, ou da
invalidade do comportamento motiva-do por preconceito manifesto ou com-
provado (ou comprovvel), o que no
pode ser considerado o mesmo que
garantir a igualdade jurdica.6
Como se v, em lugar da concep-o esttica da igualdade extrada das
revolues francesa e americana, cui-
da-se nos dias atuais de se consolidar
a noo de igualdade material ou subs-
tancial, que, longe de se apegar aoformalismo e abstrao da concep-
o igualitria do pensamento liberal
oitocentista, recomenda, inversamente,
uma noo dinmica, militante de
igualdade, na qual necessariamente sodevidamente pesadas e avaliadas as de-
sigualdades concretas existentes na so-
ciedade, de sorte que as situaes de-
siguais sejam tratadas de maneira
dessemelhante, evitando-se assim oaprofundamento e a perpetuao de
desigualdades engendradas pela pr-
pria sociedade. Produto do Estado So-
cial de Direito, a igualdade substancial
ou material propugna redobrada aten-o por parte do legislador e dos
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aplicadores do Direito variedade das
situaes individuais e de grupo, de
modo a impedir que o dogma liberal
da igualdade formal impea ou dificul-te a proteo e a defesa dos interesses
das pessoas socialmente fragilizadas e
desfavorecidas.
Da transio da ultrapassada noo
de igualdade esttica ou formal aonovo conceito de igualdade substanci-
al surge a idia de igualdade de opor-
tunidades, noo justificadora de diver-
sos experimentos constitucionais pauta-
dos na necessidade de se extinguir oude pelo menos mitigar o peso das desi-
gualdades econmicas e sociais e, con-
seqentemente, de promover a justia
social.
Dessa nova viso resultou osurgimento, em diversos ordenamentos
jurdicos nacionais e na esfera do Direi-
to Internacional dos Direitos Humanos,7
de polticas sociais de apoio e de pro-
moo de determinados grupos social-mente fragilizados. Vale dizer, da con-
cepo liberal de igualdade que capta o
ser humano em sua conformao abs-
trata, genrica, o Direito passa a perceb-
lo e a trat-lo em sua especificidade,como ser dotado de caractersticas
singularizantes. No dizer de Flvia
Piovesan, do ente abstrato, genrico,
destitudo de cor, sexo, idade, classe so-
cial, dentre outros critrios, emerge osujeito de direito concreto, historicamente
situado, com especificidades e particu-
laridades. Da apontar-se no mais ao
indivduo genrica e abstratamente con-
siderado, mas ao indivduo especifica-do, considerando-se categorizaes re-
lativas ao gnero, idade, etnia, raa, etc.8
O indivduo especificado, portanto, ser
o alvo dessas novas polticas sociais.
A essas polticas sociais, que nadamais so do que tentativas de concre-
tizao da igualdade substancial ou ma-
terial, d-se a denominao de ao afir-
mativa ou, na terminologia do Direito
europeu, de discriminao positiva ouao positiva.
A consagrao normativa dessas
polticas sociais representa, pois, um
momento de ruptura na evoluo do
Estado moderno. Com efeito, comobem assinala a Professora Carmen L-
cia Antunes Rocha, em nenhum Esta-
do Democrtico, at a dcada de 60,
e em quase nenhum at esta ltima
dcada do sculo XX se cuidou de pro-mover a igualao e vencerem-se os
preconceitos por comportamentos es-
tatais e particulares obrigatrios pelos
quais se superassem todas as formas
de desigualao injusta. Os negros, ospobres, os marginalizados pela raa,
pelo sexo, por opo religiosa, por con-
dies econmicas inferiores, por de-
ficincias fsicas ou psquicas, por ida-
de, etc., continuam em estado de de-salento jurdico em grande parte do
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mundo. Inobstante a garantia consti-
tucional da dignidade humana igual
para todos, da liberdade igual para to-
dos, no so poucos os homens emulheres que continuam sem ter aces-
so s iguais oportunidades mnimas de
trabalho, de participao poltica, de
cidadania criativa e comprometida,
deixados que so margem da convi-vncia social, da experincia democr-
tica na sociedade poltica. Assim, nes-
sa nova postura o Estado abandona a
sua tradicional posio de neutralida-
de e de mero espectador dos embatesque se travam no campo da convivn-
cia entre os homens e passa a atuar
ativamente na busca da concretizao
da igualdade positivada nos textos
constitucionais.O Pas pioneiro na adoo das po-
lticas sociais denominadas aes afir-
mativas foram, como sabido, os Es-
tados Unidos da Amrica. Tais polticas
foram concebidas inicialmente comomecanismos tendentes a solucionar
aquilo que um clebre autor escan-
dinavo qualificou de o dilema ameri-
cano: a marginalizao social e eco-
nmica do negro na sociedade ameri-cana. Posteriormente, elas foram esten-
didas s mulheres, a outras minorias
tnicas e nacionais, aos ndios e aos de-
ficientes fsicos.
As aes afirmativas se definemcomo polticas pblicas (e privadas) vol-
tadas concretizao do princpio
constitucional da igualdade material e
neutralizao dos efeitos da discri-
minao racial, de gnero, de idade,de origem nacional e de compleio
fsica. Na sua compreenso, a igualda-
de deixa de ser simplesmente um prin-
cpio jurdico a ser respeitado por to-
dos, e passa a ser um objetivo consti-tucional a ser alcanado pelo Estado e
pela sociedade. (Il semble clair que les
discriminations positives invitent
penser lgalit comme un objectif
atteindre en so. Le simple constat quenos socits gnrent encore de
nombreuses ingalits de traitement
devrait ds lors inciter les pouvoirs
publics comme les acteurs privs
adopter et mettre en oeuvre desmesures susceptibles de crer ou de
mener plus dgalit).9
Impostas ou sugeridas pelo Es-
tado, por seus entes vinculados e at
mesmo por entidades puramente pri-vadas, elas visam a combater no so-
mente as manifestaes flagrantes de
discriminao, mas tambm a discri-
minao de fato, de fundo cultural, es-
trutural, enraizada na sociedade. Decunho pedaggico e no raramente
impregnadas de um carter de
exemplaridade, tm como meta, tam-
bm, o engendramento de transfor-
maes culturais e sociais relevantes,aptas a inculcar nos atores sociais a
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utilidade e a necessidade da obser-
vncia dos princpios do pluralismo e
da diversidade nas mais diversas es-
feras do convvio humano. Por outrolado, constituem, por assim dizer, a
mais eloqente manifestao da mo-
derna idia de Estado promovente,
atuante, eis que de sua concepo,
implantao e delimitao jurdica par-ticipam todos os rgos estatais es-
senciais, a se incluindo o Poder Judi-
cirio, que ora se apresenta no seu tra-
dicional papel de guardio da integri-
dade do sistema jurdico como umtodo e especialmente dos direitos fun-
damentais , ora como inst i tu io
formuladora de polticas tendentes a
corrigir as distores provocadas pela
discriminao. Trata-se, em suma, deum mecanismo sociojurdico destina-
do a viabilizar primordialmente a har-
monia e a paz social, que so seria-
mente perturbadas quando um grupo
social expressivo se v margem doprocesso produtivo e dos benefcios
do progresso, bem como a robuste-
cer o prprio desenvolvimento econ-
mico do pas, na medida em que a
universa-lizao do acesso educaoe ao mercado de trabalho tem como
conseqncia inexorvel o crescimen-
to macroeconmico, a ampliao ge-
neralizada dos negcios, numa pala-
vra, o crescimento do pas como umtodo. Nesse sentido, no se deve per-
der de vista o fato de que a histria
universal no registra, na era contem-
pornea, nenhum exemplo de nao
que tenha se erguido de uma condi-o perifrica de potncia econmi-
ca e poltica, digna de respeito na cena
poltica internacional, mantendo no
plano domstico uma poltica de ex-
cluso, aberta ou dissimulada, legal oumeramente informal, em relao a uma
parcela expressiva de seu povo.
As aes afirmativas constituem,
pois, um remdio de razovel eficcia
para esses males. indispensvel, po-rm, uma ampla conscientizao da
prpria sociedade e das lideranas po-
lticas de maior expresso acerca da
absoluta necessidade de se eliminar
ou de se reduzir as desigualdades so-ciais que operam em detrimento das
minorias, notadamente as minorias ra-
ciais.10 E mais: preciso uma ampla
conscientizao sobre o fato de que a
marginalizao scio-econmico a queso relegadas as minorias, especial-
mente as raciais, resulta de um nico
fenmeno: a discriminao.
Com efeito, a discriminao,
como um componente indissocivel dorelacionamento entre os seres huma-
nos, reveste-se inegavelmente de uma
roupagem competitiva. Afinal, discri-
minar nada mais do que uma tenta-
tiva de se reduzirem as perspectivasde uns em benefcio de outros.11 Quan-
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to mais intensa a discriminao e mais
poderosos os mecanismos inerciais
que impedem o seu combate, mais
ampla se mostra a clivagem entrediscriminador e discriminado. Da re-
sulta, inevitavelmente, que aos esfor-
os de uns em prol da concretizao
da igualdade se contraponham os in-
teresses de outros na manuteno dostatus quo. curial, pois, que as aes
afirmativas, mecanismo jurdico con-
cebido com vistas a quebrar essa di-
nmica perversa, sofram o influxo des-
sas foras contrapostas e atraiam con-sidervel resistncia, sobretudo da
parte daqueles que historicamente se
beneficiaram da excluso dos grupos
socialmente fragilizados.
Ao Estado cabe, assim, a opoentre duas posturas distintas: manter-
se firme na posio de neutralidade, e
permitir a total subjugao dos grupos
sociais desprovidos de voz, de fora po-
ltica, de meios de fazer valer os seusdireitos; ou, ao contrrio, atuar ativa-
mente no sentido da mitigao das de-
sigualdades sociais que, como de to-
dos sabido, tm como pblico-alvo pre-
cisamente as minorias raciais, tnicas,sexuais e nacionais.
Com efeito, a sociedade liberal-
capitalista ocidental tem como uma de
suas idias-chave a noo de neutrali-
dade estatal, que se expressa de diver-sas maneiras: neutralidade em matria
econmica, no domnio espiritual e na
esfera ntima das pessoas. Na maioria
das naes pluritnicas e pluricon-
fessionais, o abstencionismo estatal setraduz na crena de que a mera intro-
duo, nos respectivos textos consti-
tucionais, de princpios e regras
asseguradoras de uma igualdade for-
mal perante a lei, seria suficiente paragarantir a existncia de sociedades
harmnicas, onde seria assegurada a
todos, independentemente de raa,
credo, gnero ou origem nacional, efe-
t iva igualdade de acesso ao quecomumente se tem como conducente
ao bem-estar individual e coletivo. Esta
era, como j dito, a viso liberal deri-
vada das idias iluministas que con-
duziram s revolues polticas do s-culo XVIII.
Mas essa suposta neutralidade es-
tatal tem-se revelado um formidvel fra-
casso, especialmente nas sociedades que
durante muitos sculos mantiveram cer-tos grupos ou categorias de pessoas em
posio de subjugao legal, de inferio-
ridade legitimada pela lei, em suma, em
pases com longo passado de escravi-
do. Nesses pases, apesar da existnciade inumerveis disposies normativas
constitucionais e legais, muitas delas ins-
titudas com o objetivo explcito de fazer
cessar o status de inferioridade em que
se encontravam os grupos sociais histo-ricamente discriminados, passaram-se
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os anos (e sculos) e a situao desses
grupos marginalizados pouco ou quase
nada mudou.12
Tal estado de coisas conduz aduas constataes indisputveis. Em
primeiro lugar, convico de que pro-
clamaes jurdicas por si ss, sejam
elas de natureza constitucional ou de
inferior posicionamento na hierarquianormativa, no so suficientes para re-
verter um quadro social que finca n-
coras na tradio cultural de cada pas,
no imaginrio coletivo, em suma, na
percepo generalizada de que a unsdevem ser reservados papis de fran-
ca dominao e a outros, papis
indicativos do status de inferioridade,
de subordinao. Em segundo lugar,
ao reconhecimento de que a reversode um tal quadro s vivel mediante
a renncia do Estado a sua histrica
neutralidade em questes sociais, de-
vendo assumir, ao revs, uma posio
ativa, at mesmo radical se vista luzdos princpios norteadores da socieda-
de liberal clssica.
Desse imperativo de atuao ativa
do Estado nasceram as aes afirmati-
vas, concebidas inicialmente nos Esta-dos Unidos da Amrica, mas hoje j
adotadas em diversos pases europeus,
asiticos e africanos, com as adaptaes
necessrias situao de cada pas.13 14
15 O Brasil, pas com a mais longa hist-ria de escravido das Amricas e com
uma inabalvel tradio patriarcal, mal
comea a admitir, pelo menos em nvel
acadmico, a discusso do tema.16
2 DEFINIO E OBJETIVOS DAS AES
AFIRMATIVAS
A introduo das polticas de aoafirmativa, criao pioneira do Direito dos
EUA, representou, em essncia, a mu-
dana de postura do Estado, que em
nome de uma suposta neutralidade, apli-
cava suas polticas governamentais in-distintamente, ignorando a importncia
de fatores como sexo, raa, cor, origem
nacional. Nessa nova postura, passa o
Estado a levar em conta tais fatores no
momento de contratar seus funcionri-os ou de regular a contratao por ou-
trem, ou ainda no momento de regular
o acesso aos estabelecimentos educaci-
onais pblicos e privados. Numa pala-
vra, ao invs de conceber polticas p-blicas de que todos seriam beneficirios,
independentemente da sua raa, cor ou
sexo, o Estado passa a levar em conta
esses fatores na implementao das suas
decises, no para prejudicar quem querque seja, mas para evitar que a discrimi-
nao, que inegavelmente tem um fun-
do histrico e cultural, e no raro se sub-
trai ao enquadramento nas categorias
jurdicas clssicas, finde por perpetuaras iniqidades sociais.
Srie Cadernos do CEJ, 2494
2.1 Definio Inicialmente, as
aes afirmativas se definiam como um
mero encorajamento por parte do Es-
tado a que as pessoas com poderdecisrio nas reas pblica e privada le-
vassem em considerao, nas suas de-
cises relativas a temas sensveis como
o acesso educao e ao mercado de
trabalho, fatores at ento tidos comoformalmente irrelevantes pela grande
maioria dos responsveis polticos e
empresariais, quais sejam, a raa, a cor,
o sexo e a origem nacional das pesso-
as. Tal encorajamento tinha por meta,tanto quanto possvel, ver concretizado
o ideal de que tanto as escolas quanto
as empresas refletissem em sua com-
posio a representao de cada grupo
na sociedade ou no respectivo mercadode trabalho.
Num segundo momento, talvez em
decorrncia da constatao da ineficcia
dos procedimentos clssicos de comba-
te discriminao, deu-se incio a umprocesso de alterao conceitual do ins-
tituto, que passou a ser associado idia,
mais ousada, de realizao da igualdade
de oportunidades atravs da imposio
de cotas rgidas de acesso de represen-tantes de minorias a determinados seto-
res do mercado de trabalho e a institui-
es educacionais. Data tambm desse
perodo a vinculao entre ao afirmati-
va e o atingimento de certas metas esta-tsticas concernentes presena de ne-
gros e mulheres num determinado setor
do mercado de trabalho ou numa deter-
minada instituio de ensino.17
Atualmente, as aes afirmativaspodem ser definidas como um conjunto
de polticas pblicas e privadas de car-
ter compulsrio, facultativo ou volunt-
rio, concebidas com vistas ao combate
discriminao racial, de gnero, pordeficincia fisica e de origem nacional,
bem como para corrigir ou mitigar os
efeitos presentes da discriminao pra-
ticada no passado, tendo por objetivo a
concretizao do ideal de efetiva igual-dade de acesso a bens fundamentais
como a educao e o emprego. Diferen-
temente das polticas governamentais
antidiscriminatrias baseadas em leis de
contedo meramente proibitivo, que sesingularizam por oferecerem s respec-
tivas vtimas to-somente instrumentos
jurdicos de carter reparatrio e de in-
terveno ex post facto, as aes afir-
mativas tm natureza multifacetria18, evisam a evitar que a discriminao se
verifique nas formas usualmente conhe-
cidas isto , formalmente, por meio de
normas de aplicao geral ou especfi-
ca, ou atravs de mecanismos informais,difusos, estruturais, enraizados nas pr-
ticas culturais e no imaginrio coletivo.
Em sntese, trata-se de polticas e de
mecanismos de incluso concebidos
por entidades pblicas, privadas e porrgos dotados de competncia
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jurisdicional, com vistas concretizao
de um objetivo constitucional universal-
mente reconhecido o da efetiva igual-
dade de oportunidades a que todos osseres humanos tm direito.
Entre os tericos do Direito Pblico
no Brasil, coube ilustre professora Car-
men Lcia Antunes Rocha o desafio de
traduzir para a comunidade jurdica bra-sileira, em sublime artigo, a mais com-
pleta noo acerca do enquadramento
jurdico-doutrinrio das aes afirmati-
vas. Classificando-as corretamente como
a mais avanada tentativa de concre-tizao do princpio jurdico da igualda-
de, ela afirma com propriedade que a
definio jurdica objetiva e racional da
desigualdade dos desiguais, histrica e
culturalmente discriminados, concebi-da como uma forma para se promover
a igualdade daqueles que foram e so
marginalizados por preconceitos
encravados na cultura dominante na so-
ciedade. Por esta desigualao positivapromove-se a igualao jurdica efetiva;
por ela afirma-se uma frmula jurdica
para se provocar uma efetiva igualao
social, poltica, econmica no e segun-
do o Direito, tal como assegurado for-mal e materialmente no sistema consti-
tucional democrtico. A ao afirmativa
, ento, uma forma jurdica para se su-
perar o isolamento ou a diminuio so-
cial a que se acham sujeitas as minori-as.19 Essa engenhosa criao jurdico-
poltico-social refletiria ainda, segundo
a autora, uma mudana compor-
tamental dos juzes constitucionais de
todo o mundo democrtico do ps-guer-ra, que teriam se conscientizado da ne-
cessidade de uma transformao na
forma de se conceberem e aplicarem os
direitos, especialmente aqueles listados
entre os fundamentais. No bastavam asletras formalizadoras das garantias pro-
metidas; era imprescindvel instrumen-
talizarem-se as promessas garantidas
por uma atuao exigvel do Estado e
da sociedade. Na esteira desse pensa-mento, pois, que a ao afirmativa
emergiu como a face construtiva e cons-
trutora do novo contedo a ser buscado
no princpio da igualdade jurdica. O Di-
reito Constitucional, posto em aberto,mutante e mutvel para se fazer perma-
nentemente adequado s demandas
sociais, no podia persistir no conceito
esttico de um direito de igualdade pron-
to, realizado segundo parmetros hist-ricos eventualmente ultrapassados. E
prossegue a ilustre autora: O conte-
do, de origem bblica, de tratar igualmen-
te os iguais e desigualmente os desiguais
na medida em que se desigualam sem-pre lembrado como sendo a essncia do
princpio da igualdade jurdica encon-
trou uma nova interpretao no acolhi-
mento jurisprudencial concernente
ao afirmativa. Segundo essa nova in-terpretao, a desigualdade que se pre-
Srie Cadernos do CEJ, 2496
tende e se necessita impedir para se re-
alizar a igualdade no Direito no pode
ser extrada, ou cogitada, apenas no mo-
mento em que se tomam as pessoaspostas em dada situao submetida ao
Direito, seno que se deve atentar para
a igualdade jurdica a partir da conside-
rao de toda a dinmica histrica da
sociedade, para que se focalize e se re-trate no apenas um instante da vida
social, aprisionada estaticamente e
desvinculada da realidade histrica de
determinado grupo social. H que se
ampliar o foco da vida poltica em suadinmica, cobrindo espao histrico que
se reflita ainda no presente, provocan-
do agora desigualdades nascentes de
preconceitos passados, e no de todo
extintos. A discriminao de ontem podeainda tingir a pele que se v de cor di-
versa da que predomina entre os que
detm direitos e poderes hoje.
2.2 Objetivos das aes afirmati-
vas Em regra geral, justifica-se a ado-
o das medidas de ao afirmativa com
o argumento de que esse tipo de polti-
ca social seria apta a atingir uma sriede objetivos que restariam normalmen-
te inalcanados caso a estratgia de
combate discriminao se limitasse
adoo, no campo normativo, de regras
meramente proibitivas de discrimina-o. Numa palavra, no basta proibir,
preciso tambm promover, tornando ro-
tineira a observncia dos princpios da
diversidade e do pluralismo, de tal sor-
te que se opere uma transformao nocomportamento e na mentalidade co-
letiva, que so, como se sabe, molda-
dos pela tradio, pelos costumes, em
suma, pela histria.
Assim, alm do ideal de concre-tizao da igualdade de oportunidades,
figuraria entre os objetivos almejados
com as polticas afirmativas o de indu-
zir transformaes de ordem cultural,
pedaggica e psicolgica, aptas a sub-trair do imaginrio coletivo a idia de
supremacia e de subordinao de uma
raa em relao outra, do homem em
relao mulher. O elemento propul-
sor dessas transformaes seria, assim,o carter de exemplaridade de que se
revestem certas modalidades de ao
afirmativa, cuja eficcia como agente de
transformao social poucos at hoje
ousaram negar. Ou seja, de um lado es-sas polticas simbolizariam o reconhe-
cimento oficial da persistncia e da pe-
renidade das prticas discriminatrias
e da necessidade de sua eliminao. De
outro, elas teriam tambm por metaatingir objetivos de natureza cultural, eis
que delas inevitavelmente resultam a
trivializao, a banalizao, na polis, da
necessidade e da utilidade de polticas
pblicas voltadas implantao dopluralismo e da diversidade.
Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 97
Por outro lado, as aes afirmati-
vas tm corno objetivo no apenas coi-
bir a discriminao do presente, mas
sobretudo eliminar os efeitos persis-tentes (psicolgicos, culturais e
comportamentais) da discriminao do
passado, que tendem a se perpetuar.
Esses efeitos se revelam na chamada
discriminao estrutural espelhadanas abismais desigualdades sociais
entre grupos dominantes e grupos
marginalizados.20
Figura tambm como meta das
aes afirmativas a implantao de umacerta diversidade e de uma maior
representatividade dos grupos
minoritrios nos mais diversos domni-
os de atividade pblica e privada.21 Par-
tindo da premissa de que tais gruposnormalmente no so representados em
certas reas ou so sub-representados
seja em posies de mando e prestgio
no mercado de trabalho e nas ativida-
des estatais, seja nas instituies de for-mao que abrem as portas ao sucesso
e s realizaes individuais, as polticas
afirmativas cumprem o importante pa-
pel de cobrir essas lacunas, fazendo com
que a ocupao das posies do Estadoe do mercado de trabalho se faa, na
medida do possvel, em maior harmo-
nia com o carter plrimo da sociedade.
Nesse sentido, o efeito mais visvel des-
sas polticas, alm do estabelecimentoda diversidade e representatividade pro-
priamente ditas, o de eliminar as bar-
reiras artificiais e invisveis que
emperram o avano de negros e mulhe-
res, independentemente da existncia ouno de poltica oficial tendente a
subalterniz-los.22
Argumenta-se igualmente que o
pluralismo que se instaura em decorrn-
cia das aes afirmativas traria inegveisbeneficios para os prprios pases que
se definem como multirraciais e que as-
sistem, a cada dia, ao incremento do fe-
nmeno do multicultura-lismo. Para es-
ses pases, constituiria um erro estrat-gico inadmissvel deixar de oferecer
oportunidades efetivas de educao e de
trabalho a certos segmentos da popula-
o, pois isto pode revelar-se, em m-
dio prazo, altamente prejudicial competitividade e produtividade eco-
nmica do Pas. Portanto, agir afirmati-
vamente seria tambm uma forma de
zelar pela pujana econmica do Pas.
Por fim, as aes afirmativas cum-pririam o objetivo de criar as chamadas
personalidades emblemticas. Noutras
palavras, alm das metas acima menci-
onadas, elas constituiriam um mecanis-
mo institucional de criao de exemplosvivos de mobilidade social ascendente.
Vale dizer, os representantes de minori-
as que, por terem alcanado posies
de prestgio e poder, serviriam de exem-
plo s geraes mais jovens, que veri-am em suas carreiras e realizaes pes-
Srie Cadernos do CEJ, 2498
soais a sinalizao de que no haveria,
chegada a sua vez, obstculos intrans-
ponveis realizao de seus sonhos e
concretizao de seus projetos de vida.Em suma, com esta conotao, as aes
afirmativas atuariam como mecanismo
de incentivo educao e ao aprimora-
mento de jovens integrantes de grupos
minoritrios, que invariavelmente assis-tem ao bloqueio de seu potencial de
inventividade, de criao e de motiva-
o ao aprimoramento e ao crescimen-
to individual, vtimas das sutilezas de um
sistema jurdico, poltico, econmico esocial concebido para mant-los em si-
tuao de excludos.
3 A PROBLEMTICA CONSTITUCIONAL
As aes afirmativas situam-se no
cerne do debate constitucional contem-
porneo, e interferem em questes que
remontam prpria origem da demo-cracia moderna, suscitando questiona-
mentos acerca de temas fundamentais
do modelo de organizao poltica pre-
ponderante no hemisfrio ocidental. A
presente reflexo no visa a examinarcom profundidade esses temas. Sobre
eles faremos, portanto, apenas un tour
dhorizon. Vejamos.
As afirmaes afirmativas suscitam,
em primeiro lugar, o debate crucial acercada destinao dos recursos pblicos.
Recursos, frise-se, escassos por defini-
o. O Estado Moderno, como se sabe,
resulta do imperativo iluminista de que
o conjunto dos recursos da Nao deveser convertido em prol do interesse de
todos, do bem-estar geral da coletivida-
de (The Welfare of lhe Nation, Der
Wohlstand). A Histria e o Direito Com-
parado a esto para nos fornecer algu-mas pistas e nos alertar contra o perigo
da inrcia neste domnio. Com efeito,
at enfadonho relembrar que a ruptura
brutal com o ancien rgime se materia-
lizou precisamente na abolio dos pri-vilgios que, por lei, eram atribudos a
certas classes de cidados. A Democra-
cia que se seguiu, sobretudo na concep-
o ulterior que deu margem ao
surgimento do Estado de bem-estar so-cial, tem como um dos seus pilares a
tentativa de distribuio equnime e ge-
neralizada dos recursos originrios do
labor coletivo.
Por outro lado, no se deve perderde vista que a amoldagem do atual Es-
tado promovente (uma realidade quase
universal) em grande parte tributria
desse rigoroso zelo que as verdadeiras
democracias tm para com o corretomanuseio de recursos pblicos. De fato,
questes-chave do constitucionalismo
moderno derivam dessa matriz: qual se-
ria o propsito legtimo do dispndio
de recursos nacionais? Em que medidase pode questionar a constitucionalidade
Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 99
de certos programas governamentais
luz da exata relao deles extravel entre
dispndio de recursos pblicos e incre-
mento do bem-estar coletivo? At queponto pode o rgo representante da
Nao compelir atores pblicos e priva-
dos beneficirios desses recursos a se
conformarem s regras de eqidade
nsitas a toda e qualquer democracia?Das mltiplas respostas a essas ques-
tes, como se sabe, emergiu o Estado
interventivo e regulador e o seu corolrio
o Estado de Bem-Estar Social.
Ora, o pas que ignora essas no-es bsicas e reserva a uma pequena
minoria os instrumentos de aprimora-
mento humano aptos a abrir as portas
prosperidade e ao bem-estar individual
e coletivo, e, alm disso (e tambm emconseqncia disso), adota, ainda que
informalmente, uma poltica de empre-
go impregnada de visvel e insuportvel
hierarquizao social, pratica nada mais
nada menos do que uma nova forma detirania.
Sim, disso que se trata. Uma ti-
rania legal, eis que formalmente anco-
rada em normas emanadas dos rgos
legislativos e executada por rgos quesupostamente encarnam a soberania
popular. No caso brasileiro, no preci-
so muito esforo para se convencer dis-
so. Vejamos. No estado atual das coisas,
a excluso social de que os negros soas principais vtimas no Brasil deriva de
alguns fatores, dentre os quais figura o
esquema perverso de distribuio de
recursos pblicos em matria de educa-
o. A Educao a mais importantedentre as diversas prestaes que o in-
divduo recebe ou tem legtima expecta-
tiva de receber do Estado. Trata-se, como
se sabe, de um bem escasso. O Estado
alega no poder fornec-lo a todos naforma tida como ideal, isto , em carter
universal e gratuito. No entanto, esse
mesmo Estado que se diz impossibilita-
do de fornecer a todos esse bem indis-
pensvel, institucionaliza mecanismossutis atravs dos quais proporciona s
classes privilegiadas aquilo que alega
no poder oferecer generalidade dos
cidados. Com efeito, o Estado finan-
cia, com recursos que deveriam ser ca-nalizados a instituies pblicas de aces-
so universal, a educao dos filhos das
classes de maior poder aquisitivo, por
meio de diversos mecanismos. Isto se
d principalmente atravs da rennciafiscal de que so beneficirias as esco-
las privadas altamente seletivas e
excludentes. Certo, no seria justo ne-
gar s elites (supostas ou verdadeiras) o
direito de matricular os seus filhos emescolas seletivas, onde eles se sintam
chez eux, longe da populace. O direito
de escolher uma educao diferencia-
da para os filhos constitui, a nosso sen-
tir, uma liberdade fundamental a ser ga-rantida pelo Estado. O que questionvel
Srie Cadernos do CEJ, 24100
o compartilhamento do custo desse
luxo com toda a coletividade: atravs
dos tributos de que essas escolas so
isentas, das subvenes diversas quelhes so passadas pelos Governos das
trs esferas polticas, pelo abatimento
das respectivas despesas no montante
devido a ttulo de imposto de renda! Es-
ses so alguns dos elementos que com-pem a formidvel machine exclure
que tem nos negros as suas vtimas pre-
ferenciais. Essa forma de excluso or-
questrada e disciplinada pela lei produz
o extraordinrio efeito de contrapor, deum lado, a escola pblica, republicana,
aberta a todos, que deveria oferecer en-
sino de boa qualidade a pobres e ricos,
a uma escola privada, elitista,
discriminatria e... largamente financia-da com recursos que deveriam benefi-
ciar a todos. Este o primeiro aspecto
da excluso.
O segundo aspecto ocorre na sele-
o ao ensino superior. A todos j sa-bem: os papis se invertem. O ensino
superior de qualidade no Brasil est qua-
se inteiramente nas mos do Estado. E
o que faz o Estado nesse domnio? Ins-
titui um mecanismo de seleo que vaijustamente propiciar a exclusividade do
acesso, sobretudo aos cursos de maior
prestgio e aptos a assegurar um bom
futuro profissional, queles que se be-
neficiaram do processo de excluso aci-ma mencionado, isto , os financeira-
mente bem aquinhoados. O vestibular,
este mecanismo intrinsecamente intil
sob a tica do aprendizado, no tem
outro objetivo que no o de excluir.Mais precisamente, o de excluir os soci-
almente fragilizados, de sorte a permitir
que os recursos pblicos destinados
educao (canalizados tanto para as ins-
tituies pblicas quanto para as de ca-rter comercial, como j vimos) sejam
gastos no em prol de todos, mas para
benefcio de poucos. Em suma, trata-se
de uma subverso total de um dos prin-
cpios informadores do Estado moder-no, sintetizado de forma lapidar em feliz
expresso cunhada pela Corte Suprema
dos EUA: the power of Congress to
authorize expenditure of public moneys
for public purposes.Esta , pois, a chave para se enten-
der por que existem to poucos negros
nas universidades pblicas brasileiras, e
quase nenhum nos cursos de maior pres-
tgio e demanda: os recursos pblicosso canalizados preponderantemente
para as classes mais afluentes,23 24 res-
tando aos pobres (que so majoritaria-
mente negros) as migalhas do sistema.
Este o aspecto perverso do siste-ma educacional brasileiro. Os negros so
suas principais vtimas. E este , sem
dvida, um problema constitucional de
primeira grandeza, pois nos remete
noo primitiva de democracia, a saber:em que, por quem e em benefcio de
Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 101
quem so despendidos os recursos fi-
nanceiros da Nao.
Agir afirmativamente significa ter
conscincia desses problemas e tomardecises coerentes com o imperativo
indeclinvel de remedi-los. Alm da
vontade poltica, que fundamental,
preciso colocar de lado o formalismo t-
pico da nossa praxis jurdico-institucionale entender que a questo de vital im-
portncia para a legtima aspirao de
todos de que um dia o Pas se subtraia
ao oprbrio internacional a que sempre
esteve confinado, e ocupe o espao, aposio e o respeito que a sua histria,
o seu povo, suas realizaes e o seu
peso poltico e econmico recomendam.
No plano estritamente jurdico (que
se subordina, a nosso sentir, tomadade conscincia assinalada nas linhas an-
teriores), o Direito Constitucional vigente
no Brasil, perfeitamente compatvel com
o princpio da ao afirmativa. Melhor di-
zendo, o Direito brasileiro j contemplaalgumas modalidades de ao afirmati-
va, inclusive em sede constitucional.
A questo se coloca, claro, no ter-
reno do princpio constitucional da igual-
dade. Este princpio, porm, comportavrias vertentes.
3.3. Igualdade formal ou
procedimental x igualdade de resulta-
dos ou material O cerne da questoreside em saber se na implemen-tao
do princpio constitucional da igualda-
de o Estado deve assegurar apenas
uma certa neutralidade processual
(procedural due process of law) ou, aocontrrio, se sua ao deve se encami-
nhar de preferncia para a realizao de
uma igualdade de resultados ou igual-
dade material. A teoria constitucional
clssica, herdeira do pensamento deLocke, Rousseau e Montesquieu, res-
ponsvel pelo florescimento de uma con-
cepo meramente formal de igualdade
a chamada igualdade perante a lei.
Trata-se em realidade de uma igualda-de meramente processual (process-
regarding equality). As notrias insufi-
cincias dessa concepo de igualdade
conduziram paulatinamente adoo
de uma nova postura, calcada no maisnos meios que se outorgam aos indiv-
duos num mercado competitivo, mas
nos resultados efetivos que eles podem
alcanar. Resumindo singelamente a
questo, diramos que as naes quehistoricamente se apegaram ao concei-
to de igualdade formal so aquelas onde
se verificam os mais gritantes ndices
de injustia social, eis que, em ltima
anlise, fundamentar toda e qualquerpoltica governamental de combate
desigualdade social na garantia de que
todos tero acesso aos mesmos ins-
trumentos de combate corresponde, na
prtica, a assegurar a perpetuao dadesigualdade. Isto porque essa opo
Srie Cadernos do CEJ, 24102
processual no leva em conta aspec-
tos importantes que antecedem en-
trada dos indivduos no mercado com-
petitivo. J a chamada igualdade de re-sultados tem como nota caracterstica
exatamente a preocupao com os fa-
tores externos luta competitiva tais
como classe ou origem social, nature-
za da educao recebida , que tm ine-gvel impacto sobre o seu resultado.25
Vrios dispositivos da Constituio
Brasileira de 1988 revelam o repdio do
constituinte pela igualdade processual
e sua opo pela concepo de igualda-de dita material ou de resultados.
Assim, por exemplo, os artigos 3o,
7o, XX; 37, VIII, e 170 dispem:
Art. 3o. Constituem objetivos fun-damentais da Repblica Federativa do
Brasil:
I construir uma sociedade livre,
justa e solidria;(...)III erradicar a pobreza e a
marginalizao e reduzir as desigual-dades sociais e regionais.
Art. 170. A ordem econmica, fun-dada na valorizao do trabalho huma-
no e na livre iniciativa, tem por fim asse-
gurar a todos existncia digna, confor-
me os ditames da justia social, obser-vados os seguintes princpios:
(...)
VII reduo das desigualdadesregionais e sociais (...)
IX tratamento favorecido para asempresas de pequeno porte constitu-
das sob as leis brasileiras e que tenham
sua sede e administrao no Pas.26
Art. 7o. So direitos dos trabalha-
dores urbanos e rurais, alm de outrosque visem melhoria de sua condio
social:
(...)
XX proteo do mercado de tra-
balho da mulher, mediante incentivosespecficos, nos termos da lei;
Art. 37 (...)
VIII A lei reservar percentual dos
cargos e empregos pblicos para as pes-soas portadoras de deficincia e defini-
r os critrios de sua admisso.
patente, pois, a maior preocu-
pao do legislador constituinte origi-nrio com os direitos e garantias fun-
damentais, bem como com a questo
da igualdade, especialmente a
implementao da igualdade substan-
cial. Flvia Piovesan assinala como sm-bolo dessa preocupao (a) topogra-
fia de destaque que recebe este grupo
de direitos (fundamentais) e deveres em
relao s Constituies anteriores; (b)
a elevao, clusula ptrea, dos di-reitos e garantias individuais (art. 60,
Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 103
4o, IV); (c) o aumento dos bens mere-
cedores de tutela e da titularidade de
novos sujeitos de direito (coletivo),
tudo comparativamente s Cartas an-tecedentes27 Some-se a isso a previ-
so expressa, em sede constitucional,
da igualdade entre homens e mulhe-
res (art. 5o, I) e, em alguns casos, da
permisso expressa para utilizao dasaes afirmativas, com o intuito de
implementar a igualdade, tais como o
artigo 37, VIII (reserva de cargos e em-
pregos pblicos para pessoas portado-
ras de deficincia) e art. 7o, XX (prote-o do mercado de trabalho da mu-
lher, mediante incentivos especficos,
nos termos da lei).
V-se, portanto, que a Constituio
Brasileira de 1988 no se limita a proi-bir a discriminao, afirmando a igual-
dade, mas permite, tambm, a utiliza-
o de medidas que efetivamente
implementem a igualdade material. E
mais: tais normas propiciadoras daimplementao do princpio da igualda-
de se acham precisamente no Ttulo I
da Constituio, o que trata dos princ-
pios fundamentais da nossa Repblica,
isto , cuida-se de normas que infor-mam todo o sistema constitucional, co-
mandando a correta interpretao de
outros dispositivos constitucionais.
Como bem sustentou a ilustre Profes-
sora de Direito Constitucional da PUCde Minas Gerais, Carmen Lcia Antunes
Rocha, a Constituio Brasileira de
1988 tem, no seu prembulo, uma de-
clarao que apresenta um momento
novo no constitucionalismo ptrio: aidia de que no se tem a democracia
social, a justia social, mas que o Direito
foi ali elaborado para que se chegue a
t-los (...) O princpio da igualdade res-
plandece sobre quase todos os outrosacolhidos como pilastras do edifcio
normativo fundamental alicerado.
guia no apenas de regras, mas de quase
todos os outros princpios que informam
e conformam o modelo constitucionalpositivado, sendo guiado apenas por
um, ao qual se d a servir: o da dignida-
de da pessoa humana (art. 1o, III, da
Constituio da Repblica).28 E prosse-
gue a ilustre jurista, fazendo aluso ex-pressa aos dispositivos constitucionais
acima transcritos: Verifica-se que todos
os verbos utilizados na expresso
normativa construir, erradicar, redu-
zir, promover so de ao, vale dizer,designam um comportamento ativo. O
que se tem, pois, que os objetivos
fundamentais da Repblica Federativa
do Brasil so definidos em termos de
obrigaes transformadoras do quadrosocial e poltico retratado pelo constitu-
inte quando da elaborao do texto
constitucional. E todos os objetivos con-
tidos, especialmente, nos trs incisos
acima transcritos do art. 3o da Lei Fun-damental da Repblica, traduzem exa-
Srie Cadernos do CEJ, 24104
tamente mudana para se chegar
igualdade. Em outro dizer, a expresso
normativa constitucional significa que a
Constituio determina uma mudanado que se tem em termos de condies
sociais, polticas, econmicas e regio-
nais, exatamente para se alcanar a re-
alizao do valor supremo a fundamen-
tar o Estado Democrtico de Direitoconstitudo. Se a igualdade jurdica fos-
se apenas a vedao de tratamentos
discriminatrios, o princpio seria abso-
lutamente insuficiente para possibilitar
a realizao dos objetivos fundamen-tais da Repblica constitucionalmente
definidos. Pois daqui para a frente, nas
novas leis e comportamentos regulados
pelo Direito, apenas seriam impedidas
manifestaes de preconceitos ou co-metimentos discriminatrios. Mas como
mudar, ento, tudo o que se tem e se
sedimentou na histria poltica, social e
econmica nacional? Somente a ao
afirmativa, vale dizer, a atuaotransformadora, igualadora pelo e se-
gundo o Direito possibilita a verdade do
princpio da igualdade, para se chegar
igualdade que a Constituio Brasi-
leira garante como direito fundamentalde todos. O art. 3o traz uma declarao,
uma afirmao e uma determinao em
seus dizeres. Declara-se, ali, implcita,
mas claramente, que a Repblica Fede-
rativa do Brasil no livre, porque nose organiza segundo a universalidade
desse pressuposto fundamental para o
exerccio dos direitos, pelo que, no dis-
pondo todos de condies para o exer-
ccio de sua liberdade, no pode ser jus-ta. No justa porque plena de desi-
gualdades antijurdicas e deplorveis
para abrigar o mnimo de condies dig-
nas para todos. E no solidria por-
que fundada em preconceitos de todasorte (...) O inciso IV do mesmo art. 3o
mais claro e afinado, at mesmo no ver-
bo utilizado, com a ao afirmativa. Por
ele se tem ser um dos objetivos funda-
mentais promover o bem de todos, sempreconceitos de origem, raa, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de dis-
criminao. Verifica-se, ento, que no
se repetiu apenas o mesmo modelo
principiolgico que adotaram constitu-intes anteriormente atuantes no Pas.
Aqui se determina, agora uma ao afir-
mativa: aquela pela qual se promova o
bem de todos, sem preconceitos (de)
quaisquer... formas de discriminao.Significa que se universaliza a igualda-
de e promove-se a igualao: somente
com uma conduta ativa, positiva, afir-
mativa, que se pode ter a transfor-
mao social buscada como objetivofundamental da Repblica... Se fosse
apenas para manter o que se tem, sem
figurar o passado ou atentar hist-
ria, teria sido suficiente, mais ainda,
teria sido necessrio, tecnicamente, queapenas se estabelecesse ser objetivo
Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 105
manter a igualdade sem preconceitos,
etc. No foi o que pretendeu a Consti-
tuio de 1988. Por ela se buscou a
mudana do conceito, do contedo, daessncia e da aplicao do princpio da
igualdade jurdica, com relevo dado
sua imprescindibilidade para a trans-
formao da sociedade, a fim de se
chegar a seu modelo livre, justa e soli-dria. Com promoo de mudanas,
com a adoo de condutas ativas, com
a construo de novo figurino scio-
poltico que se movimenta no senti-
do de se recuperar o que de equivoca-do antes se fez.29
Esta, portanto, a concepo mo-
derna e dinmica do princpio constitu-
cional da igualdade, a que conclama o
Estado a deixar de lado a passividade, arenunciar sua suposta neutralidade e
a adotar um comportamento ativo, po-
sitivo, afirmativo, quase militante, na bus-
ca da concretizao da igualdade subs-
tancial.Note-se, mais uma vez, que este
tipo de comportamento estatal no
estranho ao Direito brasileiro ps-Cons-
tituio de 1988. Ao contrrio, a
imprescindibilidade de medidas correti-vas e redistributivas visando a mitigar a
agudeza da nossa questo social j foi
reconhecida em sede normativa, atravs
de leis vocacionadas a combater os efei-
tos nefastos de certas formas de discri-minao. Nesse sentido, importante fri-
sar, o Direito brasileiro j contempla al-
gumas modalidades de ao afirmativa.
No obstante tratar-se de experincias
ainda tmidas quanto ao seu alcance eamplitude, o importante a ser destaca-
do o fato da acolhida desse instituto
jurdico em nosso Direito.
4 AO AFIRMATIVA E RELAES DE
GNERO
A discriminao de gnero, fruto de
uma longa tradio patriarcal que noconhece limites geogrficos tampouco
culturais, do conhecimento de todos
os brasileiros. Entre ns, o status de in-
ferioridade da mulher em relao ao
homem foi por muito tempo considera-do como algo qui va de soi, normal, de-
corrente da prpria natureza das coi-
sas. A tal ponto que essa inferioridade
era materializada expressamente na nos-
sa legislao civil.A Constituio de 1988 (art. 5o, I)
no apenas aboliu essa discriminao
chancelada pelas leis, mas tambm,
atravs dos diversos dispositivos
antidiscriminatrios j mencionados,permitiu que se buscassem mecanismos
aptos a promover a igualdade entre ho-
mens e mulheres. Assim, com vistas a
minimizar essa flagrante desigualdade
existente em detrimento das mulheres,nasceu, entre ns, a modalidade de ao
Srie Cadernos do CEJ, 24106
afirmativa hoje corporificada nas Leis nos
9.100/1995 e 9.504/1997, que estabe-
leceram cotas mnimas de candidatas
mulheres para as eleies30.As mencionadas leis representam,
em primeiro lugar, o reconhecimento
pelo Estado de um fato inegvel: a exis-
tncia de discriminao contra as bra-
sileiras, cujo resultado mais visvel aexasperante sub-representao femini-
na em um dos setores-chave da vida
nacional o processo poltico. Com
efeito, o legislador ordinrio, conscien-
te de que em toda a histria polticado Pas foi sempre desprezvel a partici-
pao feminina, resolveu remediar a si-
tuao atravs de um corretivo que nada
mais do que uma das muitas tcnicas
atravs das quais, em Direito Compa-rado, so concebidas e implementadas
as aes afirmativas: o mecanismo das
cotas.
As Leis nos 9.100/1995 e 9.504/1997
tiveram a virtude de lanar o debate emtorno das aes afirmativas e, sobretu-
do, de tornar evidente a necessidade pre-
mente de se implementar de maneira
efetiva a isonomia em matria de gne-
ro em nosso pas. As cotas de candida-turas femininas constituem apenas o pri-
meiro passo nesse sentido. Se certo
que preciso tempo para se fazer ava-
liaes mais seguras acerca da sua efi-
ccia como medida de transformaosocial, no h dvida de que j se anun-
ciam alguns resultados alvissareiros,
como o incremento significativo, em ter-
mos globais, da participao feminina
nas instncias de poder31.Assim, as mencionadas leis consa-
gram a recepo definitiva pelo Direito
brasileiro do princpio da ao afirmati-
va. Ainda que limitada a uma forma es-
pecfica de discriminao, o fato queessa poltica social ingressou nos moeurs
politiques da Nao, uma vez que foi
aplicada sem contestao em dois plei-
tos eleitorais.
5 AO AFIRMATIVA E PORTADORES
DE DEFICINCIA
O mesmo princpio tambm vemsendo adotado pela legislao que visa
a proteger os direitos das pessoas por-
tadoras de deficincia fsica.
Com efeito, a Constituio Brasilei-
ra, em seu artigo 37, VIII, prev expres-samente a reservas de vagas para defi-
cientes fsicos na administrao pblica.
Neste caso, a permisso constitucional
para adoo de aes afirmativas em
relao aos portadores de deficincia f-sica expressa. Da a iniciativa do legis-
lador ordinrio, materializada nas Leis nos
7.835/89 e 8.112/1990, que regulamen-
taram o mencionado dispositivo consti-
tucional. De fato, a Lei no 8.112/1990(Regime Jurdico nico dos Servidores
Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 107
Pblicos Civis da Unio) estabelece em
seu art. 5o, 2o, que s pessoas porta-
doras de deficincia assegurado o di-
reito de se inscrever em concurso pbli-co para provimento de cargo cujas atri-
buies sejam compatveis com a defici-
ncia de que so portadoras; para tais
pessoas sero reservadas at 20% (vin-
te por cento) das vagas oferecidas noconcurso.
Comentando o dispositivo transcri-
to, Mnica de Melo32, com muita proprie-
dade, afirma:
Desta forma, qualquer concurso
pblico que se destine a preen-
chimento de vagas para o servio
pblico federal dever conter em
seu edital a previso das vagas re-servadas para os portadores de
deficincia. Note-se que o artigo
fala em at 20% (vinte por cento)
das vagas, o que possibilita uma
reserva menor e o outro requisitolegal que as atribuies a se-
rem desempenhadas sejam com-
patveis com a deficincia apre-
sentada. H entendimentos no
sentido de que 10% (dez por cen-to) das vagas ser iam um
percentual razovel, medida que
no Brasil haveria 10% de pessoas
portadoras de deficincia segun-
do dados da Organizao Mundi-al de Sade.
Esta outra modalidade de discri-
minao positiva tem recebido o be-
neplcito do Poder Judicirio. Com efei-
to, tanto o Supremo Tribunal Federalquanto o Superior Tribunal de Justia
j tiveram oportunidade de se mani-
festar favoravelmente sobre o tema,
verbis:
Ementa:
Sendo o art. 37, VII, da CF, norma
de eficcia contida, surgiu o art. 5o,
2o, do novel Estatuto dos Servi-dores Pblicos Federais, a toda evi-
dncia, para regulamentar o citado
dispositivo constitucional, a fim de
lhe proporcionar a plenitude
eficacial. Verifica-se, com toda a fa-cilidade, que o dispositvo da lei
ordinria definiu os contornos do
comando constitucional, assegu-
rando o direito aos portadores de
deficincia de se inscreverem emconcurso pblico, ditando que os
cargos providos tenham atribui-
es compatveis com a deficin-
cia de que so portadores e, fi-
nalmente, estabelecendo umpercentual mximo de vagas a
serem a eles reservadas. Dentro
desses parmetros, fica o adminis-
trador com plena liberdade para
regular o acesso dos deficientesaprovados no concurso para provi-
Srie Cadernos do CEJ, 24108
mento de cargos pblicos, no ca-
bendo prevalecer diante da garan-
tia constitucional, o alijamento do
deficiente por no ter logrado clas-sificao, muito menos por recusar
o decisum afrontado que no te-
nha a norma constitucional sido re-
gulamentada pelo dispositivo da lei
ordinria, to-s, por considerarno ter ela definido critrios sufici-
entes. Recurso provido com a con-
cesso da segurana, a fim de que
seja oferecida recorrente vaga,
dentro do percentual que for fixa-do para os deficientes, obedecida,
entre os deficientes aprovados, a
ordem de classificao, se for o
caso. (RMS no 3.113-6/DF, 6a T.,
6.12.1994, cujo Relator foi o Min.Pedro Acioli).
Concurso pblico e vaga para
deficientes
Por ofensa ao art. 37, V, da CF (alei reservar percentual dos cargos
e empregos pblicos para as pes-
soas portadoras de deficincia e
definir os critrios de sua admis-
so), o Tribunal deu provimento arecurso extraordinrio para refor-
mar acrdo do Tribunal de Justia
do Estado de Minas Gerais que ne-
gara portadora de deficincia o
direito de ter assegurada uma vagaem concurso pblico ante a impos-
sibilidade aritmtica de se destinar,
dentre as 8 vagas existentes, a re-
serva de 5% aos portadores de de-
ficincia fsica (LC no 9/1992 doMunicpio de Divinpolis). O Tribu-
nal entendeu que, na hiptese de
a diviso resultar em nmero
fracionado no importando que
a frao seja inferior a meio , im-pe-se o arredondamento para
cima. RE no 227.299-MG, rel. Min.
Ilmar Galvo, 14.6.2000.
(RE no 227.299).
Como se v, a destinao de um
percentual de vagas no servio pblico
aos deficientes fsicos no viola o prin-
cpio da isonomia. Em primeiro lugar,
porque a deficincia fsica de que essaspessoas so portadoras traduz-se em
uma situao de ntida desvantagem em
seu detrimento, fato este que deve ser
devidamente levado em conta pelo Es-
tado, no cumprimento do seu dever deimplementar a igualdade material. Em
segundo, porque os deficientes fsicos
se submetem aos concursos pblicos,
devendo necessariamente lograr apro-
vao. A reserva de vagas, portanto, re-presenta uma dentre as diversas tcni-
cas de implementao da igualdade
material, consagrao do princpio b-
blico segundo o qual deve-se tratar
igualmente os iguais e desigualmenteos desiguais.
Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 109
Pois bem. Se esse princpio ple-
namente aceitvel (inclusive na esfera
jurisdicional, como vimos) como meca-
nismo de combate a uma das mltiplasformas de discriminao, da mesma for-
ma ele haver de ser aceito para com-
bater aquela que a mais arraigada for-
ma de discriminao entre ns, a que
tem maior impacto social, econmico ecultural a discriminao de cunho raci-
al. Isto porque os princpios constitucio-
nais mencionados anteriormente so
vocacionados a combater toda e qual-
quer disfuno social originria dos pre-conceitos e discriminaes incrustados
no imaginrio coletivo, vale dizer, os pre-
conceitos e discriminao de fundo his-
trico e cultural. No se trata de princpi-
os de aplicao seletiva, bons para cu-rar certos males, mas inadaptados a re-
mediar outros.
6 AO AFIRMATIVA E DIREITO INTER-NACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
O problema aqui tratado, como se
sabe, transcende o Direito interno brasi-
leiro e envolve o Direito Internacional,especialmente o chamado Direito Inter-
nacional dos Direitos Humanos. Ele tra-
duz perfeio o fenmeno que Hlne
Tourard com muita propriedade classifi-
cou como Internationalisation desconstitutions.33
Com efeito, no obstante as diver-
gncias doutrinrias e jurisprudenciais
que pairam sobre o assunto, no po-
demos deixar de consignar a contribui-o trazida matria por uma avana-
da inteligncia do artigo 5o da Consti-
tuio de 1988, que em seus 1o e 2o
traz disposies importantssimas para
a efetiva implementao dos direitos egarantias fundamentais. Com efeito, o
1o estabelece que as normas
definidoras dos direitos e garantias fun-
damentais tm aplicao imediata no
pas. J o 2o dispe que os direitos egarantias expressos nesta Constituio
no excluem outros decorrentes do re-
gime e dos princpios por ela adotados,
ou dos tratados internacionais em que
a Repblica Federativa do Brasil sejaparte.
Como resultado da conjugao do
1o com o 2o do artigo 5o do texto
constitucional, uma interpretao siste-
mtica da Constituio nos conduz constatao de que estamos diante de
normas da mais alta relevncia para a
proteo dos direitos humanos (e, con-
seqentemente, dos direitos das mino-
rias) no Brasil, quais sejam: os tratadosinternacionais de direitos humanos, que,
segundo o dispositivo citado, tm apli-
cao imediata no territrio brasileiro,
necessitando apenas de ratificao.
Com efeito, esse o ensinamentoque colhemos em dois dos nossos mais
Srie Cadernos do CEJ, 24110
eruditos scholars, especialistas na ma-
tria, os Professores Antnio Augusto
Canado Trindade34 e Celso de
Albuquerque Mello, verbis:
O disposto no art. 5o, 2o, da
Constituio Brasileira de 1988 se
insere na nova tendncia de Cons-
tituies latino-americanas recen-tes de conceder um tratamento
especial ou diferenciado tambm
no plano do direito interno aos di-
reitos e garantias individuais in-
ternacionalmente consagrados.A especificidade e o carter es-
pecial dos tratados de proteo
internacional dos direitos huma-
nos encontram-se, com efeito, re-
conhecidos e sancionados pelaConstituio Brasileira de 1988:
se, para os tratados internacionais
em geral, se tem exigido a
intermediao pelo poder
Legislativo de ato com fora de lei,de modo a outorgar a suas dispo-
sies vigncia ou obrigatoriedade
no plano do ordenamento jurdi-
co interno, distintamente no caso
dos tratados de proteo interna-cional dos direitos humanos em
que o Brasil parte, os direitos
fundamentais neles garantidos
passam, consoante o artigo 5o,
2o e 1o, da Constituio Brasileirade 1988, a integrar o elenco dos
direitos constitucionalmente con-
sagrados direta e imediatamente
exigveis no plano do ordenamento
jurdico interno.35
A Constituio de 1988, no 2o
do art. 5o constitucionalizou as
normas de direitos humanos con-
sagradas nos tratados. Significan-do isto que as referidas normas so
normas constitucionais, como diz
Flvia Piovesan citada acima. Con-
sidero esta posio j como um
grande avano. Contudo, sou ain-da mais radical no sentido de que
a norma internacional prevalece
sobre a norma constitucional,
mesmo naquele caso em que uma
norma constitucional posteriortente revogar uma norma interna-
cional constitucionalizada. A nos-
sa posio a que est consagra-
da na jurisprudncia e tratado in-
ternacional europeu de que sedeve aplicar a norma mais benfi-
ca ao ser humano, seja ela inter-
na ou internacional. A tese de Fl-
via Piovesan tem a grande vanta-
gem de evitar que o Supremo Tri-bunal Federal venha a julgar a
constituciona-lidade dos tratados
internacionais.36
Assim, luz desta respeitvel dou-trina, pode-e concluir que o Direito Cons-
Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 111
titucional brasileiro abriga, no somen-
te o princpio e as modalidades implci-
tas e explcitas de ao afirmativa a que
j fizemos aluso, mas tambm as queemanam dos tratados internacionais de
direitos humanos assinados pelo nosso
pas. Com efeito, o Brasil signatrio dos
principais instrumentos internacionais de
proteo dos direitos humanos, em es-pecial a Conveno sobre a Eliminao
de Todas as Formas de Discriminao
Racial e a Conveno sobre a Elimina-
o de Todas as Formas de Discrimina-
o contra a Mulher, os quais permitemexpressamente a utilizao das medidas
positivas tendentes a mitigar os efeitos
da discriminao.
De fato, a Conveno sobre a Eli-
minao de Todas as Formas de Discri-minao Racial (1968), ratificada pelo
Brasil em 27 de maro de 1968, dispe
em seu artigo 1o, no 4, verbis:
Art. 1o. No sero consideradas dis-criminao racial as medidas espe-
ciais tomadas com o nico objetivo
de assegurar o progresso adequa-
do de certos grupos raciais ou t-
nicos ou de indivduos que neces-sitem da proteo que possa ser
necessria para proporcionar a tais
grupos ou indivduos igual gozo ou
exerccio de direitos humanos e li-
berdades fundamentais, contantoque tais medidas no conduzam,
em conseqncia, manuteno de
direitos separados para diferentes
grupos raciais e no prossigam
aps terem sido alcanados os seusobjetivos.
Dispositivo de igual teor tambm
figura no artigo 4o da Conveno sobre
a Eliminao de Todas as Formas de Dis-criminao contra a Mulher (1979),
ratificada pelo Brasil em 1984, com re-
servas na rea de Direito de Famlia, re-
servas estas que foram retiradas em
1994, verbis:
Artigo 4o. A adoo pelos Esta-
dos-partes de medidas especiais de
carter temporrio destinadas a
acelerar a igualdade de fato entreo homem e a mulher no se consi-
derar discriminao na forma de-
finida nesta Conveno, mas de
nenhuma maneira implicar, como
conseqncia, a manuteno denormas desiguais ou separadas;
essas medidas cessaro quando os
objetivos de igualdade de oportu-
nidade e tratamento houverem sido
alcanados.
, portanto, amplo e diversificado
o respaldo jurdico s medidas afirmati-
vas que o Estado brasileiro resolva em-
preender no sentido de resolver esse quetalvez seja o mais grave de todos os nos-
Srie Cadernos do CEJ, 24112
sos problemas sociais o alijamento e a
marginalizao do negro na sociedade
brasileira. A questo se situa, primeira-
mente, na esfera da Alta Poltica. Ou seja,trata-se de optar por um modle de
socit, um choix politique, como diri-
am os juristas da escola francesa. No pla-
no jurdico, no h dvidas quanto sua
viabilidade, como se tentou demonstrar.Resta, to-somente, escolher os critri-
os, as modalidades e as tcnicas adap-
tveis nossa realidade, cercando-as das
devidas cautelas e salvaguardas.
7 CRITRIOS, MODALIDADES E LIMI-
TES DAS AES AFIRMATIVAS
Ao debruar-se sobre o tema, o Pro-fessor Joaquim Falco sustentou que
se, por um lado, tranqila a
constatao de que o princpio da igual-
dade formal relativo e convive com
diferenciaes, nem todas as diferenci-aes so aceitas. A dificuldade de-
terminar os critrios a partir dos quais
uma diferenciao aceita como cons-
titucional.37 O autor apresenta soluo
ao problema, afirmando que a justifica-o38 do estabelecimento da diferena
seria uma condio sine qua non para
a constitucionalidade da diferenciao,
a fim de evitar a arbitrariedade. Esta jus-
tificao deve ter um contedo, basea-do na razoabilidade, ou seja, num fun-
damento razovel para a diferenciao;
na racionalidade, no sentido de que a
motivao deve ser objetiva, racional e
suficiente; e na proporcionalidade, isto, que a diferenciao seja um reajuste
de situaes desiguais. Aliado a isto, a
legislao infraconstitucional. deve res-
peitar trs critrios concomitantes para
que atenda ao princpio da igualdadematerial: a diferenciao deve (a) decor-
rer de um comando-dever constitucio-
nal, no sentido de que deve obedincia
a uma norma programtica que deter-
mina a reduo das desigualdades so-ciais; (b) ser especfica, estabelecendo
claramente aquelas situaes ou indiv-
duos que sero beneficiados com a
diferenciao, e (c) ser eficiente, ou seja,
necessria a existncia de um nexocausal entre a prioridade legal concedi-
da e a igualdade socioeconmica pre-
tendida39. Entendimento semelhante
esposado por B. Renauld no artigo j
mencionado: Trois lments nouspermettent de donner um contenu Ia
notion de discrimination positive telle
quelle sera utilise par la suite. Pour
identifier une discrimination positive, il
faut que lon soit en prsence dungroupe dindividus suffi samment dfrni,
dune discrimination structurelle dont
ls membres de ce groupe sont victimes
et enfia dun plan tablissant des
objectifs et dfenissant des moyens mettre en oeuvre visant corriger la
Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 113
discrimination envisage. Selon les cas,
le plan est adopt, voire impos par une
autorit publique ou est le fruit dune
initiative prive.Sem dvida, os critrios acima es-
tabelecidos so um timo ponto de par-
tida para o estabelecimento de aes
afirmativas no Brasil. Porm, falta ao Di-
reito brasileiro um maior conhecimentodas modalidades e das tcnicas que po-
dem ser utilizadas na implementao de
aes afirmativas. Entre ns, fala-se qua-
se exclusivamente do sistema de cotas,
mas esse um sistema que, a no serque venha amarrado a um outro critrio
inquestionavelmente objetivo 40, deve ser
objeto de uma utilizao marcadamente
marginal.
Com efeito, o essencial que o Es-tado reconhea oficialmente a existn-
cia da discriminao racial, dos seus
efeitos e das suas vtimas, e tome a de-
ciso poltica de enfrent-la, transfor-
mando esse combate em uma polticade Estado. Uma tal atitude teria o sau-
dvel efeito de subtrair o Estado brasi-
leiro da ambigidade que o caracteriza
na matria: a de admitir que existe um
problema racial no Pas e ao mesmotempo furtar-se a tomar medidas srias
no sentido minorar os efeitos sociais
dele decorrentes.
Em segundo lugar, preciso ter cla-
ra a idia de que a soluo ao problemaracial no deve vir unicamente do Esta-
do. Certo, cabe ao Estado o importante
papel de impulso, mas ele no deve ser
o nico ator nessa matria. Cabe-lhe tra-
ar as diretrizes gerais, o quadro jurdi-co luz do qual os atores sociais pode-
ro agir. Incumbe-lhe remover os fato-
res de discriminao de ordem estrutu-
ral, isto , aqueles chancelados pelas
prprias normas legais vigentes no Pas,como ficou demonstrado acima. Mas as
polticas afirmativas no devem se limi-
tar esfera pblica. Ao contrrio, devem
envolver as universidades, pblicas e
privadas, as empresas, os governos es-taduais, as municipalidades, as organi-
zaes governamentais, o Poder Judici-
rio, etc.
No que pertine s tcnicas de
implementao das aes afirmativas,podem ser utilizados, alm do sistema
de cotas, o mtodo do estabelecimen-
to de preferncias, o sistema de bnus
e os incentivos fiscais (como instrumen-
to de motivao do setor privado). Decrucial importncia o uso do poder
fiscal, no como mecanismo de
aprofundamento da excluso, como
da nossa tradio, mas como instrumen-
to de dissuaso da discriminao e deemulao de comportamentos (pblicos
e privados) voltados erradicao dos
efeitos da discriminao de cunho his-
trico.
Noutras palavras, ao afirmativano se confunde nem se limita s cotas.
Srie Cadernos do CEJ, 24114
Confira-se, sobre o tema, as judiciosas
consideraes feitas por Wania SantAnna
e Marcello Paixo, no interessante traba-
lho intitulado Muito Alm da Senzala:Ao Afirmativa no Brasil, verbis:
Segundo Huntley, Ao afirmati-
va um conceito que inclui dife-
rentes tipos de estratgias e prti-cas. Todas essas estratgias e pr-
ticas esto destinadas a atender
problemas histricos e atuais que
se constatam nos Estados Unidos
em relao s mulheres, aos afro-americanos e a outros grupos que
tm sido alvo de discriminao e,
conseqentemente, aos quais se
tem negado a oportunidade de de-
senvolver plenamente o seu talen-to, de participar em todas as esfe-
ras da sociedade americana. (...)
Ao afirmativa um conceito que,
usualmente, requer o que ns cha-
mamos metas e cronogramas. Me-tas so um padro desejado pelo
qual se mede o progresso e no se
confunde com cotas. Opositores da
ao afirmativa nos Estados Unidos
freqentemente caracterizam me-tas como sendo cotas, sugerindo
que elas so inflexveis, absolutas,
que as pessoas so obrigadas a
atingi-las.
A poltica de ao afirmativa noexige, necessariamente, o estabe-
lecimento de um percentual de va-
gas a ser preenchido por um dado
grupo da populao. Entre as es-
tratgias previstas, incluem-se me-canismos que estimulem as empre-
sas a buscarem pessoas de outro
gnero e de grupos tnicos e raci-
ais especficos, seja para compor
seus quadros, seja para fins de pro-moo ou qualificao profissional.
Busca-se, tambm, a adequao
do elenco de profissionais s reali-
dades verificadas na regio de ope-
rao da empresa. Essas medidasestimulam as unidades empresari-
ais a demonstrar sua preocupao
com a diversidade humana de seus
quadros.
Isto no significa que uma dadaempresa deva ter um percentual
fixo de empregados negros, por
exemplo, mas, sim, que esta em-
presa est demonstrando a preo-
cupao em criar formas de aces-so ao emprego e ascenso profis-
sional para as pessoas no ligadas
aos grupos tradicionalmente
hegemnicos em determinadas
funes (as mais qualificadas e re-muneradas) e cargos (os hierarqui-
camente superiores). A ao afir-
mativa parte do reconhecimento de
que a competncia para exercer
funes de responsabilidade no exclusiva de um determinado gru-
Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 115
po tnico, racial ou de gnero. Tam-
bm considera que os fatores que
impedem a ascenso social de de-
terminados grupos esto imbrica-dos numa complexa rede de moti-
vaes, explcita ou implicitamen-
te, preconceituosas.41
Por fim, no que diz respeito s cau-telas a serem observadas, valho-me
mais uma vez dos ensinamentos da Prof.
Carmem Lcia Antunes Rochas, verbis:
importante salientar que no sequer verem produzidas novas dis-
criminaes com a ao afirmativa,
agora em desfavor das maiorias,
que, sem serem marginalizadas his-
toricamente, perdem espaos queantes detinham face aos membros
dos grupos afirmados pelo princ-
pio igualador no Direito. Para se evi-
tar que o extremo oposto sobrevi-
esse que os planos e programasde ao afirmativa adotados nos
Estados Unidos e em outros Esta-
dos, primaram sempre pela fixao
de percentuais mnimos garantido-
res da presena das minorias quepor eles se buscavam igualar, com
o objetivo de se romperem precon-
ceitos contra elas ou pelo menos
propiciarem-se condies para a
sua superao em face da convi-
vncia juridicamente obrigada. Porela, a maioria teria que se acostu-
mar a trabalhar, a estudar, a se di-
vertir, etc., com os negros, as mu-
lheres, os judeus, os orientais, os
velhos, etc., habituando-se a v-losproduzir, viver, sem inferioridade ge-
ntica determinada pelas suas ca-
ractersticas pessoais resultantes do
grupo a que pertencessem. Os pla-
nos e programas das entidades p-blicas e particulares de ao afirma-
tiva deixam sempre disputa livre
da maioria a maior parcela de va-
gas em escolas, empregos, em lo-
cais de lazer, etc., como forma degarantia democrtica do exerccio
da liberdade pessoal e da realizao
do princpio da no-discriminao
(contido no princpio constitucional
da igualdade jurdica) pela prpriasociedade.
JOAQUIM BENEDITO BARBOSA GO-MES: Professor da Universidade Esta-dual do Rio de Janeiro e Procurador
Regional da Repblica, Rio de Janeiro.
Srie Cadernos do CEJ, 24116
1 Doutor em Direito Pblico pela Universidade
de Paris-II (Panthon-Assas), Frana. Professor da
Faculdade de Direito da UERJ. Foi Visiting Scholar
da Faculdade de Direito da Universidade de
Columbia-NY, EUA. Membro do Ministrio Pblico
Federal (RJ). Autor das obras La Cour Suprme
dans le Svstme Politique Brsilien, editada pela
Librairie Gnrate de Droit et Jurisprudence (LGDJ),
Paris, 1994; e Ao Afirmativa & Principio Cons-
titucional da Igualdade, Rio de Janeiro, Editora
Renovar, 2001.
2 As proposies legislativas a que nos refe-
rimos vo desde o projeto de lei apresentado pelo
Senador Jos Sarney, que reserva aos negros um
percentual fixo de cargos da Administrao P-
blica, aos de vrios parlamentares do Partido dos
Trabalhadores e de outros partidos de esquerda,
que instituem cotas para negros nas universida-
des pblicas e nos meios de comunicao. Todos
esses projetos, que tm sido duramente critica-
dos pelo establishment branco receoso de per-
der nacos dos privilgios multisseculares de que
desfrutam, evidentemente tm reduzidas chances
de aprovao, a no ser que os negros brasilei-
ros se organizem de forma mais coerente e pas-
sem a constituir uma fora poltica expressiva no
jogo poltico nacional. Fora essa hiptese, s
mesmo o ocaso ou a emergncia de um lder
poltico suficientemente forte e dotado de vonta-
de inquebrantvel de mudana social (no neces-
sariamente negro, bom frisar!), poder mudar
o quadro de abandono, ostracismo e violenta ex-
cluso a que os negros brasileiros so cotidiana-
mente relegados. Assim, embora as chances de
aprovao desses projetos sejam reduzidas no
atual quadro jurdico-poltico do Pas, a reflexo
acerca do tratamento jurdico do tema neles tra-
tado reveste-se da maior relevncia.
3 Para uma reflexo jurdica a respeito desse
tema, tal como ele se apresenta em seu bero his-
trico, isto , nos Estados Unidos da Amrica, con-
sulte-se Joaquim B. Barbosa Gomes, Ao Afir-
mativa & Princpio Constitucional da Igualdade.
O Direito como Instrumento de Transformao So-
cial, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2001.
4 Frise-se, por oportuno, que se a teoria das
aes afirmativas quase inteiramente desconhe-
cida no Brasil, a sua prtica, no entanto, no
de todo estranha nossa vida administrativa. Com
efeito, o Brasil j conheceu em passado no mui-
to remoto uma modalidade (bem brasileira!) de
ao afirmativa. a que foi materializada na cha-
mada Lei do Boi, isto , a Lei no 5.465/1968,
cujo art. 1o era assim redigido: Os estabelecimen-
tos de ensino mdio agrcola e as escolas superio-
res de Agricultura e Veterinria, mantidos pela
Unio, reservaro, anualmente, de preferncia, 50%
(cinqenta por cento) de suas vagas a candidatos
agricultores ou filhos destes, proprietrios ou no
de terras, que residam com suas famlias na zona
rural, e 30% (trinta por cento) a agricultores ou
filhos destes, proprietrios ou no de terras, que
residam em cidades ou vilas que no possuam es-
tabelecimentos de ensino mdio.
NOTAS
Seminrio Internacional As Minorias e o Direito 117
5 Veja-se a bem elaborada e exaustiva
monografia de Guilherme Machado Dray, O Prin-
cpio da Igualdade no Direito do Trabalho, Ed. Li-
vraria Almedina, Coimbra, 1999.
6 V. Carmem Lcia Antunes Rocha, Ao Afir-
mativa O Contedo Democrtico do Princpio
da Igualdade Jurdica, in Revista Trimestral de Di-
reito Pblico no 15/85, p. 86.
7 V. especialmente a Conveno da ONU sobre
a Eliminao de todas as Formas de Discrimina-
o Racial (1965); a Conveno da ONU sobre a
Eliminao de Todas as Formas de Discriminao
contra a Mulher (1979); o Pacto Internacional so-
bre Direitos Econmicos, Sociais e Culturais
(1966); o Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Polticos (1966).
8 Flvia Piovesan Temas de Direitos Humanos,
Ed. Max Limonad, So Paulo, 1998, p. 130.
9 V. Bernadette Renauld, Les Discriminations
Positives, in Revue Trimestrielle des Droits de
lHomme, 1997, p. 425.
10 Ainda que timidamente, as elites dirigentes
brasileiras comeam a se expressar publicamente
a respeito da urgente necessidade de se enfrentar
com responsabilidade e conseqncia o proble-
ma racial brasileiro. Cogita-se, veladamente, nos
crculos governamentais, da introduo de uma
ou outra forma de ao afirmativa. Num brilhante
artigo recentemente publicado, ningum menos
do que o Vice-Presidente da Repblica, Marco
Maciel, abordou de maneira corajosa e apropria-
da a questo. Disse S. Exa: As formas ostensivas e
disfaradas de racismo que permeiam nossa soci-
edade h sculos sob a complacncia geral e a in-
diferena de quase todos so parte dessa obra
inacabada, inconclusa, de cujos efeitos somos res-
ponsveis. A riqueza da diversidade cultural brasi-
leira no serviu, em termos sociais, seno para
deleite intelectual de alguns e demonstrao de
ufanismo de muitos. Terminamos escravos do pre-
conceito, da marginalizao, da excluso social e
da discriminao que caracterizam o dualismo so-
cial e econmico do Brasil. chegada a hora de
resgatarmos esse terrvel dbito que no se ins-
creve apenas no passivo da discriminao tnica,
mas sobretudo no da quimrica igualdade de opor-
tunidades virtualmente asseguradas por nossas
Constituies aos brasileiros e aos estrangeiros que
vivem em nosso territrio (...) O Brasil ter de con-
vencer-se de que os negros e seus descendentes
deixaro de ser minoria no prximo sculo, pois
j representam maioria em trs das cinco regies
brasileiras (...) Vencer o preconceito que se gene-
ralizou e tornar evidente o dbito de sucessivas
geraes de brasileiros para com a herana da
escravido que se transformou em discriminao
so apenas parte do desafio. Se vamos consegui-
lo com o sistema de quotas compulsrias no mer-
cado de