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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (PPGEL)
A REPRESENTAÇÃO DA METRÓPOLE PÓS-COLONIAL N’OS VERSOS SATÂNICOS DE SALMAN RUSHDIE
ERIMAR WANDERSON DA CUNHA CRUZ
Teresina, agosto de 2013
Sob os auspícios do jubileu de prata da publicação d’Os versos satânicos, dedico este humilde trabalho ao mui estimado Prof. Dr. Sebastião Alves Teixeira Lopes que apresentou esta obra cuja inspiração tem iluminado a trajetória deste pesquisador.
01 UM LUGAR VISÍVEL, MAS NÃO VISTO: A ESPACIALIDADE DISCURSIVA
N’OS VERSOS SATÂNICOS DE SALMAN RUSHDIE
Até bem pouco tempo o espaço era invisível. É certo que os homens viviam
em suas cidades ou quartos, mas em sua presença contínua, estes elementos se
tornavam transparentes, como se constituíssem um grande conjunto
indiferentemente evocado pelo termo “espaço”. A sensibilidade ao espaço, e sua
dimensão histórica e sociológica são uma conquista moderna, que veio na esteira
das aflições e crises identitárias características da condição pós-moderna. Entender
este fenômeno é tomar conta de um movimento ainda em processo em nossa
cultura. Desfazer os vínculos com a cosmovisão imperialista e autocêntrica que
secularmente dominou e estagnou o discurso ocidental sobre o espaço ainda deve
exigir tempo e perda de privilégios aos quais muitos indivíduos não estão dispostos
a abdicar. Mas imaginar que existe um problema e todo um contexto discursivo que
o ampara é o primeiro passo para alçá-lo, nas palavras de Friedrich Nietzsche:
“Quem alcança seu ideal, vai além dele” (NIETZSCHE, 2003, p. 89).
Neste sentido, se decidiu abordar o tema: a construção discursiva do espaço
n’Os versos satânicos. Não deixa de ser um assunto inesperado, conforme se
poderá observar no levantamento crítico feito adiante, desde as suas primeiras
análises, a recepção deste romance de Salman Rushdie tornou recorrentes alguns
caminhos teóricos, como o campo de produção, as filosofias pós-estruturalistas e as
pontos mais específicos dos estudos culturais e pós-coloniais como: nação,
hibridismo identitário, multiculturalismo, crítica anti-imperial etc. Apesar serem
inquestionavelmente temas presentes nesta obra, instigou o caminho percorrido por
boa parte das análises existentes neste paradigma: geralmente o ponto de partida
eram conceitos influenciados pelos eixos teóricos que lhe davam base: a filosofia, a
antropologia, a sociologia e assim por diante. Estabelecidos os conceitos, os
estudiosos passavam a selecionar passos, focados principalmente nos relatos das
ações de personagens (diegese accional) que lhes permitissem coadunar a narrativa
ao pensamento teórico selecionado.
Tal fenômeno levou a identificar uma significativa lacuna na crítica: a reflexão
sobre aspectos mais pontuais da obra de Rushdie, como tempo, espaço, estilo, etc.
O reconhecimento do hiato conduziu para um paradoxo teórico, as teorias existentes
na crítica literária para os citados aspectos estavam arraigados a uma tradição
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formalista e estruturalista, cujos resultados se limitavam quase que exclusivamente à
descrição e categorização de elementos isolados. O que gerou um problema de
mão-dupla o qual desenvolvemos na presente investigação: de um lado interpretar a
espacialidade n’Os versos satânicos como uma representação discursiva ampla e
entender como este regime complexo de discurso pode auxiliar a formação de um
modo diverso de entender o espaço ficcional. O seja ao mesmo tempo em que se
intentou apreender a obra, este projeto crítico foi elaborando uma linguagem
analítica que permitiu também um avanço na reflexão mais geral sobre o espaço na
narrativa.
Desde que os Versos Satânicos saíram a lume em setembro de 1988, o livro
ficou envolto numa das atmosferas editoriais mais tensas do século XX. Nunca uma
obra tinha causado tanta polêmica, tantos julgamentos extremados (em apoio ou
reprovação), tanta celeuma, tantas manchetes de primeira página. Esta mise en
scène encontrou seu ápice em 14 de Fevereiro de 1989, quando o Líder Máximo do
Estado Islâmico do Irã, o aiatolá Khomeini, leu na Rádio Estatal, a sentença (fatwa)
de culpa de Salman Rushdie, o condenando a penal capital por blasfêmia ao Islã:
“Em nome de Allah, o Clemente, o Misericordioso”, entoou o anunciante. “Existe apenas um Deus, a quem devemos todos retornar” (2:46). Gostaria de informar a todos os valentes muçulmanos no mundo que o autor do livro intitulado Os versos satânicos, que foi escrito, impresso e publicado contra o Islã, o Profeta e o Alcorão, bem como os editores que estavam cientes do seu conteúdo, estão condenados à morte. Peço a todos os muçulmanos zelosos para executá-los rapidamente, onde quer que os encontre, de modo que ninguém se atreva a insultar os preceitos sagrados do Islã. Quem morrer por esta causa será considerado um mártir, se Deus quiser. Além disso, qualquer pessoa que tenha acesso ao autor do livro, mas não possui o poder de executá-lo, deverá encaminhá-lo ao povo para que ele possa ser punido por seus atos. A bênção de Deus esteja sobre todos vocês (KHOMEINI, 1989).
Daí por diante seguiram-se uma série de acontecimentos, que foram descritos
pelos veículos de comunicação ocidentais como “uma presença espalhada do
fundamentalismo islâmico” (NAZÁRIO, p. 44): exemplares eram queimados por fiéis
em praça pública em vários países (inclusive no Ocidente), as incontáveis ameaças
de morte, o crescimento da recompensa pela cabeça do autor, mais de trinta
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mudanças de endereço, uma contínua proteção policial... Passadas mais de duas
décadas de um inquestionável sucesso editorial, Os versos satânicos já apresentam,
apesar de sua recente data, uma alentada fortuna crítica, e um local entre as obras
mais recordadas do século XX.
Os versos satânicos relatam a trajetória de personagens que emigram para a
Inglaterra em busca de reconhecimento e realização identitária. O universo espacial
da trama de Rushdie movimenta-se entre mundos ricos em diversidades culturais e
ideológicas. Num misto entre crítica anti-imperial, humor e pastiche, o ficcionista
indiano compõe uma obra bastante peculiar na literatura contemporânea de língua
inglesa.
No presente estudo decidiu-se trilhar um caminho interdisciplinar: coadunando
a análise do texto à apreensão do caráter simbólico da espacialidade dentro do
discurso pós-colonial. Para tanto se adotaram propostas das seguintes abordagens:
Estudos Culturais da Escola Inglesa (Cultural Studies), Estudos Pós-coloniais e
Geografia Simbólica; em especial na adoção dos seguintes conceitos: terceiro-
espaço (BHABHA,1990), topofilia (TUAN, 1980), trialética da espacialidade (SOJA,
1996, 2000; LEFEBVRE, 1991), geografia simbólica (SAID, 2003, 2007) e não-lugar
(AUGÉ, 1995). De modo geral o estudo tem o propósito de identificar as diferentes
representações espaciais na narrativa, verificar a relação entre o discurso colonial e
o discurso pós-colonial, procurando observar como esta tensão articula os diversos
pontos de vista acerca da espacialidade na narrativa do romance de Salman
Rushdie.
A originalidade desta investigação se assenta no tratamento do espaço n’Os
versos satânicos, que é um aspecto pouco trabalhado em sua fortuna crítica. Tal
estudo tem ainda como escopo ampliar as pesquisas acadêmicas do Piauí versando
sobre a Literatura e Língua Estrangeiras, e especialmente as produções de matriz
pós-colonial de matriz inglesa que vem alcançando cada vez mais espaço na
bibliografia internacional especializada.
Um dos aspectos mais particulares da representação espacial em Os versos
satânicos trata-se da opção pela ambiente metropolitano, e principalmente pelo
espaço urbano de Londres. Tal escolha espacial está fundamentalmente associada
a dois caracteres particulares deste espaço geográfico: a metrópole é uma
espacialidade híbrida, isto é, tem sua paisagem marcada pela mistura de diferentes
usos arquitetônicos; e, principalmente pelo seu caráter cosmopolita, a cidade
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moderna é um modelo copiado e almejado como símbolo espacial da civilização
contemporânea.
Esta condição supranacional, supracultural da metrópole acaba por ressaltar
uma ambivalência que lhe é própria: a multiplicidade de horizontes referenciais e
possibilidades de usos consorciados a um número de desigualdades e dilemas
sociais. O caso de grandes cidades como Nova York, Londres, Rio de Janeiro, que
recebem todos os anos um alto fluxo de imigrantes em busca de melhores
condições de vida são amostras visuais desta contradição. Como ressalta Gyan
Pakrash (2010):
A aglomeração sem precedentes de pobreza produz o espetáculo de incessante desolação de um “planeta de favelas”. Monstruosas megacidades não prometem os prazeres da urbanidade, mas a miséria e conflito da selva hobbsiana. [...] A imagem da cidade moderna como uma identidade distinta e limitada está rompida bem como o mercado da globalização e saturação da mídia dissolve os limites entre centro e periferia. A partir das ruínas da cidade como um espaço de cidadãos urbanos aqui emerge, tal qual uma esfinge, um “Cidade Geral” de consumidores urbanos (PAKRASH, 2010, p. 1-2).
Neste quadro, os grandes núcleos urbanos são importantes vitrines dos
dilemas e conflitos gerados pela instabilidade social da contemporaneidade. Uma
vez sendo nas grandes cidades que se concentra o grosso da população mundial e
onde também se localizam os grandes núcleos da cultura de massa, das mídias, das
administrações político-econômicas. Acaba por ser o lugar onde se catalisam e
reverberam os complexos sociais da Pós-modernidade.
O conceito de cidade à primeira vista aparenta-se um dos mais simples no
que trata da espacialidade: uma forma de povoamento coletivo marcado pelo
acúmulo organizado de construções ou uma entidade geográfica oposta ao campo.
A urbanidade é um traço tão inerente da organização social e da vida moderna que
pensá-la para além da imediatez torna-se um complexo esforço de abstração. Essa
abordagem de espacialidade, por assim dizer, automatizada do espaço urbano
acaba por fixar sua configuração apenas ao caráter sensorial de sua paisagem.
Para ultrapassar este caráter estático e anacrônico da percepção da cidade, e
da espacialidade em geral nos apropriamos de uma discussão surgida nos estudos
da geografia humana, como reflexo da filosofia desconstrutivista de Jacques Derrida
e Michel Foucault: a virada espacial. Este movimento iniciado por geógrafos como
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David Harvey e Edward Soja reabilita o papel do espaço como elemento participante
da vivência social e cultural.
No capítulo Da topologia estrutural à espacialidade discursiva: os caminhos
da análise espacial nos estudos literários elaborou-se um panorama sobre o atual
estado da teoria do espaço dentro da crítica literária, evidenciando a existência de
um paradigma descritivista-classificatório, mais preocupado na criação de categorias
para elementos narrativos isolados que no entendimento da espacialidade como um
fenômeno global de significação. O levantamento e o exame crítico das
metodologias consagradas à análise espacial da ficção revelou que tais estavam
alicerçadas num discurso sobre o espaço consolidado no século XIX, atribuindo ao
espaço uma atmosfera de reificação e obviedade. O modelo espacial novecentista
decalcava os conceitos da geografia física e cartografia, reduzindo o espaço
ficcional a modelos formais e matematizados (tabelas, esquemas e mapas) que só
davam conta de uma pequena parte do fenômeno do espaço na ficção: a linguagem
e as suas possíveis referências concretas.
O reconhecimento desta contiguidade teórica exigiu uma reflexão
desconstrutivista da teoria do espaço, identificando os limites das abordagens mais
recorrentes na narratologia e propondo uma modificação de ordem metodológica:
partir da obra para a teoria e não de categorias pré-estabelecidas para classificar os
elementos narrativos. A assunção deste princípio levou a denominar este paradigma
de (des)construtivista em consonância com as teorias pós-estruturais e da
aprendizagem moderna. Para subsidiar a análise sugerida apropriou-se dos
conceitos inspirados na geografia simbólica e na virada cultural, em especial nos
trabalhos de Edward Said, Homi Bhabha para tratar da representação do discurso
pós-colonial e no modelo da trialética da espacialidade de Edward Soja que foi
sobremaneira relevante para sistematizar e descrever amplamente os dados
espaciais da própria narrativa d’Os versos satânicos.
No capítulo O lugar do espaço na fortuna crítica d’Os versos satânicos
investigou-se os modos o tema do espaço foi apreendido pela crítica literária do
romance de Salman Rushdie em três níveis: o espaço da produção, o espaço da
recepção e o espaço tematizado. De modo a organizar o volume das obras, foram
assumidos eixos temáticos que permitiram ressaltar a particularidade das análises
em cada um dos focos teóricos. O levantamento teórico ressaltou a lacuna das
investigações a tratar do espaço tematizado na citada, e uma necessidade de
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aprofundamento e de métodos específicos para tratar do espaço enquanto discurso
na narrativa ficcional.
No capítulo A representação da cidade n’os versos satânicos: do lugar ao
não-lugar, far-se-á a aplicação do modelo de análise (desconstrutivista) à narrativa
d’Os versos satânicos avaliando-a através da espacialidade da cidade. Tomando
como ponto de partida o modelo da trialética da espacialidade de Edward Soja e da
teoria narratológica Paul Ricoeur (2002), foi estabelecido um esquema de níveis da
espacialidade ficcional: a figuração, a configuração e o não lugar. De modo a
caracterizar os elementos espaciais descritivos da urbanidade adotaram-se as
seguintes categorias: espaços externos, espaços internos, os espaços naturais, os
espaços hierarquizados e os espaços de movência. Na seção dedicada ao não
lugar, será explorada a questão do exílio existencial, do sentimento de não
pertencimento e da alteridade com o nativo experimentados pelo imigrante no
contexto da metrópole pós-colonial.
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02 DA TOPOLOGIA ESTRUTURAL À ESPACIALIDADE DISCURSIVA: OS
CAMINHOS DA ANÁLISE ESPACIAL NOS ESTUDOS LITERÁRIOS
Fazer uma reflexão de caráter teórico em um trabalho que se assume como
pós-colonial pode aparentar uma contradição metodológica. Desde o pós-
estruturalismo passando pela virada cultural às análises feministas e marxistas, a
teoria era vista, não sem razão, como um conjunto de afirmações condicionadas por
um sistema de dominação que encerrava o mundo num esquematismo formalizante.
A teoria opunha-se na visão das citadas abordagens à vivência concreta e
significativa. E, de fato, o modelo de teoria construído a partir das reminiscências do
cientificismo novecentista, colocava a reflexão teórica em um nível de abstração que
tornava a ciência algo de misterioso, acessível apenas àqueles seres privilegiados
capazes de interpretá-la. Aos meros mortais (no jargão científico: os leigos, a massa,
o vulgo) restava acatar o que dizia a ciência, pois em sua pretensa ignorância não
teriam propriedade para questioná-la.
Ao lado deste ceticismo de que o pensador crítico não poderia compactuar
com a teorização, o discurso da ciência normativa continuou a desenvolver-se sem
os contrapontos que as abordagens contextuais poderiam oferecer. Fenômeno que
acabou construindo um abismo entre o pensamento crítico e as instâncias de
produção e divulgação do conhecimento. Ou seja, os pensadores críticos produziam,
mas o que era ensinado nas escolas e universidades eram teorias puras.
Observando este hiato, os estudos pós-coloniais começaram a repensar o papel da
teoria enquanto instrumento de ruptura com os discursos de dominação. Surgiu
assim, Orientalismo (2007) de Edward W. Said, O local da cultura de Homi Bhabha
(1998) e a Crítica da razão pós-colonial (1999) de Gayatri C. Spivak, todas, obras de
ampla envergadura teórica e nem por isso menos reacionárias com os discursos
hegemônicos.
Os estudos pós-coloniais criaram assim uma percepção nova do exercício
teórico. Na trilha da différance derridiana, o discurso científico servia de ferramenta
para desconstruir imagens hegemônicas deste mesmo discurso, assim como o
colonizado poderia se servir da linguagem do colonizador para questionar a sua
dominação. Postura discursiva entendida pelo filósofo alemão Max Horkeimer (1975)
como uma teoria crítica oposta à teoria tradicional:
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Mas existe também um comportamento humano que tem a própria sociedade como seu objeto. Ele não tem apenas a intenção de remediar quaisquer inconvenientes; ao contrário, estes lhe parecem ligados necessariamente a toda organização estrutural da sociedade. [...]. As categorias: melhor, útil, conveniente, produtivo, valioso, tais como são aceitas nesta ordem [social], são para ele suspeitas e não são de forma alguma premissas extracientíficas que dispensem a sua atenção crítica. [...], o pensamento crítico não confia de forma alguma nesta diretriz, tal como é posta à mão de cada um pela vida social. A separação entre indivíduo e sociedade, em virtude da qual os indivíduos aceitam como naturais as barreiras que são impostas à sua atividade, é eliminada na teoria crítica, na medida em que ela considera ser o contexto condicionado pela cega atuação conjunta das atividades isoladas, isto é, pela divisão dada do trabalho e pelas diferenças de classe, como uma função que advém da ação humana e que poderia estar possivelmente subordinada à decisão planificada e a objetivos racionais (HORKHEIMER, 1975, p. 138).
A teoria crítica entra no pensamento científico como resposta aos
extremismos da teoria ou da prática pura. Nesta medida, pensar o exercício teórico
crítico torna-lhe um importante instrumento de reflexão e denúncia das condições
sociais e, além disso, atribui ao discurso científico a possibilidade de trazer para si
tensões sociais menos perceptíveis.
Tomando por exemplo o Orientalismo de Edward Said: O processo do
orientalismo estético na literatura do século XIX sempre foi descrito na história das
ideias. Mas, foi o tratamento teórico do pensador palestino que conseguiu esclarecer
as raízes sociais e ideológicas deste fenômeno. Evidenciou-se que o “orientalismo”
não se tratava de um modismo artístico, e sim um largo processo de construção
simbólica, surgido no Ocidente para configurar uma imagem, muitas vezes
distorcida, do Oriente. Em suma, um estudo que nasceu como análise comparada
de um período literário demarcado, desvelou uma instituição social que teve início na
Grécia e vinha se propagando despercebida até atualidade - a invenção do Oriente
pelo Ocidente. A teoria reabilitou a experiência, desfazendo um equívoco milenar de
pensar a oposição meridional como um simples dado de cartografia.
Pensar na teoria do espaço ficcional cumpre o mesmo escopo: de um lado,
refletir sobre um discurso baseado numa ideia de espaço que por sua vez reflete-se
na teoria literária, do outro, pensar que consequências essa teoria tradicional incute
na atual interpretação do espaço representado na obra literária. Não se trata,
portanto, de um exercício erudicional ou uma cronologia de todas as propostas
dadas para a narratologia espacial, mas, a apresentação de modelos que continuam
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a ser empregados na teoria literária sem o questionamento se tais metodologias
ofertam uma visão global de seu objeto. O panorama teórico serve ainda para
demonstrar que apesar das diferenças nos modelos da crítica, todos admitem uma
imagem reducionista do espaço consolidada no século XIX e que nos últimos 50
anos vêm sendo criticada por diversos setores da geografia humana (TUAN, 1980;
SOJA, 1990, 1996; SAID, 2007) e da filosofia social (LEFEVBRE, 2006), num
movimento que recebeu o título de virada espacial.
A virada espacial aparece com o propósito de substituir a imagem milenar do
espaço enquanto uma entidade estática e isolada, por uma representação de
espaço relacionada com a vivência histórica e social, dinamizando-o. Esta
mobilização teórica demonstra-se oportuna para desfazer a estagnação dos
modelos predominantes na análise atual do espaço na literatura, que como se
poderá observar na continuidade deste texto, fundamentam-se quase
exclusivamente na identificação, categorização e classificação de elementos
narrativos isolados.
O emprego da formalização e esquematização das narrativas, como reflexo
da análise matematicista e anacrônica do espaço, levou a considerá-la um
paradigma descritivista-classificatório à semelhança do fora o estruturalismo para os
estudos de linguagem.
A assunção e aplicação do espaço social e dinamizado como ferramenta de
análise na presente investigação sobre a representação da metrópole n’Os versos
satânicos de Salman Rushdie (RUSHDIE,1998) vêm para suprir uma lacuna que a
teoria tradicional do espaço ficcional não aprofundaria: o discurso pós-colonial. Mas
como alcançar tais lacunas, imperfeições sem mergulhar na incerteza da reflexão
teórica? Para encontrar a différance, o avesso da representação hegemônica do
espaço e buscar um paradigma (des)construtivista é necessário entender a teoria
como uma caminho intermitente tal qual Lefebvre (2006, p. 20) pensava:
A teoria que se busca, que se ressente de um momento crítico e que desde logo recai no saber em migalhas, essa teoria se pode designar, por analogia, como “teoria unitária”. Trata-se de descobrir ou de engendrar a unidade teórica entre “campos” que se dão separadamente, assim como na física as forças moleculares, eletromagnéticas, gravitacionais. De quais campos se trata? De início, do físico, a natureza, o cosmos. Em seguida, do mental (aí incluídas a lógica e a abstração formal). Por fim, do social. Dito de outro modo, a pesquisa concerne ao espaço lógico-epistemológico – o espaço da prática social -, aquele que os
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fenômenos sensíveis ocupam, sem excluir o imaginário, os projetos e projeções, os símbolos, as utopias (LEFEBVRE, 2006, p.20, sem grifos no original).
2.1 A VISÃO DO ESPAÇO DE FORMA GERAL
O espaço é um dos elementos mais inerentes da vida humana, seja
representado por uma choupana ou por castelo, seja por uma luxuosa suíte ou uma
sombria floresta, toda experiência individual ou social é acompanhada
inexoravelmente pela espacialidade. Em quaisquer momentos, solenes ou reclusos,
ele nos acompanha como testemunha silenciosa de nossos atos e emoções.
Nenhum outro componente existencial nos é tão próximo e necessário quanto lugar
que convivemos. De tão simples, o espaço passa por um objeto cujo entendimento
integral não necessitaria nada além de um olhar mais atento.
A espacialidade, nesta perpectiva imediatista, é tratada como um fenômeno
estático, limitado e definido, cuja realização e interpretação não ultrapassariam o seu
exame pelos sentidos. Tal imagem determinista do espaço acabou por lhe envolver
de uma atmosfera de obviedade, onde “qualquer sujeito é capaz de definir o
espaço”.
Salman Rushdie afirma n’Os versos satânicos: “o que é comum acaba ficando
invisível” (RUSHDIE, 1998, p. 181). Este princípio é verificável no volume resoluto de
incursões teóricas a versarem de modo profundo sobre a questão espacial. Tomado
por um fenômeno demasiado simples, a espacialidade durante muito tempo não
recebeu uma atenção mais exaustiva dos pensadores das humanidades, sendo por
muitas vezes relegado exclusivamente às metodologias de análise importadas da
geografia física.
Assoma-se a este quadro de automatização significativa um grau de
dependência entre o conceito de espaço com outros fenômenos, como os objetos,
as ações e os seres. Conforme se lê numa definição semiótica:
Espaço é o substrato em que se desenrolam os fenômenos dimensionais, efeito desta inserção. Como o tempo possui uma posição e uma duração; o espaço possui uma posição e uma medida. Mas, diferente do tempo, o espaço tem forma (HÉBERT, 2012, p. 98)1.
1 Tradução livre, do original: Espace : Substrat dans lequel se déploient les phénomènes
dimensionnels, effet de ce déploiement. Demême que le temps est à la fois une position et une durée,
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Evidencia-se na definição de Louis Hébert (2012) o estado de coadjuvação da
espacialidade, tratada apenas como um efeito da existência das coisas, um pano de
fundo sem representatividade. Como se o espaço fosse um vazio sobre o qual
estivesse a realidade e tivesse papel pouco significante para a sua formação. A ideia
de espaço enquanto uma vacuidade é recorrente, observe-se, por exemplo, na
seguinte citação:
Ambiente ideal, caracterizado pela exterioridade de suas partes, no qual se localizam nossas percepções, e que por consequência tudo que se entende como finito. O espaço tal como o considera a intuição comum é caracterizado como homogêneo (os elementos que podem ser distinguidos pelo pensamento são qualitativamente indiscerníveis), isótropo (todas as direções possuem as mesmas propriedades), contínuo e ilimitado (LALANDE, 1997, p. 298)2.
André Lalande (1997) expõe em seu conceito de espaço, uma descrição
influenciada pelos princípios que o caracterizam na geometria, isto é, enquanto uma
abstração localizada no plano da lógica formal. O espaço nessa condição assume
um papel de total neutralidade e homogeneidade, isento de quaisquer diferenças,
mesmo perceptivas. Se admitida essa pressuposição, a espacialidade seria um
elemento não apenas vazio, mas também anacrônico, já que não estaria sujeito à
relativização subjetiva e interpretativa da consciência social e individual.
Todo este quadro conduz para uma análise realista-materialista da
espacialidade, pois, cria a impressão de que tal fenômeno seria algo per se, cuja
apreensão estaria isenta de interpretações. O espaço, nessa perspectiva, é somente
um dado puro da realidade e para analisá-lo bastaria constatar, através dos
sentidos, seus elementos constitutivos dentro de categorias objetivas (extensão,
altitude, relevo etc.).
l’espace est à la fois une position et une étendue (aire ou volume). Mais il est également, en cela il n’est plus comparable au temps, une forme. 2 Tradução livre, do original: Milieu idéal, caractérisé par l’extériorité de ses parties, dans lequel sont
localisées nos percepts, et qui contient par conséquent toutes les étendues finies. L’espace tel que le considère l’intuition commune est caractérisé par ce fait qu'il est homogène (les éléments qu'on peut y distinguer par la pensée sont qualitativement indiscernables), isotrope (toutes les directions y ont les mêmes propriétés), continu et illimité.
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2.2 O ESPAÇO DENTRO DA CRÍTICA LITERÁRIA
O espaço é, ao lado do tempo, um dos elementos mais fundamentais na
construção de obras ficcionais, conforme ressalta Salvatore D’Onofrio (1995): “[...]
todo texto literário possui seu espaço, na medida em que encerra um pedaço da
realidade, estabelecendo uma fronteira entre ela e o mundo imaginário. O espaço da
ficção constitui o cenário da obra, onde as personagens vivem seus atos e seus
sentimentos” (D’ONOFRIO, 1995, p. 98).
Apesar de tal relevância é raro encontrar na bibliografia especializada um
exame detalhado das manifestações espaciais na ficção. Tal fato condiciona que a
teoria do espaço na narratologia seja bastante esparsa, constituída basicamente por
artigos e por reflexões episódicas nas obras de maior envergadura. Mesmo em
teóricos consagrados na análise estrutural da narrativa como Todorov (cf. 1982,
1996, 2003, 2006), Genette (cf. 1969, 1972a, 1972b, 1998, 2000) e Barthes (cf.
1968, 1972, 1991), o aspecto espacial é parcamente tratado, o que exige do analista
a necessidade de impor uma organização que permita sistematizar uma teoria de
fontes tão desconectas.
Neste particular, a Narratologie des Raumes [Narratologia do espaço] de
Katrin Dennerlein (2009) demonstra-se uma importante ferramenta para ultrapassar
o obstáculo trazido pela falta de concentração bibliográfica. A obra recenseia a maior
parte da produção de caráter crítico-literário acerca do espaço durante todo o século
XX e início do XXI. A partir do estado da questão apresentado por esta obra, torna-
se mais simples entender as linhas de pensamento que foram desenvolvidas
historicamente na análise do espaço na literatura.
Conforme ressalta Dennerlein (2009), o aspecto espacial desde sempre foi
um traço que chamou a atenção do público leitor, que se focava na capacidade que
o texto literário tem de aguçar através da imaginação a recriação dos elementos
imagéticos que compõem as tramas ficcionais. Assim, o exercício de imaginar a
Ítaca de Ulisses na Odisseia (2007), o Inferno de Dante na Divina Comédia (2003)
ou a Casa Verde d’O Alienista (2003) de Machado de Assis era uma das partes mais
lúdicas e instigantes da leitura literária.
Tratando especificamente da leitura do espaço ficcional pela crítica, observa-
se que desde o começo do século XVIII os estudiosos tiveram uma forte inclinação
em estabelecer qual a relação existente entre os espaços ficcionais e os espaços
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concretos que lhe serviriam de modelo. Tal investigação se propunha,
principalmente, em reconstituir as paisagens históricas que se encontrariam
decalcadas nas narrativas literárias, por exemplo: se procurava resgatar a Grécia do
Período Micênico através da Odisseia e da Ilíada, a Europa do século XVIII por meio
das obras de Hugo, Dumas ou Schiller e assim por diante. Havia o entendimento da
obra literária como um documento, o que refletia numa análise historicista das
narrativas, mesmo as ficcionais. O historicismo e o cientificismo que dominava a
crítica literária novecentista assumiu a premissa de que o espaço, tanto concreto
quanto narrativo deveria ser entendido através das premissas da Geografia, que
ganhara neste mesmo século o status de disciplina científica a tratar da descrição
dos lugares.
É evidente, no entanto, que a própria estética literária da época concorria para
tais procedimentos descritivos: a literatura romântico-realista rompeu com um
paradigma de centrar suas tramas em locais imaginários (Tróia, a Jerusalém
medieval, a Ilha dos Prazeres etc.) e passaram a ocupar ambientes conhecidos e
concretos, em especial, as grandes cidades europeias modernas, que acumulavam
os centros intelectuais e artísticos do Ocidente. Assim, os romances alemães
adotam Berlim; os ingleses, Londres, e assim por diante; tornando o espaço fictício
uma tentativa de representação do espaço concreto.
Este movimento é perceptível, inclusive na Literatura Brasileira. Em romances
urbanos como os de Machado de Assis e José de Alencar existe uma configuração
espacial que traz para a Literatura muitos elementos descritivos do concreto, a
começar pelo emprego do nome de lugares reais como o Passo Imperial, a rua do
ouvidor, pela descrição dos prédios, fachadas, ruas.
A partir deste momento começa uma substancial migração dos conceitos da
geografia física e matérias relacionadas com esta (cartografia, topologia etc.), que se
cristalizaram como parte do jargão da análise literária. Isso ocorreu com tal
naturalidade ao ponto de não sentir-se estranhamento em termos como “espaço
geográfico na narrativa” ou “topologia narratológica”. Alguns destes termos
passaram a nomear linhas de estudo razoavelmente autônomas dentro da crítica
literária, como a “cartografia literária”, contando inclusive com uma tradição à parte
na bibliografia dos estudos espaciais da literatura. Cristalizou-se desta maneira o
primeiro modelo de descrição do espaço ficcional, o modelo concretista.
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2.2.1 O Modelo Concretista
O estudo sistemático do espaço ficcional foi iniciado ainda no século XVIII e
ganhou corpo na primeira metade século XIX, época em que predominava um
discurso de tempo e espaço guiado pelo ideal teleológico da objetividade, unidade e
universalidade (influenciado pela tradição hegeliana). Neste contexto, havia a
assunção de que as artes em geral, eram uma tentativa de representação dos
objetos concretos. E entendia-se representação como uma tentativa de aproximação
da realidade, uma imitação de caráter estético, mas, ainda arraigada ao modelo que
servia de inspiração ao artista. O estético residia, segundo o pensamento da época,
principalmente no seu aspecto não instrumental, conforme se dizia “a arte é um fim
sem fim”, ou seja, um objetivo sem propósito definido ou nas palavras de Kant
(2010) na Crítica do Juízo:
A intenção proposital pode ser vista por meio da relação variada com um determinado objetivo, ou através de um conceito. Isso evidencia o seguinte: que o Belo, é avaliado por um mero propósito de forma, isto é, um objetivo sem propósito, que é integralmente independente de uma relação com o Bom, deste modo há uma intenção proposital, isto é, a intenção de um determinado propósito se dá (KANT, 2010, p. 142)3.
.
Fica evidente que a estética novecentista ainda cria na relação dos objetos
estéticos com algo para além destes, a realidade concreta; a arte, portanto não era
um domínio autossuficiente. No caso da literatura, esse fenômeno se repetia: a partir
do romantismo, os elementos das narrativas são importados da realidade próxima
dos escritores: seus personagens, temas e intrigas têm como fontes o cotidiano e as
questões culturais daquele momento. Isso é especialmente claro no que trata o
espaço ficcional, a partir da consolidação do romance como forma dominante
narrativa, os ambientes narrativos começaram a adentrar as grandes cidades, se
desviando dos lugares comuns representados até o Classicismo. As personagens se
movimentavam por um mundo cujos nomes e linguagens eram assemelhados ao do
3 Tradução livre, do original: Die objektive Zweckmäßigkeit kann nur vermittelst der Beziehung des
Mannigfaltigen auf einen bestimmte Zweck, also nur durch einen Begriff erkannt werden. Hieraus allein schon erhellet: daß das Schöne, dessen Beurteilung eine bloß formale Zweckmäßigkeit, d.i. eine Zweckmäßigkeit ohne Zweck, zum Grunde hat, von der Vorstellung des Guten ganz unabhängig sei, weil das letztere eine objektive Zweckmäßigkeit, d.i. die Beziehung des Gegenstandes auf einen bestimmten Zweck, voraussetzt.
15
público leitor. Isto é falava-se não de pátrias legendárias ou de passados imemoriais,
mas de subúrbios parisienses ou praças londrinas atuais.
O limite entre o real e o ficcional era tênue, e não era difícil encontrar críticos
que censurassem obras que não escapassem a este paradigma de representar o
ficcional segundo as demandas que o mundo real exigia. Tratava-se o espaço
presente na literatura tal qual uma tentativa de decalque dos locais concretos, daí o
forte descritivismo presente na prosa romântico-realista, que acaba dando ao
espaço ficcional uma forte aparência de realidade.
Dentro deste raciocínio surge o modelo concretista do espaço ficcional, que
procurar investigar o espaço nas obras literárias na medida de sua aproximação com
suas referências concretas. O modelo concretista admite as seguintes
características para o espaço consoante Dennerlein (2009):
(a) Objetividade e reificação
“O espaço é concebido como uma realidade independe de um observador.
Ele é tratado como um objeto cuja existência, lhe determina univocamente.
‘Espacial’ é um conceito que opõe à ‘social” (DENNERLEIN, 2009, p 58) 4.
A espacialidade é um elemento objetificado e autossuficiente, sua existência
se limita aos caracteres imediatamente percebidos, não sendo possíveis flutuações
interpretativas significativas entre observadores distintos. O espaço é neutro, e,
portanto, não está sujeito a alterações provenientes da percepção subjetiva.
(b) Possibilidade de categorização e diferenciação
“O espaço, bem como o tempo, é uma categoria fundamental de classificação
e distinção. Qualquer identificação exige um tempo e um espaço. Baseados nesta
diferenciação são identificados categorialmente. Dentro de localizações espaciais
como esquematizações para objetos associados (pessoas, cultura, artefatos) tais
qualidades: divisibilidade, distinção servem de bases para fronteiras nítidas (cada
4 Tradução livre, do original: Objektivität und Objekthaftigkeit: Dem ‚Raum‘ wird eine
beobachterunabhängige Seinsweise zugesprochen. Er wird als Gegenstand behandelt, dessen Existenzart es ‚richtig‘ zu bestimmen gilt. ‚Raum‘ ist ein oppositioneller Begriff zum ‚Gesellschaftlichen‘.
16
homem, cada edifício, cada cultura está em um nível de localização, como em uma
categoria)” (DENNERLEIN, 2009, p 58) 5.
Toda percepção espacial liga-se à oposição com mais de uma espacialidade.
É por meio da diferenciação (certo espaço é o que outro não é) que somos capazes
de reconhecer o espaço no qual nos encontramos. Em suplemento a esta atividade
cognitiva, o espaço também é compreendido por meio de categorias como: medida e
extensão, que permitem separar o espaço em unidades menores.
(c) Separação e aditividade
“O espaço é algo que se distingue por ser segmentado em unidades que não
se sobreponham, e sua extensão integral é uma totalidade ilimitada. O espaço do
mundo (território) é a soma suas partes discretas, lotes delimitados” (DENNERLEIN,
2009, p 58) 6.
O espaço é limitado pela nossa percepção, deste modo, é possível
estabelecer fronteiras que facilitem a sua compreensão. O espaço total de uma
extensão é uma soma das suas partes limitadas, assim, por meio de um exercício de
abstração somos capazes de imaginar áreas não imediatamente visíveis, como os
continentes.
(d) Descontinuidade, Distinção, Continuidade/Homogeneidade
“Numa dimensão espacial, as unidades discretas são descontínuas em
termos de uma diferenciação (‘é distinto’). Dentro de categorias de semelhança,
conexão, uma uniformidade (homogeneidade) é assumida” (DENNERLEIN, 2009, p
58) 7.
5 Tradução livre, do original: Kategorialität und Disparatheit: Der Raum ist – neben der Zeit – eine
grundlegende Kategorie der Einordnung bzw. Zuordnung. Jegliches hat seine Zeit und seinen Ort. Auf dieser Basis werden Ungleichheiten kategoriell erfasst. Indem Raumausschnitte als Projektionsflächen für Sachverhalte dienen, bekommen auch die eingeordneten Gegenstände (Menschen, Kultur, Artefakte etc.) die gleichen Qualitäten: Teilbarkeit, Unterscheidbarkeit auf der Grundlage trennscharfer Grenzen (jederMensch, jedes Bauwerk, jede Kultur gehört auf einer Ebene genau einer Kategorie an). 6 Tradução livre, do original: Diskretheit und Additivität: Raum ist etwas, das sich abgrenzen und in
Einheiten zerlegen lässt, die sich nicht überschneiden und in ihrer Summe eine endliche Ganzheit ergeben. Die räumliche (territoriale) Welt ist die Summe ihrer diskret begrenzten Raumausschnitte.
17
Não se deve confundir o espaço com o seu conteúdo. Numa perspectiva
concretista, o espaço é apenas o substrato onde estão as coisas, sendo diferenciado
por meio da categorização. Por si mesmo o espaço é homogêneo e contínuo.
(e) Extensão finita
“Os espaços têm um interior e exterior, estes são entendidos como unidades
discretas com uma dimensão limitada (planimétrico) ou uma expansão (espaço-
conteúdo)” (DENNERLEIN, 2009, p 58) 8.
O espaço tal qual é observado na realidade empírica é sempre atrelado a
uma limitação, em oposição a outro espaço determinado. A dimensão do espaço é
identificada na sua extensão horizontal ou vertical, daí ser entendido como
planimétrico. Entretanto duas dimensões espaciais podem ser cruzadas de modo a
expressar um conteúdo (altura X área).
(f) Estabilidade/Constância
“O espaço é, enquanto uma dimensão adicional ao dinâmico tempo,
atemporal (anacrônico) em conotação. Circunstâncias são fixadas por sua
localização, e são dadas por um caráter estático da representação do espaço”
(DENNERLEIN, 2009, p 59) 9.
Para ser apreendido enquanto uma dimensão existencial autônoma, o espaço
tem que ser isolado do tempo. Por consequência, a espacialidade é imutável dentro
de uma cronologia, e não sendo dotado da dinamicidade do movimento temporal, é
também estático.
7 Tradução livre, do original: Diskontinuität, Distinktion und Kontinuität/Homogenität: In einer
räumlichen Dimension sind die diskreten Einheiten diskontinuierlich im Sinne einer Unterschiedlichkeit (‚distinkt‘). Innerhalb der Kategorien wird von einem lückenlosen, kontinuierlichen Zusammenhang und einer Gleichartigkeit (Homogenität) ausgegangen. 8 Tradução livre, do original: Endliche Extensität: Räume haben ein Innen und ein Außen, sie werden
als begrenzte Einheiten mit einer endlichen flächenhaften (planimetrischen) Ausdehnung aufgefasst (‚Containerraum‘). 9 Tradução livre, do original: Stabilität/Konstanz: Raum ist – als Dimension neben der dynamischen
Zeit – in seiner Konnotation selbst zeitlos. Gegebenheiten sind durch ihre ‚Verortung‘ fixiert und erhalten in der räumlichen Repräsentation einen statischen Charakter.
18
Percebem-se nas descrições mencionadas que as propriedades apontadas
para o espaço ficcional são simples recolocações das imagens convencionalmente
atribuídas ao espaço empírico, não se observa um refinamento ou uma adaptação
dos conceitos geográficos para aplicação nas narrativas ficcionais. Conforme se
poderá observar nos críticos literários que comungam com este modelo.
Gabriel Zoran (1984) afirma que a ficção se alicerça em duas coordenadas
básicas, o tempo e espaço, que por sua vez refletem as referências mais ou menos
decalcadas da realidade factual. No caso da narrativa ficcional, o ponto de
afastamento das experiências concretas é uma correlação, mas não uma
concomitância do espaço e do tempo. Isto é, o tempo e espaço narrativos estão
imbricados na ficção, mas tem certo grau de independência e seguem uma lógica
diferenciada daquela observável na existência empírica, admitindo regimes
particularizados de significação:
A relação entre o espaço e tempo no texto da narrativa é lacunar tanto a clareza e a simetria que possui quanto aplicada ao campo da realidade. [...] A existência de espaço é empurrado para um canto, por assim dizer. Ele não é totalmente descartado, mas também não têm um estatuto reconhecido e clara no texto. Ele pode ser entendido de várias maneiras, mas nenhuma é tão clara e inequívoca como o tempo de duração. Essa falta de simetria na relação entre espaço e tempo é evidente não só no seu status no texto, [...] No entanto, apesar da possibilidade de distinguir entre o espaço do texto e do mundo, não se pode apontar para qualquer correlação constante entre eles (Zoran, 1984, p. 310) 10.
O crítico israelita defende alguns pontos específicos que caracterizam a
ontologia do ambiente ficcional: a assimetria do espaço-tempo, a não homologia
entre as referências narrativas e empíricas e a independência dos conteúdos
espaço-temporais do mundo concreto e dos mundos possíveis ficcionais. Na mesma
10
Tradução livre, do original: The relationship between space and time in the narrative text lacks both
the clarity and the symmetry it possesses when applied to the field of reality. [...] The existence of
space is pushed into a corner, so to speak. It is not altogether discarded, but neither does it have a
recognized and clear-cut status within the text. It can be understood in various ways, but none is as
clear and unambiguous as the term time. This lack of symmetry in the relationship between space and
time is evident not only in their status in the text, [...] Nevertheless, despite the possibility of
distinguishing between the space of the text and that of the world, one cannot point to any constant
correlation between them.
19
menção, Zoran ressalta a ambiguidade que o espaço ficcional apresenta, pois
diferente do tempo que possui uma realidade abstrata plenamente assimilável pela
linguagem no texto literário, o espaço sempre se apresenta uma contradictio in
adjecto uma vez que este se caracteriza por ser um dado material e sensível da
realidade e a linguagem não teria como representar tal materialidade. Para
descrever como a narrativa ultrapassa tal limite, Zoran explica que a linguagem
procurar fazer o máximo de aproximações com o real resultando num processo de
espelhismo verbal:
Espaço como aparece na narrativa é um padrão muito complexo, e apenas uma pequena parte de sua existência no texto baseia-se na descrição direta. Na verdade, é uma combinação de vários tipos e níveis de reconstrução. [...] Um objeto espacial é caracterizado pelo seu ser completo, pleno, e existindo simultaneamente. Na tentativa de dar expressão verbal com a estrutura de tal objeto, o objeto deve primeiro perder alguma da sua “integridade”, já que é impossível dar uma expressão idêntica a todas as suas partes e aspectos: alguns deles podem ser descritos explicitamente , alguns deles implicitamente, e alguns evitados completamente. [...] Em qualquer caso, os aspectos espaciais são cortado s, por assim dizer, a partir de seu contexto espacial e simultâneo, e estão dispostos ao longo de uma linha temporal (ZORAN, 1984, p. 313)11.
Zoran estabelece que a existência do espaço na narrativa ficcional se dá
através de uma série de níveis descritivos que procuram diminuir os impedimentos
da linguagem em representar a “totalidade” que caracteriza os objetos espaciais. A
narrativa literária apresentaria o espaço empírico por meio de descrições com mais
ou menos detalhes, segundo a necessidade do narrador. Numa forma de
esquemática:
11 Tradução livre, do original: Space as it appears in the narrative is a very complex pattern, and only
a small part of its existence in the text is based on direct description. It is actually a combination of various kinds and levels of reconstruction. [...] A spatial object is characterized by its being complete, full, and existing simultaneously. In the attempt to give verbal expression to the structure of such an object, the object must first lose some of its "completeness," since it is impossible to give an identical expression to all its parts and aspects: some of them may be described explicitly, some of them implicitly, and some bypassed altogether. [...] In any case, the spatial aspects are cut off, so to speak, from their spatial and simultaneous context, and are arranged along a temporal line.
20
Figura 01: esquema das aproximações entre referências linguísticas e
empíricas (ZORAN, 1984, p.315) 12
No esquema se destaca o papel do tempo como diretor da espacialidade, a
representação espacial só existe no modelo de Zoran na medida da sua localização
temporal. Assim, o espaço isolado seria apenas uma série de recortes imprecisos,
flashes do espaço empírico. Na representação esquemática isso se materializa
através da pequena área da figura do espaço, que ganha volume na medida do
tempo, reiterando a contiguidade do aspecto espacial na narrativa.
A partir destas pressuposições metodológicas, Zoran define que a
representação narratológica do espaço se dá em três níveis: (a) o nível topológico, o
espaço como uma entidade estática (no diagrama, expresso pela figura menor no
cubo), (b) o nível cronotópico, o espaço presente nas ações diegéticas, (projeção
semi cilíndrica no cubo) e (c) o nível textual, o espaço significado pela linguagem.
Estes níveis se inter-relacionam na estrutura narrativa para resgatar as suas
referências empíricas:
Estes níveis todos pertencem ao mundo reconstituído, e podem ser considerados como três níveis de reconstrução. O nível mais imediato de reconstrução é a textual, em que o mundo ainda mantém vários dos padrões estruturantes do texto. No nível cronotópico, o mundo já reconstruído é independente do arranjo verbal do texto, mas é ainda dependente do enredo. Finalmente, no nível mais alto de reconstrução, o topográfico, o mundo é percebido como existindo por si, com sua própria estrutura "natural", recortado inteiramente a
12
Tradução livre: Contínuo verbal, contínuo dos eventos no tempo, espaço-tempo, espaço.
21
partir de qualquer estrutura imposta pelo texto verbal e ao enredo (ZORAN, 1984, p. 315) 13.
O teórico israelita estabelece uma hierarquia que permite compreender de
que modo a narrativa se apropria da língua para constituir o seu efeito imagético. De
outro lado identifica os modos de apresentação do espaço no texto: (a) lugares,
ambientes caracterizados pela condição de ponto, plano, volume ou espacialidades
contínuas, cujas fontes são as extensões delimitadas na realidade objetiva. Nesta
categoria estariam as casas, cidades, ruas, campos e montanhas presentes como
cenários das ficções; (b) zona de ação, ambientes onde notadamente se desenrolam
as ações narrativas, não são espacialidades definidas, mas, o terreno onde jazem
quaisquer diegeses, no caso de uma ligação telefônica entre dois personagens a
zona de ação é a superposição dos lugares onde estão, que são por sua vez
fundidos num só espaço abstrato; (c) campo de visão, este ambiente bem como o
anterior é igualmente indefinido, e parte de uma condição particular da percepção
humana de opor o espaço visível como “aqui” e o espaço já visto ou ainda a se ver
como “ali” e “lá”, esta condição sensorial leva que cada personagem tenha uma
contrução espacial demarcada pelo momento imediato ou lembrado em que
visualiza certa espacialidade, cada uma destes flashes espaciais é um campo de
visão.
A apreciação do modelo espacial de Zoran demonstra que este assume a
espacialidade textual enquanto um signo estável. A composição de suas categorias
analíticas permite uma classificação orientada por critérios imediatistas como a
segmentação e a diferenciação. Apesar de lidar com os níveis de representação
referencial se limita a elaborar uma descrição que define o que um recorte textual
descritivo é, mas não demonstra uma preocupação em tratar a narrativa e seu
13
Tradução livre, do original: These levels all belong to the reconstructed world, and can be regarded
as three levels of reconstruction. The most immediate level of reconstruction is the textual one, in
which the world still retains several of the structuring patterns of the text. In the chronotopic level, the
reconstructed world is already independent of the verbal arrangement of the text, but is still dependent
on the plot. Finally, on the highest level of reconstruction, the topographic one, the world is perceived
as existing for itself, with its own "natural" structure, cut off entirely from any structure imposed by the
verbal text and the plot.
22
aspecto espacial como uma totalidade significativa. O autor mantém uma correlação
imediata entre o espaço empírico e a espacialidade narrativa, ressaltando-se como
máxima a limitação da representação linguística do espaço frente a sua referência
concreta. Além disto, no modelo de análise não se distingue com clareza as
particularidades da narração literária e narrativa em geral, o que acaba criando uma
análise que não se atém às possíveis flutuações históricas da representação
espacial através de estéticas literárias diferenciadas.
A proposta de análise de Zoran direciona para uma formalização da
espacialidade narrativa, os elementos espaciais que se encontram plasmados no
texto literário, seja em nível verbal (substantivos concretos de natureza imagética)
ou em nível diegético (cenários, ambientes da ação narrativa), seriam
autoexplicativos e o objeto do crítico seria o levantamento destes e sua posterior
categorização.
O mesmo procedimento é empregado em Dimensions of semiotic space in
narrative de Lawrence O’toole (1980), no ensaio o estudioso norte-americano se
apropria do modelo semiótico de matriz franco-soviética para propor uma
sistematização do espaço narrativo através de oposições binárias e de modelos
abstratos. Conforme este afirma:
A observação e interpretação das relações espaciais em textos narrativos é um relevante tema recorrente na semiótica recente. Oposições binárias, tais como alto / baixo, perto / longe, fechado / aberto têm sido interpretados como realizações textuais sistemáticas de categorias fundamentais da mítica [...], de códigos morais ou culturais [...], e em termos de oposições psicanalíticas [...], outros, têm tentado relacionar oposições espaciais na narrativa literária à dinâmica da trama e ponto de vista ou a delimitação de caráter. [...]. A oposição puramente binária, no entanto, ao mesmo tempo, nos oferta propostas diretas e valiosas sobre relações indiciais em uma narrativa [...], pode borrar a nossa percepção de outros aspectos do espaço semiótico, por exemplo, na medida em que ele pode não ter correlações espaciais de todo, e a extensão em que as suas dimensões são mensuráveis, ou seja, percebidas em nossa leitura consistindo estas mesmas de relações graduadas (O’TOOLE, 1980, p. 135) 14.
14
Tradução livre, do original: The observation and interpretation of spatial relationships in narrative texts is a significant recurrent theme in recent semiotics. Binary oppositions such as high/low, near/far, enclosed/open have been interpreted as systematic textual realizations of fundamental categories of mythic [...], of moral or cultural codes [...], and in terms of psycho-analytic oppositions [...] , among others, have attempted to relate spatial oppositions in literary narrative to the dynamics of plot and point of view or the delineation of character. [...]. A purely binary opposition, however, while giving us direct and valuable insights into indicial relations in a narrative [...], may blur our perception of other aspects of semiotic space, for example, the extent to which it may have no spatial correlates at all,
23
Continuando em sua exposição, O’Toole (1980) ressalta que todos os
elementos espaciais de certo texto ficcional poderiam ser formalizados na forma de
signos algébricos. O crítico poderia escolher numa narração os elementos cênicos
que lhe comporiam e lhe atribuiria, por exemplo, uma letra, assim, A para uma
árvore, B para uma montanha, e assim por diante. Depois de inventariar as
espacialidades, se ajuntariam as demais narrativas de uma obra e se observariam
como as séries espaciais sofreriam alternâncias, continuidades ou omissões.
Conforme um esquema oferecido pelo próprio teórico norte-americano para a
narrativa bíblica (Gn 37-50) de José, filho de Jacó:
L 3 {Todo Egito ... Canaã ... Mesopotâmia} L 2 {fazenda de Jacob ... deserto ... estrada para Canaã ... Gochen} L + 1 {palácio do rei ... acampamento do irmão} L {aposentos privados do rei, de Potifar, José, Jacó} L-1 {aposentos do rei, quarto de Potifar, câmara de conselho, parede, câmara, sala privada de J[osé], o quarto de J[osé]} L-2 {cama x 4, saco de milho} L-3 {copo, bolsa de dinheiro} (O’TOOLE, 1980, p. 139) 15.
Tomando como ponto de partida a citada narrativa do Gênesis, Otoole aplica
o seu modelo e faz um inventário de todos os ambientes presentes na trama e os
organiza numa série de níveis, de acordo com a sua extensão. De modo que nos
mesmos encontram-se respectivamente: os territórios, os locais, as construções, os
cômodos e os objetos. O’Toole elabora o mesmo procedimento com a diegese e as
dimensões da história de José e faz um cruzamento entre essas formalizações, que
teria como resultado uma matriz como esta na qual o autor aponta a formalização de
um jardim fictício:
and the extent to which its dimensions are measurable, i.e., perceived in our reading as themselves consisting of graded relationships. 15
Tradução livre: L+3 All Egypt... Canaan ... Mesopotamia} L +2 {Jacob's farm... wilderness... road to Canaan ... Goshen} L + 1 {King’s palace... brother's camp} L {private quarters of king, Potiphar, Joseph, Jacob} L- 1 {king's bedroom, Potiphar's bedroom, council chamber, well, cell, J's private room, J's bedroom} L-2 {bed x 4, sack for corn} L-3 {cup, money bag}
24
Figura 02- Formalização da espacialidade de um jardim (O’TOOLE, 1980, p.
141)16
O crítico defende que o cruzamento destas tabelas de dados disponibilizaria
para análise das narrativas um grau de elevada precisão e permitiria uma análise
global dos planos cronotópicos e diegéticos em sua simultaneidade. Pois, ao
esquematizar-se cada uma das dimensões na forma de linhas, o polígono que lhes
sintetiza oferta uma representação tridimensional que caracterizaria a sua totalidade
significativa. Segundo O’Toole cada um dos vértices da figura manifestaria uma
percepção particular da diegese, dando conta dos múltiplos pontos de vista
possíveis numa narrativa.
Figura 03- O cruzamento entre as dimensões narrativas da diegese
(O’TOOLE, 1984, p. 142)17
As propostas de O’Toole seguem pressupostos assemelhados aos de Zoran
(1984), o espaço é tratado como um elemento cuja análise se fundamenta na
segmentação e classificação de unidades discretas. Preserva-se a ligação do exame
espaço-temporal como exigência compulsória e uma focalização no tempo como
16
Tradução livre: A1-6- as diversas áreas do jardim, RR- rosas vermelhas, YR- rosas amarelas, H- ervas, SH- arbustos, F- árvores frutíferas, C- pinheiros, D- árvores temperadas, L- gramados, AN- vegetações sazonais, V- legumes. 17
Tradução livre: A- diegese, B- espaço, C- cronótopo (espaço X tempo), D- tempo.
25
dimensão mestra da ontologia ficcional. O que mais chama a atenção em sua
proposição é a assunção da topologia, disciplina originalmente matemática, como
instrumento da análise do espaço ficcional:
O ramo da matemática conhecido como topologia pode nos ajudar a mapear e medir essas relações sistemáticas complexas [de tempo, espaço e diegese], de modo a ter em conta todos os tipos de espaço semiótico, para evitar o excesso de simplificação da simples combinação de oposições binárias, e para dar um significado real para a noção de uma obra de arte como um signo semiótico complexo, integrante de uma rede de relações semióticas (O’TOOLE, 1980, p. 136) 18.
Uma das consequências mais naturais do método concretista, além das já
citadas categorização, objetificação, simplificação, anacronismo e automatização de
significados imediatos, é o emprego de metodologias exógenas à hermenêutica
literária. Tais instrumentos analíticos geralmente têm sua origem nas ciências
exatas, que investigam o espaço empírico em sua medida geométrico-formal
(topologia dos espaços métricos) e físico-geográfica (topologia física ou cartografia).
A entrada destas modalidades de estudo, se justificaria para oferecer interpretações
mais “precisas” e “inovadoras” das obras literárias, como ressalta O’Toole (1980):
[...] os procedimentos oferecidos para análise e síntese poética pela topologia estão longe de ser "reducionistas", como tantos modelos importados para a lingüística e a poética das chamadas ciências "duras" tendem a provar. Pelo contrário, eles são extremamente flexíveis, tão delicados e precisos quanto qualquer peça particular de análise, e tem uma elegância estética que tanto corresponde à estrutura de nossas próprias intuições sobre a obra de arte e oferecem mais novas e ricas intuições nas leituras subsequentes. Topologia pode até mesmo oferecer-nos alguma interpretação do papel da arte na sociedade e nas nossas vidas individuais (O’TOOLE, 1980, p. 136) 19.
18
Tradução livre, do original: The branch of mathematics known as topology may help us in mapping and measuring these complex systematic relations so as to take account of all kinds of semiotic space, to avoid the over-simplification of merely matching binary oppositions, and to give some real meaning to the notion of a work of art as a complex but integral semiotic sign made up of a network of semiotic relations. 19
Tradução livre, do original: [...] the procedures offered to poetic analysis and synthesis by topology are far from "reductionist" in the way so many models imported into linguistics and poetics from the so-called "hard" sciences tend to prove. On the contrary, they are extremely flexible, as delicate and precise as any particular piece of analysis requires, and have an aesthetic elegance which both matches the structure of our own intuitions about the work of art and prompts new and richer intuitions in subsequent readings. Topology may even offer us some interpretation of the role of art, both in society and in our individual lives.
26
Nas palavras do teórico norte americano identifica-se uma defesa prévia de
possíveis críticas relacionadas ao reducionismo que análise formal poderia trazer
para a interpretação literária. Questionando tal suspeita, O’Toole argumenta que,
pelo contrário do que se poderia pensar à primeira vista, a topologia estatística de
dados espaciais poderia captar detalhes sutis da estrutura visual dos textos
literários. Entretanto, nas análises oferecidas pelo estudioso não fica claro quais
seriam estas novidades interpretativas trazidas pelo modelo matemático, uma vez
que a sua proposta se limita a tornar mais precisos os dados da espacialidade com o
emprego de níveis e categorias, mas não há um entendimento do papel do espaço
na construção do significado da obra enquanto uma totalidade. Além disto, ao tentar
estabelecer a relação entre os componentes da narrativa, isto se realiza de modo
deficitário, uma vez que o método de matriz não explica o que representam as
variações e constâncias, apenas as identificando. Tal lacuna metodológica
determina limite em tal teoria, que serviria somente para inventariar as
espacialidades sem entendê-las como elementos significativos desta.
Apesar das limitações da análise oferecida por O’Toole (1984), a sua leitura é
relevante para constatar a existência de um paradigma recorrente na análise do
espaço narrativo, o uso do que se costumou denominar topologia. O termo topologia
é originário da geografia e reporta-se ao estudo, descrição e mapeamento dos
acidentes topográficos da superfície da Terra, isto é das montanhas, planícies, etc. A
topologia física trata do espaço natural e horizontal, e por analogia, dos espaços em
geral na sua neutralidade, sem as intervenções do homem sobre este.
A topologia adentra na crítica literária moderna, como a “ciência que estuda o
espaço” e, consequentemente como a “análise do espaço” (topo-análise) por reflexo
da sua etimologia20. Entretanto, o sentido da palavra na bibliografia criticista não é
único, por exemplo: Ernst Robert Curtius (1996 [1ª ed. 1957]) foi quem consolidou
seu uso na obra, Literatura europeia e idade média latina, cujo método foi
denominado topológico ou topologia (toposgemeinschaft). O pensador alemão,
diferente do outros autores citados, entende a topologia na medida da tópica, figura
da retórica clássica entendida como:
20 Do grego: πος, topos- “lugar, espaço, ambiente”; e γος, ογ α, logos, logia- “discurso acerca de
algo, ciência, estudo”.
27
[...] um ‘pensamento infinito (na sua forma infinita, formulado ou não formulado), pensamento esse que, num determinado círculo cultural, por formação escolar e tradição literária, ou pelos efeitos de instâncias educacionais análogas, se tornou propriedade tradicional comum (LAUSBERG, 1972, p. 110).
Conforme se observa na releitura de Heinrich Lausberg (1972), Curtius
emprega o conceito de topos não na medida do lugar enquanto uma espacialidade,
e sim como uma metáfora, “os locais comuns” (loci comunes) da produção literária,
isto é, os temas, fórmulas e estruturas desenvolvidas em determinada tradição
estética. O que não exclui certos tipos de espacialidades narrativas, como o locus
amoenus, o Elísio, o Paraíso, o Olimpo, etc. Todavia, deve-se entender que Curtius
assume o espaço como todos os ambientes da representação da literatura, no seu
modelo surgem topos não espaciais: a Idade do Ouro (tópica temporal), o amor
impossível (tópica temática), o elogio (tópica retórica), o salvador (tópica diegética
de personagem).
Além da proposta de Curtius (1996) existe a compreensão da topologia
literária como um reflexo da topologia física. Este modo de entendimento do espaço
narrativo, apesar de ser bastante presente na bibliografia, inclusive em autores já
mencionados ao início deste, não apresenta um método definido. A topologia como
é apresentada em O’Toole (1980), Zoran (1984), Loriggio (1990), Szegedy-Maszák
(1990) e D’Onofrio (2001), caracteriza-se pelo levantamento das ocorrências
espaciais numa determinada narrativa, sendo classificadas segundo critérios
absorvidos da análise do espaço geográfico, principalmente pela extensão das
referências empíricas que lhe serviriam de base.
Complementando a abordagem concretista, a topologia relaciona-se com a
representação gráfica dos espaços ficcionais, isto é ao seu mapeamento. A
chamada cartografia literária é uma matéria que apresenta razoável tradição nos
estudos literários, e se propõe a construir mapas das espacialidades presentes nas
narrativas ficcionais, conforme descreve Dennerlein (2009):
A tradição dos atlas literários aparece com o primeiro em 1907, ora pontuais, globais ou contextuais espacialmente falando, isso demonstra uma impressionante marca (Nagel, 1907): O atualmente muito popular Atlas da Literatura de Bradbury está divido entre épocas e lugares (Bradbury, 1996). No capítulo seis “O Mundo Moderno”, há subcapítulos para Viena, Praga, Dublin, Paris e Berlim.
28
Residências, locais de trabalho e pontos de encontro de escritores, seus locais de escrita são apresentados em mapas. O Dicionário de Locais Imaginários, entretanto, apenas são lugares mencionados listados que não têm um sentido secular equivalente e neste sentido são imaginários (Maguel/Guadalupi, 2000) (DENNERLEIN, 2009, p. 01) 21.
O panorama bibliográfico da cartografia literária admite uma variedade de
temas, desde a própria elaboração de mapas “ficcionais” baseados em cartas
geográficas empíricas até a construção de modelos visuais (fotografias, gravuras)
dos cenários das narrativas. Entretanto, o seu uso mais comum é o primeiro citado,
a geografia literária, como preferem alguns autores, tem como meta principal:
Um atlas do romance. Por trás dessas palavras, encontra-se uma ideia muito simples: que a geografia não é um recipiente inerte, não é uma caixa onde a história cultural "acontece", mas uma força ativa, que permeia o campo literário e molda-lo em profundidade. Fazendo a ligação explícita entre geografia e literatura, então - mapeá-lo: porque um mapa é exatamente isso, uma conexão visível nos permitirá ver algumas relações significativas que até agora nos escaparam (MORETTI, 1998, p. 03) 22.
Franco Moretti (1998) nesta menção vai ao encontro de O’Toole (1980), o
crítico italiano como o americano, defende o emprego de métodos formais na análise
do espaço ficcional, e explica que o mapeamento se faria necessário para fazer
literalmente uma “conexão visível”, capaz de ser vista, entre os conteúdos
imagéticos expressos pela linguagem no texto e os leitores ou críticos, coisa que só
poderia se levada a cabo, no caso da espacialidade, por meio de um modelo gráfico-
visual, isto é, por um mapa.
A cartografia literária, diferente da topologia, possui um método mais
sistemático, em consonância com a cartografia geográfica. A maior distinção de uma
21 Tradução livre, do original: Die Tradition der Literaturatlanten, deren erster bereits 1907 erschien
und auf dendeutschen Sprachraum beschränkt ist, zeigt dies auf eindrückliche Weise (Nagel 1907): Der zur Zeit recht populäre Atlas of Literature von Bradbury ist nach Epochen gegliedert und dort nach Schauplätzen (Bradbury 1996). In Kapitel sechs „The Modern World“ gibt es Unterkapitel zu Wien, Prag, Dublin, Paris, Bloomsbury und Berlin. Wohnorte, Wirkungsstätten und Treffpunkte von Schriftstellern sowie auch die Schauplätze ihrer Texte werden auf Karten abgebildet. Im Dictionary of Imaginary Places werden hingegen nur solche Schauplätze aufgezählt, die kein realweltliches Äquivalent haben und die in diesem Sinne imaginär sind (Manguel/Guadalupi 2000).
22
Tradução livre, do original: An atlas of the novel. Behind these words, lies a very simple idea: that geography is not an inert container, is not a box where cultural history 'happens', but an active force, that pervades the literary field and shapes it in depth. Making the connection between geography and literature explicit, then - mapping it: because a map is precisely that, a connection made visible- will allow us to see some significant relationships that have so far escaped us.
29
para outra são as fontes, enquanto a geográfica lida com dados empíricos e
estáveis, a literária, parte de cartas já produzidas pela geografia e aplica as
informações presentes nas narrativas (desde os nomes de lugares até metragens de
percursos feitos por personagens) para gerar pontos aproximativos daquilo que é
citado com o espaço concreto. O resultado são plantas baixas que mapeiam o
campo de ação, as localidades ou os ambientes específicos de uma ou mais
narrativas. As cartas podem ser mais ou menos amplas de acordo com a escala
dimensional aplicada pelo analista, conforme se observa nos seguintes exemplos.
Figura 04- Mapa do espaço territorial do romance picaresco espanhol do
século XVI e XVII (MORETTI, 1996, 49) 23
23 Tradução livre:
___ Romance Picaresco
___ Dom Quixote
...... O Caminho de Santiago
No mapa demonstram-se os seguintes romances.
B- Francisco de Quevedo, O traficante LT- Anônimo, O Lazarillo de Tormes DQ- Miguel de Cervantes, Dom Quixote PJ- López de Ubeda, A pícara Justina
GA- Mateo Alemán, Gusmão de Alfarache RC- Miguel de Carvantes, Riconete e
Cortadillo
30
Figura 05 – Mapa da encruzilhada das três milhas, do conto Nosso vilarejo da
escritora britânica Mary Mitford (MORETTI, 2005, p. 36)
No primeiro caso, o mapa elaborado por Moretti é mais simplificado e trata de
demarcar os percursos dos personagens dos principais romances picarescos
espanhóis dos séculos XVI e XVII, tomando por base as cidades e vilarejos citados
neste. Para fazer um comparativo entre outras referências, o critico delineia as
locações citadas no Dom Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes e o
tradicional caminho de peregrinação de São Tiago de Compostela. O segundo
exemplo, é uma mapa mais detalhado (por conta da escala usada) e apresenta uma
localidade mencionada no conto Nosso vilarejo, o fato de tratar-se de um ponto de
pequena extensão, exigiu do crítico o contato com plantas mais específicas,
representando minúcias como a área do entorno, as regiões vizinhas, pontos de
referências, estradas, etc. Moretti reutiliza um mapa feito pelo historiador Thomas
Moule para o livro As cidades inglesas delineadas, cuja edição é contemporânea a
de Mary Mitford (1824).
Dentro da cartografia literária mais recente, tem-se esforçado para criar
metodologias precisas para a geração de mapas literários cada vez mais
sofisticados. A produção passa pela topologia na seleção e categorização dos dados
textuais e pelo uso de programas de computador que produzem cartas com
interfaces visuais (cores, gráficos e códigos) padronizadas. De modo geral, as
31
modificações são de caráter gráfico, as cartas resultantes deste processo são
mapas mais detalhados e permitem a interação com os usuários, uma vez que são
digitais e disponíveis pela rede mundial de computadores.
Entretanto, no que trata do aspecto teórico, isto é, em que tal apuramento
gráfico contribui para o entendimento das obras literárias e das espacialidades
contidas nestas; isto continua a ser dúbio. O que leva certos autores como William
Benzon (2011) a considerem este tipo de modelo cartográfico exterior a crítica
literária, um elemento paraliterário, como também o são as gravuras e anexos não
produzidos pelo próprio autor de uma obra (cf. GENETTE, 1997).
Estabelecendo um comparativo entre a topologia e cartografia literárias,
observa-se que o seu escopo teórico é similar: reunir os elementos textuais
referentes à espacialidade, classificar tais elementos em categorias decalcadas do
espaço empírico e apresentá-los em modelos abstratos, sejam esquemáticos
(tabelas, figuras e gráficos) ou visuais (mapas ou figuras). Em ambos os casos, o
espaço é encarado de modo imediatista e isolado, ou sem autonomia. Nas
propostas não se identifica uma atenção ao conteúdo significativo da espacialidade,
nem de sua correlação para formação do discurso global da narrativa. As categorias
analíticas produzidas nesta perspectiva servem mais à identificação e classificação
de elementos pontuais das narrativas e contribuem parcamente para o entendimento
de como estes se particularizam de obra para obra, ou como a espacialidade se
modificou através das diferentes estéticas na história.
2.2.2 Modelo Psicológico
O modelo psicológico do espaço surge a partir da influência d’A Póetica do
Espaço (1978) do filósofo francês Gaston Bachelard. Esta obra é bastante relevante
por ter sido uma das primeiras a tratar com profundidade do espaço, rompendo com
um longo hiato da história da filosofia no que tange o reflexão sobre o espaço.
Bachelard aplica ao espaço uma análise fenomenológica, isto é, o pensador tenta
entender o espaço não partir de suas referências imediatas, mas da experiência
deste como uma existência. Em suma, não é uma investigação de caráter
metafísico, procurando determinar os pontos comuns a todas as manifestações de
espaço (essência do espaço), é sim, uma busca pela poética (no sentido grego de
32
composição, feitura) da experiência particular da espacialidade. Bachelard assim
descreve o seu método:
Esta última observação define o nível da ontologia em que trabalhamos. Como tese geral, pensamos que tudo o que é especificamente humano no homem é logos. Não chegamos a meditar sobre uma região que estaria antes da linguagem. [...] Assim, a imagem poética, acontecimento do logos, é para nós inovadora. Não a tomamos mais como "objeto". Sentimos que a atitude "objetiva" do crítico sufoca a "repercussão", recusa, por princípio, a profundidade, de onde deve tomar seu ponto de partida o fenômeno poético primitivo. [...]. Admitindo uma imagem poética nova, experimentamos seu valor de intersubjetividade. Sabemos que repetiremos para comunicar nosso entusiasmo. Considerada na transmissão de uma alma para outra, vê-se que uma imagem poética escapa às pesquisas de causalidade (BACHELARD, 1978, p. 188).
O filósofo francês inverte o foco comum da investigação do espaço, partindo
do sujeito para espaço. O principal escopo de sua pesquisa é identificar de que
maneira o sujeito localiza sua identidade no espaço, isto é, como o homem cria sua
existência na relação com os espaços habitados por este em sua vida:
[...] a novidade essencial da imagem poética é colocar o problema da criatividade do ser falante. Por essa criatividade, a consciência imaginante se descobre, muito simplesmente, mas com toda a pureza, como uma origem. Todo esse valor de origem de diversas imagens poéticas é o que deve interessar, num estudo da imaginação, a uma fenomenologia da imaginação poética (BACHELARD, 1978, p. 188).
Bachelard propõe que a oposição básica do sujeito com o espaço é a
percepção do espaço feliz, “as imagens do espaço feliz. Nossas pesquisas
mereceriam, sob essa orientação, o nome de topofilia. [...] o valor humano dos
espaços de posse, espaços proibidos a forças adversas, espaços amados”
(BACHELARD, 1978, p. 196), e a sensação do espaço hostil, “os espaços de
hostilidade são apenas evocados [...]. Esses espaços do ódio e do combate não
podem ser estudados senão referindo-se a matérias ardentes, às imagens de
apocalipse” (BACHELARD, 1978, p. 197).
A partir deste jogo de lugares agradáveis (tópicos) e desagradáveis tópicos, o
pensador francês elabora mais uma categoria topofílica hiperbólica, o espaço
utópico, caracterizado pelo sonho, imaginação e desejo de realização transcendental
do homem. Diferente das outras formas de espacialidade citadas, o lugar da utopia
33
não se liga a qualquer materialidade objetiva, é um espaço mental, onde os limites
impostos pela matéria são dissolvidos. Bachelard exemplifica esta última condição
espacial como o sonho e a fantasia estimulada pela ficção. O pensador francês
ressalta ainda que por ser fundamentado pela imaginação individual, o espaço
utópico é lugar, por excelência, da consciência humana.
Nos dez capítulos de sua obra, Bachelard esquematiza aqueles que seriam
os arquétipos dos espaços emotivos do homem, a saber: I- A casa. Do porão ao
sótão. O sentido da cabana, II- Casa e universo, III- A gaveta. Os cofres e os
armários, IV- O ninho, V- A concha, VI- Os cantos, VII- A miniatura, VIII- A imensidão
íntima; IX- A dialética do exterior e do interior e X- A fenomenologia do redondo. Em
cada uma destas espacialidades, o pensador descreve as particularidades usando
critérios como abertura, fechamento, extensão e contiguidade, posteriormente
aplicando as oposições topofílicas antes descritas.
Apesar de Bachelard negar a natureza psicológica ou psicanalítica de seu
trabalho, inclusive criticando em alguns pontos dizendo que “O psicanalista pode
estudar bem a natureza humana dos poetas, mas não está preparado, pelo fato de
estagiar na região passional, para estudar as imagens poéticas em sua realidade
superior” (BACHELARD, 1978, p. 193). É muito evidente a aplicação do método
arquetípico desenvolvido pelo psicanalista suíço Carl Gustav Jung no livro Os
arquétipos e o inconsciente coletivo (JUNG, 2002), tanto na seleção de
macroestruturas de significação, quanto na criação de eixos temáticos de
explicação. Além disso, concorre para o entendimento da metodologia
fenomenológica de Bachelard como psicológica, a focalização do espaço enquanto
uma dimensão afetivo-emocional criada pela percepção do sujeito em sua
individualidade.
No que trata especificamente das inovações trazidas pelo método psicológico
para a análise do espaço de maneira geral esta se circunscreve ao questionamento
que Bachelard faz ao ideal geométrico. Para o pensador francês, o espaço puro
inexiste na realidade empírica, é o ser humano em sua subjetividade que traz a
significado para este, isolado do homem, a espacialidade é vazia. O que representa
um avanço considerável à inércia do modelo concretista.
No caso da crítica literária, as propostas de Bachelard foram determinantes
para ampliar o horizonte de entendimento da espacialidade ficcional, pois, o modelo
concretista de análise fixava-se na descrição de elementos visuais mais
34
monumentais, reflexo dos cenários dos romances históricos novecentistas. As
tramas romanescas do século XIX, geralmente, se debruçavam em histórias que
relatavam acontecimentos históricos, que se desenrolavam nos grandes castelos,
mansões, campos de batalha ou praças públicas; o que imprimia a sua
espacialidade um foco nas grandes construções. Como o modelo crítico concretista
se desenvolveu com este tipo de ficção, outros tipos de espaços e lugares recebiam
pouca atenção dos especialistas. A Poética do Espaço inverte este paradigma ao
focar nos espaços mais íntimos da vida humana para desvendar-lhe os seus
contornos:
Inicialmente, como deve ser feito no caso de uma pesquisa sobre as imagens da intimidade, colocamos o problema da poética da casa. As perguntas são muitas: como aposentos secretos, aposentos desaparecidos se constituem em moradias para um passado inesquecível? Onde e como o repouso encontra situações privilegiadas? Como os refúgios efêmeros e os abrigos ocasionais recebem às vezes, de nossos devaneios íntimos, valores que não têm qualquer base objetiva? [...] Com a imagem da casa, temos um verdadeiro princípio de integração psicológica. Nosso inconsciente está "alojado". Nossa alma é uma morada. E quando nos lembramos das "casas", dos "aposentos", aprendemos a "morar" em nós mesmos. Vemos logo que as imagens da casa seguem nos dois sentidos: estão em nós assim como nós estamos nelas (BACHELARD, 1978, p. 196-197).
Esta proposta de entender a intimidade espacial foi assimilada pela crítica
literária com o objetivo de descrever uma estética literária surgida no início do século
XX, o nouveau roman. O nouveau roman trata-se de uma forma diferenciada de
relato romanesco, como se afirmou anteriormente, o romance clássico assumia
como tema principal o relato do drama da nação, seus sucessos e fracassos, era um
mote fortemente social, vinculado aos espaços públicos. Com o advento do nouveau
roman, as tramas romanescas começaram a abandonar alguns caracteres, que lhe
conferiam um caráter épico: há uma perda da linearidade narrativa, não existe a
necessidade de uma teleologia dos motes, o objeto da narrativa deixa de ser a
comunidade para tratar dos dramas individuais e a diegese passar a ser cada vez
mais interiorizada.
O emprego desta narrativa intimista trouxe a narrativa para espaços mais
cotidianos e comuns, espaços estes que não eram contemplados pela crítica
concretista novecentista. O modelo psicológico alargou o horizonte espacial da
35
crítica literária, minimizando a aparente banalidade que o espaço interior costuma
causar à primeira vista. Nas palavras de Salvatore D’Onofrio (2001, p. 98): “O
espaço interior é o espaço subjetivo, do eu que fala, o espaço da enunciação”.
Tratando especificamente do modelo psicológico enquanto uma metodologia
crítica, observa-se que embora, este tenha trazido novidades para uma concepção
mais aberta e subjetiva do espaço, permanece o uso de classificações pré-
estabelecidas de análise (espaço tópico/atópico/utópico) e do emprego de
categorias de significação automatizada (os arquétipos espaciais). O modelo
psicológico funciona mais como um complemento da análise concretista, do que
realmente como uma proposta modificadora da visão mecanicista a qual a análise
do espaço ficcional estava atrelada; substituem-se categorias concretas por
categoria psicológicas, sem a preocupação com o conjunto e particularidade da
espacialidade de uma obra literária pra outra.
2.2.3 Modelo Gestalt-Cognitivo
A teoria gestaltista ou configuracionista é uma abordagem que procura
verificar a partir de que universais de percepção o ser humano constrói a sua noção
de ambientes externos e de realidades abstratas, como o tempo. Dentro desta
teoria, o investigador analisa os dados extraídos por certo indivíduo buscando
entender como este a partir das sensações estabelece redes de significação que
possibilitam alcançar uma consciência e conhecimento do meio em que se localiza.
Conforme esclarece Lannoy Dorin (1978, p.120):
A percepção é uma tomada de consciência das sensações e estas
são tipos simples de experiências, como já foi dito. Nas percepções
há, então, análises, associações e sínteses. Razão pela qual o
estudo da percepção requer primeiramente o conhecimento da
estrutura e funções dos órgãos de sentido e do sistema nervoso
central, porque, se entendermos que a percepção é sempre uma
interpretação pessoal de um acontecimento, temos que
entender como esse acontecimento chega aos centros nervosos
superiores. [...] Para os gestaltistas, devemos estudar os
objetos pela sua forma, dado que matéria e forma não se
36
dissociam num ser (DORIN, 1978, p. 120, sem grifos no
original).
A teoria gestaltista propõe que o mundo não é percebido da mesma por todos
os indivíduos, a todo o momento suas disposições pessoais, emocionais e sociais
agem para demarcar uma impressão naquilo que o sujeito apreende do mundo.
Deste modo, é impossível existir um mundo puro e livre de interpretações, pois
mesmo, o olhar que é considerado o mais objetivo dos sentidos está sujeito à
particularização do ponto de vista.
Os gestaltistas creem na existência de uma tendência (inata ou desenvolvida)
para percebermos conjuntos e não flashes desconexos da realidade. A mente
humana, em seu sentido cognitivo, criaria sínteses através dos seguintes
mecanismos de interpretação: 1- similaridade, a tendência a perceber elementos
com formas, tamanhos ou características aparentadas; 2- proximidade- tendência
para agrupar coisas semelhantes, formando conjuntos mais complexos; 3-
continuidade, tendência que permite dar continuidade ou ordem a alguns elementos;
4- totalidade, uma tendência da mente humana para observar as figuras como um
todo, completando, inclusive as lacunas de um objeto para que este alcance uma
significação completa.
Partindo destas tendências de interpretação, a percepção do espaço poderia
ser resumida na seguinte série de oposições qualificativas:
Fig. 06 – Esquema do sistema da espacialidade (ECO, 1984, p. 41)
Conforme vemos nesta figura inspirada em Algirdas Julien Greimas (1976) se
elaboram os níveis semânticos de descrição espacial de modo a criar categorias
unificantes do espaço. Quaisquer fenômenos espaciais poderiam ser reduzidos à
soma destes traços distintivos.
37
O modelo gestalt-cognitivo está presente na crítica literária como uma
consequência do modelo concretista. Para não se limitar análise à simples paráfrase
e enumeração das espacialidades contidas numa obra, alguns estudiosos
(D’ONOFRIO, 2001; MITCHELL, 1980) ressaltam o caráter sensorial (quando um
dos sentidos seria mais aguçado que outros numa determinada narrativa) ou a
predominância de uma destas oposições em uma trama. A presente abordagem,
bem como as anteriores, que lhe são complementares reforça o princípio de que o
espaço é uma entidade anacrônica, redutível a categorias pré-estabelecidas.
2.3 UM EXAME CRÍTICO DAS ABORDAGENS TEÓRICAS DO ESPAÇO
FICCIONAL
Depois de fazer um panorama das principais propostas de análise espacial na
narratologia, fica a impressão de que estas não possuem uma correlação intrínseca,
por ofertarem resultados tão diversos mesmo tendo o mesmo objeto de análise. A
diferença é significativa o suficiente para levar a pensar que poderiam não estar
tratando da mesma coisa. E tal suspeita não é de todo injustificada, cada um dos
modelos apresentados na teoria da literatura para o espaço tem um escopo
particular, que à primeira vista passam como sendo o mesmo. Para tornar mais claro
este fenômeno primeiro há de entender-se que o espaço literário se manifesta em
níveis existenciais, conforme descreve Louis Hébert (2012):
(a) o espaço da produção (espace de la production), associado ao espaço
contextual, isto é onde a obra surgiu, o espaço habitado pelo autor e seus
contemporâneos.
(b) o espaço da recepção (espace de la réception), espaço onde ocorre a recepção
das obras literárias, onde estas são lidas e valoradas no contínuo histórico.
(c) o espaço tematizado (espace thématisé) na produção, isto é, o espaço que se
encontra representado na própria obra literária através do discurso.
Destes três, aquele que está presente imediatamente na narrativa e é
apreensível por meio desta é o espaço tematizado. Portanto, é a ele que a teoria
38
literária se dedica, os demais fazem parte das dimensões da prática literária e são
domínio da sociologia da literatura (no caso de ‘a’) e da história literária (no caso de
‘b’). Neste esquema fica claro, que o espaço empírico não é terreno da teoria
literária, pois o que se presentifica na obra literária não é o concreto, mas sua
representação.
2.3.1 O estatuto ontológico do espaço na narrativa
O mundo concreto, isto é as coisas e a dimensão cronotópica, não está
decalcado na literatura, mas sim, representado através da linguagem (discurso). A
linguagem poética procura fazer aproximações do mundo por meio das descrições.
Todavia, nem só de aproximações se faz o relato ficcional, muitos elementos
concretos são propositalmente diferenciados na narrativa, sem que isso signifique
uma contradição. Pois, a coerência do texto literário possui certo grau de autonomia
com o seu referente, a polissemia é um traço inerente, e não um fenômeno
ocasional como acontece com a linguagem em seu regime utilitário. A relação entre
o concreto e o ficcional é sui generis e complexa, conforme descreve Roman
Ingarden (1980):
As objetividades apresentadas na obra literária são atividades pura e derivadamente intencionais projectadas unidades de significação. [...] os correlatos puramente intencionais das frases conexas podem entrar em múltiplas relações e conexões. [...] os objectos apresentados não estão isolados e estranhos uns aos outros, mas reúnem-se graças a múltiplas conexões ontológicas numa esfera una de ser (INGARDEN, 1980, p. 239-240).
O filósofo polonês ressalta em sua exposição que uma das principais
particularidades do discurso literário é que as objetividades são intecionais, isto é, os
elementos concretos representados neste, são interligados pela força significativa de
sua narração. Todos componentes que integram a obra literária são unidos por meio
de sua significação global e não apresentam, como na realidade empírica, um limite
unívoco. Mesmo em se tratando de elementos cuja referência concreta é limitada:
[As partes da obra literária] constituem [...] um sector de um mundo não definido nos seus pormenores mas determinado no que respeita ao seu tipo de ser ser, sector esse que nunca fica rigorosamente
39
limitado nos seus limites. Tudo se passa como se um cone de luz iluminasse parte de uma região, submergindo-se o resto numa névoa indefinida sem deixar de existir neste seu estado indeterminado (INGARDEN, 1980, p. 240).
Explica-se deste modo, um aspecto sobre o qual o modelo concretista se vale
para definir o espaço literário como cópia imprecisa do concreto. Na verdade, a
variação dos níveis de descritividade espacial no texto literário, não é uma limitação
e sim efeito da intencionalidade narrativa. Quando a diegese parece mergulhar um
de seus traços na penumbra, tal não representa uma contiguidade a ser sanada pelo
uso de esquemas, mas traço da possibilidade de resignificação inerente do discurso
literário. A narrativa literária tem, portanto, uma significação própria que não passa
pelo crivo do concreto, não lhe é superior ou inferior, mas uma forma própria de
existência.
Em tratando especificamente do espaço tal noção é extremamente relevante,
pois apesar da ficção evocar através de nomes (toponímia, prosopografia, etc.)
espaços que nos são reconhecidos como concretos, sua intenção com essa
atividade não é o de dizer que eles estejam ali tal qual se encontram na realidade e
sim suprir a narrativa de pontos de referência que possibilitem ao receptor
reconstituir imaginativamente o contexto ficcional que esta propõe: “Quando numa
obra literária se trata de objectos que são “reais” pelo seu conteúdo e se pretende
conservar o seu tipo de realidade, então eles devem ser apresentados como
temporais e existentes no espaço” (INGARDEN, 1980, p. 244).
Conforme ressalta o crítico polonês, sempre existe uma intencionalidade
semântica. Quando uma obra literária decide incluir em seu bojo narrativo uma
paisagem, um monumento reconhecido pelo leitor; tal conhecimento condiciona que
esta mantenha um mínimo de elementos que permitam a associação entre o espaço
representado e o espaço evocado. Todavia, este vínculo, por assim dizer realista
não é obrigatório e tem uma relação muito próxima com a estética literária de cada
momento. Assim, em estéticas mais descritivistas, como as prosas romântico-
realistas este processo é mais empregado, enquanto as simbolista-surrealistas isto
acontece como menos frequência, sendo até mesmo substituído pela alegoria. Para
exemplificar este fenômeno, Ingarden (1980) apresenta uma descrição espacial da
primeira cena do 1° ato de Emilia Galotti de Lessing:
40
Nela conhecemos um príncipe no seu gabinete a dar despacho a várias petições. Estas petições já nos indicam objectividades que se encontram fora da sala que vemos. Mas esta sala é de antemão apreendida como parte do palácio do príncipe. O que nos é apresentado não termina nas paredes do gabinete mas estende-se também às restantes salas do palácio, à cidade etc., apesar de tudo isto não ser dado directamente (INGARDEN, 1980, p. 240).
Fica demonstrada outra distinção fundamental entre o espaço concreto e o
espaço tematizado, este último não apresenta as contingências do primeiro. Apesar
de a descrição ofertar certos limites, tais fronteiras não são obrigatórias nem
determinantes, o receptor tem plena liberdade de ultrapassar o que está
imediatamente expresso no texto e construir analogias que lhe ofertem uma visão
global da espacialidade narrativa. Uma sala dentro da ficção tem paredes, mas não
se encontra aprisionada a esta contiguidade, ela mantêm uma continuidade
semântica com o todo da obra, e pode representar mais que apenas uma sala. A
identificação destes traços direciona para as idiossincrasias do espaço narrativo:
O espaço [...] aqui [na narrativa] não é o espaço real e único do mundo nem tão-pouco o “espaço de orientação” [...]. Por outro lado, não é o espaço geométrico, homogêneo, ideal, a pura multiplicidade tridimensional dos pontos. [...]. É, pelo contrário – por assim dizer –, um espaço próprio. [...] Os espaços explícita e realmente apresentados são, neste caso, separados por uma espécie de lacunas e ostentam, por assim dizer, lugares de indeterminação. Todas estas situações são absolutamente impossíveis num espaço real. Deparamos, assim, com uma particularidade geral. [...] Nunca é permitido identificá-los com o objeto da representação. Menos ainda [...] derivadamente pelas significações das palavras [...] e com algo que constitui componente real de vivências psíquicas concretas. [...] O espaço em que ele se encontra é o espaço apresentado. Na verdade, aquilo nele existe [tem] o caráter de algo representado e interpretado perante alguém (INGARDEN, 1980, p. 244-246, sem grifos no original).
Conforme descreve Ingarden (1980) o espaço narrativo não é outra coisa que
não ele próprio. Ele não se ancora no espaço concreto para existir, mas se vale
deste para constituir referências reconhecíveis pelo receptor; a ligação entre o real e
o ficcional é relativa. Todavia, mesmo não sendo concreto, o espaço ficcional tem
uma existência relativamente autônoma e se organiza em níveis significativos que
lhe oferecem um funcionamento particular, mas não arbitrário.
41
O espaço ficcional se manifesta através da linguagem, em sentido global
(discurso) e não pontual (palavras), deste modo não se pode reduzir a espacialidade
narrativa ao conjunto dos substantivos ou locuções que expressam lugares ou
objetos, pois, isolados da obra tais ocorrências não são significativos, perdendo o
seu contexto narrativo, se tornando meros elementos linguísticos. Só é possível
entender a espacialidade de uma obra se cada um de seus componentes é
apreendido com base no sentido particular que tal elemento representa para cada
obra e, ainda, nas relações significativas mantidas com outros elementos.
A espacialidade, como qualquer outro aspecto do texto literário não pode ser
reduzido a um padrão único, que é continuamente repetido sem alteração através
dos tempos. A linguagem literária, diferente da linguagem cotidiana se baseia na
diferença, não existe necessariamente a existência de regras pré-estabelecidas.
Cada narrativa tem um arranjo particular que lhe distingue de outras, por sua vez,
essa particularidade é uma atualização da própria língua literária, que lhe assimila e
lhe revigora.
Este aspecto de contínua atualização do sistema espacial na narrativa exige
que o analista não se prenda apenas à formalização. Pois esse processo analítico
faz uso de generalizações que em longo prazo não encontram justificativa
hermenêutica. Por exemplo, digamos que um crítico faça um esquema algébrico de
um jardim num romance de Jane Austen e na narrativa bíblica do Gênesis. Em
ambos encontraríamos elementos discretos que fazem parte da espacialidade
reconhecida como um jardim: árvores, ervas, flores etc. É óbvio que haveria uma
variação no número destes elementos e até uma maior ou menor descritividade
entre as narrativas (mencionando diferentes espécies de cada tipo de planta).
Mas ao final do levantamento o que importaria seria cada uma das classes e
não o valor destas para a narrativa. Assim, nos resultados uma árvore seria tratada
como a mesma coisa nas duas obras. O que tornaria a interpretação inverossímil,
pois, a árvore no Gênesis tem uma significação que extrapola o sentido imediato e a
sua referência concreta, não se trata apenas de um objeto do reino biológico das
plantas, esta é signo da ancestralidade, da efêmera condição humana e da
teodicéia, ou seja, da eterna busca do homem por suas origens.
42
2.3.2 O Espaço Narrativo enquanto uma Dimensão Semiótica
As propostas feitas por Roman Ingarden (1980) direcionam para o
reconhecimento do espaço narrativo como um fenômeno de pura significação. Ou
seja, de que a espacialidade na ficção é um elemento semiótico. É evidente que
crítico fenomenologista não alcança esta conclusão por conta da influência
husserliana que preferia tratar o sentido em termos de lógica e não de uma disciplina
a parte que dedicasse ao estudo dos signos. Mas fica evidente no modelo do
pensador polaco que a narrativa literária tem um regime de significação próprio,
diferente do que verifica na realidade concreta, condição que lhe coloca no rol das
manifestações sígnicas.
O entendimento do texto literário enquanto uma entidade semiótica não é
novo, desde o formalismo russo, passando pelo estruturalismo tcheco e francês, os
estudiosos ressaltam o caráter sígnico da literatura. Em sendo composto por signos,
a linguagem literária tem 03 níveis de representação, conforme o modelo de Ogden
& Richards (1970):
referência
símbolo referente
Figura 07- modelo sígnico de Ogden-Richards (OGDEN & RICHARDS, 1970,
p. 11)
O signo é nas palavras de Jan Mukařovsky “uma realidade sensível cuja
função é a de evocar uma realidade, à qual se refere” (MUKAŘOVSKY, 1978, p.
133). Ou seja, o signo trata-se de uma materialidade (visual, sonora ou gestual) que
faz referência a um dado que não lhe é imediatamente atribuível. O elemento básico
da condição de signo é evocar algo que não está presente em si mesmo, apontar
para uma realidade que não é a sua própria materialidade. Assim, a palavra
“cadeira” é um signo, pois, em sua facticidade esta é apenas uma sequência de
43
sons (letras, no caso da escrita), que se unidos a uma significação particular passa a
evocar o objeto que nos é reconhecível.
O signo, portanto é a união de três instâncias: uma materialidade apreensível
pelos sentidos, o símbolo (ou significante); uma significação que irá ser ligada a
essa materialidade, a referência (ou significado) e a realidade evocada pelo ato
significativo, o referente. Diferente do que se possa imaginar, o referente não é
necessariamente um objeto concreto, mas o objeto da significação. No caso, da
palavra amor, o referente não se trata de uma entidade empírica, mas de um
conjunto de evidências comportamentais ou emocionais que são reconhecidas
através de noções reconhecidas num certo contexto.
Partindo da pressuposição do espaço narrativo enquanto uma semiose,
alguns aspectos metodológicos das abordagens explanadas ao início deste capítulo
se delineiam com mais clareza. A saber: quando a abordagem concretista da
espacialidade ficcional se dedica ao escopo de reconstituir com mapas ou esquemas
o espaço narrativo, o que está fazendo, de fato é buscar o nível referencial do signo
literário.
2.3.3 Crítica ao Modelo Concretista
Da citada constatação surge uma controvérsia que não se resolve dentro do
modelo, o tratamento dispensado por O’Toole (1980) e Zoran (1984) equipara a
linguagem literária à língua em sua dimensão pragmática, o que lhes permitem
reduzir a expressão da espacialidade em termos discretos. Entretanto, este
procedimento, ignora traços da dinâmica do discurso literário. A linguagem do
cotidiano é empregada em contextos determinados de uso que se localizam num
contexto específico (um momento demarcado no tempo e no espaço, com uma dada
intenção comunicativa), isto lhe impõe o reconhecimento referencial claro e definido
para que cada palavra assuma nesta situação uma significação inteligível por dois
(ou mais) interlocutores, para que a comunicação de decorra sem ruídos.
O significado tem na circunstância demonstrada uma estabilização
condicionada pelo ambiente concreto e referencial. Se uma pessoa diz a outra “pode
sentar na cadeira, ela está desocupada”, cada termo realmente invoca um traço
imediatamente observável na realidade contextual. Neste caso, é plenamente
aceitável que a análise da significação possa ser dada palavra a palavra. No entanto
44
se a mesma frase for encontrada numa narrativa ficcional, tal não se verifica, pois a
referência do texto literário se encontra numa realidade que não é exatamente a
empírica, mas o conjunto das imagens significativas estimuladas pelo seu conjunto,
incluindo as alterações intencionais do real. Associar a espacialidade de um texto ao
conjunto das palavras que expressam lugares e suas respectivas referências
concretas é um procedimento limitado, visto que só dá conta de uma pequena parte
deste fenômeno.
Mais uma vez retomando o que Ingarden (1980) esclareceu acima, o que o
discurso literário representa não coincide com o que está expresso pelas palavras,
nem tão-pouco os pontos de referência que este absorve do mundo empírico. A
base da representação literária é a reconstrução, a partir do momento em que a
palavra e os elementos do concreto adentram uma narrativa ficcional seus contornos
cindem e passam a integrar uma estrutura determinada pela motivação e
significação próprias. No texto literário os elementos assumem significações de
acordo com as múltiplas funções que estes possam ter em diferentes níveis de
organização textual, narrativa e estética. Deste modo, nem sempre o sentido de uma
palavra numa obra coincidirá com o sentido mais recorrente desta na comunicação
cotidiana, sendo possível inclusive a total inversão desta significação imediata, como
no caso da ironia ou da alegoria.
2.3.4 Crítica ao Modelo Psicológico e Gestalt-Cognitivo
Outro importante ponto que o modelo semiótico da espacialidade elucida é a
denominada análise psicológica da espacialidade, segundo ela o espaço está
condicionado pelas relações emocionais do narrador e dos personagens. No sistema
de Gaston Bachelard (1978) esta marcação é estabelecida através da oposição
entre o local agradável (tópico) e o local desagradável (atópico). O que fica em
suspenso nesta classificação é explicar o que esta possui de psicológica, e o que tal
informação teria de relevante para a análise da espacialidade ficcional. Ao mesmo
tempo se uniriam a tal questionamento as categorias espaciais propostas pelo
filósofo francês como base da percepção psicológica: o lar, casa, ninho, mundo,
cantos; universo e imensidão íntima.
Para responder esta questão deve ficar claro que para que existir uma
verdadeira análise psicológica é necessário que exista uma pessoa de carne osso,
45
cujo comportamento forneceria dados para identificar os processos psicanalíticos
(do inconsciente) que estariam subjacentes a este. Nas obras literárias tal evento
não se verifica, já que não há seres concretos na narrativa dos quais a mente
poderia ser analisada. A obra literária é um fenômeno cuja matéria é a linguagem,
em seu sentido estrito (sistema linguístico) e amplo (discurso). Deste modo, o
fenômeno ao qual Bachelard (1978) se referia como “psicológico” trata-se de um
dado puramente linguístico, a subjetividade da linguagem, mal conhecido à época
em que o filósofo escreveu, mas que hoje é terreno dos estudos de linguagem.
A linguagem não é um elemento puro, todo ato comunicativo está envolvido
numa intenção comunicativa. Dentro da subjetividade linguística, o sujeito pode
registrar a sua impressão positiva ou negativa sobre um estado de coisas. Num
exemplo bem simples: “infelizmente, a comida não estava pronta quando cheguei”, o
indivíduo expressa seu descontentamento com uma circunstância inoportuna (por
meio do advérbio felizmente). Este fenômeno é denominado modalização apreciativa
(GREIMAS, 1976), e pode ser encontrado em diferentes níveis discursivos. O mais
importante no exemplo e na constatação teórica, é que em ambos não se lida com
uma consciência particular ou ao estado emocional de um indivíduo qualquer. A
impressão de descontentamento está presente na própria linguagem e é
compreendida pelo seu próprio conteúdo.
A noção de um ambiente agradável ou hostil numa determinada narrativa
segue este mesmo raciocínio, as referências que são reconhecidas como
prazerosas ou desagradáveis estimulam nos leitores esta sensação. Não se trata,
portanto, de uma análise psicológica ou psicanalítica como presume Bachelard, mas
de uma análise semântica do conteúdo textual.
Noutra direção, o emprego dos arquétipos espaciais bachelardianos, é
igualmente uma análise semântica, a associação de categorias temáticas
organizadas em níveis é matéria da análise lexical, e se assemelha ao esquema
topológico de Curtius citado acima (substituindo-se apenas as categorias).
Ao mesmo modo, os universais propostos pela análise gestaltiva-cognitiva. É
questionável até que ponto classificar o espaço de uma obra literária sejam em
categorias matemáticas, físicas, psicológicas ou cognitivas auxilia na geração de
modelos explicativos para a narrativa ficcional. Deve-se refletir se o uso dos modelos
consagrados na tradição da crítica do espaço ficcional encontra seu limite.
46
2.3.5 Crítica dos Pontos em Comum dos Três Modelos
Uma análise crítica das metodologias de análise do espaço ficcional
apresentadas até aqui recaem numa assunção de difícil justificativa em se tratando
de textos literários, partir da pressuposição de que alguma parcela deste é o real
(concreto) ou reflexo imediato deste. Todavia esta confusão é consequência de uma
propriedade do texto literário que Roland Barthes (1968) denominou efeito de real.
Em gêneros literários cujo foco é a narrativa de acontecimentos, como o
romance, boa parte de seu texto é constituído por sequências de descrição. A
descrição é um elemento crucial para construção do universo temporal e do universo
espacial sugerido pela narrativa. Toda imagem do mundo ficcional (personagens,
objetos, tempo, espaço e eventos) é modelada através da informação fornecida
pelas descrições. Nas palavras de Vítor Manuel de Aguiar e Silva (1999):
[...] a descrição é um elemento textual privilegiado de que o narrador dispõe para produzir o "efeito de real" [...] e por isso mesmo os indícios e, sobretudo as informações da diegese se encontram com tanta freqüência e com tanta relevância nas descrições [...]. Esta função manifesta-se quer no retrato das personagens — a prosopografia, na terminologia da antiga retórica —, quer na caracterização do espaço social — um espaço indissociável da temporalidade histórica —, quer na pintura do espaço telúrico e geográfico — a topografia, na terminologia antes mencionada —, em geral representado nas suas conexões com o espaço social e concebido como um factor que condiciona ou determina os estados e as acções das personagens (SILVA, 1999, p. 470).
Deve-se ressalvar, que este efeito de real, esta de aparência de concretude é
intencional e está diretamente conectada com o próprio universo referencial da
linguagem literária. Esta realidade da literatura não tenta copiar ou substituir a
realidade concreta, mas ressignificá-la de diferentes modos. Deste modo, é um
esforço controverso fazer que algum ponto da narrativa ficcional seja o reflexo fiel do
empírico, conforme afirma Silva (1999):
Se cometem um erro grosseiro os que admitem, ou postulam, uma relação de estrita fidelidade especular, de imediata dependência analógica entre o texto literário e um concreto contexto empírico, atribuindo, portanto ao discurso literário o funcionamento referencial
que se verifica noutros tipos de discurso (SILVA, 1999, p. 644).
47
Apesar de se diferenciarem em alguns particulares, os modelos apresentados
convergem para a assunção do espaço ficcional como elemento definido e fixo, seja
em sua imediatez linguística (palavras) ou em sua pretensa imediatez referencial
(espaços concretos). Há uma correlação automatizada entre o signo e o real, como
se a significação do espaço se trata de um dado unívoco.
Tal fenômeno não é ocasional, como todo discurso, a teoria do espaço
ficcional se alicerça em dois fatores principais: a cosmovisão (weltanschauung) de
um dado momento sócio-histórico e a representação simbólica de certo estado de
coisas. Entender uma teoria não passa apenas pelo reconhecimento de seus
pressupostos, como esta fosse um construto afastado do mundo.
A análise deste paradigma, o qual denominaremos descrivista-classificatório
se baseia na ideia de que o signo é uma realidade concreta, que garante uma
homogeneidade da significação. Esta ideia do signo enquanto uma entidade
autônoma tem sua origem na concepção saussuriana da língua, conforme o
esquema:
Figura 08 – Esquema saussuriano da relação entre significado e significante
no signo linguístico (SAUSSURE, 2008, p. 81; ECO, 1984, p. 08)
No modelo semiótico, a língua está composta por unidades menores, os
signos. Cada um destes signos subdivide-se em dois planos: o significado (expresso
no esquema pelo desenho da árvore) e o significante, uma imagem mental dos sons
contidos num determinado vocábulo de uma língua (expresso no esquema pela
palavra arbre). Ferdinand de Saussure (2008) ressalta que é traço inerente ao signo
48
a arbitrariedade do significante, não existe relação direta entre o número e tipo de
sons que o compõem e o significado evocado por este.
A arbitrariedade a qual o pensador faz referência atém-se exclusivamente ao
seguinte: “Assim, a idéia de "mar" não está ligada por relação alguma interior à
seqüência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada
igualmente bem por outra seqüência” (SAUSSURE, 1998, p. 81-82). Deste modo,
mantêm-se a relação de espelhismo entre a palavra e coisa (sendo na língua
substituída pelo significado).
O procedimento teórico apontado por esta concepção dá base para entender
o significado com algo imediato e autônomo, pois ao deslocar a significação para a
esfera ideal do signo ou da mente, esta se isenta da possibilidade de ser variável e
polissêmica. A proposta de Saussure (2008) esforça para impor um regime
interpretativo que permitisse ao estudioso obter dados segmentáveis e classificáveis
em categorias universalmente perceptíveis em quaisquer línguas. Para alcançar esta
estabilização metodológica foi indispensável pensar a sua representação como um
sistema imune à interferência da vivência concreta dos falantes e das mudanças
sociais:
[...] a própria arbitrariedade do signo põe a língua ao abrigo de toda tentativa que vise a modificá-la. [...] A massa, ainda que fosse mais consciente do que é, não poderia discuti-la. [...] a língua não é completamente arbitrária e onde impera uma razão relativa, é também o ponto onde avulta a incompetência da massa para transformá-la. Pois tal sistema é um mecanismo complexo; só se pode compreendê-lo pela reflexão; mesmo aqueles que dele fazem uso cotidiano, ignoram-no profundamente. [...] A língua, de todas as instituições sociais, é a que oferece menos oportunidades às iniciativas. A língua forma um todo com a vida da massa social e esta, sendo naturalmente inerte, aparece antes de tudo como um fator de conservação. [...] Justamente porque o signo é arbitrário, não conhece outra lei senão a da tradição, e é por basear-se na tradição que pode ser arbitrário (SAUSSURE, 2008, p. 87-88, sem grifos no original).
O signo ao modo que defendia Saussure é uma entidade hegemônica,
superior às atribulações do real. O signo é todo razão, lógica e autonomia. A língua
constituída por este elemento é em sua complexidade incompreensível pelos que
fazem uso dela. Pois, a língua só é acessível àqueles seres dotados de métodos
privilegiados de “reflexão”, nomeados pelo próprio linguista genebrino:
49
“especialistas, gramáticos, lógicos, etc.” (SAUSSURE, 2008, p. 88). O sistema da
língua tem por função assegurar a sua inércia, para que esta não venha ser
contaminada pelos movimentos da “massa”.
Neste particular, o uso do termo “massa” assume um papel central. Saussure
o qualifica por adjetivos pouco positivos, no enunciado este é descrito como
“inconsciente”, “incapaz”, “ignorante”; se opondo à complexidade que é atribuída à
língua. Saussure demonstra um grande esforço por colocar a língua num alto nível
de abstração, chegando a insinuar um completo desligamento entre língua e
sociedade.
Não por acaso, Umberto Eco (1984) interpreta este mister saussuriano como
uma revitalização da doutrina das ideias de Platão (PLATÂO, 2003). Como o filósofo
grego, Saussure não acreditando nos dados imediatos do seu objeto (a vivência
concreta da língua na realidade cotidiana entre seus falantes), cria uma realidade
ideal (o signo linguístico, a imagem acústica) só acessível aos iniciados (linguistas).
A partir desta realidade considerada mais “verdadeira” (cf. SAUSSURE, 2008, p. 07)
emanariam os dados legítimos e dignos de estudo. Sobre este particular assevera
Eco evocando o esquema saussuriano para o signo “árvore”:
O que é essa árvore? Um desenho? Neste caso é outro signifiant. É alusão ao fato de que em nossa mente se delineia, ao ouvirmos a palavra “árvore”, a imagem (Peirce diria o “ícone mental” de uma árvore)? [...] Essa árvore poderia ser também uma idéia hiperurânia de tipo platônico: há uma zona, além da rota dos skylabs, na qual existe a arboreidade, a eqüinidade, etcétera (ECO, 1984, p. 08).
Com um comentário sarcástico, o semioticista italiano ressalta uma inversão
inerente a esta percepção formalista de pensamento. Num primeiro momento, a
teoria constrói categorias baseadas em referência concretas com a proposta de
explicar a realidade. Entretanto o uso compulsivo de formalizações leva a um
instante em que se passa gerar categorias não de fenômenos observados, mas de
categorias pré-estabelecidas. Gerando uma análise que não é mais capaz de
observar as diferenças que constituem o empírico, se satisfazendo com apenas com
os conceitos legados pela tradição. Chegado a este ponto, a modalidade teórica se
esgota em si mesma e passa a tratar seu objeto de modo limitado e reducionista. O
objeto é substituído por rótulos, nem sempre significativos para a interpretação.
50
No caso do espaço ficcional isto é plenamente verificável, pois em nenhum
dos modelos citados até este momento (o concretista, o psicológico e o gestaltista-
cognitivo) há um esforço para romper com a contingência das classificações.
2.4 POR UM PARADIGMA (DES)CONSTRUTIVISTA DA ESPACIALIDADE
NARRATOLÓGICA
Como foi apresentada desde o início da presente reflexão, a análise do
espaço ficcional está atrelada a dois discursos hegemônicos surgidos no século XIX
e consolidados na primeira metade do século XX: (a) a ideia da representação
enquanto uma unidade definitiva, homogênea e original, que não está diretamente
relacionada ao contexto sócio-histórico. Desta percepção idealizada da realidade
surge a imagem de que os signos em sua condição abstrata organizam e explicam o
mundo. Assumindo tal abordagem, o estudioso torna-se uma figura privilegiada,
capaz de ordenar a existência através de categorias universalmente válidas. O
objeto da representação abandona sua natureza multirreferencial e formaliza-se. As
diferenças inerentes a qualquer fenômeno são entendidas com desvios de um
padrão pré-estabelecido e são uniformizadas para conferir aos resultados
(esquemas) uma aura de precisão atemporal. (b) uma concepção estática de
espacialidade, baseada em princípios já descritos acima quando da explicação do
modelo concretista (vide 1.2.1).
Para contrapor este paradigma, entendido como descritivista-classificatório
por se fixar mais à identificação e categorização arbitrária de dados isolados que na
formulação de interpretações baseadas no entendimento do conjunto e da
especificidade de cada obra. Faz-se necessário seguir na análise apontando as
limitações de alguns conceitos assumidos pela vertente e sugerindo caminhos
alternativos para reposicionar a análise do espaço ficcional. Tal virada espacial da
análise literária passa por dois momentos, a busca pelo reverso dos signos e a
dinamização do espaço.
2.4.1 Em Busca do Reverso dos Signos
Em todos os modelos apresentados pela crítica literária para o entendimento
do espaço ficcional se faz presente um imperativo, o de torná-lo uma entidade
51
estática, autossignificativa e anacrônica. Adotá-los tal quais se encontram na
bibliografia levantada esgotaria a análise do espaço narrativo na estatística de
substantivos e na sua classificação. Para ultrapassar esta estagnação metodológica
é preciso desconstruir a ideia saussuriana de um signo diáfano e isolado na “torre de
marfim” da formalização. Contrapor o paradigma descritivista-classificatório da
espacialidade exige assumir o signo nos moldes das propostas Mikhail Bakhtin:
[O signo é] um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia (BAKHTIN, 2006, p. 29).
Bakhtin (2006) vai de encontro a Saussure e propõe que os signos não são
elementos de uma realidade paralela ou ideal, mas fazem parte da vida humana,
tanto quanto os objetos concretos. O signo é veículo das ideias construídas pelo
homem, e só ganha sentido na relação direta entre homem, realidade e significação.
Fora de um contexto, o signo é apenas uma materialidade desprovida de justificativa
e de existência.
O pensador russo traz nesta mesma afirmativa algo de bastante caro ao
entendimento do espaço, diferente da perspectiva de Saussure que limitava o
caráter sígnico às palavras, Bakhtin compreende que o que torna algo signo é
impressão significativa que este mantém com a realidade. Deste modo, o espaço
enquanto um fato concreto também pode apresentar-se como um símbolo. Além
disto, Bakhtin ressalta dois caracteres completares da significação, o signo não
apenas reflete uma dada realidade como também a refrata. Isto o signo além de
apontar para uma realidade, carrega para ela uma significação que é representativa
e valorativa. Nesta medida, o signo jamais é neutro, conforme reitera o linguista
russo:
Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se
52
encontra,encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico (BAKHTIN, 2006, p. 30).
Bakhtin questiona mais uma vez caráter de neutralidade do signo, se o
significado é construído com base na interação entre seres humanos, dotados de
particularidades, seria uma contradição acreditar que o signo pudesse ser isolado
desta rede comunicativa. O signo além de representar, ele assume uma posição
diante do seu objeto de representação, ele pode concordar com este, distorcê-lo
positivamente ou negativamente e até negá-lo. A atividade sígnica, portanto está
sempre envolvida por sistemas de valoração que lhe são inerentes e não
excepcionais. Os sujeitos a todo o momento produzem, alteram e substituem signos,
a prática semiótica é dinâmica e é condicionado pelas demandas simbólicas de cada
momento histórico. O semiótico é deste modo, um fato social:
A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação. Na verdade, qualquer que seja a enunciação considerada, [...], é socialmente dirigida. Antes de mais nada, ela é determinada da maneira mais imediata pelos participantes do ato de fala, explícitos ou implícitos, em ligação com uma situação bem precisa; a situação dá forma à enunciação, impondo-lhe esta ressonância em vez daquela (BAKHTIN, 2006, p. 115-116).
A atividade semiótica está envolvida numa ação intencional, seja a de
informar, questionar, concordar, etc. Não existem signos imotivados, sem intenção
ou valor. É evidente que a capacidade refratária da realidade sígnica lhe permite
ocultar este caráter, mas isso não quer dizer que este traço inexista, e sim que está
implícito à enunciação.
A ideia de que o signo é capaz de se revestir de uma aparência de realidade
e de uniformidade, pode ser entendida como uma forma de hegemonia. Bakhtin
explica que a produção sígnica é contínua e multiforme, no entanto, nem todos os
signos são considerados oportunos por uma comunidade discursiva. Alguns têm
mais valia enquanto outros são estigmatizados, esse movimento ocorre pelo próprio
desdobramento das hierarquias sociais que acabam transferindo suas imagens
simbólicas para os signos produzidos nesta dinâmica. Quanto mais antigo e estável
é um signo mais ele está afinado ao poder tradicional de uma sociedade, pois para
53
manter sua ordem agem as chamadas forças centrípetas do discurso, conforme
descreve o pensador russo:
Cada enunciação concreta do sujeito do discurso constitui o ponto de aplicação [...] das forças centrípetas [...] as variantes básicas [...] desenvolvem na corrente das forças centrípetas da vida verbo-ideológica que unifica e centraliza. [...] nas altas camadas sócio-ideológicas oficiais, resolve o problema da centralização cultural, social e política do mundo verbal-ideológico (BAKHTIN, 1998, p. 82-83).
As forças centrípetas do discurso tem a função, como bem ressaltou Bakhtin
vem das classes dominantes, como o objetivo de criar uma representação que apare
as arestas da diferença. Por meio de signos unificantes o discurso impõe sobre a
realidade uma aparência de centralidade cultural, social e política. Livrando a signo
do “conflito dos pontos de vista sócio-linguísticos, [...], do conflito intralinguístico das
vontades individuais ou das contradições lógicas” (BAKHTIN, 1998, p. 83).
Nesta mesma direção de por à prova a estabilidade dos signos Jacques
Derrida (1977) dá como exemplo a representação semiótica de “água”:
Figura 09- Os “nomes” da água (DERRIDA, 1977)
Em L'écriture et la différence, Derrida explica como uma palavra
aparentemente banal como “água” pode revelar um universo complexo que lhe
subjaz: A água é o elemento mais presente na realidade, apesar disso, sua
realidade concreta é tão múltipla que a cada esforço de limitá-la, essa se nos
escapa. Pois o gelo, também é água, mas é duro e limitado, ao passo que o vapor
nem visível nos é, e não deixa de ser água. Surge então a questão: alguns destes
referentes é menos ou mais água? Se sim ou não, a água é por si mesma
indefinível, e nem por isso deixa de ser menos real.
Para continuar a reflexão, Derrida propõe que pensemos como os
estruturalistas, e por um momento esqueçamos que o concreto existe, pois neste
54
caos de referências tão variadas não é possível encontrar um conceito racional que
possa ser unívoco. Deste modo, enumeremos os signos que representam a água.
Aqui surge mais um problema, pois em cada língua temos um significante diferente,
qual deles poderia ser usado no conceito? A não ser que se empregasse outro
código, mais convencional, como a notação química H2O, mas aparece outro
problema, isso é igualmente questionável, pois como sabemos as notações são
arbitrárias, então o que num copo d’água o que é H, 2 e O; e no gelo e no vapor?
Mais uma vez diferenças demais e nenhuma homogeneidade para assegurar a
cientificidade do conceito.
O único caminho restante é sentido, deve haver algo de estável no sentido
que permita, enfim o conceito final da água. Bem para ter esta resposta enumere-se
o máximo de ocorrência na língua que tenham como base a água, aquele traço que
for repetido deve ser a identidade da água. Chuva, piscina, balde, gotas, correnteza,
rio, oceano etc., tudo isto tem relação com água, mas o que de comum entre tudo
isto?
A resposta é, de fato, nada, a não ser esta palavra “água” ou “H2O” que
acompanha o questionamento desde o início. Em ambas, operando o mesmo
processo a escritura. Conforme descreve Derrida a escritura é um processo
associado ao regime de verdade logocêntrico, isto é em que a palavra representa o
real. O processo de escritura logocêntrico inicia-se com os filósofos gregos se
autointitulando mestres da verdade (aletheia), verdade essa que passava
obrigatoriamente pela palavra (logos) dos pensadores autorizados. O pensador
francês demonstra esse fenômeno fazendo um panorama histórico desde Tales de
Mileto, passando pelos medievais, até chegar aos filósofos contemporâneos, dando
especial atenção aos estruturalistas, que àquela altura ocupam o primado do
pensamento francês. Derrida termina seu percurso ressaltando como o
estruturalismo, enquanto novo representante das filosofias totalizantes conseguia
reduzir o universo todo às suas categorias homogêneas:
Graças ao esquematismo e a uma espacialização mais ou menos declarada, que viaja em um campo mais livremente eliminadas as forças. Eliminadas todas suas forças, mesmo elas sendo a totalidade da forma e significado, então são reformuladas no sentido da forma, e a estrutura torna-se a unidade formal da forma e significado. Dir-se-á que esta neutralização pela forma é o ato do autor antes da crítica e, até certo ponto, pelo menos -, mas é isso, pois é - ele vai estar certo. Em todo caso, o projeto sugere que a totalidade é mais
55
facilmente declarada hoje, e um tal projeto também escapa-se para as totalidades determinadas da história clássica. Por isso, propõe-se ultrapassar-lhes. Assim, o esquema e o contorno das estruturas aparecem melhor quando o conteúdo que é a energia viva de significado é neutralizado. Um pouco como a arquitetura de uma cidade desabitada ou queimada, reduzida a um esqueleto de uma catástrofe da natureza ou da arte. Cidade já não habitada ou simplesmente abandonada, mas sim assombrada pelo significado e a cultura. Esta obsessão que impede aqui de tornar-se natural em geral o modo de presença ou da ausência da própria coisa na linguagem pura. Linguagem pura que abrigaria a literatura pura, o objeto da crítica literária pura (DERRIDA, 1977, p. 13) 24.
Fica evidente nesta passagem do filósofo francês, uma pungente crítica ao
formalismo implantado pelo método estrutural no signo. O signo enquanto uma
realidade concreta de significação não é uma estrutura indefinidamente repetida na
história. Os vínculos entre significado e significante são instáveis, e estão sempre
sujeitos às flutuações contextuais do ser humano, a busca formalista por um
significante e um significado primeiros é uma ficção metafísica, que só se sustenta
na medida de romper propositalmente o substrato de onde estes surgem. A
significação, portanto, é uma dinâmica que não se deixa limitar pelo ideal purista de
alguns pensadores. Longe do jogo da significação não há signo, apenas vestígios de
uma existência abstrata.
Derrida propõe então um desafio necessário para romper com o idealismo
abstrato do formalismo, em primeiro lugar assumir que o significado não está
localizado em nenhum outro lugar que não no próprio ato de significar. As palavras e
as coisas não são dotadas de significação, emanando por si mesmas os seus
conceitos. O mundo só ganha significação na relação dos sujeitos com a busca
contínua pelo sentido. Não existe um sentido último, nem primeiro, só existe a
24
Tradução livre, do original: Grâce au schématisme et à une spatialisation plus ou moins avouée, on parcourt sur plan et plus librement le champ déserté de ses forces. Totalité désertée de ses forces, même si elle est totalité de la forme et du sens, car il s'agit alors du sens repensé dans la forme, et la structure est l'unité formelle de la forme et du sens. On dira que cette neutralisation par la forme est l'acte de l'auteur avant d'être celui du critique et dans une certaine mesure du moins — mais c'est de cette mesure qu'il s'agit —, on aura raison. En tout cas, le projet de penser la totalité est plus facilement déclaré aujourd'hui et un tel projet échappe aussi de lui-même aux totalités déterminées de l'histoire classique. Car il est projet de les excéder. Ainsi, le relief et le dessin des structures apparaissent mieux quand le contenu, qui est l'énergie vivante du sens, est neutralisé. Un peu comme l'architecture d'une ville inhabitée ou soufflée, réduite à son squelette par quelque catastrophe de la nature ou de l'art. Ville non plus habitée ni simplement délaissée mais hantée plutôt par le sens et la culture. Cette hantise qui l'empêche ici de redevenir nature est peut-être en général le mode de présence ou d'absence de la chose même au langage pur. Langage pur que voudrait abriter la littérature pure, objet de la critique littéraire pure.
56
significação de um contexto particular, cuja essência só pode ser resgatada pela
reflexão da diferença. A reconstrução de um sentido é, nesta medida, uma
arqueologia onde um sujeito não pode presumir automaticamente uma significação
que lhe parece coincidir com aquilo que este deseja conceituar. Ele tem de
abandonar a sua posição inicial de portador do discurso (intérprete) e buscar na
incerteza da visão do outro (alteridade), a significação que se faz presente inclusive
na sua ausência.
A différance tal qual concebe Derrida é um revés à indiferença, ao absoluto, à
totalidade. A différance é, em termos filosóficos, uma abertura ontológica, o ser
deixa de ser regido por algo além dele (a essência) e torna-se sujeito de sua própria
existência. Nas palavras do filósofo:
[...] a différance não é uma essência, não sendo nada, não é a vida se está sendo determinado como ousia, presença, essência/ existência, substância ou matéria. Ela faz pensar a vida como um traço antes de determinar o ser como presença. Ela é a única condição para poder dizer que a vida é a morte, que a repetição e o além do princípio do prazer são originais e contingentes em sua origem aos quais transgride (DERRIDA, 1977, p. 302) 25.
O fechamento do sentido, ou seja, o conceito de alguma coisa só é
possibilitado pelo fim do jogo da significação. Fechamento este, que não é natural,
mas imposto pelas circunstâncias (um indivíduo não podendo levar a reflexão pelo
infinito, decide cindir o contínuo num ponto que lhe convêm) ou pela força do logos,
dos discursos de hegemonia.
Derrida (1977) indica nesta reflexão, que ao mesmo tempo atuam dois
princípios básicos na significação: a escritura, que procura estabilizar os discursos
sobre a realidade através da tradição, criando imagens que aparentam uniformidade
e homogeneidade; e a différance que se opõe a todas as imagens automatizadas,
propondo recategorizações que movimentam o sentido para um lugar não comum,
do qual emerge a diferença. Na Ordem do discurso, Michel Foucault (2002) ressalta
que além de uma questão sígnica, a tendência de homogeneização do sentido se
liga ao jogo do poder na sociedade:
25 Tradução livre, do original: [...] la différance n'étant pas une essence, n'étant rien, elle n'est pas la vie si
l'être est déterminé comme ousia, présence, essence / existence, substance ou sujet. Il faut penser la vie comme
trace avant de déterminer l'être comme présence. C'est la seule condition pour pouvoir dire que la vie est la mort,
que la répétition et l'au-delà du principe de plaisir sont originaires et congénitaux à cela même qu'ils
transgressent.
57
[...] esta vontade de verdade, tal como os outros sistemas de exclusão, apoia-se numa base institucional: ela é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas como a pedagogia, claro, o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas é também reconduzida, e de um modo mais profundo sem dúvida, pela maneira como o saber é disposto numa sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e, de certa forma, atribuído (FOUCAULT, 2002, p.10).
Foucault alerta que a estabilidade do signo é uma estratégia ideológica,
disseminada das classes dominantes (simbólica e economicamente) e preservada
pelos mecanismos de controle social: a polícia, a escola, ciência, filosofia e estética
(literatura e demais artes). O filósofo francês afirma que o discurso sempre está
pelos interesses sociais, mesmo uma pintura ou um mapa é capaz de se posicionar
nesta dinâmica, mantendo ou subvertendo um sistema de valores.
2.4 DINAMIZANDO O ESPAÇO
O espaço é um traço tão inerente da organização social e da vida moderna
que pensá-la para além da imediatez torna-se um complexo esforço de reflexão.
Essa abordagem de espacialidade, por assim dizer, automatizada do espaço urbano
acaba por fixar sua configuração apenas ao caráter sensorial de sua paisagem.
Conforme afirma o geógrafo chinês Yi-Fu Tuan (1980):
Um ser humano percebe o mundo simultaneamente através de todos os seus sentidos. [...] Na sociedade moderna, o homem tem que confiar mais e mais na visão. Para ele, o espaço é limitado e estático, um quadro ou matriz para os objetos. Sem objetos e sem fronteiras, o espaço é vazio. E vazio porque não há nada para ver, embora possa estar cheio de vento (TUAN, 1980, p. 12-13).
Essa visão realista-materialista do espaço conduz para uma análise
reducionista da espacialidade, pois, cria a impressão de que tal fenômeno seria algo
per se, cuja apreensão estaria isenta de interpretações. O espaço, nessa
perspectiva, é somente um dado puro da realidade e para analisá-lo bastaria
constatar, através dos sentidos, seus elementos constitutivos dentro de categorias
58
objetivas (extensão, altitude, relevo etc.). O pensador americano Edward W. Soja
(1990) assim descreve este processo:
Esta visão essencialmente física tem influenciado profundamente todas as formas de análise espacial. [...]. Isso inclusive tem tendido a imbuir todas as coisas espaciais de uma persistente sensação de primordialidade e composição física, de uma aura de objetividade, inevitabilidade e reificação (SOJA, 1990, p. 79) 26.
A espacialidade seria descrita da mesma maneira, não importando a época, o
contexto cultural ou o sujeito que lhe observasse. Entretanto, o próprio Tuan (1980)
questiona esse caráter de aparente transparência do espaço. Para ele a relação
com a espacialidade não pode ser entendida de forma anacrônica e
descontextualizada, pois, encontra-se continuamente modificada na relação entre
sujeito e lugar:
A superfície da terra é extremamente variada. Mesmo um conhecimento casual com sua geografia física e a abundância de formas de vida muito nos diz. Mas são mais variadas as maneiras como as pessoas percebem e avaliam essa superfície. Duas pessoas não veem a mesma realidade. Nem dois grupos sociais fazem exatamente a mesma avaliação do meio ambiente. A própria visão científica está ligada à cultura - uma possível perspectiva entre muitas (TUAN, 1980, p. 6).
Conforme esclarece o pensador chinês o espaço não fala por si mesmo, este
só ganha significado na sua relação com o ser humano, com a sua subjetividade,
cultura e contexto sócio-histórico. No mesmo sentido, Edward Said (2007) adota
similar posicionamento ao falar de uma entidade geográfica específica, o Oriente:
O Oriente é uma ideia que tem uma história e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas [Oriente e Ocidente], portanto, sustentam-se e, em certa medida, refletem uma a outra (SAID, 2007, p. 31).
Destarte, a espacialidade não pode ser entendida como um elemento
anacrônico ou autossuficiente, mas, como uma intricada rede de materialidades
26 Tradução livre, do original: This essentially physical view of space has deeply influenced all forms
of spatial analysis. [...] It has also tended to imbue all spatial things with a lingering sense of primordiality and physical composition, an aura of objectivity, inevitability, and reification.
59
concretas e representações simbólicas. O espaço não é apenas fato, é também uma
representação e uma construção discursiva localizada historicamente. Logo, caberia
ao analista do espaço não limitar-se a descrever os seus elementos visuais (what),
mas, também teria de constatar os elementos discursivos ligados a espacialidade
(how), reconstituindo as origens socio-históricas de ambos. Nas palavras de Soja
(1990):
É necessário começar a fazer uma possível e clara distinção entre espaço per se, espaço como um dado contextual e espaço criado pela organização e produção sociais. Partindo de uma perspectiva materialista, quer mecanicista ou dialética, o tempo e o espaço em sentido geral ou abstrato, representam uma forma objetiva de matéria. Tempo, espaço e matéria estão inextricavelmente conectados (SOJA, 1990, p. 79) 27.
2.4.1 Do Espaço Ideal ao Espaço Social
O espaço durante muito tempo foi considerado um dado puro da realidade
determinado por categorias indiferentes a sua experiência e a sua multiplicidade. O
trajeto percorrido até este ponto colocou em destaque que esta visão espacial conta
com uma extensa história e se encontra alicerçada por um determinado discurso,
que ultrapassa os limites da geografia enquanto ciência. Evidencia-se, conforme se
descreveu no tópico anterior, uma certa forma de entendimento do que vem a ser
representação (problema do signo e do discurso) e uma conjuntura interpretativa
(problema da percepção e da ciência).
Para discutir especificamente o segundo problema é importante refletir que
pressupostos epistemológicos fazem entender o espaço como um fenômeno
estático. Historicamente, a primeira disciplina a enunciar a inércia espacial, foi a
matemática, empregando a análise geométrica e tratando o espaço na sua medida
formal, consolidou um paradigma de que a definição universal de espaço é esta:
O espaço [...] é caracterizado como homogêneo [...], isótropo [...], contínuo e ilimitado.
27 Tradução livre, do original: It is necessary to begin by making as clear as possible the distinction
between space per se, space as a contextual given, and socially-based spatiality. From a materialistic perspective, whether mechanist or dialectical, time and space in the general and abstract sense represent the objective form of matter. Time, space and matter are inextricably connected.
60
Estas propriedades são muito gerais, mas a geometria habitual adiciona as duas seguintes determinações: 1° tem três dimensões, isto é, com um ponto pode se traçar três retas perpendiculares umas às outras [...]; 2° é homoloidal, ou seja, podemos construir figuras semelhantes tem qualquer escala (LALANDE, 1997, p. 298) 28.
Esta definição matematizada do espaço vem sendo repetida desde a Grécia
como uma verdade atemporal. Quando uma pessoa é indagada sobre o que é
espaço, geralmente emprega quaisquer dos adjetivos da sentença e dá como
definido o espaço. Este comportamento encontra-se tão interiorizado ao ponto do
sujeito não ter nem mesmo de olhar em volta para verificar, se o espaço no qual este
se encontra é realmente limitado, homogêneo etc. Nas palavras de Henri Lefebvre:
O espaço! Há poucos anos esse termo não evocava nada a não ser um conceito geométrico, o de um meio vazio. Toda pessoa instruída logo o completava com um termo erudito, tal como “euclidiano”, ou “isotrópico”, ou “infinito”. O conceito de espaço dependia, geralmente se pensava,da matemática e tão-somente dessa ciência. O espaço social? Essas palavras causavam surpresas (LEFEBVRE, 2006, p.03).
Lefebvre (2006) ressalta que essa imediatez da compreensão espacial não se
limita ao senso comum, mesmo a filosofia contribuiu para estagnação da reflexão
sobre o espaço. Desde Aristóteles até René Descartes, o espaço foi colocado numa
medida transcendental, que se afina mais à metafísica que a uma experiência
concreta, o espaço era “portanto uma abstração: um recipiente sem conteúdo”
(LEFEBVRE, 2006, p.03):
Na filosofia? Com freqüência, o espaço era desdenhado, tratado como uma “categoria” entre outras (um “a priori”, diziam os kantianos: uma maneira de dispor os fenômenos sensíveis). Às vezes, era carregado de todas as ilusões e de todos os erros: desviando a interioridade de “si”, o desejo e a ação, para o exterior, portanto, a vida psicológica para fora e para o inerte, espedaçante e espedaçado (com e como a linguagem: Bergson).
28
Tradução livre, do original: L’espace [...] est caractérisé par ce fait qu'il est homogène [...], isotrope [...], continu et illimité. Ce sont là des propriétés très générales; mais la géométrie usuelle y ajoute les deux déterminations suivantes: 1° il a trois dimensions, c'est à dire que par un point on peut menertrois droites perpendiculaires entre elles, [...]; 2° il est homaloïdal, c'est à dire qu'on peut y construire des figures semblables a toute échelle.
61
Depois das abordagens formais e filosóficas, o pensamento sobre o espaço
recebeu o incremento de propostas de diferentes disciplinas das humanidades,
surgiram assim a ideias de um espaço psicológico, sociológico etc. A variedade de
perspectivas não representava, todavia, o avanço na visão espacial, certos
preconceitos como a categorização e classificação continuavam a limitar a
percepção da espacialidade. O que variavam eram os termos empregados, mas no
fim “as concepções sobre o espaço estavam confusas, paradoxais, incompatíveis”
(LEFEBVRE, 2006, p.03):
Quanto às ciências que dele se ocupavam, elas o repartiam, o espaço se fragmentando segundo postulados metodológicos simplificados: o geográfico, o sociológico, o histórico etc. No melhor dos casos, o espaço passava por um meio vazio, recipiente indiferente ao conteúdo, mas definido segundo certos critérios inexprimidos: absoluto, ótico-geométrico, euclidiano-cartesiano-newtoniano. Se “espaços” eram admitidos, eram reunidos num
conceito cujo alcance permanecia mal determinado (LEFEBVRE, 2006, p.03).
Na opinião do filósofo francês tal panorama conduzia o espaço para um
paradoxo existencial e epistemológico, descrito como “uma contradição (diabólica)
inexprimida, inconfessada, inexplicitada, a prática – na sociedade e no modo de
produção existentes” (LEFEBVRE, 2006, p.03). Pois, como era possível seres
humanos diversos, habitando diferentes rincões, cada um com uma paisagem,
cultura e sociedade particulares, crerem tão facilmente num discurso de
uniformidade do espaço?
A resposta só poderia ser encontrada num elemento que não fosse natural ou
espontâneo na espacialidade. Deste modo, Lefebvre assevera que “o significado do
espaço não está no próprio espaço”. Isto é, o espaço por si só não tem significação,
o sentido constrói-se na medida de uma relação recíproca entre sociedade e
espacialidade. O princípio garante que as representações espaciais não são fixas,
podem ser reposicionadas e questionadas na medida da vivência social de cada
comunidade. Um mesmo local assume diferentes valores de acordo com o contexto
humano no qual se insere. O espaço é modificado na medida de uma dialética entre
discursos tradicionais e discursos de ruptura, e isto se verifica em quaisquer níveis
de representação desde um mapa, passando por uma conversa informal sobre uma
62
localidade até num tratado de geografia física. A espacialidade é, portanto, um
exercício de significação social contínuo, jamais neutro e articulado com os demais
discursos presentes numa sociedade.
O espaço não pode mais ser concebido como passivo, vazio, ou então, como os “produtos”, não tendo outro sentido senão o de ser trocado, o de ser consumido, o de desaparecer. Enquanto produto, por interação ou retroação, o espaço intervém na própria produção: organização do trabalho produtivo, transportes, fluxos de matérias-primas e de energias, redes de repartição de produtos. À sua maneira, produtivo e produtor, o espaço (mal ou bem organizado) entra nas relações de produção e nas forças produtivas. Seu conceito não pode, portanto, ser isolado e permanecer estático. Ele se dialetiza: produto-produtor, suporte de relações econômicas e sociais (LEFEBVRE, 2006, p.03).
O espaço torna-se um fenômeno ideológico, no sentido de refletir em suas
imagens a tensão social entre representações hegemônicas e representações
estigmatizadas. As imagens dominantes do espaço naturalizam um discurso
fechado, alheio à experiência cotidiana do ambiente e as justificam por meio de
figuras de autoridade, como a ciência. Lefebvre (2006) ressalta que a geografia é em
primeiro lugar uma vivência do homem com espaço, e só depois uma disciplina.
Neste sentido, não se pode confundir o discurso científico sobre a espacialidade
com o próprio fenômeno, o resultado de uma ciência não é necessariamente
verdadeiro (mesmo que sempre este tente passar por infalível). Um mapa, uma foto
de satélite, por mais preciso que este possa ser, sempre vai representar uma das
representações possíveis sobre um local e não a última representação deste:
Uma forte corrente ideológica (fortemente agarrada à sua própria cientificidade) exprime, deforma admiravelmente inconsciente, as representações dominantes, portanto, aquelas da classe dominante, talvez as contornando ou delas desviando. Uma certa “prática teórica” engendra um espaço mental, ilusoriamente exterior à ideologia. Por um inevitável circuito ou círculo, esse espaço mental torna-se, por seu turno, o lugar de uma “prática teórica” distinta da prática social, que se erige em eixo, pivô ou centro do Saber (LEFEBVRE, 2006, p. 16).
Outro ponto sobre o qual Lefebvre assenta sua crítica é sobre o excesso
classificatório que sobrecarrega a análise espacial. Para o filósofo francês, o uso de
categorias, só faz sentido numa análise, se tais auxiliam de fato na interpretação de
fenômenos concretos, criar um termo para explicar outro termo, distorce o foco da
63
investigação espacial, que deve ser a vivência e estudo das diversas representações
da espacialiadade. Falar de espaço através de metalinguagem, como verticalidade
ou prospectividade, sem acompanha-se isto pela reflexão do significado particular
desde dado para a experiência de um ambiente, é um exercício estéril de listagem
ou material para um dicionário. Não se pode limitar a experiência espacial a
categorias fechadas e pré-estabelecidas, pois diferente de outros sistemas de
significação, o código semiótico de espaço não é gerado em outro lugar que não na
experiência imediata do discurso. Sendo assim, uma categoria criada deveria ser
atualizada, mesmo revista em cada experiência estudada, traço que não é
observado através da formalização:
É preciso, talvez, descobrir algumas relações ainda dissimuladas entre o espaço e a linguagem, a “logicidade” inerente à articulação funcionando desde o início como espacialidade, redutora do qualitativo dado caoticamente com a percepção das coisas (o prático-sensível). [...] Em qual medida um espaço se lê? Se decodifica? A interrogação não receberá uma resposta satisfatória tão cedo. Com efeito, se as noções de mensagem, de código, de informação etc., não permitem seguir a gênese de um espaço [...], um espaço produzido se decifra, se lê. Ele implica um processo significante. E mesmo se não existe um código geral do espaço, inerente à linguagem ou às línguas, talvez códigos particulares tenham se estabelecido ao longo da história, provocando efeitos diversos; de modo que os “sujeitos” interessados, membros desta ou daquela sociedade, acedam ao mesmo tempo a seu espaço e à sua qualidade de “sujeitos” atuando nesse espaço, o compreendendo (no sentido o mais forte desse termo) (LEFEBVRE, 2006, p. 24).
Lefebvre ressalta que a análise do espaço é um contínuo esforço de
interpretação, e não a busca de princípios universais que abarquem todas as formas
de experiência espacial. A espacialidade tem particularidades que não se deixam
categorizar, por exemplo, as categorias centro e periferia não encontram referências
puramente espaciais, um local não é dito centro da cidade por se localizar
precisamente no ponto médio, mas por acumular representações simbólicas de
autoridade e qualidade. Em contrapartida, a periferia seriam espaços desprovidos de
hegemonia ou com representações estigmatizadas. Isso demonstra mais uma vez
que a espacialidade só ganha sentido na sua relação com o social O espaço é
acima de tudo uma representação localizada histórica e socialmente. :
64
Que o espaço físico não tenha nenhuma “realidade” sem a energia que se desenvolve, isso parece fora de dúvidas. As modalidades desse desenvolvimento, as relações físicas entre os centros, os núcleos, as condensações, e, de outro lado, as periferias, permanecem conjecturais. A teoria da expansão supõe um núcleo inicial, uma explosão primordial. Essa unicidade original do cosmos tem provocado muitas objeções, em razão de seu caráter quase teológico (teogônico). F. Hoyle opôs-lhe uma teoria muito mais complexa: a energia se desenvolve em todas as direções, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande. Um centro único do cosmos, seja original, seja final, é inconcebível. A energia-espaço-tempo se condensa numa multiplicidade indefinida de lugares (espaços-tempos locais) (LEFEBVRE, 2006, p. 21).
Lefebvre acentua que a representação dos espaços sociais constitui-se de
três práticas simbólicas:
a) A prática espacial, que engloba produção e reprodução, lugares especificados e conjuntos espaciais próprios a cada formação social, que assegura a continuidade numa relativa coesão. Essa coesão implica, no que concerne ao espaço social e à relação de cada membro de determinada sociedade ao seu espaço, ao mesmo tempo uma competência certa e uma certa performance. b) As representações do espaço, ligadas às relações de produção, à “ordem” que elas impõem e, desse modo, ligadas aos conhecimentos, aos signos, aos códigos, às relações “frontais”. c) Os espaços de representação, apresentam (com ou sem código) simbolismos complexos, ligados ao lado clandestino e subterrâneo da vida social, mas também à arte, que eventualmente poder-se-ia definir não como código do espaço, mas como código dos espaços de representação (LEFEBVRE, 2006, p. 36).
Para apreender o mecanismo de construção simbólica da espacialidade de
Henri Lefebvre, Edward W. Soja (1996) propõe um modelo denominado de trialética
da espacialidade “que inter-relaciona uma dialética ligada por uma tríade” (SOJA,
1996, p. 65-68). O resultado deste processo é o esquema abaixo:
65
Figura 10- Modelo da trialética da espacialidade (SOJA, 1996: p. 74)
O modelo de espacialidade proposto por Soja (1996) está composto por três
níveis (a, b, c):
a) A prática espacial (espace perçu, o espaço percebido)
A prática espacial é entendida como a produção das representações da
espacialidade desenvolvidas por cada grupo social. Para Soja (1996), “é entendida
como o processo da forma material da espacialidade social; ela é, deste modo,
apresentada tanto como meio quanto propósito da atividade, comportamento e
experiência humanas” (SOJA, 1996, p. 66).
b) As representações do espaço (espace conçu, o espaço concebido)
As representações do espaço são um conjunto de abstrações espaciais
produzidas para convencionar uma percepção do espaço. Estas representações
ordenam, dimensionam e, de certo modo, “impõem um controle sobre o
conhecimento, os símbolos, e códigos [...] da decodificação da prática espacial e da
produção do conhecimento espacial” (SOJA, 1996, p. 66). Segundo Lefebvre (2006,
66
p. 36-37) este tipo de espacialidade é a forma dominante de espaço em qualquer
sociedade e “um armazém do poder epistemológico”.
c) Os espaços das representações (espace vécu, o espaço vivenciado)
Os espaços das representações se diferenciam das outras duas modalidades
espaciais por se tratar de um uso estratégico do espaço, relacionado às práticas
particulares dos diversos grupos sociais com seu espaço. Estes se ligam com as
atividades não convencionais, sejam as marginalizadas, underground ou mesmo
artísticas, que não costumam estarem cotidianamente presentes em todos os
espaços.
Estas intervenções não automatizadas sobre o espaço reposicionam as
representações estabelecidas do espaço: ora as questionando, ora as atualizando
segundo as demandas da dinâmica comunitária. Daí estas representações estarem
diretamente ligadas à vivência dos sujeitos com sua espacialidade
O avanço trazido pela trialética de espacialidade é captar os discursos
espaciais imediatamente como representações simbólicas, sem a necessidade do
contato imediato com um lugar concreto. Este refinamento semiótico da abordagem
lefebvriana por Edward Soja permite aplicar a dinamização espacial a fenômenos
puramente discursivos, como o espaço ficcional, e ainda, espaços concretos em sua
dimensão simbólica, como os locais de culto ou o imaginário de grandes cidades
como Londres ou Nova Iorque. Ampliando ainda mais o “esses entrecruzamentos
múltiplos, em lugares e praças assinalados” (LEFEBVRE, 2006, p. 36) inerentes à
espacialidade.
2.4.2 Uma Nota de Autocrítica
O exame das propostas dadas por Henri Lefebvre e Edward W. Soja é
sintomático: é chegado o momento de questionar os mitos de nossa visão espacial:
a) ilusão da transparência, ou seja, a ideia de que o espaço é claro, óbvio,
integralmente inteligível aos olhos de qualquer um. Como se espaço fosse inocente,
sem obscuridades, livre de arestas. Nas palavras de Lefebvre (2006, p. 33): a ilusão
de transparência “revela-se como uma ilusão transcendental, retomando
momentaneamente a velha linguagem dos filósofos: como um engodo, funcionando
67
por sua própria potência quase mágica, mas remetendo assim e do mesmo
movimento a outros engodos, seus álibis, suas máscaras”. b) ilusão realística,
baseado no primeiro preconceito, a ilusão realística resume o espaço a categorias
abstratas que corresponderiam a seus aspectos universais, como lateralidade,
dimensionalidade etc., que longe do espaço concreto são simples palavras, vazias
de significado. A ilusão realística fornece ao estudiosos o monopólio do discurso
espacial, reduzindo a espacialidade a um amontoado de categorias que pouco
fornece para uma explicação interpretativa da vivência espacial.
A existência destas questões leva a indagar até que ponto a teoria do espaço
ficcional se encontra atenta a tal problemática. O exame dos modelos de análise do
espaço ficcional recenseados ao início de nossa reflexão, e avaliados no seu
decorrer evidenciam a total assunção desta visão estática de espaço acompanhada
por um modelo formalista de análise. Em nenhuma das propostas teóricas houve a
necessidade de refletir o caráter social e contextual da representação espacial na
literatura. Fato que torna o espaço na narrativa uma das matérias mais
condescendentes com aquilo que Bourdieu chama de crítica pura, que se
caracteriza pela crença na obra de arte como um fenômeno autônomo, sem ligação
com o seu contexto de produção e recepção e que reproduz continuamente os
juízos de críticos consagrados com a interpretação última da obra:
A experiência da obra de arte como imediatamente dotada de sentido e de valor é um efeito do acordo entre as duas faces da mesma instituição histórica, o habitus cultivado e o campo artístico, que se fundam mutuamente: sendo dado que a obra de arte só existe enquanto tal, isto é, enquanto objeto simbólico dotado de sentido e de valor, se é apreendida por espectadores dotados da disposição e da competência estéticas que ela exige tacitamente, pode-se dizer que e o olho do esteta que constitui a obra de arte como tal, mas com a condição de lembrar imediatamente que não o pode fazer sentido na medida em que ele próprio e o produto de uma longa história coletiva, ou seja, da invenção progressiva do "conhecedor", e individual, isto e, de uma frequentação prolongada da obra de arte. Essa relação de causalidade circular, à da crença e do sagrado, caracteriza toda instituição que pode funcionar apenas se é instituída a um só tempo na objetividade de um jogo social e em disposições que predisponham a entrar no jogo, a interessar-se por ele. [...]. O jogo faz a illusio, o investimento no jogo do jogador avisado que, dotado do senso do jogo porque feito pelo jogo, joga o jogo e, com isso, o faz existir (BOURDIEU, 1996, p. 323-324).
68
É neste jogo onde os críticos literários criam classificações e os analistas as
assumem sem consciência de seus possíveis limites e de suas consequências
discursivas para a representação da espacialidade que jazem os modelos
concretista e seus correlatos. É necessário buscar entender a espacialidade como
um elemento intrínseco do texto literário que se atualiza em cada obra literária. Não
existe a espacialidade enquanto um elemento etéreo, repetido uniformemente por
toda a literatura. O espaço representado em uma obra é sempre particular e nele se
figuram uma rede complexa entre o discurso enquanto linguagem e enquanto pintura
espacial das representações simbólicas surgidas de seu contexto. A postura a ser
admitida por uma análise global da espacialidade deve, portanto consorciar a sua
dimensão linguística, estética e social. Cada análise adotará o critério específico do
conjunto significativo de uma narrativa particular, a espacialidade não é a soma de
suas expressões discretas (substantivos), mas um todo em que cada elemento
transcende a sua individualidade, assumindo uma significação que é específica, só
compreendida na relação concomitante entre as partes.
O conjunto destas premissas, entendidas como uma metodologia alternativa à
tradicional análise concretista estabelece um paradigma construtivista da
espacialidade ficcional. O termo construtivista é um empréstimo dos estudos da
aprendizagem (CARVALHO & MATOS, 2009), e refere-se ao entendimento de que
os conhecimentos, as significações e os conceitos não são preexistentes nem
universais, desta maneira cada fenômeno é aprendido na relação entre o indivíduo e
a realidade. Cada imagem que é constituída por um sujeito está mediada pelas suas
percepções individuais e pelas representações que absorve na sua relação com a
sociedade. Desta maneira, não existem conceitos padrões e sim conceitos em
contínuo processo de elaboração, abandono e resgate. O paradigma citado obriga o
analista a reconstituir em cada fenômeno a sua singularidade, evitando ao máximo
eleger categorias semanticamente fechadas para não se sentir autorizado a fazer
induções que não estejam de fato presentes no objeto.
A metodologia construtivista afina-se com o discurso dinamizante da
espacialidade, pois questiona o valor da classificação e descrição como fontes de
interpretação. Em termos de crítica literária, o método de análise construtivista
assemelha-se à hermenêutica, partindo da obra para a reflexão e não de categorias
teóricas para trechos isolados de obras. Com a presente investigação vislumbram-se
os fundamentos discursivos e metodológicos que guiarão a análise da
69
representação do espaço n’Os versos satânicos de Salman Rushdie desenvolvida
nas próximas páginas.
70
03 O LUGAR DO ESPAÇO NA FORTUNA CRÍTICA D’OS VERSOS SATÂNICOS
No capítulo anterior se procurou evidenciar a existência de dois paradigmas
de percepção espacial: de um lado, uma abordagem imediatista consolidada no
século XIX, que restringe a compreensão do espaço à soma de seus dados
sensoriais ou de formalizações classificatórias importadas da geografia física e
geometria (esquemas, gráficos e mapas), o qual foi denominado convencionalmente,
paradigma descritivista-classificatório. Do outro, uma abordagem discursiva e
contextual que propunha a ideia dinamizada da espacialidade, sendo esta entendida
como um produto social localizado na História e na vivência concreta e simbólica de
uma comunidade particular, à perspectiva denominou-se paradigma
(des)construtivista por tratar o espaço a partir de uma rede de representações
discursivas, que estão sendo continuamente construídas e reposicionadas.
O reconhecimento deste fato leva questionar-se qual modalidade de discurso
sobre a espacialidade é assumida na recepção crítica d’Os versos satânicos para a
partir daí sugerir caminhos alternativos para sua interpretação. De modo a alcançar
tal propósito se apresentará um panorama da fortuna crítica do romance objeto da
presente investigação. O foco da bibliografia empregada na recensão são análises
que tratem (ainda que não exclusivamente) do espaço na produção ficcional de
Salman Rushdie, dando ênfase àquelas que se debruçam sobre Os versos
satânicos.
Antes começar este inventário crítico se faz oportuno retomar um conceito
apresentado anteriormente por Louis Hébert (2012): o termo espaço pode assumir
três diferentes acepções relacionadas com os estudos literários: (a) o espaço da
produção, (b) o espaço da recepção e (c) o espaço tematizado. No que trata da
fortuna crítica d’Os versos satânicos todas estas modalidades se encontram
presentes, assim para sistematizar a apresentação dos juízos dos críticos se fará
uso destas categorias analíticas, seguindo preferencialmente a ordem cronológica
das fontes. Em se tratando de um levantamento da recepção da obra rushdiana, é
inteligível a menção análises estudos versando sobre outros trabalhos de Salman
Rushdie que mantenham uma afinidade temática com Os versos satânicos,
especialmente naqueles assuntos em que sejam poucas as análises atinentes a este
romance.
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3.1 O ESPAÇO DA PRODUÇÃO D’OS VERSOS SATÂNICOS
Desde a sua publicação em setembro de 1988, Os versos satânicos ficaram
envoltos numa das mais profundas polêmicas editoriais do século XX. O principal
fator para tal foi o reconhecimento do romance como uma ofensa “ao Islã, ao Profeta
do Islã e ao Corão” (KHOMEINI, 1989) pela comunidade muçulmana internacional. A
repercussão global deste acontecimento tornou o espaço de produção e recepção
imediata uma temática comum na fortuna crítica de nosso objeto.
3.1.1 Edward W. Said (1989a, 1990 [1989b], 1994a, 1994b)
A recepção da polêmica d’Os versos satânicos em termos de crítica literária
inicia-se com dois artigos publicados em jornais por Edward W. Said, que à época
era catedrático de Literatura Comparada na Universidade de Columbia e um dos
entusiastas do movimento intelectual pós-colonial. No primeiro artigo, saído no dia
26 de fevereiro de 1989 (SAID, 1989a), portanto pouco mais de uma semana após a
condenação capital (fatwa) de Salman Rushdie pelo Aiatolá Ruhollah Musavi
Khomeini, o pensador palestino procura localizar o autor d’Os versos satânicos a
partir de sua carreira literária. Para isto analisa uma crônica publicada por Rushdie
em 1984, The Outside of Whale (RUSHDIE, 1992 [1984]), demonstrando como as
instabilidades culturais e políticas evidenciadas naquele momento tinham chegado
ao seu píncaro com o movimento fundamentalista deflagrado com a reação à
publicação d’ Os versos satânicos.
No artigo seguinte, intitulado Dealing With Rushdie’s: Complicated Mixture,
Edward Said (1989b) retoma a sua reflexão ao ressaltar o tom “profético” do citado
texto de Rushdie, pois no mesmo, o escritor indiano dizia “O mundo moderno não
carece apenas de esconderijos, mas de certezas” (RUSHDIE, 1992 [1984], p. 99), o
que era sensível na situação que vinha vivenciado desde a publicação d’Os versos
satânicos, conforme reiterou Said:
Essas palavras possuem uma aplicação inteiramente profética para a situação atual de Salman Rushdie, não apenas porque ele tem estado escondido para salvar sua vida, mas porque ele escreveu um
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livro que fez um ‘imenso estardalhaço’ ao questionar certezas, provocando ira e espanto (SAID, 1990 [1989b], p. 164) 29.
O crítico palestino ultrapassa o entendimento da polêmica como uma
simples questão de religião ou censura, o espaço que o romance de Rushdie alçou
foi o lugar do incomum dentro da tradição ficcional de língua inglesa. Para Said Os
versos satânicos manifestam um caminho literário que vai de encontro às visões
naturalizadas pela tradição literária. Daí, o emprego da metáfora d’o lado de fora da
baleia, pois como é conhecida pelo relato bíblico de Jonas, a literatura ocidental
sempre se focou num viés do discurso (o lado de dentro da baleia) e deixou de fora
de seu relato diferentes caminhos de interpretação. Assim, o lado de fora da baleia
evoca “uma genuína necessidade para a ficção política, para livros que desenhem
novos e melhores mapas da realidade, e para a feitura de novas linguagens com as
quais possamos compreender o mundo” (RUSHDIE, 1992 [1984], p. 100) 30. Os
versos satânicos encontram-se na percepção do pensador palestino neste lugar
particular de representação, nas suas palavras:
Os versos satânicos são uma admirável e prodigiosamente inventiva obra de ficção. Como também o é seu autor, na história, o mundo, a multidão e a tempestade. Este é de todos os modos possíveis uma obra deliberadamente transgressora. Ele une e representa as narrativas centrais do Islã com arrojo, intrepidez e ousadia pós-moderna. Isso demonstra outro lado de seu autor, um contínuo engajamento com a política e a história da cena contemporânea (SAID, 1990 [1989b], p. 164-165) 31.
Edward Said entende que a polêmica instaurada pela publicação do romance
de Rushdie, em especial, no que se relacionava com a comunidade islâmica não
29
Tradução livre, do original: These words have an ominously prophetic applicability to Salman Rushdie's situation today, not only because he has to be in hiding in order to save his life, but because he wrote a book that made 'a very devil of a racket' in challenging certainties, provoking anger and amazement.
30 Tradução livre, do original: Outside the whale there is a genuine need for political fiction, for books
that draw new and better maps of reality, and make new languages with which we can understand the world.
31
Tradução livre, do original: The Satanic Verses is an astonishing and prodigiously inventive work of fiction. Yet it is like its author, in history, the world, the crowd and the storm. It is, in all sorts of ways, a deliberately transgressive work. It parallels and mimics the central Islamic narratives with bold, nose-thumbing, post-modern daring. And in so doing it demonstrates another side of its author’s unbroken engagement with the politics and history of the contemporary scene.
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correspondia à fé islâmica como um todo, mas a um grupo específico desta
comunidade que se fechava num radicalismo irracional. O crítico ressaltava que
imputar sobre Rushdie uma pretensa aversão à cultura muçulmana era uma falácia
criada pelos regimes totalitários de alguns estados com o objetivo de impor o ódio
pelo Ocidente. Said argumenta em seu artigo que desde o início de sua trajetória
literária e intelectual Salman Rushdie:
[...] falou em favor dos imigrantes, e dos direitos dos palestinos e dos não-brancos (black), e contra o imperialismo e racismo, como também contra a censura, ele sempre expressou sem receio a disposição para assumir posições políticas que sem a sua voz jamais teriam encontrado espaço (SAID, 1990 [1989b], p. 165) 32.
A condenação à morte de Salman Rushdie trouxe para a opinião pública uma
série de questões que vinham sendo negligenciadas: a condição de subalternidade
dos imigrantes nas grandes cidades do ocidente e o regime de miséria econômica e
social que boa parte das populações não-brancas, não-europeias estavam sujeitas
através do globo. Conforme reitera Said, a narrativa de Rushdie questiona a
superioridade de gênero baseada num ideal de pureza e ancestralidade que não
corresponde à multiplicidade das vivências humanas:
[...] este paradoxo peculiar é também um emblema do destino de híbridos e imigrantes, que é destino também deste mundo contemporâneo. Por este princípio, não existe algo puro, imaculado, essência sem mistura para a qual algumas de nós possamos retornar, como a essência do Islã puro, do Cristianismo puro, do Judaísmo ou do Orientalismo puro, Americanismo, Ocidentalismo. A obra de Rushdie não é apenas sobre a mistura, ela é a própria mistura (SAID, 1990 [1989b], p. 166) 33.
Edward Said trata da obra de Rushdie, não apenas enquanto uma ficção e
sim como uma forma de representação localizada num contexto social particular,
levando em conta seu princípio analítico de que “[...] as obras literárias não são
meramente textos. Elas são constituídas de maneira diferente; tem objetivo de fazer
32 Tradução livre, do original: [...] has spoken out for immigrants', black and Palestinian rights, against
imperialism and racism, as well as against censorship, and he has always unhesitatingly expressed willingness to take active political positions whenever his voice has been needed.
33
Tradução livre, do original: [...] this peculiar paradox is also an emblem of the fate of hybrids and
immigrants, that fate too is part of this contemporary world. For the point is that there is no pure, unsullied, unmixed essence to which some of us can return, whether that essence is pure Islam, pure Christianity, pure Judaism or Easternism, Americanism, Westernism. Rushdie's work is not just about the mixture, it is that mixture itself.
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diferentes coisas” (SAID, 2003, p. 188). Falar do lado de fora da baleia, faz recordar
aquilo que Jacques Derrida chamava de différance, ou seja, a busca pelo avesso
dos discursos totalizantes.
Nesta direção, différance do discurso rushdiano não se limitava apenas à
escrita, acompanhava também a sua posição de intelectual. Said (1994) discutiu
esse viés da polêmica d’Os versos satânicos em uma série de conferências
apresentadas em 1993, intituladas Representations of the Intellectual. O pensador
palestino avalia a censura ao romance de Salman Rudhdie como o sinal de uma
crise instalada na figura pública do intelectual. Desde o final do século XIX, atividade
dos maiores intelectuais europeus se restringia quase exclusivamente ao magistério
universitário e a publicação de obras que eram lidas pelos seus pares.
Assim, na segunda metade do século XX, a sociedade estava acostumada a
se isentar de demandas intelectuais mais profundas, em suma, o que acontecia na
academia ou nas artes geralmente não ultrapassava o limiar dessas esferas. Então,
aparece uma obra de ficção que abala a aparente serenidade da democracia
cosmopolita, trazendo à tona demandas há muito ignoradas. Defender a liberdade
de expressão de Rushdie era, para Said, defender a formação de um novo
paradigma de intelligentsia, comprometida com as demandas sociais e ideológicas
da contemporaneidade:
Liberdade inalienável de opinião e expressão é baluarte principal do intelectual secular: abandonar a sua defesa ou tolerar violações de qualquer um dos seus fundamentos é, com efeito, trair a vocação do intelectual. É por isso que a defesa d’Os versos satânicos de Salman Rushdie foi absolutamente um problema central, tanto para o seu próprio bem e para o bem de todos os outros ao se assaltar contra o direito de expressão dos jornalistas, romancistas, ensaístas, poetas, historiadores (SAID, 1994a, p. 89) 34.
Conforme se observa nesta citação, Said encara a polêmica d’Os versos
satânicos como um momento de transição, em que o artista e arte em geral deixa a
sua aura de exterioridade social (autotelismo) e passa a assumir posições na
sociedade da qual emergiu. Deste modo, a defesa incansável do direito à liberdade
34
Tradução livre, do original: Uncompromising freedom of opinion and expression is the secular intellectual's main bastion: to abandon its defense or to tolerate tamperings with any of its foundations is in effect to betray the intellectual's calling. That is why the defense of Salman Rushdie's Satanic Verses has been so absolutely central an issue, both for its own sake and for the sake of every other infringement against the right to expression of journalists, novelists, essayists, poets, historians.
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de expressão artística e intelectual deveria ser a pedra de toque desta nova estética.
Sem a liberdade de pensamento exigida pela arte de Rushdie, é improvável a sua
compreensão global. Retomando, às palavras de Said (1990 [1989b]), Os versos
satânicos não estão inscritos em qualquer ideologia particular, é um imperativo de
estilo ignorar a ideia da unidade, tudo que encontra em seu bojo é elaborado sob o
signo da diferença e do hibridismo, não poderia ter uma identidade própria sem ser
pura multiplicidade.
Apesar de ressaltar a importância histórica e o caráter humanitário da
polêmica d’Os versos satânicos, Edward Said ressalta que jamais se deve tirar o
foco da própria obra, foi dela que emergiram os questionamentos e ela deve ser o
ponto de partida de quaisquer análises deste fenômeno. Para Said, ignorar a leitura
do romance como um produto estético que gerou o extremismo das partes
envolvidas nos inumeráveis incidentes desde a sua publicação (atentados,
assassinatos, censura, etc.). Conforme ele descreveu em Culture and Imperialism:
O espaço entre o choque de outras religiões ou culturas e o autoelogio excessivamente conservador não foi preenchido com a análise ou discussão edificantes. Nas resmas impressas sobre Os versos satânicos de Salman Rushdie, apenas uma pequena proporção discutiu o livro em si, aqueles que se opunham a ela e recomendou sua queima e a morte de seu autor recusou-se a lê-lo, enquanto que aqueles que apoiaram a sua liberdade de escrever limitaram-se também nisso. Muito da controvérsia apaixonada da “alfabetização cultural” nos Estados Unidos e na Europa foi sobre o que deveria ser lido - os vinte ou trinta livros essenciais - não sobre como eles devem ser lidos. Em muitas universidades americanas, a resposta do pensamento correto frequente para as demandas de grupos marginais recém-empossados foi “me mostrar o Proust Africano (ou asiático, ou feminino)” ou “se você mexer com o cânone da literatura ocidental é provável que esteja promovendo o retorno da poligamia e a escravidão”. Seja ou não grande arrogância e tão caricatural uma visão do processo histórico deveriam exemplificar o humanismo e a generosidade da “nossa” cultura, esses sábios não se prontificaram (SAID, 1994a, p. 328) 35.
35
Tradução livre, do original: The space between the bashing of other religions or cultures and deeply conservative self-praise has not been filled with edifying analysis or discussion. In the reams of print about Salman Rushdie’s Satanic Verses, only a tiny proportion discussed the book itself; those who opposed it and recommended its burning and its author's death refused to read it, while those who supported his freedom to write left itself righteously at that. Much of the passionate controversy about “cultural literacy” in the United States and Europe was about what should be read – the twenty or thirty essential books – not about how they should be read. In many American universities, the frequent right thinking response to the demands of newly empowered marginal groups was to say “show me the African (or Asian, or feminine) Proust” or “if you tamper with the canon of Western literature you are likely to be promoting the return of polygamy and slavery.” Whether or not such hauteur and so caricatural a view of historical process were supposed to exemplify the humanism and generosity of “our” culture, these sages did not volunteer
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3.1.2 Richard Webster (1992)
Richard Webster em sua A Brief History of Blasphemy: Liberalism, Censorship
and the Satanic Verses (1992), desenvolve um relato cronológico e crítico sobre os
acontecimentos derivados da polêmica d’Os versos satânicos, sua atenção centra-
se nas repercussões jurídicas e públicas das sucessivas tentativas de censura da
edição do romance de Rushdie. Webster inicia sua reflexão procurando
compreender como o conceito de blasfêmia, até então, considerado anacrônico e
ultrapassado na atual sociedade ressurgiu no vocabulário filosófico com a
deflagração do caso de Salman Rushdie.
O historiador cultural britânico retoma o texto da fatwa de Khomeini e analisa
como se tornou possível a transmissão de um discurso calcado no contexto da
teocracia e do conservadorismo religioso para o ocidente, onde imperava uma
“infalível” aparência de liberdade e ecletismo religioso. Webster ressalta que a
reação contra Os versos satânicos resgatou um passado de intolerância que vinha
sendo ignorado, principalmente pelo Reino Unido. Quando explodiram na Inglaterra
as primeiras manifestações contra a obra de Salman Rushdie, alguns conservadores
(tanto islâmicos, quanto cristãos) fizeram uso de uma lei ainda vigente naquele país
contra blasfêmia. O processo não foi muito longe, mas foi o suficiente para chamar a
atenção de que mesmo em países ditos “liberais” ainda persistem mecanismos de
violação da liberdade de expressão artística.
Um ponto importante da análise de Webster da polêmica é que apesar deste
fato ter surgido como uma questão de religião, esta só se sustentou por um
significativo tempo e numa amplitude global por tocar em duas questões universais:
o choque entre culturas de matriz étnica diversa e o conflito de interesse político
entre a soberania ideológica e a manutenção da “paz” social. O historiador ressalta
que o âmago da controvérsia sobre a obra de Rushdie foi cultural, ambos os partidos
não estavam tão preocupados em avaliar o que realmente estava expresso n’Os
versos satânicos, e sim apontar onde estava “o satânico”, “o Mal” denunciado pela
polêmica. Assim, havia nos meios de comunicação ocidental uma campanha para
demonizar o Mundo Islâmico em bloco e a sua recíproca na imprensa árabe. A
questão a ser respondida pela obra é pensar se a blasfêmia não foi um veículo de
reconhecimento de uma verdade inconveniente:
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Para dizer isso, porém, em si, não resolve nenhuma das questões mais importantes que foram levantadas pela publicação d’Os versos satânicos e pela resposta muçulmana a ele. Para o fato de que os muçulmanos - ou para qualquer outro assunto que grupo de pessoas - pode se sentir ameaçado, incomodado ou ofendido com a publicação de um romance em si não é uma razão para suprimir essa novela ou recusando-se a publicá-lo em uma edição de bolso. A própria verdade às vezes é doloroso, inquietante e ofensivo. Sendo assim, a questão que permanece sem resposta é se a blasfêmia pode-se ser um veículo de verdade, e se o direito de exercer a blasfêmia contra uma religião em particular, ou mesmo contra todas as religiões, é, portanto, um direito precioso que deve ser defendida a todo custos. Para responder a essa pergunta, eu acredito que nós precisamos localizá-lo não em algum Utopia hipotético, mas no mundo histórico e político real (WEBSTER, 1992, p. 23) 36.
3.1.3 Margaret Bald (2006)
Na obra enciclopédica intitulada Banned Books-Literature suppressed on
religious grounds, Margaret Bald elabora um extenso inventário dos principais
episódios da literatura universal em que autores, obras ou movimentos sofreram
alguma censura ou perseguição por causas religiosas. Conforme pontua a autora, a
idealização de seu projeto editorial surgiu a partir da repercussão ligada à tentativa
de censura da publicação d’Os versos satânicos:
Em 1989, um decreto de Teerã trouxe um lembrete chocante de censura religiosa, considerado por muitos como um fantasma do passado distante da Inquisição e da queima de hereges. O decreto de morte do aiatolá Khomeini contra o escritor Salman Rushdie e a proibição generalizada do romance de Rushdie, Os versos satânicos, por blasfêmia contra o Islã foi um exemplo surpreendente de um fenômeno que é tão antiga quanto a história e, com a atual onda de fundamentalismo religioso, tão recente quanto manchetes de todo dia (BALD, 2006, p. XI) 37.
36
Tradução livre, do original: To say this, however, does not in itself resolve any of the most important questions which have been raised by the publication of The Satanic Verses and by the Muslim response to it. For the fact that Muslims – or for that matter any other group of people – might feel threatened, discomforted or offended by the publication of a novel is not in itself a reason for suppressing that novel or declining to publish it in a paperback edition. Truth itself is sometimes painful, disturbing and offensive. That being so, the question which remains unanswered is whether blasphemy can itself be a vehicle of truth, and whether the right to engage in blasphemy against a particular religion, or indeed against all religions, is therefore a precious right which should be defended at all costs. In order to answer that question, I believe that we need to locate it not in some hypothetical Utopia but in the real historical and political world.
37
Tradução livre, do original: In 1989, an edict from Tehran brought a shocking reminder of religious censorship, regarded by many as a specter from the distant past of the Inquisition and the burning of heretics. The Ayatollah Khomeini’s death decree against author Salman Rushdie and the widespread
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Bald trata do caso d’Os versos satânicos como um evento emblemático que
manifestou com profundidade todos os malefícios da perseguição religiosa contra a
literatura. Pois não tentou vedar apenas a divulgação de um produto intelectual, mas
atentou contra o bem-estar e os direitos civis de vários sujeitos envolvidos direta ou
indiretamente em sua produção e divulgação, a começar pelo seu autor que teve de
passar anos sob proteção policial para garantir sua integridade vital.
Para retratar com detalhe o ocorrido, Bald faz um relato sinóptico dos
principais acontecimentos, citando datas, personagens e a recepção destes pelos
meios de comunicação ocidentais. A estudiosa americana retoma a polêmica d’Os
versos satânicos em boa parte dos verbetes de sua obra, demonstrando a
relevância desta para a história da literatura ocidental como um divisor de águas na
relação entre o campo literário-intelectual e o campo social.
3.1.4 Talal Asad (2009)
No outono de 2007, evocando a celeuma causada pela polêmica de charges
dinamarquesas e ainda na lembrança recente do assassinato do cineasta holandês
Theo Van Gogh (em 2004) por extremistas islâmicos, a Universidade da Califórnia
sediou o Simpósio “Is Critique Secular?” com o propósito de discutir os desafios da
liberdade secular nas artes e na comunicação social. Na ocasião o antropólogo Talal
Asad apresentou a conferência Free Speech, Blasphemy,and Secular Criticism,
pontuando a coerência daquele contexto para tal questionamento:
Por muitos anos, tem havido discussão na Europa e América sobre a ameaça à liberdade de expressão, especialmente quando seus muçulmanos têm levantado a questão da blasfêmia em resposta a algumas críticas públicas do Islã. A crise mais recente foi o escândalo das caricaturas dinamarquesas. Uma década e meia após o caso Rushdie, a antiga denúncia religiosa de "blasfêmia" tinha elevado sua cabeça novamente entre os muçulmanos na Europa e fora dela, tentando minar as liberdades seculares duramente conquistados. Ou assim nos foi dito. Houve protestos e alguma violência, por um lado, muitas afirmações de princípio e expressões de indignação, de outro. O assunto foi discutido amplamente no
banning of Rushdie’s novel The Satanic Verses for blasphemy against Islam was a startling example of a phenomenon that is as old as history and, with the current wave of religious fundamentalism, as recent as today’s headlines.
79
contexto do problema da integração dos imigrantes muçulmanos na sociedade europeia e como se relacionava com a "ameaça global" dos islâmicos (ASAD, 2009, p. 20) 38.
Na esteira de Webster (1993), Asad interpreta o fenômeno da polêmica d’Os
versos satânicos enquanto um choque civilizacional, onde ambos creem serem
portadores do modelo ideal de cultura. Trata-se deste modo de uma crise de
identidades sociais totalizantes: o Ocidente assumindo a imagem de universo
cosmopolita, defensor intransigente da “liberdade” e Oriente Mulçumano tentado
preservar-se desta ditadura da “cultura democrática” globalizada. O antropólogo
saudita dá especial nota a imagem que a cultura norte-americana e europeia nutre
pelos países de matriz árabe: guerras, preconceitos e estereótipos são justificados
pelo simples argumento étnico, o que é igualmente digno de crítica, tendo em vista
suas consequências para a relação simbólica e real entre ocidentais e orientais.
Talal Asad observa a blasfêmia como um processo de reposicionamento de
representações discursivas e estéticas, que acontece continuamente em quaisquer
comunidades; inclusive no Ocidente em diversas ocasiões através da história.
Exemplo deste processo simbólico, são os momentos em dois discursos se opõem,
criando uma tensão entre os polos culturais de certo contexto: as Cruzadas, a
Revolução Francesa, a Guerra Fria etc. Um movimento natural, ainda que traumático
para qualquer dinâmica social.
Quando o Oriente alega o caráter pretensamente blasfemo d’Os versos
satânicos, está apenas externando o impacto da instabilidade de suas
representações. Como o seu regime ideológico baseia-se mais na tradição, que na
inovação este abalo é sentido com mais pungência, daí as represálias endurecidas.
Conforme, descreve Asad (2009):
A destruição intencional de signos, ou seja, o assalto contra imagens e palavras que são investidos com o poder de determinar o que conta como verdade, tem uma longa história de transcender a
38
Tradução livre, do original: For many years now, there has been much talk in Euro-America about the threat to free speech, particularly whenever its Muslims have raised the issue of blasphemy in response to some public criticism of Islam. The most recent crisis was the scandal of the Danish cartoons. A decade and a half after the Rushdie affair, the old religious denunciation of “blasphemy” had reared its head again among Muslims in Europe and beyond, seeking to undermine hard-won secular freedoms. Or so we were told. There were angry protests and some violence on one side, many affirmations of principle and expressions of outrage on the other. The affair was discussed largely in the context of the problem of integrating Muslim immigrants into European society and how it related to the “global menace” of Islamists.
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distinção entre o religioso e o secular. Como iconoclastia e blasfêmia, a crítica secular também busca criar espaços para uma nova verdade, e, como eles, fá-lo, destruindo os espaços que foram ocupados por outros sinais (ASAD, 2009, p. 33) 39.
3.1.5 Kenan Malik (2010)
Na obra From Fatwa to Jihad: The Rushdie Affair and Its Aftermath (How a
Group of British Extremists Attacked a Novel and Ignited Radical Islam), o
antropólogo indiano Kenan Malik explora a sua experiência de imigrante na
Inglaterra para analisar o processo de formação e as consequências da polêmica
d’Os versos satânicos para a convivência inter-racial e intercultural no contexto do
Reino Unido. O seu relato começa com a narração de uma cena acompanhada pelo
autor, a queima de exemplares do citado romance de Salman Rushdie:
[Bradford, norte da Inglaterra] Era uma cidade da qual poucas pessoas fora da Grã-Bretanha teria ouvido falar. Até que, então, milhares de manifestantes muçulmanos tiveram, no mês anterior, desfilaram com uma cópia d’Os versos satânicos de Salman Rushdie, antes de cerimoniosamente queimar o livro. O romance foi amarrado a uma estaca, antes de ser incendiado em frente à delegacia de polícia. Foi um ato calculado para chocar e ofender. Ele fez mais do que isso. A queima de livros tornou-se um ícone da raiva do Islã. Transmitido ao redor do mundo por uma multidão de fotógrafos e câmeras de TV, a imagem proclamou: “Eu sou um presságio de um novo tipo de conflito e de um novo tipo de mundo” (MALIK, 2010, p. 03) 40.
Malik ressalta o papel da polêmica na mudança de mentalidade ocidental
sobre o Mundo Árabe. Até este momento, povo islâmico era apenas um nome que
se localizava em algum canto dos livros de história e geografia, a repercussão global
do caso de Rushdie colocou a questão do imigrante no centro da opinião pública
39
Tradução livre, do original: The willful destruction of signs—that is to say, the assault on images and words that are invested with the power to determine what counts as truth—has a long history of transcending the distinction between the religious and the secular. Like iconoclasm and blasphemy, secular critique also seeks to create spaces for new truth, and, like them, it does so by destroying spaces that were occupied by other signs.
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Tradução livre, do original: [Bradford, northern England] It was a town of which few people outside of Britain would have heard. Until, that is, a thousand Muslim protestors had, the previous month, paraded with a copy of Salman Rushdie’s The Satanic Verses, before ceremoniously burning the book. The novel was tied to a stake before being set alight in front of the police station. It was an act calculated to shock and offend. It did more than that. The burning book became an icon of the rage of Islam. Sent around the world by a multitude of photographers and TV cameras, the image proclaimed, ‘I am a portent of a new kind of conflict and of a new kind of world’.
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britânica. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha recebeu uma
corrente migratória de diversas proveniências, no entanto, a condição vivida por
estes estrangeiros em terras inglesas não havia sido refletida com profundidade,
nem pelas ilustres escolas de sociologia localizadas no país.
Um grande número de imigrantes vivia em condições de extrema miséria e
alguns eram submetidos a um regime semelhante ao de escravidão. Abandonados
pelo poder público e considerados como pessoas que ocupavam o espaço dos
britânicos nos empregos, estes foram constrangidos a diversos tipos de
discriminação. Muitas dos constrangimentos vivenciados pelo personagem Saladin
Chamcha n’Os versos satânicos retratam essa realidade “visível, mas não vista”
(RUSHDIE, 1998, p. 200) do imigrante numa sociedade de tradição imperialista.
Conforme descreve Malik:
O caso Rushdie foi o momento em que um novo Islam anunciou-se dramaticamente como uma importante questão política na sociedade ocidental. Foi também o momento em que a Grã-Bretanha percebeu que estava diante de um novo tipo de conflito social. Desde os primórdios da imigração do pós-guerra, os negros e asiáticos estiveram envolvidos em amargos conflitos com autoridade. [...] Foi o primeiro grande conflito cultural, uma polêmica bastante diferente de tudo o que a Grã-Bretanha já tinha experimentado. Fúria muçulmana parecia ser conduzido não por questões de assédio ou discriminação ou pobreza, mas por um sentimento de dor que as palavras de Salman Rushdie ofendeu suas crenças mais profundas. Onde é que tal dor vem, e por que foi sendo expresso agora? Como poderia um romance criar tal indignação? Poderia angústia muçulmano ser amenizada, e deve ser? Como é que a raiva nas ruas de Bradford relacionam com questões políticas tradicionais sobre direitos, deveres e direitos? Grã-Bretanha nunca tinha perguntado a si mesmo essas perguntas antes. Vinte anos depois, ele ainda está tateando em busca de respostas 41 (MALIK, 2010, p. 10-11).
41 Tradução livre, do original: The Rushdie affair was the moment at which a new Islam dramatically
announced itself as a major political issue in Western society. It was also the moment when Britain realized it was facing a new kind of social conflict. From the very beginnings of post-war immigration, blacks and Asians had been involved in bitter conflicts with authority. [...] The Rushdie affair was different. It was the first major cultural conflict, a controversy quite unlike anything that Britain had previously experienced. Muslim fury seemed to be driven not by questions of harassment or discrimination or poverty, but by a sense of hurt that Salman Rushdie’s words had offended their deepest beliefs. Where did such hurt come from, and why was it being expressed now? How could a novel create such outrage? Could Muslim anguish be assuaged, and should it be? How did the anger on the streets of Bradford relate to traditional political questions about rights, duties and entitlements? Britain had never asked itself such questions before. Twenty years on, it is still groping for the answers.
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A polêmica d’Os versos satânicos foi fruto de um processo silencioso de
busca de reconhecimento social de um extrato social que vinha sendo marginalizado
na sociedade britânica. A questão religiosa serviu de estopim para a revolta
generalizada dos imigrantes, o que surge como um dado de crença se une as
demandas políticas, culturais e públicas, que não ganhariam notoriedade sem uma
celeuma que mobilizasse toda classe imigrante. Não é possível entender esse
fenômeno fora deste contexto tão específico. Segundo o estudioso indiano, o caso
Rushdie representou o advento de uma nova ordem social, “uma reviravolta no
relacionamento entre a sociedade britânica e suas comunidades islâmicas 42”
(MALIK, 2010, p. 11), e consequentemente, com outros grupos imigrantes que
habitam o país.
3.1.6 Annika Fickers (2012)
Explorando um caminho de pesquisa semelhante ao de Malik, Annika Fickers
apresenta em sua dissertação de mestrado pelo departamento de História da
Universidade de Leiden, At the Crossroad: The Impact of the Rushdie Affair on the
Framing of the Dutch and British Public Debates on Immigrant Integration, um estudo
sobre as reportagens veiculadas nos meios de comunição britânicos e neerlandeses
no período da polêmica d’Os versos satânicos e suas consequências para os
debates sobre a imigração nos respectivos países. Segundo a autora, a sua
preocupação em cruzar estes dois fenômenos particulares foi o fato de ambas as
nações se configurarem como grandes polos de atração populacional, e que boa
parte das comunidades imigrantes da Holanda e Grã-Bretanha compõe-se de
mulçumanos que estiveram diretamente mobilizados pelo caso Rushdie.
Além deste foco historiográfico, a análise de Fickers se fundamenta na
metodologia dos estudos culturais, o que lhe permitiu interpretar os acontecimentos
arrolados em categorias que tratam de perto do problema da imigração, a saber:
assimilação, multiculturalismo, universalismo e teorias da formação comunitária.
Fickers elaborou ainda uma rede de 04 conflitos particularizados (sociais e
42
Tradução livre, do original: [...] was a turning point in the relationship between British society and its Muslim communities.
83
discursivos) que em sua visão resumiriam os problemas básicos de tal polêmica: (a)
Habitante colonial contra trabalhador migrante, (b) Agência contra voz, (c) As
relações raciais contra minorias culturais, (d) Estado neoliberal contra o bem-estar.
A obra de Annika Fickers demonstra-se bastante pontual em aprofundar a
polêmica d’Os versos satânicos enquanto um fenômeno social que ultrapassou os
limites da arte e contribuiu sobremaneira para a reflexão do papel e da imagem dos
imigrantes nas sociedades inglesa e neerlandesa, e consequentemente no contexto
geral do Ocidente. Conforme resume Fickers:
Os resultados de minha pesquisa contribuiram para a literatura existente sobre o caso Rushdie em duas maneiras. Por um lado, os meus resultados do estudo manifestam o caso Rushdie como um evento que abriu o caminho para os críticos de integração mais tarde para implementar suas idéias neo-realistas no debate público holandês. A polêmica retirada dos velhos tabus para criticar os imigrantes e para fazer valer as falhas de integração, tornou as pessoas receptivo para as idéias neo-realistas. De certa forma o caso Rushdie também serviu como um teste importante ou modelo, respectivamente. [...] Por outro lado, este estudo revelou que o legado do passado colonial tem um impacto significativo sobre o processo de integração dos imigrantes na Europa. Antigas relacões coloniais das sociedades sobre o processo de integração de migrantes muçulmanos (FICKERS, 2012, p 90) 43.
3.2 O ESPAÇO DA RECEPÇÃO D’OS VERSOS SATÂNICOS
Dando prosseguimento ao panorama crítico d’Os versos satânicos se
apresentarão os estudos que versam sobre a recepção da própria obra no contexto
dos estudos literários. Apesar de ser um romance relativamente recente (publicado
há menos de 30 anos), Os versos satânicos já conta com uma alentada fortuna
crítica tratando deste particular. O reconhecimento da extensão do material sobre a
recepção da obra aqui em análise se faz necessário uma sistematização prévia
antes de expor os dados da revisão bibliográfica.
43 Tradução livre, do original: [...] my research findings contributed to the existing literature on the
Rushdie affair in two ways. On the one hand, my study results manifest the Rushdie affair as an event that cleared the way for later integration critics to implement their neo-realist ideas in the Dutch public debate. The controversy removed the old taboos to criticize immigrants and to assert integration failures, and made people receptive for neo-realist ideas. In a certain way the Rushdie affair also served as an important test or respectively role model.[...] On the other hand, this study revealed that the legacy of the past has a significant impact on the integration process of migrants in Europe. Earlier colonial relations of the receiving societies with the sending society facilitated the absorption of Muslim immigrants.
84
Desde muito cedo, Os versos satânicos foram observados como uma das
narrativas mais representativas do movimento pós-colonial e multiculturalista (SAID,
1989; SPIVAK, 1989; APPIGNANESI, MAITLAND, 1990 BHABHA, 1998; AHMED,
2000; ASHCROFT, GRIFFITHS, TIFFIN, 2000). Essa condição tornou a obra objeto
de diferentes campos de estudo: História, Crítica Literária, Filosofia e Estudos
Comparados da Religião. Deste modo, para sistematizar o volume das publicações
acerca d’Os versos satânicos, adotam-se os seguintes eixos temáticos, que serão
aplicados à frente nas exposições de caráter mais pontual:
a) Pós Modernidade, Desconstrução e Hibridismo.
b) Estudos Culturais, Pós-Coloniais, Transnacionais, Anti-Imperiais e Étnicos.
c) Localização da obra rushdiana na tradição canônica universal.
Gayatri Chakravorty Spivak (1989)
Numa das primeiras análises a tratar especificamente do conteúdo intrínseco
d’Os versos satânicos, Gayatri Chakravorty Spivak, à época professora do
departamento de Literatura Inglesa da Universidade de Pittsburgh e hoje uma das
teóricas expoentes dos estudos pós-coloniais, apontou alguns caminhos que mais
tarde tornaram-se recorrentes na recepção crítica do romance de Salman Rushdie.
A estudiosa indiana inicia sua reflexão se isentando dos efeitos da polêmica
religiosa relacionados à publicação da obra, como esta afirma “me proporei a fazer o
que pode parecer impossível: uma leitura d’Os versos satânicos como se nada
tivesse acontecido desde o final de 1988” (SPIVAK, 1989, p. 79). Spivak ressalta
que se propõe a unir em sua análise, uma metodologia estética a um estudo
contextual, inspirado no conceito de lebenswelt44 Peter Burger e Jürgen Habermas,
“a prática e política da vida interceptando um objeto estético como simples leitura
do que se tornou impossível” (SPIVAK, 1989, p. 79).
Gayatri Spivak descreve a narrativa d’Os versos satânicos como artefato
emblemático da pós-colonialidade (post-coloniality), ou seja, uma “citação, uma
reescritura, um redirecionamento do histórico” (SPIVAK, 1989, p. 79). O
reconhemineto indica para a crítica que a investigação deste romance não poderia
44
Em alemão: vivência no mundo.
85
ignorar a “reunião das várias posições do sujeito na política geográfica
contemporânea” e a sua inclusão como “elemento de uma história intelectual”. Em
termos de síntese, Spivak assevera: “Os versos satânicos,sem ignorar toda sua
multiplicidade, tem um agressivo tema central: o pós-colonial dividido entre duas
identidades; o imigrante e o nativo” (SPIVAK, 1989, p. 79).
Segundo Spivak o universo representado nos é um espaço “de muitas
representações fragmentadas da Nação”, o tom do seu relato gravita entre “o sério e
o cômico”, em ambos os casos manifestando “figuras de resistência” à soberania
imperial. O registro da denúncia social presente na narração é contrabalançado pela
contínua inserção de elementos insólitos e maravilhosos, dando à obra um estilo
semelhante ao Realismo Mágico encontrado na moderna literatura latino-americana.
Essa peculiaridade narrativa leva Spivak a considerá-la como um recurso para
conferir à obra “uma descrição taxionômica privilegiada e uma apropriação de estilos
e sistemas de representação alternativos” (SPIVAK, 1989, p. 79).
A condição do sujeito migrante é compreendida na medida de uma voz
exílica, de uma identidade em contínua busca pelo lar perdido, por uma pátria
imaginada. Este espaço limiar oferece à trama um mise-én-abîme, seus
personagens encontra-se num persistente conflito por abandonar seus lares e ter
que conviver com referências culturais com as quais não estão habituados. Noutra
direção, o imigrante sofre com a não-aceitação da papulação nativa, que lhe
considera um indivíduo suspeito, lhe colocando numa espiral de marginalização e
subalternidade. Spivak interpreta o relato ficcional de Salman Rushdie como o
retrato de uma modernidade marcada pela “realidade fantasmagórica”, “vanguarda
artística”, “uma realidade psíquica entalahada no capitalismo”.
Traçadas as linhas gerais deste escrito é sintomático como este contém
um programa descritivo das temáticas que guiarão boa parte dos trabalhos críticos
posteriores. Tal evidência se torna ainda mais patente pelo fato de sua autora ser
uma das mais representativas pensadoras dos chamados Estudos Pós-Coloniais (ao
lado de Edward Said, Homi Bhabha, Gyan Pakrash, etc), além de produzir estudos
de natureza culturalista, (Cultural Studies) e ter sido uma das primeiras a fazerem a
recepção em língua inglesa das escolas do Pós-Estruturalismo Francês : Derrida,
Gilles Deleuze, entre outros. O que por sua vez estimulará o contato com
problemáticas afins destas como: a Psicanálise Lacaniana, Os Estudos Femininos, o
86
Historicismo de Michel Foucault e a Análise do Discurso (segundo Bakhtin, Kristeva,
etc.).
Todo este repertório de teorias e modos de interpretar Os versos satânicos
cristalizou um repertório terminológico híbrido, que envolve desde Antropologia,
passando pela Filosofia, Sociologia, etc. Se destacando entre estas a contribuição
dos Estudos Culturais da Escola Britânica e os Estudos Pós-coloniais. Uma
significativa parcela dos estudos da recepção d’Os versos satânicos adotam
algumas das problemáticas levantadas por Gayatri Spivak, as aprofundando
segundo sua extensão. O estudo da pensadora indiana, torna-se relevante não
apenas por trazer caminhos originais à analise da obra rushdiana, mas por se focar
no romance enquanto objeto estético, desviando da polêmica que cumpre mais um
questão sócio-histórica que literária strictu sensu, na suas palavras:
Neste ensaio, eu ofereci um primeiro esboço do enredo crítico literário do livro, porque acho que deve ser um professor na sala de aula quando se torna impossível para dobrar o mercado. Eu tenho feito isso quase como um ato de piedade disciplinar para o que é, afinal, uma romance. Em seguida, apresentamos um dossiê tentando nos concentrar no que as pessoas, que são diversamente ligados a este evento, estão dizendo. Parei por um instante para refetir sobre as espetaculares abstrações da razão democratica, por vezes, podem levar. Então passei a esboçar a possibilidade de questionar o que, muitas vezes, tomar como dado, que a idéia de razão - já que eu posso ver a própria razão como um pharmakon, ao invés de um bem inquestionável ou um mal inquestionável - é necessariamente eurocêntrica 45 (SPIVAK, 1989, p. 99)
3.2.1 Pós-Modernidade, Desconstrução e Hibridismo
Temática inspirada em áreas afins dos Estudos Literários, em especial no
Pós-Estruturalismo e Estudos Culturais, caracteriza-se pela pressuposição de que a
cosmovisão da sociedade capistalista tardia encontra-se num processo de
45
Tradução livre, do original: In this essay, I have first offered a literary critical plot summary of the book, because I think one must be a schoolteacher in the classroom when it becomes impossible to ply that trade. I have done it almost as an act of disciplinary piety towards what is, after all, a novel. Next I have presented a dossier trying to focus on what people, who are diversely connected to this event, are saying. I have paused for a moment upon the uses to which the spectacular rational abstractions of democracy can sometimes be put. I have gone on to sketch the possibility of questioning what we often take as given, that the idea of reason - since I can see reason itself as a pharmakon, rather than an unquestioned good or an unquestioned evil - is necessarily Eurocentric.
87
fragmentação surgido com desintegração do modelo ideológico iluminista-positivista,
que por sua vez teria causado uma série de descentramentos na identidade
humana. Esta crise identitária teria levado ao surgimento da Era Pós-Moderna,
demarcada pelo enfraquecimento das instituições sociais (Estado, Igreja, Escola,
Família etc.), pelo individualismo generalizado, massificação dos meios de
comunicação e homogeneização das referências sociais e culturais. Conforme
descreve Stuart Hall:
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrais. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada [...] de deslocamento ou descentramento do sujeito. Esse duplo deslocamento descentração dos sujeitos tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos constitui uma “crise de identidade” (HALL, 2003, p. 09).
Neste quadro de ausência de referências identitárias claras, o sujeito perderia
as bases que lhe garantiriam um espaço social determinado, lhe transformando num
ser híbrido com “identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de
tal modo que [...] estão sendo continuamente deslocadas (HALL, 2003, p.13). Deste
modo, o limite entre a concretude do real e o simulacro das imagens de si e dos
outros (alteridade) é cindido, dando ao mundo pós-moderno uma atmosfera de
instabilidades generalizadas, onde imperam as incertezas do porvir e o culto do
espetáculo midiático, consoante explica Jean Baudrillard:
Por isso tudo nós vivemos num universo estranhamente parecido com o original – as coisas são “duplas” pelo seu próprio cenário. Mas este duplo não significa, como na tradição, a iminência sua morte – elas são isentas de sua morte, e mais ainda de seu vivente; mais sorridentes, mais autênticas, à luz de seu modelo, como os rostos de funerárias 46 (BAUDRILLARD, 1981: p. 24).
46
Tradução livre, do original : Ainsi partout nous vivons dans un univers étrangement semblable à l'original - les choses y sont doublées par leur propre scénario. Mais ce double ne signifie pas, comme dans la tradition, l'imminence de leur mort - elles sonnt déjà exputgées de leur mort, et mieux encore que de leur vivant; plus souriantes, plus authentiques, dans la lumière de leur modèle, tels les visages des funeral homes.
88
Baudrillard (1981) fascinado com os horizontes multirreferenciais da
sociedade capistalista pós anos 50, descreve um mundo onde o estatuto da verdade
não é dirigido nem pela Ciência Experimental nem pela Filosofia, mas, pelo
simulacro da imagem. O “real” neste modelo pós-moderno encontra-se assentado no
Imaginário das Mídias de Massa: certo objeto, certo discurso só passa a ter sua
existência autorizada a partir do momento em que este é visível em algum meio de
comunicação audiovisual.
Neste sentido, duas instâncias de verificação do real são abandonadas, pois
sendo a “visibilidade” critério de maior peso ontológico: tanto o imaginário passa a se
tornar passível de realidade (assim há uma confusão ou um amálgama entre entes
deste imaginário, como os personagens de novelas televisivas e os seus entes reais,
seus atores); quanto o real passa a não ser necessariamente factual (certo evento
ocorrido em alguma parte do mundo se não for reportado por alguma instância
comunicativa passa a ter aura de inexistência).
3.2.1.1 Eric L. Berlatsky (2003)
Apropriando-se de um debate recente da historiografia: a construção dos
fatos no discurso, Eric L. Berlatsky apresenta em sua tese de doutoramento pelo
departamento de Letras da Universidade de Maryland, Fact, Fiction, and Fabrication:
History, Narrative and the Postmodern Real from Wolf to Rushdie, uma análise em
que investiga as afinidades entre os discursos históricos e as narrativas ficcionais na
representação do “real” na pós-modernidade. Para alcançar tal escopo o crítico se
apropria da teoria meta-histórica de Hayden White (1973):
Enquanto a maioria dos relatos de atitudes ocidentais para a história do século XIX sugerem que os vitorianos tinham uma fé em sua origem, a teleologia e significado, avaliações da história do século XX com mais freqüência sugerem o contrário. Tanto a teoria pós-estrutural e da historiografia pós-moderna, na esteira de Metahistory de Hayden White apresentar uma visão relativista da possibilidade de qualquer objetividade ou referencialidade material discurso histórico, principalmente por meio da narrativa. A partir desta perspectiva, a narrativa histórica é definida como uma criação discursiva que obscurece as relações materiais de sua produção e como um instrumento de ideologia e opressão (BERLATSKY, 2003, p. i) 47.
47
Tradução livre, do original: While most accounts of Western attitudes towards history in the nineteenth century suggest that Victorians had a faith in its origin, teleology and meaning,
89
Berlatasky neste contexto apreende o surgimento das novas escolas do
pensamento historiográfico que questionaram a veracidade do conhecimento
acumulado em séculos de erudição. Alguns estudiosos (CERTEAU,1982; DOSSE,
1992) da História relativizam os métodos que consolidavam o modelo cientificista
desta matéria, evidenciando que muitas “verdades” escritas pela historiografia, eram
ficções que serviam aos mais diversos modelos de dominação ideológica.
Para ultrapassar o estanque desta representação “falseada” da verdade
histórica, a Nouvelle Histoire propôs o resgate de outras formas de registro, como as
obras literárias, tentando reconstituir os fatos encontrados dentro das narrativas
ficcionais. Pois, não estando contaminados pelos vícios da narrativa historiográfica
os romances e demais formas literárias seriam capazes de captar fenômenos
silenciados pela sua seleção não transparente (“não existem seleções ingênuas”).
De modo, que esta polêmica renegou o limite antes tão cristalino entre imaginário e
factual.
Ao mesmo tempo, a narrativa pós-moderna se serviu deste preceito, se
dispondo a fazer uma reescritura das narrativas nacionais e sociais. Muitos artefatos
literários pós-modernos, valendo-se de fontes documentais e memoriais, ofertam
retratos que destoam das versões “oficiais” (metaficções históricas), dando ao leitor
a oportunidade de “conhecer” uma “verdade” oculta pela “História”.
Por meio do princípio do hibridismo, o discurso ficcional pós-moderno
(principalmente sob a forma de romance) alterna quadros narrativos em que não é
possível dissociar História de Imaginário. Alcançando deste modo, uma narrativa em
que o verossímil se confunde com a ficção e o “real” e desloca-se através do
discurso em possível “realidade” (ficção como lugar dos mundos possíveis).
Identificando estes traços nas narrativas rushdianas e as comparando com as de
Virginia Woolf e Milan Kundera, Berlatsky (2003) ressalta o papel de questionamento
político e social presentes no romance pós-moderno:
Este estudo defende a avaliação da ficção pós-moderna contemporânea, refletindo modelos pós-estruturais de textualidade
twentiethcentury assessments of history more often suggest the opposite. Both poststructural theory and postmodern historiography in the wake of Hayden White’s Metahistory present a relativist view of the possibility of either objectivity or material referentiality in historical discourse, particularly through the medium of narrative. From this perspective, historical narrative is defined as a discursive creation that obscures the material relations of its production and as an instrument of ideology and oppression.
90
infinita nega uma importante elemento dos romances estudados: seu compromisso com a possibilidade de acesso a materiais realidade e da importância desse acesso tanto para a construção de uma ética e de ação política. Ao olhar atentamente para romances contemporâneos teorizarando explicitamente história e historiografia, torna-se claro que insistem num sentido da "Real", pelo menos em parte, por causa dessas preocupações políticas (BERLATSKY, 2003, p.iii) 48.
3.2.1.2 Sebastião Alves Teixeira Lopes (2002, 2006)
Dando continuidade às temáticas ligadas à recepção d’Os versos satânicos,
Sebastião Alves Teixeira Lopes em sua tese de doutoramento apresentada no
departamento de Letras da Universidade de São Paulo (USP) intitulada O universo
em ruptura: putas e poetas ma leitura de he atanic erses de alman Rushdie,
aborda o romance de Rushdie a partir da reflexão teoria desconstrutivista de
Jacques Derrida, explorando a palavra na medida de uma representação discursiva
(ecriture) e instrumento de questionamento de significados preestabelecidos
(différance). Consoante este descreve:
Minha leitura [parte da] hipótese de que Rushdie questiona a noção de palavra logocêntrica, que no romance toma a forma de palavra revelada. A palavra logocêntrica, compreendida como uma dádiva divina pressupõe significações transcendentais e absolutas, não aceitando, portanto, dissensão ou contra-argumentos, narrativas paralelas ou interpretações alternativas. Rushdie, ao contrário, denuncia os posicionamentos político-ideológicos que suportam e justificam essa palavra, assim como questiona os posicionamentos sociais que são construídos e impostos a partir dessa palavra logocêntrica. [...] busco demonstrar como, em The Satanic Verses, Rushdie questiona a noção de palavra logocêntrica, com seus pressupostos absolutistas, significados transcendentais e posicionamentos privilegiados (LOPES, 2002, p. i).
No caminho de Derrida, Lopes (2002) propõe que Rushdie (2008) denuncia a
existência de um discurso totalizante centrado numa representação purista de
identidade e nação, manifesto no romance através do profeta Mahound, do Imã e da
48 Tradução livre, do original: This study argues that the assessment of contemporary postmodern
fiction as reflecting poststructural models of endless textuality denies an important element of the novels studied: their commitment to the possibility of accessing material reality and the importance of such access both for the construction of an ethics and for political agency. By looking closely at contemporary novels that explicitly theorize history and historiography, it becomes clear that they instead insist on a sense of the “real” at least in part because of these political concerns.
91
Inglaterra, o discurso logocêntrico. E do outro lado um discurso de questionamento e
ressignificação identitária, o logos da blasfêmia, representado pelas putas e poetas
na reescritura da narrativa corânica, e o discurso pós-colonial presentificado na
trama por meio da tensão das trajetórias de Saladin Chamcha e Gibreel Farishta.
Lopes (2006) ressalta que a tensão identitária que caracteriza a narrativa d’Os
versos satânicos centra em dois conceitos basilares: a metamorfose e o hibridismo.
Em consonância com Hall (2002), afirma que diferente do que se costuma pensar
“as identidades não são naturais, ou seja, as significações atribuídas aos sujeitos
não lhes são inatas ou imanentes, mas construídas social e historicamente”
(LOPES, 2006, p. 279). Deste modo, um sujeito encontra sua particularidade através
de uma harmonia de muitas identidades que este vivencia nos diferentes momentos
de sua existência pessoal e social, em suma, o hibridismo é uma constante da
identidade e não a estabilidade. Destarte, a identidade passa por um processo de
contínuas metamorfoses, conforme Lopes (2006) verifica na narrativa d’Os versos
satânicos:
Esses processos distintos de metamorfose pressupõem maneiras distintas de confrontar-se a questão da identidade. Farishta busca uma identidade centrada em si mesma e nos seus próprios referenciais, indiferente à presença do outro. Chamcha busca, através da destruição total de referenciais anteriores, dotar sua identidade de um outro centro. Em ambos os casos, a relação com o outro acontece por extremos: ou por sua negação, ou por sua total assimilação. Farishta busca a transposição total de sua cultura para o ocidente; Chamcha rejeita a possibilidade de transposição cultural, mesmo que parcial. Parece-me que ambas as situações são insustentáveis. Farishta em sua busca de pureza efetivamente não sobrevive; Chamcha é resgatado justamente por reatar relações com seu passado. A terceira via do diálogo, da contaminação, do ecletismo e do hibridismo (tema que será discutido mais adiante) mostra-se a possibilidade para que, como afirma Rushdie, o novo entre no mundo! (LOPES, 2006, p. 282).
3.2.2 Estudos Culturais, Pós-Coloniais, Transnacionais, Anti-Imperiais e
Étnicos
Salman Rushdie descreve n’Os versos satânicos a trajetória de vida de
imigrantes no contexto metropolitano de Londres, da condição de abandono
governamental e xenofobia generalizada. Tal representação levou os críticos a
entender a sua narrativa como um “protesto” contra a subalternidade que estes
92
indivíduos estavam sujeitos neste contexto. O caráter de opor um discurso de
dominação nacional a um discurso de exploração colonial, buscando o resgate e
reflexão da identidade pós-colonial contribuiu para a consolidação desta temática
como a mais recorrente da recepção do romance de Rushdie.
A extensão da bibliografia a tratar deste particular nos leva a descrever em
detalhe apenas aquelas obras de caráter monográfico, cuja ressonância em outros
trabalhos ou originalidade justifique uma descrição mais minuciosa de seu
conteúdo49.
3.2.2.1 Homi K. Bhabha (1998)
Conforme pudemos constatar desde o início deste panorama crítico da obra
de Salman Rushdie, os pensadores dos Estudos Pós-coloniais demonstram-se
como pontos fulcrais de sua recepção. No que trata dos temas relacionados à
questão nacional o intelectual indiano Homi K. Bhabha contribui não apenas para o
reconhecimento d’Os versos satânicos como uma das narrativas exemplares da
estética pós-colonial, mas, principalmente para a consolidação de uma nova
representação da nação:
Os versos satânicos, de Salman Rushdie, busca redefinir as fronteiras da nação ocidental, a fim de que a "estrangeiridade das línguas" se tome a condição cultural inevitável para a enunciação da língua-mãe. [...] Em Os versos satânicos, Rushdie parece sugerir que e somente através do processo de dissemiNação - de significado, tempo, povos, fronteiras culturais e tradições históricas - que a alteridade radical da cultura nacional criara novas formas de viver e escrever (BHABHA, 1998, p. 233-234).
Neste passo de DissemiNação: o tempo, a narrativa e as margens da nação
moderna, Bhabha explora a nação como um processo discursivo, que semelhante à
linguagem nasce da relação enunciativa entre o Eu (self) e o Outro (the other). Neste
sentido, a formação da nação desenvolve-se a partir de signos identitários, é uma
escritura e uma narrativa das comunidades humanas. Em termos de cultura, a nação
é um mosaico de identidades, não existe, na percepção do crítico indiano, a
49
Para mais detalhes sobre a bibliografia a tratar deste assunto, favor consultar as referências das obras consultadas.
93
possibilidade de pensá-la num estado de pureza ancestral, toda identidade é sempre
constituída no seio do hibridismo e da tensão agonística. Nas palavras de Bhabha
(1998):
Sugeri que o passado nacional atávico e sua linguagem do pertencer arcaico marginalizam o presente da "modernidade" da cultura nacional, de cena forma sugerindo que a história acontece “fora” do centro e do núcleo. Mais especificamente argumentei que apelos ao passado nacional também devem ser vistos como o espaço anterior de significação que “singulariza” a totalidade cultural da nação (BHABHA, 1998, p. 234).
Bhabha no texto citado desenvolve um longo comentário abordando as
personagens d’Os versos satânicos e seus conflitos identitários relacionados com os
diferentes níveis de vivência nacional: “Rushdie personifica nas figuras narrativas
duplas de Gibreel Farishta/Saladin Chamcha, ou Gibreel Farishta/sir Henry Diamond,
o que sugere que a narrativa nacional é o lugar de uma identificação ambivalente”
(BHABHA, 1998, p. 234). Entre os personagens atentados por Bhabha, Gibreel
Farishta é entendido como o avatar mais amplo e complexo da condição in-between
da pós-colonialidade, em sua trajetória a um tempo secular e milenarista o anjo-
homem vivencia a metamoforse desconstrutiva da identidade pós-moderna,
conforme sintetiza Bhabha:
E Gibreel Farishta? Bem, ele e o cisco no olho da historia, seu ponto cego que não deixara o olhar nacionalista se fixar centralmente. Sua mímica da masculinidade colonial e sua mimese permitem que as ausências da história nacional falem na narrativa ambivalente do saco de retalhos. Mas é exatamente esta "bruxaria narrativa" que estabeleceu a própria re-entrada de Gibreel na Inglaterra contemporânea. Como pós-colonial tardio, ele marginaliza e singulariza a totalidade da cultura nacional. Ele é a história que aconteceu em algum outro lugar, no além-mar sua presença pós-colonial, migrante, não evoca uma harmoniosa colcha de retalhos de culturas, mas articula a narrativa da diferença cultural que nunca deixa a história nacional encarar-se a si mesma de modo narcisista (BHABHA, 1998, p. 234-235).
3.2.2.2 Györke Ágnes (2009)
Investigando o tema dos regimes de nacionalidade na contemporaneidade em
sua tese de doutoramento pelo Departamento de Artes da Universidade de
Debrecen (Hungria), Postmodern Nations in alman Rushdie’s Fiction, Györke
94
Ágnes estuda como o sujeito na condição pós-moderna consegue estabelecer
relações comunitárias e nacionais dentro do contexto de globalização política e
cultural. O crítico húngaro se apropria da discussão da Nação por meio da tensão
entre dois polos: de um lado a fragmentação do discurso nacional imperialista em
nações de passado colonial através de Gayatri Spivak, Ngugi wa Thiong’o e Homi
Bhabha, do outro, a proposta de nacionalismo inerente à condição ocidental por Eric
Hobsbawn:
Desde pós-modernismo questionou a idéia de essência e dicustiu sobre a visão de uma espécie de consciência coletiva, que é a base das nações imaginadas, os dois discursos parecem ser incompatíveis. O princípio nacional, por sua própria natureza, vai contra o pós-modernismo, uma vez que não é nada "hesitante" e "duvidoso": lutas nacionais, que foram desenhando e redesenhando o mapa do mundo ao longo dos séculos, ainda tem lugar, e sua própria presença parece lançar tais categorias como o pós-modernismo de lado, como menores, frívolas, questões teóricas. Apesar do grande número de livros escritos tanto sobrepós-modernismo e nacionalismo, poucos críticos abordam o paradoxo envolvido na idéia de “nações pós-modernas”. A crítica pós-colonial, por exemplo, investiga a questão a partir de várias perspectivas, uma vez que após a descolonização do Terceiro Mundo a formação de nações independentes tornou-se um foco central de análise em uma série de textos históricos e literários (ÁGNES, 2009, p. 02) 50.
Ágnes (2009) examina os romances: Vergonha, Os filhos da meia-noite e Os
versos satânicos de Salman Rushdie para identificar como estas narrativas
contribuem para a representação do discurso de Nação em moldes de uma
nacionalidade pós-moderna. Consoante a análise do crítico húngaro o ficcionista
indiano se apropria do discurso de desconstrução significativa semelhante aos jogos
semânticos de Jacques Derrida para ressignificar as performance social e política da
Nação. Ao criar um mundo onde a comunidade não se limita às fronteiras
50
Tradução livre, do original: Since postmodernism contests the idea of essence and questions the vision of the kind of collective consciousness which is the basis of imagining nations, the two discourses appear to be incompatible. The national principle, by its very nature, goes against postmodernism, since it is anything but “hesitant” and “doubtful”: national struggles, which have been drawing and redrawing the map of the world for centuries, still take place, and their very presence seems to cast such categories as postmodernism aside as minor, frivolous, theoretical issues. Despite the large number of books written both on postmodernism and nationalism, few critics address the paradox involved in the idea of “postmodern nations.” Postcolonial criticism, for instance, investigates the issue from various perspectives, since after the decolonisation of the Third World the formation of independent nations has become a central focus of analysis in a number of historical and literary writings.
95
geográfico-admnistrativas, mas com a assunção de um discurso cultural comum, as
nações imaginadas (imaginary homelands), Rushdie aponta para a formação de
uma nacionalidade que cumpra realmente com seu papel de unir e não de separar
as identidades.
3.2.3 Localização da obra rushdiana na tradição canônica universal
Um dos aspectos que mais recentemente despertaram a atenção na obra de
Salman Rushdie é encontrar suas linhas de influência estética, a partir dos autores
da Literatura Universal e Indiana de língua inglesa. Para alcançar este escopo, os
estudos tem comparado a obra rushdiana com a de autores canônicos ou dentro
estéticas específicas: realismo pós-moderno; hibridismo literário; narrativa pós-
Étnica; raça, emigração e identidade americana; emigração e literatura.
3.2.3.1 Sibylle Pärsch (2007)
Com a tese de doutoramento pelo departamento de História e Filologia da
Universidade de Augsburg intitulada Differenz und Interdependenz: Die Krise der
Metaerzählungen und ihre Folgen in Salman Rushdies The Satanic Verses und Don
DeLillos Underworld, Sibylle Pärsch aborda os limites e novos usos da
metaficcionalidade nas narrativas pós modernas mais recentes, para isso emprega
uma comparação entre Os versos satânicos de Salman Rushdie e Underground de
Don DeLillos. Á revelia da proposta de Berlatsky (2003), Pärsch compreende que o
romance de Rushdie não se trata de um romance pós-moderno padrão, visto que
diferente doutras narrativas emblemáticas desta estética, há uma preservação da
linearidade diegética, um enredo teleológico e uma integridade formas, apesar da
multirreferencialidade temática. Estas particularidades levam a estudiosa alemã a
apontar que tais obras evidenciam o surgimento de uma nova estética que vai ao
encontro da condição identitária da pós-modernidade. Nas palavras de Pärsch
(2007):
Este trabalho estabeleceu como objetivo traçar um campo de tensão que o romance pós-moderno demonstra em características centrais – representando por Os versos satânicos de Salman Rushdie e Underworld de Don DeLillo (1997). Esta é a diferença entre o movimento e interdependência entre a remoção contínua de regulamentos estabelecidos ou padrões de pensamento e detecção
96
de ligações recíprocas. O ponto de partida da investigação de partida é uma mudança de ênfase: além de discordar e esforço de rompimento dos romances, este trabalho concentra-se principalmente sobre o conteúdo e forma da experiência estética da negociação de fragmentação e instabilidade. Isso levanta a questão de como muita incerteza e abertura do homem (e da arte) pode realmente suportar. O romance, a tese responde à condição pós-moderna, com um aumento de disparidade, com a pluralização, saltos temporais ou espaciais, etc, mas isso é acompanhado por um aumento de compostos complexos, que define os elementos fragmentados em uma relação tensa com o outro (PÄRSCH, 2007, p. 03) 51.
O estudo de Pärsch (2007) demonstra-se original na medida de trabalhar a
obra de Rushdie numa perspectiva estritamente literária, procurando entender como
a desconstrução filosófica de Jacques Derrida e Jean-François Lyotard contribuiu
para a conformação formal híbrida das tramas pós-modernistas contemporâneas. A
crítica alemã diferente de outros analistas não importa os conceitos decalcados da
filosofia lhes identificando em passos dos romances avaliados, mas investiga
através da hermenêutica literária como tais temáticas filosóficas se presentificam nas
narrativas ficcionais.
3.2.3.2 Mayra Helena Alves Olalquiaga (2010)
Em sua dissertação de mestrado pelo departamento de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, Mayra Helena Alves Olalquiaga elabora uma
interpretação d’Os filhos da meia-noite de Salman Rushdie enquanto uma releitura
d’O paraíso perdido de John Milton. A estudiosa brasileira apreende em sua
51
Tradução livre, do original: Diese Arbeit hat sich zum Ziel gesetzt, ein Spannungsfeld zu skizzieren, das den postmodernen Roman – repräsentativ Salman Rushdies The Satanic Verses (1988) und Don DeLillos Underworld (1997) – zentral kennzeichnet. Es handelt sich dabei um die Bewegung zwischen Differenz und Interdependenz, zwischen der kontinuierlichen Demontage etablierter Ordnungen oder Denkmuster und dem Aufspüren wechselseitiger Verbindungen. Den Ausgangspunkt der Untersuchung bildet eine Akzentverschiebung: Neben den Dissens- und Disruptionsbestrebungen der Romane, konzentriert sich diese Arbeit vor allem auf die inhaltliche wie formalästhetische Verhandlung der Erfahrungen von Fragmentierung und Instabilität. Dabei stellt sich die Frage, wie viel Unsicherheit und Offenheit der Mensch (aber auch das Kunstwerk) tatsächlich ertragen kann. Der Roman, so die These, reagiert auf den postmodernen Zustand mit einer Steigerung des Disparaten, mit Pluralisierung, temporalen oder räumlichen Sprüngen etc., doch geht damit eine Steigerung komplexer Verbindungen einher, welche die aufgesplitterten Elemente in eine spannungsreiche Relation zueinander setzt.
97
comparação a existência de defesa e legitimação nacional presente no épico de
Milton e um questionamento deste discurso n’Os versos satânicos:
Esta dissertação propõe um estudo d’Os filhos da meia-noite de Salman Rushdie como uma re-leitura de Paraíso perdido de John Milton. O épico de Milton foi lido em termos de imperialismo britânico ligados a uma tradição de afirmação da nação. Retomando Paradise Lost, Os filhos da meia-noite dialoga com estatura do épico de defensor da nacionalidade e sugere que a percepção da nacionalidade são associadas, e informa também uma identidade pós-colonial nacional indiana independente. E, como a explosiva heterogeneidade das superfícies d’Os filhos da meia-noite, caracteriza-se mais como uma comunidade imaginada em vez da homogeneidade estável seu narrador em primeira acredita que deveria ser. Isto leva a um questionamento da nação como o espaço privilegiado para negociar significados e identificação (OLALQUIAGA, 2010, p. ii) 52.
Conforme se observa nesta sinopse, Olalquiaga se apropria de uma temática específica dos estudos pós-coloniais, as pátrias imaginadas (HALL, 2003; ANDERSON, 2006). Desde o declínio do imperialismo europeu no final do século XIX e as constantes crises do nacionalismo no século XX, a prática social da nação teve de se desacoplar das referências geográficas e política, por força da globalização. A vivência da nação tornou-se cada vez mais um aspecto discursivo e cultural que uma realidade material. Neste sentido investigar estas duas formas de narração nacional opera um reconhecimento de um discurso colonial oposto a um discurso pós-colonial conforme descreve Stuart Hall (2003):
As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações, uma cultura nacional é um discurso - um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos [. . . ] . As culturas nacionais, ao produzir sent idos sobre “nação”, sentidos com os quais podemos nos identi f icar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam; seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Como argumentou Benedict Anderson (1983), a identidade nacional é uma "comunidade imaginada" (HALL, 2003, p. 50-50).
52
Tradução livre, do original: This thesis proposes a study of Salman Rushdie’s Midnight’s Children as
a re-reading of John Milton’s Paradise Lost. Milton’s epic has been read in terms of British imperialism and linked to a tradition of affirmation of nation. Taking up Paradise Lost, Midnight’s Children dialogues with the epic’s stature of upholder of nationality and suggests that the perception of nation-ness associated to it informs also the independent post-colonial Indian national identity. But as the nation’s explosive heterogeneity surfaces Midnight’s Children characterizes it more as an imagined community instead of the stable homogeneity its narrator first believes it to be. This leads to a questioning of the nation as the privileged space in which to negotiate meanings and identification.
98
3.2.3.3 Eva Kroupová (2008)
Na dissertação de mestrado pelo departamento de Estudos Ingleses e
Americanos pela Universidade de Masaryk na República Tcheca, Postcolonial
Theory and Practice - Zadie Smith and Salman Rushdie, Eva Kroupová elabora uma
investigação procurando identificar os pontos de contato entre a teoria pós-colonial
em nível filosófico e sociológico e a sua representação estética através das
narrativas de White Teeth da escritora britânica Zadie Smith e d’Os versos satânicos
de Salman Rushdie, conforme a estudiosa descreve:
Em minha dissertação eu gostaria de apresentar as principais teorias e perspectivas sobre pós-colonialismo na literatura. Já havia um grande quantidade de teorias escritas sobre este assunto. Portanto, eu não quero apresentar apenas essas teorias, mas também encontrar as suas principais idéias em prática. Isso significa aplicá-las em obras literárias que se diz ser parte da literatura pós-colonial (KROPOUVÀ, 2008, p. 06) 53. .
Os interesses de Kropouvá centram-se principalmente em dois temas: a
relação das identidades pós-coloniais no contexto da migração para países de
passado metropolitano (imperial) e as instabilidades sociais localizadas no seio do
multiculturalismo. Outro ponto trabalhado no estudo da crítica tcheca é a questão da
recepção do estilo rushdiano por Zadie Smith, considerada por alguns como uma
das escritoras expoentes da literatura pós-colonial contemporânea de língua inglesa.
No que tange a análise estilística comparada das duas obras, Kropouvá
atenta para o uso peculiar do realismo mágico, da pós-modernidade na trama d’Os
versos satânicos, atribuindo-lhe uma multiplicidade formal e semântica que é
assumida por Zadie Smith em White Teeth.
3.2.3.4 Kenneth Sammond (2008) / Ioannis Ziogas (2011)
Um dos temas mais recentes e específicos da recepção d’Os versos
satânicos na tradição canônica universal é a análise da influência da literatura antiga
no obra rushdiana. Seguindo esta abordagem, Kenneth Sammond na tese de
53
Tradução livre, do original: In my thesis I would like to present the main theories and perspectives on postcolonialism in literature. There were already a lot of theories written on this subject. Therefore, I do not want to only present these theories but also find their main ideas in practice. It means applying them on literary works that are said to be part of the postcolonial literature.
99
doutoramento pelo departamento de Literatura Comparada da Universidade de New
Jersey, Exile and Empire: Post-Imperial Narrative and the National Epic. A
comparative study of the Rushdie’s Satanic Verses & ergil’s Aeneid, desenvolve
uma pesquisa para identificar os pontos de contato e afastamento do uso gênero
épico na contrução das narrativas nacionais presentes nas obras do escritor latino
Públio Virgílio Maro e n’Os versos satânicos de Salman Rushdie.
Esta tese justapõe a Eneida de Virgílio com Os versos satânicos de Salman Rushdie, a fim de explorá-los como épicos, que questionam e desestruturam nossas próprias idéias de civilização, representando uma crise na cultura e antecipam novas formas de imaginar a comunidade. Esta justaposição, desenvolvido a partir de alusões a Virgil encontrados em Os versos satânicos, examina como épico de Virgílio imagina o império e como a obra de Rushdie, enquanto uma forma de épico, cria uma narrativa que eu denomino ‘pós-imperial’ (SAMMOND, 2008, p. ii) 54.
Como é perceptível na descrição do trabalho de Sammond (20008), este se
apropria do conceito de nação enquanto comunidade discursiva trabalhada por
Benedict Anderson em Imagined Communities (2006). A nação é entendida aí como
um sistema de produção e compartilhamento de símbolos que particularizam e
identificam certa comunidade em oposição a outra que não possui estes mesmos
distintivos, consoante Anderson (2006):
A nação é imaginada como limitada porque mesmo a maior delas, abrangendo talvez um bilhão de seres humanos vivos, é limitada, se estendidas, limites, além se encontram outras nações. Nenhuma nação se imagina coincidente com a humanidade. Os nacionalistas mais messiânicos não sonhar com um dia em que todos os membros da raça humana vai se juntar a sua nação no caminho que era possível, em certas épocas, para, por exemplo, os cristãos a sonhar com um planeta totalmente cristão. [...] É imaginada como uma comunidade porque, independentemente da desigualdade e da exploração reais que possam prevalecer em cada um, a nação é sempre concebida como um profundo agrupamento horizontal (ANDERSON, 2006, p. 07) 55.
54 This dissertation juxtaposes Virgil’s Aeneid with Salman Rushdie’s The Satanic Verses in order to
explore how epics, which question and upend our very ideas of civilization, represent a crisis in culture and anticipate new ways of imagining community. This juxtaposition, developed from allusions to Virgil found in The Satanic Verses, examines how Virgil’s epic imagines empire and how Rushdie’s work, as a type of epic, creates a narrative that I term, ‘post-imperial’.
55 Tradução livre, do original: The nation is imagined as limited because even the largest of them,
encompassing perhaps a billion living human beings, has finite, if elastic, boundaries, beyond which lie other nations. No nation imagines itself coterminous with mankind. The most messianic nationalists do not dream of a day when all the members of the human race will join their nation in the way that it was
100
Trabalhando um aspecto complementar desta temática, Ioannis Ziogas
aborda a condição de exílio do sujeito num mundo em que as nações têm cada vez
menos contribuído para a formação de uma identidade cultural própria. Neste
particular, o crítico grego associa a narrativa do exílio n’Os versos satânicos com a
vivência e obra do poeta latino Públio Ovídio Naso. Quando estava no ápice de sua
produção intelectual Ovídio foi desterrado de Roma para Tomos no Ponto Euxino, as
razões para seu degredo pelo imperador Augusto são até hoje ignoradas (cf.
ALBRECHT, 2012, p. 664). Mas o fato é que em suas últimas obras
Metamorfoses,Tristes e Epístolas do Ponto, o poeta relata os seus sofrimentos pelo
exílio e por ter que conviver com uma cultura integralmente diversa da sua.
Esse estado de fragmentação identitária leva Ziogas (2011) a comparar a
narrativa do poeta exilado com a do personagem imigrante em Salman Rushdie. No
artigo Ovid in Rushdie, Rushdie in Ovid: A Nexus of Artistic Web, estudioso grego
desenvolve um trabalho que alem de identificar a redes intertextuais da obra
rushdiana, ressalta o papel renovador do ficcionista indiano ao propor uma leitura
mais ampla de um autor pouco estudado em sua medida social e política:
Dois mil anos depois que o imperador Augusto ter relegado Ovídio à margem do mundo então conhecido, Salman Rushdie vê o poeta romano como uma fonte de coragem para ele. [...] as Metamorfoses não são simplesmente um compêndio mitológico aprendido e colorido dos contos metamórficos, mas, Rushdie delineia um trabalho subversivo que denuncia o crime e punição do artista. O engajamento de Rushdie com Ovídio está longe de “ridiculamente romântico” [...]. Nos anos setenta e oitenta, quando a maioria dos estudiosos clássicos pensamento de Ovídio como poeta lúdico e ingênuo, que não tinha nenhum interesse na política, Rushdie era um leitor perspicaz da natureza profundamente política da obra de Ovídio (ZIOGAS, 2011, p. 23)56.
possible, in certain epochs, for, say, Christians to dream of a wholly Christian planet. [...] it is imagined as a community, because, regardless of the actual inequality and exploitation that may prevail in each, the nation is always conceived as a deep, horizontal comradeship.
56 Tradução livre, do original: Two thousand years after the emperor Augustus relegated Ovid to the
fringes of the then known world, Salman Rushdie sees the Roman poet as a source of courage for him. [...] the Metamorphoses is not simply a learned and colorful mythological compendium of metamorphic tales, but—Rushdie’s line—a subversive work that bespeaks the crime and punishment of the artist. Rushdie’s engagement with Ovid is far from “ridiculously romantic” [...]. In the seventies and eighties, when most classical scholars thought of Ovid as a playful and naive poet who had no interest in politics, Rushdie was a keen reader of the deeply political nature of Ovid’s work.
101
3.3 O ESPAÇO TEMATIZADO N’OS VERSOS SATÂNICOS
O espaço tematizado trata-se do espaço imediatamente representado na
narrativa de uma obra, seja através dos momentos de descrição, seja pelo relato
diegético. Conforme foi declarado no capítulo anterior este é o objeto específico da
presente investigação o espaço representado na narrativa d’Os versos satânicos.
Elaborando este inventário crítico do romance de Rushdie, constatou-se que as
análises do seu espaço tematizado são sobremaneira fortuitas, não sendo
encontrada em nenhum nível de produção, uma obra integralmente dedicada ao
assunto especificamente com Os versos satânicos. Os críticos se limitam a emitir
pequenos e pontuais comentários, declarando, por exemplo, que o espaço na obra
rushdiana é “múltiplo” (PÄRSCH, 2007, p.37), “liminar” (BHABHA, 1998, p. 234), “um
espaço de choque entre culturas” (SAID, 1994a, p. 328). Não há dentro da
bibliografia levantada um tratamento detalhado da espacialidade tematizada n’Os
versos satânicos, nem de sua contribuição para a representação do discurso pós-
colonial.
A única exceção relativa deste fenômeno é a obra de Robert P. MaRzec
(2007), An Ecological and Postcolonial Study of Literature: From Daniel Defoe to
Salman Rushdie, em que se propõe a estabelecer uma ontologia do lar (home
ontology) a qual denomina ecologia baseando-se principalmente na fenomenologia
do filósofo alemão Martin Heidegger. No estudo o crítico americano, procura
estabelecer a relação entre os personagens da literatura de língua inglesa e suas
terras natais desde o século XIX, com Robinson Crusoé até a contemporaneidade,
com alguns romances de Salman Rushdie:
Ler Rushdie é experimentar um encontro constante com o que tem de ser encerrado, a fim de que um campo discursivo da realidade nacional permaneça constante e convincente- a terra. Narrativas como Os filhos da meia-noite, Os versos satânicos, O último suspiro do mouro e O chão em que ela pisa oferecem uma recusa controversa e poderosa que Fredric Jameson chamou de “a casa-prisão da linguagem”. Nestes textos, Rushdie se envolve na “a forma como as coisas são”, não apenas a partir da perspectiva foucaultiana d“o caminho que as coisas discursivamente vir a ser ", mas a partir do locus de uma instabilidade discursiva que precede o próprio ato de construção discursiva. Idéias e motivos como “o monstro de muitas cabeças”, “incompatibilidade”, “humanizado” e “terremotos’”, indicam a presença de uma liberdade energização de estabilização forças.[...] Os textos de Rushdie interrogam a relação fundamental entre o essencialmente instável e caótico e as forças institucionais
102
estabilizadores da auto-capô, convenção e consenso nacional. O impulso anárquico é, portanto, a "aflição" fundamental contra o qual o país se esforça, vis-à-vis um aparato político reguladora com base em um discurso de gabinete (MARZEC, 2007, p. 155)57.
Conforme se pode averiguar na citação, apesar de tratar de espaço narrativo,
Marzec (2007) o apreende numa medida figurada, enquanto um discurso puramente
simbólico, sem preocupar-se nem com o exame detalhado de suas ocorrências, nem
com uma teoria específica para a descrição do espaço em termos de teoria literária
ou geografia simbólica. Tal caráter faz a abordagem do crítico norte-americano
aproximar-se mais do espaço de recepção do que do espaço tematizado.
3.4 RETROSPECTO
O exame da fortuna crítica d’Os versos satânicos de Salman Rushdie leva a
constatação de que o espaço enquanto dimensão narrativa é um aspecto
parcamente analisado em termos de crítica literária. Tal fenômeno não é de todo
inesperado, pois conforme se explicitou no capítulo anterior a espacialidade costuma
ser tratada como um traço secundário do texto artístico, não merecendo um
aprofundamento mesmo por parte dos teóricos.
Para ultrapassar esta contiguidade recorrente da teoria e do pensamento
geral acerca faz-se necessário desconstruir o paradigma secular de entender o
espaço como um fenômeno autossignificativo e anacrônico e, além disso, reavaliar
as posturas da própria crítica literária o seu objeto. Será que dizer que o espaço
n’Os versos satânicos é “x” ou “y” basta para entendê-lo em sua significação global?
Não seria isto uma volta ao discurso etiquetador (logocêntrico) tão criticado pelo
57
To read Rushdie is to experience a constant encounter with what has to be foreclosed in order that a discursive field of national reality remain constant and convincing—the land. Narratives such as Midnight’s Children, The Satanic Verses, he Moor’s Last igh, and The Ground Beneath Her Feet offer a contentious and powerful refusal to what Fredric Jameson has called “the prison-house of language.” In these texts, Rushdie engages “the way things are,” not only from the Foucauldian perspective of “the way that things have discursively come to be,” but from the locus of a nondiscursive instability that precedes the very act of discursive construction. Ideas and motifs such as “the many-headed monster,” “incompatability”, “humanized,” and “earthquakes” indicate the presence of an energizing freedom from stabilizing forces. [...] Rushdie’s texts interrogate the fundamental relation between the essentially unstable and chaotic and the stabilizing institutional forces of self-hood, convention, and national consensus. The anarchic momentum is thus the fundamental “affliction” against which the nation struggles, vis-à-vis a regulatory political apparatus based upon a discourse of enclosure.
103
autor tanto na sua ficção quanto em sua obra crítica? Uma das passagens do
romance aqui analisado é emblemática em questionar qualquer visão do mundo que
se assuma como óbvia e unificada:
Se alguém algum dia tentar convencer você que este belíssimo e mais perverso dos planetas é de alguma forma homogênea, composto apenas de materiais conciliáveis, que tudo se soma, pegue o telefone e ligue para o fabricante de camisas-de-força. [...] O mundo é incompatível, nunca se esqueça: é gagá. Fantasmas, nazistas, santos, todos vivos ao mesmo tempo; num lugar, felicidade perfeita, enquanto virando a esquina está o inferno (RUSHDIE, 1998, p. 245).
É neste contexto plurissignificativo, que não se encerra nas nomenclaturas
que se movimenta o discurso d’Os versos satânicos. Deste modo, para entendê-lo
em quaisquer dos seus níveis constitutivos, o analista deve assumir uma postura
aberta, abandonando-se os valores pré-estabelecidos. Para que sua interpretação
seja coerente, ocasionalmente terá de questionar a própria teoria. Pois, como
qualquer discurso, a crítica literária serve a um contexto de representação que não é
necessariamente o evocado por determinada obra. Conforme, ressaltou Antoine
Compagnon no Demônio da teoria (1999), o analista não deve se iludir pensando
que a sua posição e metodologia privilegiadas tornam a sua análise infalível. A teoria
só se concretiza realmente quando colabora para a ampliação do sentido da
literatura, se apenas lhe reduz a um vocabulário científico, só serve como
instrumento de legitimação ideológico, perdendo o caráter interpretativo que lhe
caracteriza:
A teoria institucionalizou-se, transformou-se em método, tornou se uma pequena técnica pedagógica, frequentemente tão árida quanto a explicação de texto, que ela atacava [...] energicamente. A estagnação parece inscrita no destino [...] de toda teoria. [...] Talvez por isso mesmo ela tenha se tornado rígida. É impossível, hoje, passar num concurso sem dominar os distínguos sutis e o jargão da narratologia. Um candidato que não saiba dizer se o pedaço de texto que tem sob os olhos é “homo” ou “heterodiegético”, “singulativo” ou “iterativo”, de “focalização interna” ou “externa” não é admitido, assim como outrora era necessário distinguir um anacoluto de uma hipálage, e saber a data de nascimento de Montesquieu. [...] A nova crítica, assim como, algumas gerações antes, a história literária de Gustave Lanson, viu se rapidamente reduzida a algumas receitas, truques e astúcias para brilhar nos concursos. O impulso teórico estancou-se desde que forneceu uma certa ciência de apoio à sacrossanta explicação de texto (COMPAGNON, 1999, p.13).
104
Assume-se esta provocação de Antoine Compagnon como lema da presente
investigação sobre a representação da metrópole pós-colonial n’Os versos satânicos
de Salman Rushdie. A teoria da literatura e a reflexão do espaço servem apenas de
guias e as categorias selecionadas para a análise não trazem em si, conceitos
definitivos a serem reproduzidos. Neste sentido, a pesquisa multidisciplinar entre a
crítica literária e geografia simbólica contribui para a formação de uma análise mais
ampla e profunda da espacialidade no romance de Rushdie: pois onde uma
apresenta uma lacuna, a outra oferta um caminho alternativo, tornando-as
igualmente relevantes para este estudo.
105
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