Post on 11-Nov-2018
A REPRESENTAÇÃO DA CONCEPÇÃO DE INFÂNCIA NA CRIANÇA E NO
ADOLESCENTE EM DOM CASMURO1
Kelly Priscilla Lóddo Cezar (PG-UEM) Fabiane Freire França – (PG – UEM)
Lilian Alves Pereira – (PG – UEM) Profa. Dra. Geiva Carolina Calsa – (DTP/UEM)
1. Introdução
Machado de Assis (1997), em sua obra Dom Casmurro, focaliza, em quase sua
totalidade, as personagens Capitu e Bentinho, na fase da adolescência, isto é, da transição
da infância para a vida adulta.
Na literatura realista o adolescente encontra papel de destaque. Obras como a ora
estudada e O Ateneu, de Raul Pompéia, dão ênfase a essa fase da vida na construção do
enredo. Tal fato, certamente se justifica pelo momento histórico de sua realização. Desde o
século XIX, período em que essas obras foram escritas, a criança e o adolescente passam a
ter um maior espaço na sociedade, em razão dos avanços científicos relacionados à
psicologia, à sociologia, e à antropologia, entre outras ciências.
O estudo realizado por Penteado (2005, p.1) sobre A imagem do adolescente em
Dom Casmurro evidencia a especificidade das personagens retratadas na obra. De acordo
com esse estudo, o narrador elabora seu discurso de forma “a tematizar a juventude como
construção social, considerando-se semelhanças e diferenças na representação de jovens,
não só de classe e condição social diferente, mas também de sexos diferentes”.
A construção das personagens evolui na narrativa de modo a mostrar que sua
personalidade já está definida nessa fase da vida. Antes do século XIX as artes não
representavam a infância e a adolescência desta maneira, ou seja, como fases peculiares e
diferenciadas do desenvolvimento humano. Sua obra, portanto, segue os novos padrões
ditados pelo movimento estético e literário a que pertence relacionado ao momento
histórico e às descobertas científicas do período.
1 Alunas integrantes do Grupo de Pesquisa em Psicopedagogia – GESPESP.
Apesar do conceito de infância manter-se inabalável desde a Idade Média, nos
século XV e XVI as crianças passaram a ter uma diferenciação sutil em relação aos adultos.
Antes disso elas presenciavam e participavam da vida dos adultos e estavam sempre
misturadas a eles mesmo que não compreendessem o sentido dos fatos ou situações que
estavam ocorrendo. Nesse período então, a idéia de afastamento da infância em relação à
idade adulta começa a se anunciar, e a criança começa a ser vista como um ser diferente do
adulto. O adolescente continuava a ser visto como adulto, pois até este momento não havia
conceituação a respeito dessa fase do desenvolvimento humano.
Para Chipkevitch (1994), no século XIX a família começa a adquirir novos papéis
dentro da sociedade burguesa. Como há uma diminuição da quantidade de filhos as famílias
passam a ter vínculos mais estreitos e emotivos, e começa a ocorrer valorização do “não
adulto”. Os adolescentes passam a formar uma nova categoria social. Assim, o tema
desperta o interesse de artistas, poetas e escritores da época.
Como escritor desse século, Machado de Assis está atento às mudanças
comportamentais da sociedade e às correntes científicas predominantes em sua época,
característica marcante do Realismo. O movimento literário do qual participa o autor na
segunda fase de sua criação está intimamente ligado à psicologia. Nesse movimento, os
motivos humanos dominam a ação, e o homem é retratado como ser completo cujas ações
têm uma razão. Segundo a Psicologia, ciência em desenvolvimento nesse período, a
personalidade do indivíduo se forma a partir energia psíquica que o impulsiona na busca da
satisfação de suas necessidades. Essa energia está presente no ser humano desde o seu
nascimento, e a maneira como seus desejos e necessidades vão sendo supridos são
responsáveis pelas características do adulto que se formará. Os cinco primeiros anos de
vida são decisivos na formação da personalidade e o modo como a criança aprende a lidar
com os problemas cotidianos até essa idade é responsável pela estrutura básica do seu
caráter.
O presente artigo visa apresentar algumas características psicológicas dessas
personagens, que representam essa fase tão conturbada quanto especial do desenvolvimento
humano. Para isso, buscou-se situar a obra do autor em relação aos estudos sobre a criança
e o adolescente século XIX.
2. Machado de Assis e sua época
A fim de situar a obra e o autor no contexto histórico torna-se relevante realizar um
apanhado histórico sobre Joaquim Maria Machado de Assis. Segundo a literatura
especializada, Machado de Assis é eclético em seus escritos, uma vez que encontramos
crônicas, contos, dramas, artigos jornalísticos, poesia, novela, romance além de ser
conhecido como um crítico e ensaísta.
Sua vida teve início na cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente, em 21 de
junho de 1839. Filho de operário mestiço (negro e português) e de D. Maria Leopoldina.
Ficou órfão de mãe precocemente e acabou sendo criado pela nova esposa de seu pai.
Desde de cedo apresentada uma saúde considerada frágil.
Com a morte do pai acabou por tornar-se vendedor de doces em decorrência do
emprego de Maria Inês sua madrasta ficou sendo conhecido como “Machadinho”. Neste
colégio tornou-se amigo de professores e realizou amizades e foi onde iniciou assistir
algumas aulas nos momentos em que não estava vendendo doces.
A literatura especializada salienta que foi por meio desta dificuldade que o autor se
empenhou a aprender. Mesmo sem ter cursado cursos regulares suas dificuldades
financeiras não dificultou de se aprimorar em conhecimentos. Consta que, em São
Cristóvão, conheceu uma senhora francesa, proprietária de uma padaria, cujo forneiro lhe
deu as primeiras lições de Francês. Além dessa, sua madrinha D. Maria José de Mendonça
Barroso o protegia. Era viúva do Brigadeiro e Senador do Império Bento Barroso Pereira.
Seus escritos iniciaram aos 16 anos (1855) como o poema "Ela", que foi publicado
na
revista Marmota Fluminense. A Livraria Paula Brito acolhia novos talentos da época,
tendo publicado o citado poema e feito de Machado de Assis seu colaborador efetivo.
Aos 17 anos emprega-se como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, e
começa a escrever durante o tempo livre. Em 1858 volta à Livraria Paula Brito, como
revisor e colaborador da Marmota, e acaba por integra-se à sociedade lítero-humorística
Petalógica, fundada por Paula Brito. Com essa interação constrói o seu meio de amigos, do
qual faziam parte Joaquim Manoel de Macedo, Manoel Antônio de Almeida, José de
Alencar e Gonçalves Dias.
Suas publicações são iniciadas por românticas (1859), mas também trabalhava como
revisor do jornal Correio Mercantil. Em 1860, a convite de Quintino Bocaiúva, passa a
fazer parte da redação do jornal Diário do Rio de Janeiro. Além desse, escrevia também
para a revista O Espelho (como crítico teatral, inicialmente), A Semana Ilustrada e Jornal
das Famílias.
Seu primeiro livro foi intitulado Queda que as mulheres têm para os tolos,
publicado em 1861 no qual aparece como tradutor. No ano de 1862 era censor teatral,
cargo que não rendia qualquer remuneração, mas o possibilitava a ter acesso livre aos
teatros. Nessa época, passa a colaborar em O Futuro, órgão sob a direção do irmão de sua
futura esposa, Faustino Xavier de Novais.
Publica seu primeiro livro de poesias Crisálidas (1864). Neste período, também foi
nomeado ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial. Em 1869 realiza seu
matrimônio com Carolina Augusta Xavier de Novais.
Nessa época, o escritor era um típico homem de letras brasileiro bem sucedido, confortavelmente amparado por um cargo público e por um casamento feliz que durou 35 anos. D. Carolina, mulher culta, apresenta Machado aos clássicos portugueses e a vários autores da língua inglesa. Sua união foi feliz, mas sem filhos. A morte de sua esposa, em 1904, é uma sentida perda, tendo o marido dedicado à falecida o soneto Carolina, que a celebrizou. Seu primeiro romance, Ressurreição, foi publicado em 1872. Com a nomeação para o cargo de primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, estabiliza-se na carreira burocrática que seria o seu principal meio de subsistência durante toda sua vida (NOGUEIRA, 2007, p. 1).
Nogueira (2007) salienta que foi no O Globo (1874), jornal de Quintino Bocaiúva,
que inicia a escrever e publicar em folhetins o famoso romance A mão e a luva. Este
romance conta a Guiomar, sobrinha de uma baronesa, que procura com frieza e calculismo
realizar o ambicioso plano de ascender socialmente por meio do casamento. Neste ciclo
tem três homens que pretendem sua mão (Estevão, Jorge e Luis Alves). O primeiro mesmo
que sincero era simplório; o segundo indolente e superficial. Mas é o terceiro, Luis Alves,
que é o eleito ao casamento por ser considerado mais ambicioso e sagaz. Essas
características acabam por identificar as qualidades que se sintonizavam com o espírito de
Guiomar, que, ao escolhê-lo, faz, segundo suas próprias palavras.
A escolha do marido foi influenciada pela criada inglesa da baronesa, Mrs. Oswald.
Embora a trama pareça ser romântica, a motivação de Guiomar não é tanto: ela vê o
casamento como uma escada social e escolhe Luís tanto pelo amor quanto pelo fato dele já
estar eleito deputado. Este tipo de história era muito presente na sociedade em que vivia
Machado, porém sua obra teve aceitabilidade por representar essa sociedade presente.
Além disso, Escreveu crônicas, contos, poesias e romances para as revistas O
Cruzeiro, A Estação e Revista Brasileira. Sua primeira peça teatral é encenada no Imperial
Teatro Dom Pedro II em junho de 1880, escrita com a finalidade de comemorar do
tricentenário de Camões. Na Gazeta de Notícias (1881-1897), publica suas melhores
crônicas, consideradas pelos literatos.
Em 1881, assume o cargo de oficial de gabinete. Publica, nesse mesmo ano Memórias
Póstumas de Brás Cubas. Obra esta considerada o marco da escola Realista na literatura
brasileira juntamente com O Mulato, de Aluísio de Azevedo. A obra Memórias Póstumas
de Brás Cubas representa um marco no decorrer das obras de Machado, uma vez que não se
refere mais um romance romântico, como os anteriores, trata-se do primeiro romance
realista brasileiro.
Sua forma de narrar é considerada “fantástica” e a mais importante, pois é a
primeira obra da literatura brasileira que ultrapassa os limites nacionais dessa literatura. Até
hoje trata-se de um romance universal.
Conta a história de Brás Cubas, o narrador, que já está morto, e é dessa perspectiva
extraordinária que ele nos revela sua vida e nos dá um quadro de sua classe social e do
mundo em que viveu, é debochado, sem qualquer compromisso com os formalismos da
vida – sejam os formalismos das relações sociais, sejam os da narrativa literária.
A obra apresenta um tom irônico do mundo social do qual o narrador representa.
Essa ironia está por trás de um bom humor, mas ainda deixa visível o esqueleto que suporta
as estruturas da vida e da arte.
Para compreensão da análise do presente artigo torna-se importante situar o
memomento histórico da obra e seu enredo a fim de orientar o leitor ao direcionamento da
perspectiva de análise. Para tanto será realizado o resumo da obra realizado por Lajolo
(1985) na "Literatura comentada", da Abril Editora.
Dom Casmurro foi publicado em 1900 e é um dos romance mais conhecidos de
Machado. Narra em primeira pessoa a estória de Bentinho que, por circunstância várias, vai
se fechando em si mesmo e passa a ser conhecido como Dom Casmurro. Sua estória é a
seguinte: Órfão de pai, criado com desvelo pela mãe (D. Glória), protegido do mundo pelo
círculo doméstico e familiar (tia Justina, tio Cosme, José Dias), Bentinho é destinado à vida
sacerdotal, em cumprimento a uma antiga promessa de sua mãe.
A vida do seminário, no entanto, não o atrai, já o namoro com Capitu, filha dos
vizinhos. Apesar de comprometido pela promessa, também D. Glóri a sofre com a idéia de
separar-se do filho único, interno no seminário. Por expediente de José Dias, o agregado da
família, Bentinho abandona o seminário e, em seu lugar, ordena-se um escravo.
Correm os anos e com eles o amor de Bentinho e Capitu. Entre o namoro e o
casamento, Bentinho se forma em Direito e estreita a sua amizade com um ex-colega de
seminário, Escobar, que acaba se casando com Sancha, amiga de Capitu.
Do casamento de Bentinho e Capitu nasce Ezequiel. Escobar morre e, durante seu
enterro, Bentinho julga estranha a forma qual Capitu contempla o cadáver. A partir daí, os
ciúmes vão aumentando e precipita-se a crise. Á medida que cresce, Ezequiel se torna cada
vez mais parecido com Escobar. Bentinho muito ciumento, chega a planejar o assassinato
da esposa e do filho, seguido pelo seu suicídio, mas não tem coragem. A tragédia dilui-se
na separação do casal.
Capitu viaja com o filho para a Europa, onde morre anos depois. Ezequiel, já mocó,
volta ao Brasil para visitar o pai, que apenas constata a semelhança entre e antigo colega de
seminário. Ezequiel volta a viajar e morre no estrangeiro. Bentinho, cada vez mais fechado
em usas dúvidas, passa a ser chamado de casmurro pelos amigos e vizinhos e põe-se a
escrever de sua vida (o romance).
Após essa obras percebe-se que depoimentos de José Veríssimo, que dirigia a
Revista Brasileira, em sua redação promoviam reuniões os intelectuais que se identificaram
com a idéia de Lúcio de Mendonça de criar uma Academia Brasileira de Letras. Machado
desde o princípio apoiou a idéia e compareceu às reuniões preparatórias e, no dia 28 de
janeiro de 1897, quando se instalou a Academia, foi eleito presidente da instituição, cargo
que ocupou até sua morte, ocorrida no Rio de Janeiro em 29 de setembro de 1908. Sua
oração fúnebre foi proferida pelo acadêmico Rui Barbosa.
3. Concepção de infância e adolescência
No período clássico, a criança era concebida como um ser pouco desenvolvido tanto
fisicamente como intelectualmente. Para Platão, a educação das crianças deveria ser bem
direcionada, tendo em vista a formação dos adultos em potencial. Postman (1999) afirma
que os gregos não pensavam nas crianças como uma categoria especial, foram os romanos
que começaram a estabelecer uma preocupação maior com a infância.
Durante a Idade Média não existia um conceito específico de criança, o indivíduo era
considerado criança até os sete anos, pois após esta idade acreditava-se que ela poderia
entender e fazer o mesmo que os adultos. Não era considerada a compreensão da existência
de um estado intermediário entre infância e a idade adulta. Segundo o autor, a criança era
considerada quase invisível ou, em outras palavras, um “mini-adulto”.
Segundo Postman (1999), este quadro só irá mudar em meados do século XVIII,
quando, na Alemanha, inventa-se a tipografia. Neste período, as crianças são expulsas do
mundo adulto, e passam a habitar um novo mundo, o mundo da infância. Após
aproximadamente cinqüenta anos da invenção da tipografia, estabeleceu-se uma distinção
mais clara entre a criança e o adulto. Neste momento, para a sociedade burguesa passa a ser
necessário um homem letrado que precisa aprender a ler e a escrever na nova instituição
social denominada escola. Assim, para se tornar adulto a criança precisa aprender esses
conteúdos escolares: criança torna-se “o vir a ser adulto” por meio da aprendizagem
escolar.
As crianças não eram mais vistas como adultos em miniatura, a infância tornou-se
uma categoria intelectual, com estágios de desenvolvimento ditados pela idade cronológica
descritos pela ciência da Psicologia e da Pedagogia em ascensão. Esses conhecimentos
propiciam a organização das classes escolares e o estabelecimento de um currículo
adequado para cada etapa do desenvolvimento infantil.
Ariès (1981) assevera que, a partir do século XVIII, a infância passou a ser observada
de modo diferente, ou seja, com mais cuidado e preocupação. Com o desenvolvimento do
sentimento de infância, a criança começa a conquistar um espaço peculiar na comunidade
em que vive. Tal hábito estendeu-se até o século XX, quando lentamente as pinturas foram
sendo substituídas pelas fotografias. A infância e a adolescência passaram a ser observadas
e descritas com mais atenção e de forma científica, dando-se ênfase aos estudos do
desenvolvimento humano.
Carvajal (2001) afirma que a noção referente ao período da adolescência (fase de
transição entre a infância e a vida adulta), foi empregada no mundo ocidental a partir da
organização da escola, principalmente a partir do século XIX. O autor compreende esse
período como adolescer, palavra latina que significa crescer, ficar jovem. É também
compreendida como puberdade, pois caracteriza as alterações decorrentes do corpo em
relação ao desenvolvimento das características sexuais, ou seja, a puberdade é o processo
de desenvolvimento do corpo. Waddell (1995) descreve esse processo do seguinte modo.
A puberdade se apresenta em diferentes corpos em épocas diferentes e de diferentes maneiras. De modo geral, acontece mais cedo nas meninas do que nos garotos. (...) Mas tanto para os garotos como para as meninas, a época mais freqüente da puberdade é entre os doze e os quatorze anos. Sexualmente, embora nem sempre emocionalmente, cada criança está se tornando um adulto (WADDELL, 1995, p. 19).
A autora ressalta que as transformações enfrentadas pelos sujeitos nessa fase são
bastante complexa, que causa grande sansão de confusão dos adolescentes, pois refere-se
a um momento da vida entre o final da infância e início da idade adulta. Essa fase
intermediária apresenta muitas particularidades podem ocorrer e fazer com que qualquer
definição para essa fase seja imprecisa e variável. De acordo com o Novo Dicionário
Aurélio da Língua Portuguesa (Ferreira, 1996), adolescência provém do latim
adolescentia e significa "o período da vida humana que sucede à infância, começa com a
puberdade, e se caracteriza por uma série de mudanças corporais e psicológicas.
Segundo Salle (2007, p. 1), o estudioso Freud apresentou uma formulação sobre o
aparelho mental que saiu do campo da Psicologia e hoje é de domínio público: a divisão
da mente em id, ego e superego.
De forma bastante simplificada, o id seria o componente mais primitivo, instintual. O ego seria a estrutura que faria a adaptação do id à realidade, onde se encontram as funções mais elaboradas (raciocínio, memória, tolerância à frustração, processo secundário, mecanismos de defesa). Em outras palavras, o ego seria aquela parte do id modificada pelo ambiente. Ao superego caberiam os aspectos da moral e da ética, derivadas da imagem dos pais e pessoas importantes da infância. Mas não apenas
moral e ética, no sentido formal do termo, mas sim toda aquela gama de avaliações que o sujeito faz de si mesmo e dos outros. À forma mais ou menos estável desta soma de estruturas é dado o nome de caráter. A personalidade ou caráter do indivíduo, portanto, seria o precipitado das identificações e relações com as pessoas importantes de sua vida, particularmente as envolvidas nos seus primeiros anos de vida.
Dentre estes aspectos, a adolescência apresenta uma etapa de conflito que
geralmente surge quando a criança se percebe frente a posições contraditórias, por isso
pode-se dizer que se encontram pertencente em um ambiente de ambigüidades e
contradições. Nessa etapa da vida os sujeitos tendem a reclamar da falta de liberdade e
autonomia.
3.1. Escola, criança e adolescente
Na Antigüidade Clássica a escola era considerada um complemento dos estudos
aprendidos em casa e não tinha preocupação com a inserção da criança na sociedade e com
a formação de sua personalidade integral. Neste período, acreditava-se que a personalidade
dos indivíduos deveria ser formada na família e na vivência com a sociedade.
Quando existentes, os lugares de instrução não eram organizados em um único
ambiente, cada mestre ensinava em lugares distintos, podendo ser até ao ar livre. Nesses
lugares, a criança “recebia uma instrução elementar do gramatista, do pedótriba e do
citarista, que lhe ensinavam a leitura e a escrita, a ginástica e a música”. “A idéia de
educação” não estava ligada a de meio educativo, mas, antes, a de relação privilegiada entre
uma criança e um adulto (CHARLOT, 1983, p. 161).
Embora, nesse período, Platão e Aristóteles já acreditassem na necessidade de um
lugar específico para educação, a organização da escola na Antiguidade não correspondia
aos ideais da pedagogia que se iniciava no período medieval. Segundo Charlot (1983,
p.161), passou-se então a buscar a “formação da personalidade da criança em todos os seus
aspectos”, que para isso precisava ser educada separadamente da sociedade.
Na Idade Média, a idéia de separação criança-sociedade, ou seja, de clausura escolar
já se anunciava na organização educativa dos mosteiros. Nessa época, a concepção de
infância implicava tratar crianças e adultos da mesma forma e a principal preocupação da
educação escolar era religiosa. Por isso, primeiro, abordava-se o ensino religioso e, em
segundo lugar, a formação laica.
Segundo Ariès (1981), no período medieval era natural desconsiderar a infância
como uma etapa especial de desenvolvimento dos indivíduos. Por este motivo, esta fase da
vida passava rapidamente sem muitas lembranças. O estudo da infância e de seu
funcionamento desenvolveu-se efetivamente no final do século XIX, a partir de John
Herbart, um dos principais representantes da Pedagogia Tradicional. Seus estudos
procuravam compreender o desenvolvimento da criança como fundamente para formação e
organização dos currículos escolares.
Por volta do século XI as crianças eram observadas como pequenos adultos, em
razão disso a diferença entre uma criança e um adulto era considerada somente de tamanho.
Segundo o autor, esta visão pode ser constatada no Evangelho cristão e em pinturas da
época em que as crianças eram representadas como adultos de tamanho reduzido. De
acordo com Ariès (1981, p. 51), “até o fim do século XIII, não existem crianças
caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens de tamanho reduzido. Essa
recusa em aceitar na arte a morfologia infantil é encontrada, aliás, na maioria das
civilizações arcaicas”.
Somente por volta do século XIII surge um conceito de infância mais próximo do
que se tem hoje. O autor faz menção a três tipos de visão de criança neste período: a
primeira apresentava a forma de anjo (não tinha sexo definido e tamanho exato) e eram
educadas para auxiliar os cultos religiosos. A segunda identificava a criança com o menino
Jesus percebido como um mini-adulto. Segundo o autor, “o sentimento encantador da tenra
infância permaneceu limitado ao menino Jesus até o século XIV...” (ARIÈS, 1991, p. 53).
O terceiro tipo apareceu na fase gótica da pintura, na qual elas apareciam despidas, embora
o menino Jesus permanecesse vestido.
Somente entre os séculos XV e XVI as crianças passaram a ter uma forma mais
clara de diferenciação em relação ao adulto. Num primeiro momento, elas presenciavam e
participavam da vida dos adultos, ou seja, estavam sempre misturadas com os adultos
mesmo que não compreendessem o sentido do que estava ocorrendo. Neste momento, a
idéia de afastamento da criança em relação ao adulto já estava se anunciando, pois, ela
começava a ser percebida como um ser diferente do adulto em decorrência de sua
infantilidade e capacidade de provocar o riso do adulto.
Ariès (1981) assevera que a partir do século XVII a infância passou a ser observada
de modo diferente, ou seja, com mais cuidado e preocupação. Durante o longo período em
que as crianças eram vistas como um mini-adulto, sua morte não significava perda intensa
por parte da família. Eram enterradas no quintal da casa onde moravam como atualmente
ainda se faz com os animais domésticos.
Com o desenvolvimento do sentimento de infância a criança começa a conquistar
um espaço peculiar na comunidade em que vive. É por meio de retratos de crianças
sozinhas que o autor mostra como os sentimentos demostrados por elas foram modificando-
se lentamente. Durante o século XVII toda família desejava retratar cada um de seus filhos.
Este tipo de representação continuou em voga até os séculos XIX e XX quando por volta do
final século XIX a pintura passou a ser lentamente foi substituída pela fotografia que se
mantém até hoje.
A partir do século XVII, os cuidados com as crianças também foram alterados. Com
sua morte freqüente as doenças passaram a ser tratadas de forma distinta da dos adultos.
Ariès (1981, p, 61) afirma que nessa época
(...) algumas famílias [então] fizeram questão de vacinar suas crianças. Essa precaução contra a varíola traduzia um estado de espírito que deve ter favorecido também outras práticas de higiene, provocando uma redução da mortalidade, que em parte foi compensada por um controle da natalidade cada vez mais difundido.
De acordo com Charlot (1983, p.162), somente nos séculos XVI e XVII a escola
lentamente introduziu o “pensamento pedagógico da atualização” que exigia a separação da
criança da sociedade, de forma a manter o maior tempo possível a ingenuidade e a pureza
da criança ou domar seus instintos. Só a partir deste momento a escola deixou de ser um
lugar de instrução e passou a ser um lugar de educação. Considerava-se a clausura escolar
necessária para impedir a aproximação dos adultos que ao ter contato com as crianças
acabam por corrompê-las ou mantém a corrupção já existente.
Segundo Varela (2002), as instituições educacionais como estão organizadas
atualmente se formaram a partir do Renascimento sob influência das escolas jesuíticas. Sob
está influência e com o advento da burguesia como nova classe social, a escola passou a se
dirigir a diferentes estratos sociais: burgueses, nobres, homens livres ou escravos. Além
disso, continuou ocorrendo uma separação crescente das crianças em relação aos adultos e
o desenvolvimento de formas específicas de ensino escolar. Pode-se dizer que os jesuítas
foram os responsáveis pela organização dos conteúdos e procedimentos de ensino da escola
moderna, graças a eles os conteúdos passaram a ser organizados por grau de dificuldade -do
simples para o mais complexo - modelo seguido até hoje.
Com a ampliação da oferta da escola os jesuítas romperam com o ensino escolástico
no qual as crianças, tratadas como adultos em miniatura, não eram diferenciadas dos
adultos. Para que a nova forma de ensino fosse colocada em prática, os jesuítas enfatizaram
a necessidade de clausura, ou seja, de separação adulto-criança durante o período escolar.
Varela (2002, p.88) salienta que:
[...] foram precisamente os jesuítas que retomaram a definição que moralistas e humanistas fizeram da infância e puseram em ação uma maquinaria escolar que não apenas contribuiu para dotar as crianças de um estatuto especial, mas que também converteu seu sistema de ensino, nos países católicos, num sistema modelo para as demais instituições escolares, incluindo, após lutas e sucessivos reajustes, as universidades.
Para manter a ingenuidade da criança os jesuítas propunham, entre outros aspectos,
a censura de obras clássicas, pois acreditavam que o contato com essa literatura poderia
provocar o rompimento moral de suas idéias. Em conseqüência disso, os estudantes
gradualmente foram perdendo a autonomia para a realização de estudos, que antes eram
incentivados. Passaram a realizá-los totalmente submetidos à determinação da instituição
escolar. Varela (2002) assinala que a partir desse momento os jesuítas passaram a dominar
os conteúdos e controlar de maneira direta o aprendizado da maioria da população dos
países predominantemente cristão.
O modelo seguido pelos jesuítas tornou-se conhecido como Pedagogia Tradicional.
Para essa pedagogia as crianças nascem com índole má e, por isso, a base de sua
aprendizagem deve ser a de seguir modelos de homens considerados “bons”. A interação
aluno-professor é centralizada na figura do mestre que funciona como modelo e única fonte
de verdade do saber escolar. Na sala de aula, os alunos não podem interagir entre si e deve
se manter um à frente do outro. A aprendizagem da cultura e do conhecimento é
considerada um fenômeno individual e, por isso, a criança deve evitar contato com os
demais. Quando existentes, as atividades em grupo acontecem com caráter de competição
para estimular o esforço pessoal, pois é considerado o melhor aluno aquele que se destaca
nesse tipo de atividade.
Segundo Charlot (1983, p.167), “a disciplina é a regra básica de organização da
escola tradicional” e, portanto, a interação aluno-professor é baseada no estabelecimento de
limites disciplinares. Acredita-se que a escola consegue evitar a corrupção natural do aluno
ao serem seguidas as regras que permitem o controle de seus impulsos sexuais, entre outros.
Desse modo, o papel do professor é o de manter o aluno disciplinado e fazer com que
coloque em prática sua inteligência.
Quanto aos conteúdos, Charlot (1983, p.175) salienta que “a pedagogia tradicional
valoriza o saber ora como conteúdo, ora como matéria para a formação do espírito”. Para
esta vertente, o saber só ocorre na medida em que as crianças acumulam os conteúdos
escolares.
Além dos jesuítas também contribuíram para a formação da Pedagogia Tradicional
os princípios educacionais defendidos por Lutero e Comênio. Segundo Ghiraldelli
Jr.(1991), Lutero foi um nome importante para a Pedagogia Moderna, pois com suas teses,
além de afrontar a Igreja Católica, criticou a pedagogia eclesiástica que dominou o período
medieval. Em sua nova pedagogia, Lutero já anunciava as idéias burguesas que estavam
surgindo. Comênio é considerado iniciador da Pedagogia e, em seus escritos, manifestava
uma maior preocupação com a formulação de um método de ensino que fosse capaz de
ensinar tudo a todos, ou seja, todos os saberes conquistados pela humanidade a todos os
homens.
Ao contrário da Pedagogia Tradicional, a Pedagogia Nova desenvolvida nos séculos
XIX e XX vê a natureza da criança como inocente. No século XVIII, Rousseau contrapôs-
se à Pedagogia Tradicional afirmando o homem era naturalmente bom e que era a
sociedade o corrompia. Para Ghiraldelli Jr.(1991) por meio do personagem Emílio de sua
obra O Emílio que Rousseau mostra como as crianças deveriam ser educadas a partir de
suas descobertas pessoais e afastadas da comunidade adulta.
Ao longo de seu movimento de ascensão a burguesia confrontou-se com duas
necessidades políticas aparentemente contraditórias: acesso à escola por parte dos
trabalhadores e do crescimento industrial que exigia o ensino básico para estes
trabalhadores. Segundo Ghiraldelli Jr.(1991), esta dualidade encontrou parte de sua solução
na Pedagogia Nova que defendia os métodos ativos de ensino, ou seja, a independência do
aluno no ensino escolar. Pode-se citar entre seus grandes representantes John Dewey.
A Pedagogia Nova prepara o aluno para a vida de uma maneira diferente da
Pedagogia Tradicional. O aluno é preparado para a vida por meio de vivência na escola que
reproduzem as situações da vida cotidiana. Para esta pedagogia, a maneira como o aluno
aprende o conteúdo é o aspecto mais importante do processo ensino-aprendizagem. O
professor não é visto como a fonte do saber e funciona como colaborador nas atividades da
classe, nesta pedagogia as atividades em grupo é a principal forma de aprendizagem.
O processo de ensino-aprendizagem está centrado no conhecimento científico que
prioriza o desenvolvimento do método científico: observação, levantamento de hipóteses,
experimentos, levantamento de hipóteses explicativas, novos experimentos, conclusão. Os
interesse do aluno é despertado quando ele se depara com as dificuldades da explicação do
próprio método.
Nesta escola, o mestre funciona como facilitador da aprendizagem e a verdade não
é centrada somente em seu saber. Em decorrência disso, a escola deve levar em
consideração a espontaneidade e o saber espontâneo do aluno. As atividades em grupo não
são consideradas competição, como na escola tradicional, e sim como uma forma de
enriquecer a interação entre os alunos.
As crianças aprendem estabelecendo relações entre o conteúdo escolar e a realidade
em que vivem e compartilhando suas idéias com os demais. Embora, a aprendizagem
também seja compreendida como um processo individual, nesta pedagogia são levadas em
conta as trocas de saberes entre os indivíduos. Na escola nova os conteúdos são
relacionados ao seu uso concreto, ou seja, devem ter uma relação direta e próxima com seu
uso cotidiano, pois dessa maneira podem ser aprendidos de forma clara e significativa para
o aluno.
É importante salientar que tanto a Pedagogia Tradicional quanto a Pedagogia Nova
vêem a clausura como a melhor forma de educação escolar. Para que a criança consiga se
desenvolver, estas pedagogias acreditam que ela necessita ser desvinculada da corrupção
que os adultos podem provocar ou manter.
Segundo Ghiraldelli Jr (1991), a ascensão da Pedagogia Nova coincide com a tese
pós-revolucionária da burguesia que vai se tornando a classe dominante na sociedade
ocidental. A partir deste momento, a pedagogia de Comênio deixou de satisfazer as
necessidades sociais, pois foi desenvolvida no início do desenvolvimento da sociedade
burguesa.
Contudo, no final do século XIX, a Pedagogia Tradicional toma novo fôlego com
sua retomada por parte de John Herbert. Neste período, esta vertente teórica pareceu
corresponder aos interesses da nova classe revolucionária – o proletariado. Esta nova teoria
é considerada uma retomada dos princípios teóricos da Pedagogia Tradicional, pois buscava
resgatar a cultura das gerações passadas. Foi nesta época, segundo Ghiraldelli Jr.(1991),
que a burguesia pressionada pela classe trabalhadora, gradualmente foi instalando as redes
públicas de ensino.
Nesta pedagogia, a escola é o local em que os alunos são preparados para vida com
base na educação intelectual e moral. Por meio dos modelos favorecidos pelas obras
literárias, científicas e artísticas. O conhecimento é transmitido pelo professor por meio de
aulas expositivas e o professor é visto como a fonte do saber.
A pedagogia de Herbart é composta de cinco passos de ensino. O primeiro passo do
ensino-aprendizagem é a ativação dos conhecimentos anteriores do aluno saber o novo
conteúdo a ser ensinado. Em um segundo momento, os conteúdos novos são transmitidos
pelo professor e depois são demonstrados por meio de novas situações.
Para Ghiraldelli Jr (1991), a pedagogia de Herbart aplicada ao ensino público
contribuiu para elevar o nível de instrução dos indivíduos. Mas esta instrução esteve desde
o início ameaçada, pois uma vez a classe trabalhadora instruída poderia fortalecer sua luta
contra o poder burguês. Em um terceiro momento, o professor estabelece relações entre o
novo conteúdo e os conhecimentos anteriores dos alunos, solicita aos alunos sua fixação
por meio de exercícios e, finalizando, solicita a aplicação do conteúdo aprendido a novas
situações.
No Brasil, de acordo com Saviani (2003), a implementação da Pedagogia Nova
causou alguns problemas no sistema educacional por conta do desenvolvimento de seu
método de ensino. Em razão disso, acabou sendo utilizada principalmente no ensino da elite
econômica e social do país deixando grande parte da população sem acesso a este tipo de
educação.
Para o autor, com o declínio da Pedagogia Tradicional e da Pedagogia Nova no
ensino educacional brasileiro – década de 1970 - acabou fortalecendo uma outra tendência
pedagógica chamada de Pedagogia Tecnicista. Essa pedagogia teve como principal objetivo
à reorganização do processo educativo, a partir do estilo mecanizado e cristalizado
oferecido pelos livros didáticos.
De acordo com o autor, nesta pedagogia, o como ensinar tornou-se mais importante
do que o quê e o porque ensinar. Com isso, o elemento principal da escola passou a ser a
“organização racional dos meios, ocupando o professor e o aluno posição secundária (...)”,
ou seja, os professores passaram a ser avaliados pela quantidade de conteúdos transmitidos
aos alunos. Na verdade, aprender passou a significar saber fazer sem que necessariamente o
aluno precisasse compreender os conceitos e procedimentos envolvidos nas tarefas.
(SAVIANI, 2003, p. 13).
A implementação desta pedagogia teve como “pano de fundo” o período da ditadura
militar em nosso país com interesses de dominação cultural e política da sociedade
brasileira. Tal dominação foi efetivada com a universalização do uso do livro didático nas
escolas que de certa forma, passou a substituir a figura do professor na apresentação dos
conteúdos escolares.
Para o autor, alguns pedagogos como Freire, e Freinet na França, preocupados com
a escolarização das classes desprivilegiadas acabaram desenvolvendo métodos de ensino
dirigidos a esta contingente populacional e próximos, teoricamente, aos da escola nova. O
autor denomina nestas propostas de Escola nova popular, pois enfatizam, assim como a
escola nova a participação ativa dos alunos na elaboração dos conhecimentos e detrimento
da centralização do processo ensino-aprendizagem na figura do professor.
Juntamente com esta tendência, só que de lado oposto, novas vertentes educacionais
surgiram sendo conhecidas como Pedagogias não-dominantes; a Pedagogia Libertária, a
Pedagogia Libertadora e a Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos. Segundo Silva (2002),
a Pedagogia Libertadora, também conhecida como Pedagogia do Oprimido tem como
principal representante o estudioso Paulo Freire. Nesta Pedagogia, os conteúdos científicos
são prioridade, pois estes são capazes de oferecer subsídios para análise e solução dos
problemas de âmbito social. Freire (apud Guiraldelli Jr, 1991) acredita que o processo de
ensino-aprendizagem acontece quando o professor vivência de forma concreta o contexto
de cada comunidade dos alunos, isto é, quando educador deixa de ser a única fonte do saber
e passa a educar interagindo com os alunos em sua realidade concreta.
Para Ghiraldelli Jr (1991), a Pedagogia Libertadora é uma pedagogia que duvida da
escola formal, ou seja, ela acredita que o espírito crítico pode ser despertado no individuo
por meio de situações vividas informais em grupo. Pois, é por meio da discussão dos
problemas e conhecimentos cotidianos dos alunos que o grupo vai encontrar as soluções
teóricas e práticas de cada situação-problema.
A Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos, cujo expoente é Saviani, “está mais
preocupada em garantir a função social da escola enquanto instituição historicamente
designada à divulgação da cultura erudita às classes populares” (GHIRALDELLI Jr.(1991,
p.28). Esta vertente exalta o ensino público porque acredita que é responsável por promover
o conhecimento científico das camadas populares. Para essa pedagogia, os conteúdos
devem ser elaborados e organizados de acordo com o tema a ser lecionado pelo professor,
pois acredita que não existe um único método de ensino para todos os temas a serem
apresentados.
Atualmente, para o autor, tem-se nas escolas um amálgama dessas diferentes
tendências pedagógicas, apesar das tentativas e propostas governamentais de substituição
das teorias considerados ultrapassadas por novas vertentes pedagógicas. Acompanhando
este movimento percorrem a escola discussões de natureza social que questionavam o papel
da escola frente as necessidades históricas da sociedade. Tais discussões são encabeçadas
pelas teorias críticas e Pós-críticas da Educação que busca situar mais claramente a função
da escola no conjunto social.
3. Discussão sobre a obra Dom Casmurro
Ao escrever Dom Casmurro, publicado em 1900, Machado de Assis dá bastante
importância à adolescência. O autor demonstra, por meio dos relatos de Bentinho, que
nessa fase da vida humana, a personalidade do indivíduo está em formação. Para a sua
época, o autor tem uma visão singular do adolescente, uma vez que os estudos sobre o tema
estão, ainda, iniciando-se.
Importante lembrar que a narrativa da obra é feita em primeira pessoa. Daí decorre
que a visão que se terá das duas personagens é a estabelecida por Bentinho. Conforme
Coutinho (1997, p.21), “a história é apresentada na maneira por que Bentinho a
experimentou, interpretou e expõe. Não vemos nem ouvimos Capitu; seu ponto de vista não
é referido”. Bentinho, o narrador, narra os fatos em analepse, portanto já tendo vivido os
fatos. Estando na fase adulta vê os fatos com o olhar de quem sofreu com eles, assim, seus
relatos são intencionais.
Como narrador, Bentinho chama a atenção para sua condição social e sua
ingenuidade, realçando suas diferenças sócio-econômicas e psicológicas em relação à
Capitu. Ele manipula o leitor, levando-o a acreditar em sua tese por meio das descrições
que realiza sobre as condutas e reações de Capitu. Ao focalizar as impressões de José Dias -
agregado da casa de Bentinho - a respeito de Capitu, deixa transparecer seu caráter ingênuo,
em contraponto à astúcia dela. “Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles,
olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada
sabia, e queria ver se podiam chamar assim” (ASSIS, 1997, p. 84).
Capitu é retratada, apesar de sua pouca idade (14 anos), com atitudes e conceitos
para além de sua faixa etária, demonstrando a construção da personagem feminina
machadiana como forte e precoce desde a adolescência. Segundo Proença (1997, p. 6),
Capitu seria um símbolo dessa mulher, “mais fria, mais indiferente ao perigo e às situações
constrangedoras”. Tal definição fica transparente ao se analisar as reações de Capitu em
momentos de tensão:
Ouvimos passos no corredor; era D. Fortunata. Capitu compôs-se depressa, tão depressa que, quando a mãe apontou à porta, ela abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo amarelo, nenhuma contração de acanhamento, um riso espontâneo e claro, [...] Assim, apanhados pela mãe, éramos dois e contrários, ela encobrindo com a palavra o que eu publicava pelo silêncio (ASSIS, 1997, p. 87 e 88).
Bentinho cresce em uma família abastada, com estrutura social e religiosa bem
definida. Criado pela mãe viúva com a ajuda de alguns agregados é assim, extremamente
protegido pela mãe e os demais, tornando-se um adolescente ingênuo e sem iniciativa.
Toma ciência de que já não é uma criança quando José Dias denuncia seu possível namoro
com Capitu, e percebe seu amor por ela. “Tudo isso me era agora apresentado pela boca de
José Dias, que me denunciara a mim mesmo: [...] Eu amava Capitu! Capitu me amava!”
(ASSIS, 1997, p. 84).
Sua ingenuidade é descrita a cada momento em que passa por situações
constrangedoras diante de outras pessoas. Capitu sempre disfarça, recompõe-se com
facilidade, já Bentinho fica sem ação, sem saber como agir: “E séria, fitou em mim os olhos
convidando-me ao jogo. O susto é naturalmente sério; eu estava ainda sob a ação do que me trouxe
a entrada de Pádua, e não fui capaz de rir, por mais que devesse fazê-lo, para legitimar a resposta de
Capitu” (ASSIS, 1997, p. 56).
Capitu é descrita como sendo de temperamento forte, astuta, muitas vezes
dissimulada. A descrição de Capitu evidencia a mulher existente na menina. Seus
sentimentos e atitudes são de uma pessoa que, embora adolescente, pensa e age como
mulher: “Capitu refletia. A reflexão não era coisa rara nela, e conheciam-se as ocasiões
pelo apertado dos olhos” (ASSIS, 1997, p. 61). Ressalta-se, mais uma vez, ser essa a visão
que é transmitida por Bentinho, como narrador.
A imagem da adolescência veiculada na narrativa deve estar, portanto, marcada pela visão tendenciosa do narrador que, advogando em causa própria, de um lado valoriza sua condição social e, de outro enfatiza as diferenças entre ele e os demais jovens, especialmente de Capitu (PENTEADO, 2005, p. 2).
Ao retratar a descoberta da sexualidade, as personagens adolescentes de Machado
de Assis (1997) revelam as características de ambas. Capitu é sempre quem toma a
iniciativa, é a atrevida nos elogios, afagos, sonhos, enfim, em suas atitudes. Bentinho
mantém sua ingenuidade, muitas vezes aturdida pelas ações da menina.
...] Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era muito baixo. Inclinei-me depois sobre ela, rosto a rosto, mas trocados, [...]. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim, a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e [...](ASSIS, 1997, p. 84 e 86).
As atitudes de Capitu são, portanto, as mais ousadas, repetindo-se o fato até mesmo
em relação aos seus sonhos como criança. Enquanto os sonhos de Capitu são fantásticos
revelam intenções e demonstram as primeiras fagulhas de sensualidade, os de Bentinho
reproduzem apenas a familiaridade. Os sonhos de Capitu são de uma adolescente, enquanto
Bentinho, apesar de mais velho, ainda tem sonhos de menino.
Quando me perguntava se sonhara com ela na véspera, e eu dizia que não, ouvia-lhe contar que sonhara comigo, e eram aventuras extraordinárias, que subíamos ao Corcovado pelo ar, que dançávamos na lua, ou então que os anjos vinham perguntar-nos pelos nomes, a fim de os dar a outros anjos que acabaram de nascer. Em todos esses sonhos andávamos unidinhos. Os que eu tinha com ela não passavam da simples repetição do dia, alguma frase, algum gesto. Também eu os contava (ASSIS, 1997, p.50-51) [grifo nosso].
Assim vão se formando, no decorrer da narrativa, as personalidades contraditórias
dos adolescentes. Penteado (2005, p. 3) assinala que essa construção é de uma imagem
forte de Capitu, em contraponto a um Bentinho inseguro e desprotegido, que “na medida
em que acentua a sagacidade e a malícia de Capitu, enfatiza o seu despreparo para
compreender todas as maquinações da jovem”.
4. Consideração Finais
Segundo Coutinho (1997, p. 9), Capitu é “um arquétipo bem brasileiro das meninas
pobres que procuram ascender de classe à custa do casamento, arquitetado maliciosamente
e por mero interesse em muitos casos”. Esse era o retrato da mulher do século XIX, que não
tinha outro meio para ascender socialmente e Capitu, sendo desde criança astuta e
ambiciosa, segundo o narrador, enquadrava-se nesse arquétipo. Bentinho, desde criança foi
sempre mimado pela mãe e pelos parentes, e essa superproteção o tornou um adolescente
inseguro e incapaz de tornar decisões.
É próprio do adolescente o agir imediato para a satisfação de seus interesses. Capitu
é apontada desde sua infância como fútil, pois só pensava em vestidos e penteados, tinha
ambições de grandeza e luxo, e conseqüentemente age e luta para conseguir o que quer, e
com pensamento rápido. Demonstra inteligência e raciocínio lógico, como muitas das
mulheres retratadas por Machado de Assis. Ainda não era uma mulher na maior parte do
texto narrado, mas crescia demonstrando que não seria submissa e ingênua como D. Maria
da Glória, a mãe de Bentinho e, para ele, a imagem perfeita de mulher.
Portanto, o que se verifica na obra analisada é a personalidade distinta de dois
adolescentes. Bentinho, retraído, tímido, inseguro e Capitu, forte, ativa, e vista muitas vezes
como dissimulada e bastante amadurecida. Seu comportamento é retratado pelo autor como
próprio dos adolescentes que não foram super-protegidos em sua primeira infância.
A obra analisada pode ser considerada um exemplo do maior espaço conquistado
pela criança e pelo adolescente na sociedade como conseqüência do avanço dos
conhecimentos relacionados a essa faixa etária. Entre os séculos XIX e XX disciplinas
como a Pedagogia e a Psicologia e a própria literatura tornam-se capazes de caracterizar
mais detalhadamente esse período do desenvolvimento humano podendo, então definir
“quem é” o adolescente.
5. Referências
ARNAY, J. Reflexões para um debate sobre a construção do conhecimento na escola: rumo a uma cultura científica escolar. In: RODRIGO, J. M. e ARNAY, J. Conhecimento cotidiano, escolar e científico: representação e mudança. 2a edição. São Paulo: Editora Ática, 1999.
ARIÈS, P. História Social da Criança e da Família. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1981. p. 50-68.
BALLONE G.J - Depressão na Adolescência - in. PsiqWeb Psiquiatria Geral, Internet,
2001 - disponível em < http://sites.uol.com.br/gballone/infantil/adoelesc2.html> revisto em
2003
BEGER, M. Educação e dependência. 1ª ed. Porto Alegre: Difel, 1976, p. 269-290. BECKER, F. Educação e Construção do Conhecimento. Porto Alegre: Arimed, 2001. p. 45-67.
CHIPKEVITCH, et al. Puberdade e adolescência: aspectos biológicos, clínicos e
psicossociais. São Paulo: Roca, 1994.
COUTINHO. A. A Literatura no Brasil, Rio de Janeiro, Global Editora, 1997.
COLL, C. Os conteúdos na reforma: ensino e aprendizagem de conceitos, procedimentos e atitudes. Porto Alegre: Saraiva, 1998. CURTY. M.G et al. Apresentação de trabalhos acadêmicos, dissertações e teses. 1. ed. Maringá: Dental Press, 2003
CLARA R. ET AL . Psicologia do desenvolvimento. São Paulo: Edu, 1981-1982.
D’ ANDRÉA, F.F. Desenvolvimento da personalidade. 14ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand
do Brasil, 2000. p. 9-29.
DORNELES, B. V. Mecanismos seletivos da escola pública: um estudo etnográfico. In: Lima, B. J. Psicopedagogia o caráter interdisciplinar na formação e atuação profissional. 1ª ed. Porto Alegre: Artes médicas, 1987. KUCERA.I.M. et al. Idéias em contexto. 2. ed. São Paulo: Brasil, 1997, p. 42, 54.
KUPFER, M.C. Freud e a educação. 3ªed. São Paulo: Scipione, 2001. p. 79-113.
LAJOLO, M. Livro didático: um (quase) manual de usuário. Em Aberto, n.69, p. 2-9, 1996.
MACHADO DE ASSIS. Dom Casmurro. 1ª ed. São Paulo: Publifolha, 1997
MIRAS, M. Um ponto de partida para a aprendizagem de novos conteúdos: os conhecimentos prévios. In: COLL, C.; MARTÍN, E.; MAURI, T.; MIRAS, M.; ONRUBIA, J.; SOLÉ, I. e ZABALA, A. O construtivismo na sala de aula. São Paulo: Ática, 1999. POZZO, J.I. A aprendizagem e o ensino de fatos e conceitos. In: COLL, C. Os conteúdos na reforma: ensino e aprendizagem de conceitos, procedimentos e atitudes. Porto Alegre: Saraiva, 1998.
PENTEADO, M.A.A. A imagem do adolescente em Dom Casmurro. Disponível em
http://www.geocities.com/ali_br. Acesso em: 01 maio. 2005
POSTMAN, Neil. O Desaparecimento da Infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.