Post on 09-Oct-2020
As ressignificações de Maria Antonieta no século XIX: de bode expiatório a rainha
mártir a modelo a ser seguido
Felipe Goebel*
PPPGHIS – UFRJ
goebel.felipeb@gmail.com
A Rainha Maria Antonieta da França (1755-1793) é até os dias de hoje um ícone da
moda e da indústria de bens culturais da França. É ela que, ao lado de Luís XIV, ao invés de
seus dois sucessores, povoa os espaços de representação coletiva sobre o Ancien Régime e sobre
o absolutismo francês. Nas últimas duas décadas, grifes como Chanel, Dior, Lanvin, Saint
Laurent, Versace e Marchesa criaram coleções de roupas e acessórios inspiradas nos elaborados
vestidos de corte e nos despojados trajes campestres aos quais é relacionada na cultura popular.
Seu bucólico retiro pessoal do Petit Trianon e seus aposentos no Palácio de Versalhes atraem
anualmente dezenas de milhares de turistas do mundo inteiro. Seu retrato mais famoso pode ser
visto estampando nas pastas de vinil que os cidadãos franceses recebem ao retirar o passaporte.
Em 2006, a cineasta Sofia Coppola lançou a colorida cinebiografia, protagonizada pela atriz
americana Kirsten Dunst, filmada inteiramente em Versalhes, contando com patrocínio do
governo francês, e que chocou o Festival de Cannes pela abordagem modernizadora e favorável
à última rainha da França. Apesar de ter sido vaiado no Festival e ter gerado polêmica na
imprensa francesa, o filme tornou-se um ícone cult nos anos seguintes. Após seu lançamento,
revistas de moda e estilo como Vogue, Elle, Marie-Claire, Variety e Time foram inundadas por
editoriais e ensaios fotográficos que a tinham como musa. A Vogue chegou a cunhar o termo
rococo-chic para o estilo que seria tendência em 2007-2008, e que reapareceu em 2015. As
exposições Marie-Antoinette, em 2009 no Grand Palais, e Marie-Antoinette, métarmophose
d’une image, exibida atualmente na Conciergerie, centraram-se em sua imagem pública
controversa e nas diversas abordagens e interpretações dadas a elas ao longo do tempo. Ambas
exibiram quadros oficiais, charges pornográficas, cartas pessoais, objetos de arte, reproduções
de seus trajes e alcançaram sucesso de público e crítica. A do Grand Palais foi considerada a
terceira mais visitada da França naquele ano e a da Conciergerie é a responsável pela
revitalização do museu e prédio histórico que abriga a exposição. Inegavelmente, a
representação de Maria Antonieta como um ícone da França pré-revolucionária e do Ancien
Régime se faz presente no mercado cultural, dentro e fora do território francês.
* Graduado em História pela UFRJ (2017) e mestre em História Social pelo PPGHIS-UFRJ (2019).
As representações de Maria Antonieta parecem muitas vezes, de fato, personificar o estilo do
final da monarquia absolutista francesa. Mais do que isso, essas representações a colocam em
um patamar de símbolo característico de um regime e de todo um século. A capacidade de
Maria Antonieta de centralizar em si o imaginário sobre a sociedade de corte do final do século
XVIII, de fato, não é uma invenção da moderna indústria cultural. Esse ponto se fez presente
desde que se tornou rainha em 1774 e passou a comandar a Corte de Versalhes ao lado de Luís
XVI.
Como rainha ela deveria assumir o papel de principal coadjuvante nos rituais da corte,
sua representação, exibição e performance pública devendo conformar-se as definições de
feminino esperada de uma rainha da França, ou seja, ao pio anonimato materno dedicado a
geração e criação de herdeiros. Ela deveria, além disso, ser a principal aliada do rei no que dizia
respeito à exaltação e glorificação de sua figura pública, ajudando-o a controlar a aristocracia
cortesã, a gerenciar o cerimonial e a passar a imagem exuberante e poderosa da realeza e da
dinastia Bourbon, na qual se apoiava o Ancien Régime. Como estrangeiras, as rainhas da França
e suas filhas, de fato, ficavam excluídas do poder político real, por meio da Lei Sálica. O poder
que deveriam desempenhar relacionava-se, dessa maneira, como uma espécie de complemento
ao poder do rei e só existia por advir deste. No modelo de sociedade de corte instituído por Luís
XIV, e seguido sem quase nenhuma alteração por Luís XV, a figura da rainha era uma peça
chave no equilíbrio das disputas internas da aristocracia: ela formava uma facção interna na
corte, geralmente relacionada com a Igreja e com membros mais tradicionais da realeza e da
nobreza, e disputava com a maîtresse-en-titre (principal amante do rei) por influência e domínio
dentro corte. Ao contrário do grupo da rainha, o da amante era formado por membros mais
jovens e menos tradicionais da aristocracia e ela interferia muitas vezes na política monárquica.
Não tendo que se conformar a definições de moralidade, religiosidade e maternidade e não
figurando nas representações e eventos oficiais, era permitido que a amante desempenhasse
papéis extravagantes relacionados a divertimentos e modas, enquanto a rainha deveria
conformar-se a atribuições tradicionais e formais.
O fato de Luís XVI não ter tido nenhuma amante abriu um precedente no equilíbrio
desse delicado esquema. Somou-se a isso timidez e inaptidão do monarca para demonstrações
públicas e exibição de sua figura, outra característica necessária para estabilidade da sociedade
de corte. Por outro lado, Maria Antonieta, desde que chegou a França como Delfina (esposa do
herdeiro, o Delfim), demostrou maestria em tais questões. Ao se tornar rainha, ela encontrou
terreno fértil para sua personalidade expansiva. O vácuo de poder deixado pela ausência de uma
amante e pela incapacidade do marido em centralizar a vida da corte precisava ser ocupado e
Maria Antonieta o ocupou com grande habilidade. Rapidamente, ela passou a centralizar em
torno de si não apenas as prerrogativas que deveriam ser desempenhadas pela amante, mas, de
fato, passou a ocupar um lugar de destaque e prestígio sem igual, tendo mais a ver com o papel
que deveria ser desempenhado pelo rei. Sua recusa em seguir as regras de comportamento que
eram esperadas da rainha a colocou em uma posição sem igual em Versalhes. Ela insubordinou-
se desde o começo contra as regras de cerimonial da corte e inovou não apenas em relação ao
seu comportamento como rainha, mas, principalmente, explorou formas arrojadas de
representar e exibir sua figura pública, jogando frequentemente com a esfera pública e a esfera
privada. Seu séquito pessoal era formado por membros jovens e exuberantes da aristocracia
francesa, principalmente mulheres. Era o entourage de Maria Antonieta e não o de Luís XVI
que ditava o tom e as tendências de comportamento e de moda a serem seguidas na corte.
Colaborando intimamente com a recém-formada guilda das marchandes des modes - primeiro
grupo profissional dedicado exclusivamente a criação de novas tendências de vestuário -, indo
com frequência semanal a Paris e buscando acompanhar as rápidas transformações culturais e
estéticas que floresciam na metrópole, Maria Antonieta se tornou o brilhante orbe em torno do
qual a extravagante sociedade de corte girava.
Isso fica bastante claro no momento imediatamente anterior a eclosão da Revolução
Francesa. Ela, e não o rei, se tornou a pessoa mais odiada da França, o alvo principal dos
panfletos, charges e caricaturas políticas e pornográficas. Em suma, Maria Antonieta por ter se
tornado o centro da sociabilidade de Versalhes, por ter fugido de suas obrigações tradicionais
de rainha e por ter entrado em um território que deveria ser dominado pelo rei, passou a
personificar o que havia de mais extravagante, corrupto e errado na monarquia absolutista e na
corte, e foi julgada e executada tendo a realidade disseminada pelos libelos como pano de fundo
e apresentada como provas. Essa é a primeira interpretação dada a ela: a de culpada pela
derrocada da monarquia, a de estrangeira corrupta, a de rainha frívola e devassa que levou a
França ao abismo. Nas palavras do promotor Antoine-Quentin Fouquier-Tinville, que fez a
acusação formal contra ela no Tribunal:
Á maneira das Messalinas, Brunhildas, Fredegundas e Médicis, que foram chamadas
em tempos passados de rainhas da França, e cujos nomes para sempre odiosos não
serão apagados dos anais da história, Maria Antonieta, viúva de Luis Capeto, foi,
desde sua chegada à França, o flagelo e a sanguessuga dos franceses.1
A interpretação revolucionária, porém, foi rapidamente substituída, apesar de ter sido a
responsável por a transformar na personificação dos pecados da monarquia absolutista e ser
primordial para o eclodir da Revolução. As interpretações sobre a trajetória de Maria Antonieta,
do mais extravagante privilégio a total derrota pessoal na guilhotina, foram criadas e
sedimentadas postumamente, ao longo do século de XIX, em um processo que visava reabilitá-
la e a consolidar como ícone cultural da França. São esses exames e explicações que criaram a
imagem que se faz presente até os dias de hoje, ainda que se relacionem de certa maneira com
a compreensão revolucionária sobre ela.
Dessa forma, o presente artigo busca examinar o desenvolvimento de uma retórica de
ressignificação/reabilitação de Maria Antonieta, analisando as três tópicas principais de
interpretação dadas à sua figura ao longo do século XIX. Examinamos, inicialmente a
obra Vie Privée de Marie Antoinette, primeira obra escrita a centrar-se na figura da rainha,
publicada imediatamente após a o eclodir da Revolução e que contém os relatos e memórias de
Madame Campan, sua dama de companhia favorita. Seguimos após isso para as diversas
biografias e escritos produzidos no período da Restauração dos Bourbon, realizadas sobretudo
por nobres franceses exilados (émigrés), que mitificaram positiva e negativamente o imaginário
sobre a rainha e como essas obras acabaram por solidificar uma memória institucional no
palacete do Petit Trianon, em Versalhes. Por fim, investigamos as diversas apropriações
interpretativas, realizadas ao longo do Segundo Império, sobretudo, as apropriações e novos
significados dados pela Imperatriz Eugênia não só ao imaginário relacionado a Maria
Antonieta, mas, principalmente, aos trajes associados à rainha.
O bode expiatório do regime monárquico absolutista
Mémoires sur la vie privée de Marie Antoinette foi publicado em 1823, em Paris. Trata-
se das memórias da antiga dama de companhia de Maria Antonieta, Henriette Campan. Ainda
que anteriormente algumas memórias de nobres exilados tenham sido publicadas e obtido certo
1 Foi utilizada os relatórios das sessões do julgamento dos dias 14 de outubro e 16 de outubro de 1793, presentes
no Le Moniteur Universel das referidas datas. Disponível em:
<https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/cb34452336z/date1793>
sucesso, sobretudo entre os émigrés, a obra de Madame Campan é o primeiro a se centrar na
vida da antiga rainha. O livro de fato dedica-se tanto a ela, deixando muitos aspectos da
trajetória da própria autora de lado, que pode ser lido como uma espécie de biografia
experimental. Nos interessa aqui não os relatos factuais da vida de Maria Antonieta,
extensamente detalhados por Campan, mas sim a interpretação dada por ela aos eventos que
vivenciou na Corte de Versalhes e durante os primeiros anos da Revolução.
Na década de 1820, Madame Campan se encontrava novamente em uma situação
delicada devido os rumos tomados pela política francesa. Ela havia sobrevivido ao período do
Terror e soube se reinventar de maneira primorosa. A dama de companhia favorita de Maria
Antonieta, e personagem popular entre os aristocratas de seu entourage, fugiu de Paris em 1791,
após a abolição da monarquia e o fechamento da corte. Retirando-se para a comuna de Saint-
Germain-en-Laye, ela viveu em relativo anonimato até 1794 quando abriu uma escola com o
dinheiro que havia herdado após a morte do marido. Erudita e atenciosa com as estudantes, a
escola rapidamente prosperou entre a nova elite letrada e burguesa estabelecida com a ascensão
de Napoleão Bonaparte. Por volta de 1800, ela recebeu Hortense de Beauharnais, enteada de
Napoleão (filha do primeiro casamento da imperatriz Josefina) e Caroline Bonaparte, irmã mais
nova do imperador no seu estabelecimento de ensino. Dedicada ao ensino das jovens nobres,
Madame Campan atraiu a atenção do casal imperial e se tornou particularmente próxima do
imperador, que ficou impressionado com sua sagacidade e rapidez de pensamento. Após deixar
a escola e tornar-se rainha da Holanda, Hortense continuou apoiando e patrocinando a antiga
professora e sua escola.
Por influência da enteada e da irmã, Napoleão a nomeou, em 1807, diretora da primeira
Maison d’éducation de la Legion d’Honneur, estabelecida no Palácio de Écouen. Pensada como
uma escola de elite para meninas cujos pais, avôs ou bisavôs tivessem recebido a medalha da
Legião da Honra, a escola fazia parte do plano educacional do império, determinado a criar uma
elite letrada nacionalista. A Legião da Honra (Legion d’Honneur) é a mais alta ordem de mérito
na França, tanto para civis como para militares. Foi estabelecida em 1802 por Napoleão e
mantida por todos os governos e regimes franceses posteriores, até os dias atuais. A ordem é
dividida em cinco graus de distinção crescente: Cavaleiro (Chevalier), Oficial (Officer),
Comandante (Commandeur), Grande Oficial (Grand Officer ) e Grande Cruz (Grand Croix).
Em uma carta escrita para a diretora, em maio de 1807, Napoleão definiu de maneira assertiva
o objetivo que Madame Campan deveria cumprir: “Crie para nós crentes e não pensadoras.”
Ele exigia um regime de estudos simples, porém rígidos, com classes de francês e latim, história
da França, literatura francesa, filosofia, aritmética e atividades físicas constantes com o objetivo
de "dominar a vaidade, que é a paixão mais ativa do gênero (feminino)" e fazer as alunas
crescerem como mães, esposas e trabalhadoras empenhadas com o crescimento da Nação
(ROGERS, 1993, p.7). Campan foi bem-sucedida no cargo de diretora até 1814, quando a
escola foi fechada pela Restauração Monárquica dos Bourbons. Retirou-se discretamente,
então, para a cidade de Mantes, contando ainda com a amizade e patrocínio de Hortense e
Caroline, e passou a dedicar-se a escrever suas memórias. Buscando afastar sua imagem das
ligações próximas que mantivera com o regime napoleônico, ela centrou seus escritos no
período monárquico absolutista pré-revolucionário, retomando sua proximidade com Maria
Antonieta e com outros membros da realeza Bourbon, que agora havia retomado,
momentaneamente, o poder.
Debruçando-se sobre o período da Corte de Versalhes, Madame Campan nos dá um
claro e detalhado retrato do funcionamento do cerimonial e da etiqueta cortesã que a jovem
Maria Antonieta se viu obrigada, reticentemente, a cumprir. Mais importante é a maneira como
ela descreve a jovem: espontânea, ingênua, expansiva e dada a atos sentimentais repentinos. O
incomodo da jovem com as complicadas regras de exibição pública da corte e com os jogos e
intrigas é aumentado pela descrição do extenso aparato de formalidade da monarquia
absolutista. Campan é sempre direta no que diz respeito a alienação não apenas de Maria
Antonieta, mas de todos os aristocratas cortesãos, em relação aos problemas enfrentados pela
França. Para ela, “Versalhes havia se tornado uma luz votiva mantida sob uma redoma, afastada
de tudo e de todos que não podiam adentrar a redoma, mas, ainda assim brilhante e chamativa.”
Assumindo uma postura não exatamente de defesa do absolutismo, mas claramente contrária a
Revolução, ela desfia os acontecimentos da década de 1780-1790 com uma criteriosa
preocupação em narrar apenas o que viu ou o que tinha absoluta certeza que ocorreu. Seu afeto
por Maria Antonieta é marcante e sua defesa, por outro lado, é clara.
A interpretação de Madame Campan é, além disso, bastante específica. Maria Antonieta
era uma princesa criada em uma corte germânica menos formal que a francesa por uma mãe
dominadora, mais preocupada com a política internacional de seu vasto império do que com o
bem-estar da filha. O casamento real que selou a aliança franco-austríaca não levou em conta a
inadequação e a deficiência na educação formal do casal: nem Maria Antonieta nem Luís
Augusto haviam, de acordo com ela, sido preparados devidamente para lidar com a complicada
política aristocrática francesa da corte e muito menos para governar a França. Ademais, a
personalidade de Maria Antonieta era oposta ao modelo de comportamento aristocrático
esperado e exigido em Versalhes; ela não tinha a habilidade de dissimulação e controle dos
sentimentos necessário para a sobrevivência e sucesso nos círculos da corte. Maria Antonieta
só teria aprendido a dominar essas características de maneira superficial e após sucessivos
fiascos, o que lhe custou, desde o início, muitos desafetos entre a tradicional aristocracia
francesa. O fracasso inicial do matrimonio, as pressões maternas e do embaixador austríaco, as
críticas que sofreu dos cortesãos e os complôs de Madame Du Barry (antiga amante de Luis
XV) a isolaram e a traumatizaram, o que teria consequências futuras, ao mesmo tempo que
explicaria seus atos posteriores quando se tornou rainha.
Madame Campan, porém, faz algumas críticas, ainda que as justifique de alguma forma.
Por exemplo, ela condena de maneira enfática o que chama de “comportamentos erráticos e
frívolos da rainha”, ou seja, sua paixão pelos bailes, festas, jogos e divertimentos, ainda que
essas atividades fossem, de certa maneira, esperados dela como centro da vida social da corte.
Em relação aos gastos, ela censura o envolvimento profundo de Maria Antonieta com as
extravagantes modas criadas pelas marchandes des modes, sobretudo Rose Bertin, e a
consolidação do grupo popularmente chamado Ministério da Moda; ainda assim ela afirma que
os gastos da rainha não eram de maneira alguma fora do comum ou mais elevados que os de
outros membros da realeza, como os da irmã ou os das tias do rei. Outro ponto interessante diz
respeito ao favorecimento de alguns membros do seu círculo íntimo, como a Duquesa de
Polignac, a Princesa de Lamballe e membros jovens da realeza e da aristocracia, em detrimento
de membros mais antigos que esperavam ser favorecidos pela sua precedência social. Ainda
que possa ser condenável, Campan argumenta que Maria Antonieta contava com nenhum ou
pouco apoio e aceitação dos nobres mais estabelecidos na corte e, por isso, cercou-se de um
grupo de jovens que pensavam e agiam como ela, oxigenando uma corte a muito engessada em
suas formalidades e práticas.
A interpretação final de Madame Campan é que Maria Antonieta foi a maior vítima da
Revolução e foi a escolhida, pelo seu status de estrangeira, mulher e devido a sua inadequação
e postura desafiadora frente as convenções de comportamento aristocrático, para ser o bode
expiatório do regime Bourbon. “Os pecados e fracassos de mais de um século de monarquia
foram todos jogados nos ombros dela”, em suas palavras. A expiação dos “pecados” da
monarquia absolutista deu-se, portanto, pelos ataques frenéticos e violentos contra ela: os
lideres revolucionários e os escritores dos libelos encontraram nela a vítima perfeita e
desprotegida para exacerbar os problemas enfrentados pela França; para Campan, a criação de
um único alvo, que personificasse imaginariamente o que havia de mais escandaloso na corte e
na aristocracia, deu-se, porém, de maneira quase natural, uma vez que desde o começo Maria
Antonieta se encontrava em terreno desfavorável a ela e ao que representava como austríaca e
rainha. Mais do que Luís XVI, a rainha e a imagem criada sobre ela nos panfletos foi, para
Campan, o combustível que animou o frenesi de violência que acabou por fugir do controle dos
líderes revolucionários em 1792-1793, durante o período do Terror.
A tópica do bode expiatório, com seus argumentos sacrificiais e de expiação dos erros
da monarquia, de fato, não era uma criação inédita de Madame Campan. Essa interpretação
sobre o papel desempenhado por Maria Antonieta na queda da monarquia e na Revolução já
era bem conhecida e presente entre os émigrés. Tal explanação, por exemplo, já figurava de
maneira enfática nos escritos do Conde de Montlosier publicados no Courier de Londres, jornal
fundado por alguns émigrés que se estabeleceram na Inglaterra (CARPENTER, 1999, p. 18).
Essa parece ser a visão partilhada pela maior parte dos nobres que sobreviveram à Revolução e
que se estabeleceram em diversas partes da Europa, incluindo alguns membros da antiga
realeza, como o Conde e a Condessa d’Artois (cunhados de Maria Antonieta e membros de seu
círculo íntimo), que capitanearam a contrarrevolução. Madame Campan, porém, não estava
apenas resumindo os sentimentos dos antigos aristocratas francesas; ela, de fato, estabeleceu
uma tradição letrada de interpretação sobre a trajetória e a figura de Maria Antonieta, que se
faz presente na grande maioria das inúmeras memórias escritas pelos émigrés ao longo do
século XIX.
A tópica interpretativa de Maria Antonieta como o bode expiatório do regime Bourbon,
conforme consolidado por Madame Campan, encontrou imediata aceitação não apenas entre os
émigrés, onde havia sido originalmente gestada, mas também, e mais importante, no novo
regime monárquico que havia sido restaurado na França. A ressignificação de outras figuras do
regime Bourbon destituído era interessante para o novo regime monárquico. Maria Antonieta,
nesse sentido, era a figura ideal para essa função: ela era popular entre os nobres exilados e
entre a nobreza europeia, tanto na Inglaterra, como na Itália, Áustria e Suécia, não detinha poder
político real e ainda assim foi perseguida e executada. Essa narrativa foi extensamente
explorada pelo governo de Luís XVIII - antigo Conde de Provença - e mais marcadamente por
Carlos X - antigo Conde d’Artois e amigo íntimo de Maria Antonieta. Mais do que isso, a
reabilitação de sua figura – junto com a de outros membros da realeza e do chamado “período
de Versalhes” – funcionou no cenário mais amplo de busca por um imaginário e de uma tradição
que glorificasse o passado monárquico Bourbon. Dessa maneira, o bode expiatório servia a
diversos objetivos: não apenas isentava a última rainha, e a família real como um todo, de
qualquer responsabilidade como também revitalizava e divulgava a narrativa dos excessos de
violência e das atrocidades cometidas durante a Revolução. Mais do que isso, essa análise
servia, conforme se desenvolveu e foi exacerbada ao longo da década de 1830 e 1840, para
aproximar a França das potências imperiais reunidas no Congresso de Viena, sobretudo o
Império Habsburgo – família da qual Maria Antonieta advinha.
A Rainha Mártir
Conforme dito anteriormente a interpretação de Maria Antonieta como bode expiatório
foi gestada entre os círculos dos nobres franceses que fugiram da Revolução. Não é, portanto,
inesperado que o livro de memórias de Madame Campan tenha encontrado grande aceitação
nesses círculos. Muitas dos leitores nobres, na verdade, figuravam no relato e conheciam a
própria autora. Não é também nem um pouco surpreendente que nas décadas de 1820 e 1830,
antes e depois da Restauração Monárquica, diversos livros de memórias tenham sido publicados
por antigos aristocratas da Corte de Versalhes. Alguns deles eram de autoria de membros do
entourage de Maria Antonieta, como a Viscondessa de Fars (que publicou suas memórias em
1830), a Condessa de Genlis (em 1837) e a Baronessa d’Oberkirch (em 1839).
A análise estabelecida por Madame Campan nesses casos foi desenvolvida e alargada,
abarcando novos temas, novos argumentos e visando novos objetivos. Dessa maneira, a
interpretação de Maria Antonieta como bode expiatório foi sendo sucessivamente expandida e
a imagem da rainha foi sendo resignificada de maneira a retratá-la como a vítima dos excessos
da Revolução. Ela então muito rapidamente se tornou a mártir da Revolução francesa, caluniada
e agredida de maneira ignóbil pelos panfletos e perseguida e morta injustamente. Fars, Genlis
e d’Oberkirch em suas memórias são enfáticas nessa postura. O exame que realizam sobre a
corte de Versalhes pode ser caricatural – não podemos esquecer que ambas, como a maior parte
dos nobres que escreveram sobre o período, eram jovens e se enfureciam com as convenções,
regras e rituais arraigados da corte -, mas são unânimes em retratar Maria Antonieta como uma
mulher bem intencionada, movida pelo amor a sua família e filhos. Quaisquer erros que possa
ter cometido são perdoados pelo seu fim, considerado por elas trágico e arbitrário, na guilhotina.
A alegoria da rainha mártir, além disso, serve como um protótipo de justificativa para todos os
aristocratas da geração de Maria Antonieta, que se viram perseguidos pela Revolução.
Ademais, o tom empregado nesses escritos que estabelecem a figura da rainha mártir é
de claro saudosismo. Os nobres exilados tinham uma visão nostálgica da corte de Maria
Antonieta, sobretudo quando no Petit Trianon: não imperavam as regras absurdas e sem sentido
de Versalhes, as hierarquias sociais não eram rigidamente observadas, a espontaneidade e a
naturalidade de gestos e sentimentos eram estimuladas. Faz-se presente em grande parte a visão
do idílio campestre e bucólico que a rainha havia estimulado e buscado criar em seu retiro
pessoal no Parque de Versalhes. Que esse cenário fosse uma ilusão de espontaneidade,
obsessivamente criada, e que pouco tivesse a ver com a realidade, seja a da corte ou do ethos
da realeza e da aristocracia e, sobretudo, com o da vida do campo. Não que houvesse um desejo
de abdicar de seus cargos e privilégios; o que os aristocratas do círculo íntimo de Maria
Antonieta buscavam eram se separar, ao menos temporariamente, do cargo oficial que eram
obrigados a desempenhar publicamente, colocando o foco de suas vidas na esfera privada que
a rainha estava determinada a criar no Petit Trianon. Embora Maria Antonieta possa ter sido
infeliz ao ser obrigada a desempenhar o papel de Rainha da França e desejar escapar de sua
posição e de suas obrigações, ela certamente não desejava ser menos que uma rainha, assim
como seus seguidores não desejavam ser menos do que nobres. Ela queria ser, porém, o tipo de
rainha que desejasse e não o tipo que a etiqueta e cerimonial de Versalhes ditavam que ela
deveria ser na esfera pública.
A defesa dessa espécie de transgressão à rígida sociedade de corte, mas dificilmente
uma rebelião política consciente e profunda, é a base da ressignificação de Maria Antonieta
como rainha mártir. Jacques Revel muito bem articulou o dilema de Maria Antonieta e seus
seguidores ao escrever sobre a pretensão em conduzirem suas vidas como desejavam e em criar
um espaço que fosse apartado do teatro das exibições públicas de Versalhes. Para Revel, Maria
Antonieta “esqueceu a máxima de que a realeza não tinha direito a uma vida privada” dentro
da sociedade de corte (REVEL, 1991, p. 118). Revel continua analisando o desejo da Rainha
de criar um espaço privado e controlado por ela, simbolizado pelo Petit Trianon e defendido
enfaticamente nas memórias escritas por suas partidárias na década de 1830:
Nesse caso, a encenação de uma esfera privada se situa na origem de
uma degradação da representação da corte que se tornou trivial, até
mesmo ridícula. Era uma piada, talvez até mesmo um ultraje, a Rainha
e suas damas brincando de ser camponesas ou leiteiras com seus
baldes de porcelana de Sévres e seus equipamentos dourados.
Claramente podemos ver a indignação social gerada a partir daí e
antecipar a dramática distinção entre a Rainha e seu entourage
brincando de ser aldeões e a realidade enfrentada pela população
francesa. É muito fácil, portanto, imaginar Maria Antonieta,
estilosamente vestida como uma camponesa, proferindo a frase
apócrifa: “Que comam brioches”! (REVEL, 1991, p. 123)
Essa visão crítica do comportamento da corte particular de Maria Antonieta,
obviamente, não se encontra nas memórias. Pelo contrário, essa conduta é justificada e
defendida. Criar uma esfera particular onde uma pretensa e encenada naturalidade e
espontaneidade dominassem era algo a ser elogiado como uma espécie de reação as intrigas e
a politicagem que dominava a corte. O Petit Trianon e o que ele representou em matéria de
inovação de comportamento aristocrático é ferrenhamente louvado e serve também como
munição para o argumento de que Maria Antonieta foi injustamente atacada, humilhada,
julgada e executada pela Revolução.
Estabelecida como um desenvolvimento exagerado da tópica do bode expiatório, a
interpretação de Maria Antonieta como rainha mártir encontrou aprovação imediata no reinado
de Carlos X. Tendo participado, junto com sua esposa, do círculo íntimo da antiga rainha e
frequentado o Petit Trianon com frequência, essa visão idílica e sentimental sobre o período
certamente agradou o monarca. Carlos X de fato tinha em sua biblioteca pessoal no Louvre
cópias autografadas das memórias da Condesa de Genlis e da Baronesa d’Oberkirch. Além
disso, outra figura bastante elogiada e reinterpretada nesses escritos era Gabrielle de Polastron,
Duquesa de Polignac, e melhor amiga de Maria Antonieta. Como líder do partido
ultraconservador e primeiro ministro do reinado de Carlos X, o Príncipe de Polignac – filho de
Gabrielle – apoiava essa interpretação e a estimulava na diminuta corte.
Empenhado em politicas de restituição e indenização dos monarquistas que haviam
perdido suas propriedades ao saírem da França, o regime ultraconservador e ultramonarquista
de Carlos X encontrou nessa interpretação de Maria Antonieta um exemplo poderoso a ser
usado para acusar a Revolução de ter cometido crimes imperdoáveis; entre eles ter perseguido,
humilhado e executado a última rainha da França que foi martirizada pelo banho de sangue do
período do Terror. Sendo fortemente endossada pelo regime Bourbon restaurado, essa visão
encontraria partidários ainda durante a Segunda República e ganharia novo gás durante o
Segundo Império, agora com a ação institucionalizada da Imperatriz Eugênia, esposa de
Napoleão III.
O modelo idealizado do Segundo Império
Com a queda da monarquia Bourbon restaurada e o golpe de estado dado pelo presidente
Luís Napoleão Bonaparte (sobrinho do antigo imperador), que se proclamou imperador sob o
nome de Napoleão III, a reinvenção de Maria Antonieta como ícone do passado monárquico
francês tomou novos rumos. Aproveitando as tópicas anteriores, de bode expiatório
desenvolvida na rainha mártir, o novo regime imperial se apropriou da memória institucional
do período do absolutismo como forma de criar uma tradição que justificasse seu direito ao
trono. Retomando hábitos tanto do império napoleônico como da Corte de Versalhes, Napoleão
III e sua esposa, a Imperatriz Eugênia, buscavam estabelecer uma nova dinastia que fosse
claramente definida e institucionalizada pelos seus marcos alegóricos de representação do
poder.
Desde o início de seu reinado, Napoleão III usou a moda para servir seu programa
político. Em fevereiro de 1853, ele oficializou o cerimonial de corte por meio da retomada da
obrigatoriedade de trajes específicos para se frequentar a corte: ninguém, sejam súditos,
aristocratas ou enviados de outros países, seria recebido sem estar em trajes formais de corte
ou em uniformes militares. As mulheres, especificamente, como no século XVIII, tinham regras
estritas de vestuário: crinolinas armadas, espartilho e corpete, mangas pendentes e rendadas. O
casamento do imperador com Eugênia Montijo, Condessa de Teba, em 1854, foi recebido com
consternação tanto por franceses quanto por ingleses e austríacos, que não queriam e nem
esperavam que o monarca desposasse uma espanhola, ainda mais não pertencente à casa
Habsburgo. Sensível a isso, o casal imperial buscou, imediatamente, criar um ambiente elegante
e uma corte formal e regrada onde fossem o centro da sociabilidade e do poder político
(BAGULEY, 2000, p. 50-58). E a moda ajudou a estabelecer o tom distintivo do casal e da
nova corte francesa. A busca de Napoleão III para restabelecer Paris como a capital do mundo
civilizado provocou um aumento acelerado na exibição elaborada do poderio industrial e
modernizador, além da pretensa supremacia cultural e política da França. A sobriedade que
havia marcado ambos os reinados anteriores (Luis XVIII, Carlos X e Luís Felipe Orleans) deu
lugar a extravagantes bailes estatais, paradas militares planejadas, recepções pomposas de
dignitários estrangeiros e ostensivas apresentações de novas óperas e balés patrocinados pelo
Império. A suntuosidade, efetivamente, retornava no lugar da sobriedade burguesa inaugurada
pela Revolução. (BAGULEY, 2000, p. 23)
Saias amplas com crinolinas e cinturas espartilhadas já eram tendência quando Eugênia
assumiu sua posição imperial na França; no entanto, ela popularizou e estabeleceu a crinolina
e, às vezes, é erroneamente creditada coma a criadora da peça. Ela escolheu muito cedo Charles
Frederick Worth como o criador principal de seus trajes, em um momento em que a alta costura
florescia e o sistema da moda já estava plenamente estabelecido. Mais do que isso, a moda era
entendida e consumida como uma ferramenta legítima de expressão individual e de distinção.
Worth, com o patrocínio imperial, se tornou o maior dos criadores da moda feminina francesa
no século XIX, vestindo não apenas a imperatriz, mas outros chefes e mulheres proeminentes
da Europa. Worth impulsionou, além disso, a popularização e o domínio das crinolinas e
espartilhos para as classes altas burguesas: movimentos rápidos eram impossíveis e um andar
controlado, essencial para manter a saia volumosa no lugar, era necessário mantendo o corpo
sob controle restrito. Além disso, ele registrou todos os gostos de Eugênia em cores e contornos,
e suas preferências supostamente anulavam aquelas de outros membros da corte, que também
eram seus clientes.
Com isso em vista, o paralelo entre Eugênia e Maria Antonieta fica bastante óbvio.
Ambas haviam tido um envolvimento particular e íntimo com os afazeres da moda, ambas
patrocinaram classes de criadores de estilos e gastavam somas altas com trajes e adornos.
Principalmente, ambas souberam usar sua aparência e a maneira como cobriam seus corpos
como instrumentos de poder, seja privado – relacionado com sua afirmação pessoal dentro de
uma corte estrangeira – seja como símbolo do poderio dos regimes aos quais eram membros
privilegiados. Essa ligação entre ambas é ainda mais clara quando analisamos a ação efetiva de
Eugênia em relação a memória e a interpretação de Maria Antonieta como ícone da França. Ela
não só encomendou fantasias de Maria Antonieta para bailes de máscaras, como patrocinou
diversos produtos da Maison Worth que se relacionavam direta ou indiretamente com ela – uma
seda em um tom específico de azul foi denominada Maria Antonieta e um perfume chamava
Petit Trianon.
A relação da Imperatriz com o retiro campestre da antiga rainha é ainda mais direto:
praticamente abandonado desde a Revolução, o palacete, seus jardins ingleses e o hameau (a
pitoresca fazenda modelo) foram inteiramente reformados a mando de Eugênia e o espaço
tornou-se, mais uma vez, um retiro idílico, funcionando não apenas como residência de verão
de Eugênia, mas, junto com o Palácio de Versalhes, palco privilegiado dos principais grandes
eventos da corte. O Petit Trianon tornou-se, ao longo do segundo império, sob a influência
direta da Imperatriz, um local de prestígio: em 1867 sediou o baile de gala de abertura e
encerramento da Segunda Exposição Universal. Essa busca do governo imperial de Napoleão
III por um passado, por uma tradição monárquica pretensamente gloriosa como forma de
validar sua pretensão ao trono (ocupado por meio de um golpe de estado), enquadra-se num
projeto mais amplo de justificação do retorno ao modelo imperial. Nesse sentido, Maria
Antonieta, como figura proeminente e que já contava com uma tradição de ressignificação
estabelecida desde sua execução, foi privilegiada nesse processo.
A tópica da rainha mártir, nas mãos de Eugênia – com o apoio da Maison Worth e dos
diversos arquitetos e decorados contratados para a reforma do Petit Trianon – desenvolveu-se
para tornar-se um modelo de feminilidade a ser seguido pelas damas refinadas de origem
burguesa, mas que cotejavam adotar hábitos e comportamentos considerados aristocráticos.
Esse modelo de feminilidade, porém, era uma reinvenção modernizada e, amplamente,
burguesa da tradição aristocrática do século XVIII, pouco tendo realmente dos hábitos
aristocráticos do período. Ainda que na aparência fosse adotado o controle e regramento do
corpo, além da exibição pública regida por estritos protocolos de etiqueta, era estimulado a
ideia idealizada de transparência e espontaneidade de sentimentos, advindo do legado burguês
da Revolução e do ideário rousseauniano. O que se percebe então, ao longo do Segundo
Império, é a tentativa de modernização das tradições aristocráticas francesa e de um passado
monárquico representado de maneira grandiosa. Ou seja, “por meio das aparências, pode se
perceber que o Segundo Império foi construído sobre bases que buscavam o moderno, porém o
faziam seguindo algumas trilhas que resgatavam a tradição.” (DEBOM, 2015, p. 193) E uma
dessas trilhas foi o desenvolvimento da retórica de reabilitação de Maria Antonieta e o seu
estabelecimento institucionalizado como ícone da França do século XVIII.
Considerações finais
A análise de uma retórica de reabilitação de figuras proeminentes da história nacional
da França, conforme proposto por Antoine Lilti, é um processo sedimentado no país, típico do
século XIX e início do século XX, mas que encontra ecos até os dias de hoje (LILTI, 2018, p.
8). Nesse sentido, Maria Antonieta ocupa um espaço distinto e bastante específico nesse
processo. Não apenas por não ser francesa, mas, sobretudo, por ter sido uma personagem
bastante impopular quando em vida e a única rainha da França a ser julgada e executada. As
tópicas presentes nessa retórica, além disso, iniciam-se imediatamente após sua morte e se
estabelecem muito precocemente. Nas três tópicas iniciais propostas - bode expiatório do
absolutismo, rainha mártir da Revolução e modelo de feminilidade imperial – podemos
observar a fundação de uma memória em disputa acerca não apenas de sua figura e de suas
representações, mas também a disputa por uma narrativa canônica sobre o último reinado da
monarquia absolutista.
Além disso, essa retórica ilustra muito bem o conflito entre a busca por uma tradição
aristocrática e a modernização burguesa e industrial que marcam a França oitocentista. Se por
um lado Maria Antonieta poderia ser interpretada pela chave de leitura revolucionária – ou seja,
a de representante máxima dos excessos e extravagancias da Corte de Versalhes – os diversos
regimes da primeira metade do século XIX estimulavam a institucionalização de uma
interpretação favorável a ela e que a reabilitasse como ícone da França. Essa retórica de
reabilitação sobre Maria Antonieta, ao longo do século XIX, expõe de maneira direta e
personalizada o choque entre modernidade e tradição, típico do Oitocentos francês. Reafirma,
além disso, a idealização e a busca pelas tradições aristocráticas, porém agora recodificadas e
adaptadas para a sociedade tipicamente burguesa e industrial que se instituía no período.
Seja de maneira positiva ou negativa, porém, é inegável o encanto e fascínio que sua figura
exerce até hoje na França.
Referências bibliográficas:
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DEBOM, Paulo. Sob o império da aparência: moda e imagem na França de Luís Napoleão
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Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2015.
GOODMAN, Dena, ed. Marie-Antoinette: writing on the body of a queen. Nova York:
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LILTI, Antoine. A invenção da celebridade (1750-1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
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ROGERS, Rebecca. Les demoiselles de la Légion d’Honneur. Paris: Perrin, 1993
WEBER, Caroline. Rainha da moda: como Maria Antonieta se vestiu para a Revolução. Rio
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