A Rainha Secreta

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Coletânea de contos de fantasia, horror e ficçao científica do escritor carioca Miguel Carqueija.

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A RAINHA SECRETA RAINHA SECRETA RAINHA SECRETA RAINHA SECRETA RAINHA SECRETAAAAAe Outras Históriase Outras Históriase Outras Históriase Outras Históriase Outras Histórias

MiMiMiMiMiguel Carqueijaguel Carqueijaguel Carqueijaguel Carqueijaguel Carqueija

Capa: Cerito2012

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ÍNDICEÍNDICEÍNDICEÍNDICEÍNDICE

Prefácio

A Rainha Secreta

A Casa do Medo

O Que Existe Entre as Estações do Metrô

Não É Humano

A Nave do Silêncio

Não Pintem o Rosto do Palhaço

Hiperespaço

Urros no Porão

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PrPrPrPrPrefácioefácioefácioefácioefácio“Uma Literatura A“Uma Literatura A“Uma Literatura A“Uma Literatura A“Uma Literatura Avvvvventurenturenturenturenturesca e Edificante”esca e Edificante”esca e Edificante”esca e Edificante”esca e Edificante”

A história que dá o título ao quarto volume da Coleção Terra Incognita,nos mostra uma narrativa de contexto medieval-tecnológico, situada emtempo e local indeterminado, servindo como pano-de-fundo para um tri-ângulo amoroso entre duas mulheres e um aventureiro. Se fosse possívelresumir “A Rainha Secreta” em poucas palavras, talvez esta fosse uma boatentativa. Mas tão incompleta quanto qualquer esboço de definição.

Ainda mais se falamos de Miguel Carqueija. Autor que privilegia a me-lhor tradição de se contar uma história divertida e rica em valores morais.Carqueija vem construindo ao longo de sua obra de vários contos, um universodefinido de assuntos e personagens, de maneira coerente e criativa.

O tema de mulheres fortes, destemidas, mas não menos femininas,vem constituindo um de seus tópicos mais bem explorados e recorrentes. “ARainha Secreta” vai mais longe nesta linha, mostra Astra, uma rainha clan-destina, que perdeu o trono para uma república autoritária, e buscarecuperá-lo. Há também uma “heroína” mais próxima da nossa realidade,Ilde, uma garota inteligente e sensual que além de ajudar Astra em seu ob-jetivo político, divide o coração de Mont, o Aventureiro Errante, outro per-sonagem emblemático na ficção de Carqueija: idealista, com princípiosmorais bem definidos e com apurado senso de humor.

A história eu não vou contar. Vale a pena você ler do começo ao fim, ese você não conhece as histórias de Carqueija verá que não estou apenasvendendo o peixe: ele realmente diverte, entretém, além de mostrar solida-mente a visão de mundo do autor e de como ele concebe a arte e a literatura.Um veículo para edificar, mostrar os valores que perpassam a mente doautor, e o faz acreditar melhorar o leitor, fazê-lo sair enriquecido filosóficae moralmente ao fim do texto. E se ele tem todos esses recursos — e acreditaser possível este tipo de criação artística — seu texto por si só vale umaolhadela.

Mas Carqueija não pára por aí e seus outros contos aqui incluídos nosmostram um amplo painel da ficção aventuresca e edificante desse autorcarioca. Ele incursiona em narrativas neo-lovecraftianas como nos conhe-cidos contos “O Que Existe Entre as Estações de Metrô” e “Não é Humano”— este último, a meu ver, seu melhor conto já escrito em muitos anos.

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O autor também apresenta dois novos contos inspirados pelo velhocavalheiro de Providence. Em “Urros no Porão”, Carqueija incursiona nouniverso ficcional da cidade de Pedra Torta, onde ao lado do escritor GersonLodi-Ribeiro vem desenvolvendo interessantes relatos lovecraftianos comsotaque caipira.

Já em “A Nave do Silêncio”, um astronauta desperta no meio de umaviagem interestelar para descobrir que os outros 300 tripulantes da JanusIII simplesmente desapareceram de seus casulos de hibernação... Após al-guns percalços, consegue reprogramar o computador de bordo para quelhe mostre os registros do que de fato ocorreu aos demais tripulantes. Aoque parece, as forças de C’thulhu voltaram a atacar, e dessa vez em plenodomínio da FC hard!

Há outra aventura espacial no conto “Hiperespaço”. Próximo à chega-da a Alpha-Centauri dois astronautas duelam pelo amor de uma mulher.Não há traços de Lovecraft aqui, mas sim da boa e velha dualidade bomcontra o mau, tão cara à prosa carqueijiana.

Saindo em definitivo do ambiente dos monstros inomináveis deC’thulhu, o autor apresenta em “Não Pintem o Rosto do Palhaço”, a diverti-da história de um sujeito na miséria que arruma um emprego comomaquiador de um palhaço em um circo. Ele não se dá muito bem com opalhaço, estrela do espetáculo. Quando a companhia chega à cidade deHibernópolis para tirar o mágico Cartola da hibernação, o palhaço Amofinamorre envenenado. Adivinhe quem é o único suspeito? E o assassino? Numsuspense crescente e divertido, Carqueija nos embrenha nesta história in-trigante.

Miguel Carqueija é um dos autores mais produtivos e participativosda chamada comunidade brasileira de ficção científica. Por cerca de dezanos, ele é o autor mais publicado nas revistas de fãs (os fanzines), e jávenceu concursos literários promovidos por essa comunidade.

Outra característica marcante de sua trajetória é a variedade de temase enredos que ele já desenvolveu. Partindo de sua visão cristã de mundo,cria seus personagens bem definidos dentro deste contexto, além dos cená-rios, as situações, as aventuras e locais por ele imaginados, como por exem-plo, o espaço profundo, os terrores interiores de mitos e lendas imaginárias,crônicas do cotidiano num cenário futurista. Tudo isso faz de Carqueija,um autor surpreendente, variado e por isso mesmo muito lido e solicitadoentre os leitores que já o conhecem.

Sim, agora chegou a sua vez.

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E A Rainha Secreta reúne todos os elementos do universo de Carqueija.Elementos que fazem dele um autor tão interessante a ser descoberto. Uminteresse tão grande quanto o prazer da melhor tradição das boas histórias,como se contadas ao lado de uma fogueira numa noite de inverno. E essatradição resiste maravilhosamente na prosa de Carqueija.

Leiam e comprovem.Marcello Simão Branco

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CAPÍTULO ICAPÍTULO ICAPÍTULO ICAPÍTULO ICAPÍTULO IComo Mont se EnComo Mont se EnComo Mont se EnComo Mont se EnComo Mont se Envvvvvolvolvolvolvolve Naquilo que Não Desejae Naquilo que Não Desejae Naquilo que Não Desejae Naquilo que Não Desejae Naquilo que Não Deseja

Era uma tarde extremamente quente e abafada quando cheguei, can-sado, à velha Estalagem do Bicudo, no sopé do Pico Malvado. Lá estava aestátua da ave de rapina a nos contemplar sinistramente, no frontispício doalbergue; lá estavam as marcas nas velhas paredes, das descargas de chico-tes elétricos em tenebrosas batalhas do passado. Eu lá cheguei, porém, dese-joso de paz e tranqüilidade; queria apreciar o luar azul que, daquelas para-gens de Cantolândia, é incrivelmente belo; queria refazer as forças antes departir para novas aventuras.

Como quer que seja, abri a porta já meio desconjuntada e mirei osdegraus de pedra rosa, observando num relance as pessoas que lá se encon-travam. Junto à parede da direita, a portaria onde a velha Grimes aindatrabalhava, anotando em seu livro com uma antiquada pena de gansão. Nosalão em frente, vários hospedes ou viajantes ocupavam poucos lugares dasmesas encardidas. O bufão com chapéu de plumas; o tocador de violetas; agarota disponível e o negociante que com ela brindava; o casal de velhos, nocanto mais escuro; o homem com o filho pequeno e um palrador no ombro.

Fechei a porta rangente, desci os degraus e dirigi-me à Grimes:— Boas luas, Grimes! Recorda-te de mim?— Como não, Mestre Mont! Oh! Os fados nos sorriem de novo! Como

esperar, depois de tantos anos, a tua volta, ó Aventureiro Errante? Tivestemuitas aventuras neste mundo de Deus?

— Um pouco, ó estalajadeira. Não muitas. E o teu marido como está?— Perguntei, desviando o assunto.

— Bem, ó ilustre Paladino. Acredito que ele esteja tão bem quantopossa estar um varão com três palmos de terra por cima...

— Não! Queres dizer então que ...— Sim, sim, aventureiro. Teânio morreu há já uns três anos. Estavas

sem dúvida muito longe...— Sim. ó Grimes. Eu estava na Península, em penosos trabalhos.— Eu imagino, ó Paladino, o quanto Teânio teria gostado de te rever...Enquanto assim falava ela arregalou a vista e eu percebi que olhava

algo na direção da porta. Segui seu olhar e vi, com espanto, quatro esbirros

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com seus uniformes azuis e capacetes cor de cobre. Eles desceram rapida-mente os degraus e, em meio ao súbito silêncio que caíra no local, acerca-ram-se dos dois velhos, que se encontravam visivelmente apavorados.

O Oficial Vermelho do grupo tonitruou a voz:— Então, vermes! Onde ela está?Os dois infelizes responderam com tremores. O homem, cujos cabelos

eram escassos e cinzentos, ergueu-se e fez um gesto conciliatório. De ondeeu me encontrava não podia escutar o que o velhinho tentava explicar. Ouviporém, e muito bem, a bofetada que ele recebeu.

Ah, as limitações de um Aventureiro Errante! Não sendo clandestino,mas legalizado, como eu poderia interferir com as ações de soldados a servi-ço do Governo? Os privilégios que eu tinha, e que me abriam as portas detodas as vilas e cidades, seriam imediatamente cassados. E eu próprio passa-ria a ser um fugitivo. Hoje era uma lenda errante. Amanhã, um nada...

— Oh, Deus! — Grimes soluçou e retirou-se rapidamente. As outraspessoas debandaram, enquanto os dois velhos eram puxados para o centroda sala, mesas eram derrubadas e o espancamento tinha início. E eu, prote-gido pelas minhas insígnias, a tudo assistia, paralisado de horror.

-Parem!Nunca me esquecerei desse grito. Olhei para o alto da escadaria no

fundo do salão. Todos olharam. E lá estava ELA.Era uma moça alta, de compridos cabelos azuis que formavam ondas

sobre seus ombros. Um rosto longo, de feições nobres e um olhar firmecomo raras vezes eu vi num ser humano. Em hábito pouco comum fora dascamponesas, usava calças compridas; seu costume platinado era elegante,mas o que mais chamava atenção era a capa lilás e lustrosa que ela usava.

Após a paralisação inicial a cena voltou a se animar. A garota da capagritou:

-Acabem com essa covardia! É a mim que vocês querem, então ve-nham me pegar!

O oficial vermelho fez um gesto e dois dos esbirros correram para aescada, já puxando seus bastões. A jovem esperou-os no alto da escada, semdemonstrar medo.

Quando eles chegaram perto, deu-se uma cena que eu jamais poderiater esperado e que, certamente, levarei para o túmulo. A garota da capamoveu-se para a frente — literalmente mergulhou sobre os dois homens,enlaçando-os e provocando a queda tripla de mais de vinte degraus. Rola-ram os três até embaixo. E aqui Deus me castigue se eu estiver mentindo,

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mas um Paladino de Estrada como eu possui o raro treinamento de percebere acompanhar os detalhes de cenas rápidas. E afirmo que a garota manipu-lou a queda, de maneira a evitar machucar-se e, ao mesmo tempo, causar omáximo em matéria de contusões e ossos quebrados nos seus adversários.Afinal, no sopé da escada, deixando os dois rufiões em petição de miséria egemendo de dor, ela se ergueu ilesa e preparou-se para enfrentar os doisrestantes. O terceiro esbirro-soldado avançou, mas a pequena, com os doisbastões tirados dos outros, fez voar longe o bastão do seu novo adversário equebrou-lhe a cabeça sem maior dificuldade. Restava o bigodudo oficialque, perplexo, sacou a pistola psíquica. A moça tirou então de sua tiracolouma arma semelhante, com seu cano largo e curto. Os jatos de luz amarelaforam acionados pelos duelistas e, por um instante, senti pena da valentemocinha. Todos sabem como são poderosos e implacáveis os oficiais nomanejo de suas armas de amplificação de ondas mentais. Todo o ódio doOficial Vermelho estava agora dirigido contra a mulher que ousava desafiá-lo. Pessoas comuns, mesmo armadas com armas idênticas, não poderiamjamais enfrentar semelhante ataque. Mas eu já deveria ter entendido que afigura de capa não era uma pessoa comum. Durante alguns minutos o du-elo neurônico manteve-se em estado de equilíbrio, o homem com o rostoalterado de ódio e ferocidade, a mulher apenas com determinação e cora-gem. Então, notei as gotas de suor na testa do oficial governista. Logo ele setornou cada vez mais transtornado, transido em esgares de dor, ofegante. Agarota firme. Finalmente, dobraram-se os joelhos daquele homem fortíssimoe ele caiu.

— Piedade! — ainda gritou, incrédulo e apavorado. Ela, porém, sócessou a pressão psíquica quando o viu estendido no chão, sem sentidos.

Um pouco antes eu notara que o homem da cabeça quebrada recupe-rava aos poucos a consciência e arrastava-se até um dos bastões esquecidosno chão. Abraçados a um canto e amedrontados, os dois velhos nada viam.E foi aí que algo dentro de mim impeliu-me para a frente. Tomei então aatitude que até então buscara evitar e que iria mudar minha vida a partir deentão.

Intervi nos acontecimentos.O soldado ergueu-se de chofre e atacou com o bastão. Tendo pulado o

obstáculo de uma cadeira caída, segurei-lhe o braço no instante em que amenina, alertada por algum ruído, voltava a cabeça. Foi tudo muito rápido.Torci o braço que, no instante seguinte, iria golpear a cabeça da jovem;puxei o soldado, que me viu bem, e acertei-lhe um soco no queixo. Como

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ele já estava meio desacorçoado pela pancada anterior, caiu desacordadosem maiores objeções.

Senti-me paralisado, estarrecido com minha própria audácia. Eu jáenfrentara muitos rufiões, bandidos e estupradores na minha vida; nuncaporém agredira um serviçal da República. Aquele simples gesto, se divulga-do, bastava para me transformar num fora-da-lei. Eu havia atravessado alinha.

Mas não houve tempo para refletir no caso. Uma suave mão pousouno meu ombro direito.

— Muito obrigada, Paladino da Justiça. Não sabe o quanto eu lhe agra-deço — murmurou a moça.

— Não sei se deve me agradecer, Senhora. Eu não poderia ter feito oque fiz.

— Entendo o que quer dizer. Mas não se perca em escrúpulos banais.Você fez o que era certo. Qual é o seu nome?

— Chamo-me Mont.— É um belo nome, Aventureiro — e assim ela soube o meu nome,

mas não disse o próprio.Os dois anciães finalmente tomaram coragem e se aproximaram, abra-

çando-se à sua jovem heroína.— Graças a Deus! — disse a mulher, que devia ter umas 4.000 luas

aproximadamente. E voltando-se para mim : — Quem é ele, querida?— Apresento-lhes o Mestre Mont — respondeu ela, sorrindo, conti-

nuando com aquelas apresentações unilaterais.O casal me cumprimentou efusivamente e ela mais efusivamente ain-

da, beijando-me ambas as faces. Esse gesto pareceu causar certa admiraçãoaos velhos, mas eu me sentia incomodado por outro motivo:

— Senhora, sei que não está obrigada a declarar seu nome ou de seusacompanhantes. Mas isso não é da minha conta. Aconselho, porém, a quenós quatro apressemos a nossa retirada, antes que eles recuperem os senti-dos ou que cheguem reforços.

— Eu já ia dizer isso, Paladino. Iremos agora mesmo.— Aqui, portanto, nos despedimos, Senhora sem nome — observei

ironicamente.— Oh, não, Mont. Você irá comigo.— Senhora, eu não posso. Tenho o meu próprio caminho.— Seu caminho agora é o meu. Ou você duvida? — e assim dizendo

ela apontou-me a arma psíquica.

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Observei aquela arma presa nos dedos anular e médio de sua sinistra.Sim, ela era sinistra ou canhota, coisa rara entre as mulheres. Tentei pensarrápido. Armas psíquicas não agem com rapidez extrema. Mesmo que elaacionasse o jato eu teria tempo de pegar a minha própria pistolamentalizadora e responder ao ataque. Nós, Paladinos — Aventureiros deEstrada, somos altamente treinados com esses armamentos. Eu provavel-mente seria capaz de derrotar o próprio oficial dos esbirros. Mas derrotaraquela mulher? Depois do que eu tinha assistido, assaltava-me a dúvida.Tentei então negociar:

— Eu sou um Aventureiro Errante. Meu caminho é sempre isolado...— Tolices! — a pele de flor, azul-claro, brilhava estranhamente na-

quele ambiente mal-iluminado — Muitos de vocês são casados e carregamaté filhos, ou andam em duplas, trios e quartetos.

Não achei que fosse a hora adequada para discutir questões de ortodo-xia da profissão. Estava procurando algum argumento quando outra mão,já não tão suave, pousou no meu ombro:

— Mestre Mont, deves acompanhá-la. Ide com ela, sem demora. Aju-da-a, protege-a. Eu sei quem ela é. Ide-vos embora imediatamente, é peri-goso ficar.

Grimes retornara para me aconselhar. Eu sentia um crescente nervo-sismo, a cada segundo que permanecíamos naquele lugar.

— Está bem, eu irei. E você, que fará?— Chamarei a polícia. Pobre de mim se não o fizer! Socorreremos

esses homens. Portanto, correi! Ganhai distância!

CAPÍTULO IICAPÍTULO IICAPÍTULO IICAPÍTULO IICAPÍTULO IIComo Ilde se TorComo Ilde se TorComo Ilde se TorComo Ilde se TorComo Ilde se Torna a Alena a Alena a Alena a Alena a Alegggggrrrrre Pare Pare Pare Pare Participante de um Seqüestrticipante de um Seqüestrticipante de um Seqüestrticipante de um Seqüestrticipante de um Seqüestrooooo

Corremos para os fundos da estalagem, conduzidos por Grimes e porIlde, uma das auxiliares. Passamos em meio às assustadas galinhas e Grimesordenou a Ilde que fosse com os velhos buscar o transporte dos hóspedes. Arapariga permaneceu comigo, vigiando-me com sua arma. Eu ainda pensa-va numa possível reação. Poderia tomar a arma de uma pessoa normal.Aquela, porém, em nenhuma fração de segundo baixava a guarda dos olhose dos músculos. Eu havia percebido isso e não me decidia a reagir. Ou tal-vez, no fundo, me agradasse uma companhia tão intrépida e impetuosa e aomesmo tempo tão feminina.

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Parado ali, com o braço de Grimes enganchado no meu, contemplei assinistras penhas e os arrebites líticos do terrível Pico Malvado, com suasarestas traiçoeiras e seus boqueirões arrepiantes. Meu destino, pensei. Aon-de iremos, senão para lá? No lado oposto, no Grande Ouvido, fugiríamosmais facilmente.

Logo, pelo caminho de pedra que levava à estrebaria, veio o ruído doscascos dos focinhudos da hóspede, que vinham puxando o rodeiro, condu-zidos pelo casal de velhos; a pé e na frente, correndo com os pés descalços,vinha a jovem Ilde, com suas calças curtas de trabalho; chegou diante denós, meio sem fôlego e revoltos os cabelos, e falou de forma entrecortada:

— Fiz o melhor que pude... coitados, eles estão muito chocados... ali-mentamos os bichos às pressas...

— Eu agradeço muito — falei, afagando-lhe o rosto afogueado. Eladeu-me um olhar maroto.

— Oh, Mestre Mont! Não me agradeças! Ajudar um aventureiro... ealém disso, uma...

Grimes pousou-lhe dois dedos nos lábios.— Cala-te, Ilde. Pega tuas coisas e vai com eles. Tens cinco minutos. Se-

nhora, usa teu raio de poder sobre aqueles homens, para que durmam mais.— Se eu o fizer, Mont escapa. Mas não pusestes teus hóspedes e servi-

çais para vigiar?— Sim, ó Senhora. Acredito que dormirão bastante, mas não há tempo

a perder...— Bem. Se precisares, me avisas.Ilde já se precipitara para o interior do albergue e eu fitei Grimes, que

insistia em ficar de braço dado comigo. Toda aquela intimidade mal disfar-çava sua intenção de ajudar a hóspede.

— Para que Ilde vai nos acompanhar?— Será a guia, Mestre Mont. Não sabereis os melhores caminhos na

cordilheira...Observei os dois velhos que, afora as marcas dos sopapos, nada mais

exibiam senão perfeitas caras-de-pau de quem não sabe, não viu e nemouviu nada e nada tem a declarar. Mas, claro, viajar entre duas garotas —uma fogosa e uma majestosa — não me desagradava na verdade.

Logo Ilde voltou com uma mochila de couro, atenta à ordem de nãoperder tempo.

— Eu vou, Grimes. Fica com Deus. Volto quando puder.— Vai com Deus, Ilde. E cuida dos nossos hóspedes!

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Beijaram-se e Ilde subiu no banco de trás do rodeiro, deixando a portaaberta. A moça da capa fez-me um sinal imperativo. Fitando a arma aindaimplacavelmente apontada para mim, encaminhei-me por minha vez, es-coltado por Grimes.

Despedi-me rapidamente, esquecendo inclusive de corresponder à lin-guagem empolada das estalajadeiras (não que eu fosse obrigado a isso, eraapenas costume da região) e acompanhei aquela mulher misteriosa. Cujaidentidade, porém, eu já imaginava.

Sentei-me no centro do banco, entre as duas mulheres. A um sinal desua patroa, os dois velhos tocaram os focinhudos e a carruagem seguiu. Ildeainda ficou acenando alegremente para Grimes até que, na primeira curvado caminho, ela se perdeu de vista. Então Ilde colocou a mochila no colo,procurou e achou umas sandálias e calçou-as.

-Não tive tempo de trocar de roupa — observou, sorrindo-me com seurostinho sardento e juvenil.

— Lamento tê-la metido nessa encrenca — respondi secamente.— Oh, não se preocupe! O que a Grimes me pede eu atendo com

prazer! Eu estou muito alegre por ter vindo!— Você já não está usando linguajar de estalajadeira...Ela deu uma risada.— É! Só faço isso na presença da Grimes. Afinal eu sou estalajadeira

também. Mas não gosto muito de só falar na segunda pessoa...A conversa estava muito boa, mas resolvi esclarecer de uma vez um

assunto com a outra moça. Voltei-me para ela:— Afinal, quem é você?— Talvez você já saiba, ou adivinhe.— Eu acredito que sei. Posso falar na frente da Ilde?— Eu não me importo. Arrisque.— Você é a Rainha Secreta.— Parabéns, Mestre Mont. Eu sou. Chamo-me Astra. Sou a Rainha

Secreta de Miramar.— Desculpe-me, sei que não devia tê-la chamado de você...— Tolice, Mont! Sou uma fora-da-lei. Uma fugitiva. Meu poder não é

reconhecido. Como posso exigir que me tratem de alteza e outros fricotesdesse gênero? Me chame de você!

— Está combinado.Ilde bateu palmas de alegria. Era uma garota interessante.— Que bom que vocês estão se dando bem!

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CAPÍTULO IIICAPÍTULO IIICAPÍTULO IIICAPÍTULO IIICAPÍTULO IIIComo Astra,Como Astra,Como Astra,Como Astra,Como Astra, Mont e Ilde Praticam o Jo Mont e Ilde Praticam o Jo Mont e Ilde Praticam o Jo Mont e Ilde Praticam o Jo Mont e Ilde Praticam o Jogggggo de Gato e Ro de Gato e Ro de Gato e Ro de Gato e Ro de Gato e Ratoatoatoatoato

E o rodeiro seguiu em frente.A estrada começou a se tornar íngreme e impraticável para veículos

normais. Os focinhudos, orientados pelos condutores, começaram a galgaros degraus de subida enquanto Astra puxava a alavanca para inflar os ba-lões embutidos. Aos poucos a paisagem descortinou-se grandiosa e selvática.Imensas folhas de bagaços projetavam-se para todas as direções; pintacudoschilreavam alegremente e bandos de dirigíveis zebrados formavam nuvensvoadoras e barulhentas, por vezes atacados por corvinos de longos bicosnegros. Após algumas curvas do caminho, bordejando despenhadeiros me-donhos, a estalagem perdeu-se completamente de vista e uma floresta depalmeironas ensombreceu o nosso caminho. Do alto de uma rocha triangu-lar, um camaleão-torpedo projetou sua língua trífida em nossa direção, pro-vocador, enquanto mais acima, nos galhos finos e horizontais de uma árvo-re-das-tranças, uma família de asas-negras já cochilava, de cabeça parabaixo, pois as primeiras luas já brilhavam no céu, provocando reflexosazulados na bela pele de Astra.

Tínhamos permanecido silenciosos por alguns momentos, apreciandoa beleza da região, mas aí eu resolvi reencetar a conversação:

— E eles, quem são?— Meus preceptores. Leil e Wagner Fulquetin. São muito fiéis, sabe?— Calculo que sim.Voltei-me para Ilde:— Não teme por Grimes?— Oh, não! Ela é muito esperta! E conhece muitas autoridades... para

todos os efeitos ela nada podia fazer. Se quatro esbirros foram derrotados...— E você? Como explicará o seu sumiço?— Não há o que explicar. Ajudantes de estalagem vêm e vão, vão e

vêm... — fez um gesto vago e deu uma alegre gargalhada, meio sem motivo.— Sigam pela esquerda! — orientou Ilde pela corneta acústica, indi-

cando aos condutores uma passagem mais estreita e que descia, uma ala-meda entre grandes árvores.

Observei Astra, ao meu lado. Uma bela mulher, sem dúvida. Belíssima.Eu pensava em lhe dirigir algumas perguntas, mas ela teve a mesma idéia:— Qual é a sua história, Mont? Quais os seus feitos na vida, por onde

tem andado?

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— Eu andei por toda Miramar e até pelo exterior. Mas um AventureiroAndante não gosta de falar no seu passado, além do mais eu é que precisosaber algumas coisas.

— Como assim?— Porque você quis que eu a acompanhasse?— Você me deu uma valiosa ajuda.— Sim, mas e daí?— Não compreende? Eu estou sem escolta. Você é um bom lutador e

certamente pode ser útil à Coroa.— Desde quando aceitei ser convocado pela Coroa?— A sua queixa procede, mas espero convencê-lo. Não é um monar-

quista, Mont?— Não tenho posição formada.— O que sabe sobre nós?— Sei mais do que sabe a maioria. Quando a República se instalou há

300 anos houve uma perseguição cruel à família real. Embora se diga ofici-almente que ela foi extinta, extra-oficialmente se sabe que ela continuou aexistir na clandestinidade. Assim surgiram os reis secretos e sua lenda correaté hoje. Eu tinha uma vaga notícia a seu respeito.

— Conhece minha terra?— Certamente você é natural das Fontes.— Isso é verdade. E você onde nasceu?— Em Puntbuld, mas saí de lá cedo...— É. Você tem mesmo jeito e sotaque de puntbuldiano.Chegáramos a uma escarpa especialmente difícil e Ilde passou pela

portinhola para dar algumas instruções mais detalhadas aos velhos.Aproveitei para fazer uma pergunta importante à rainha:— Nada sei sobre os seus propósitos. A que está me arrastando? Quais

os seus objetivos?— De imediato, permanecer viva e livre. A longo prazo, casar-me e

perpetuar minha dinastia. A prazo mais longo ainda, derrubar a Repúblicae restaurar a Monarquia.

— E espera que a ajude nisso tudo?— Mont, você é um homem de verdade. Como restam poucos. Fiz-lhe

uma pergunta há pouco, mas nem precisava. Conheço a sua fama. É de umhomem como você que eu preciso.

— Sim, mas...— súbito percebi todas as implicações do que ela dizia.Afinal, ainda há pouco ela falara: “casar-me e perpetuar minha dinastia.”

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Fiquei sem fala e evitei o seu olhar. Felizmente, escurecia. Ilde retornoue, olhando maliciosamente para nós dois, perguntou-me à queima-roupa:

— Mont, você é um bom travesseiro?— Hem?— Bom, terá que servir.— Do que você está falando?— Pra baixo o Céu ajuda, o trecho agora é seguro e eu estou cansada.

Vou repousar um pouco.Assim dizendo ela tirou as sandálias, enroscou-se no assento e pousou

a cabeça em minhas pernas.— Eu gosto. És um bom travesseiro, Mont.Olhei para Astra. Decididamente, ela não tinha gostado.— Nós vamos acampar daqui a pouco. Não precisava ela ter feito isso...— Acampar? — Perguntei.— É claro. Ou você pensa que vamos andar a noite inteira? As bestas

precisam de descanso e alimento.— Não são só elas. Afinal, eu ia jantar e dormir na Estalagem do Bicudo.

— Lembrei. — Queria matar as saudades do estufado que a Grimes faz...Ilde bocejou, remexendo a cabeça em minhas pernas.— Ih, nem fales! — Ilde falou. — Mas eu trouxe uns pastéis...— Podemos colher umas frutas. De qualquer forma, temos comida. —

disse Astra levantando-se — Bem, tenho que falar com os Fulquetins. Dêem-me licença.

Ela abriu a portinhola da direita e passou para a frente do veículo, nãosem antes lançar um olhar incomodado para a garota estalajadeira.

Vendo-se sozinha comigo, Ilde perguntou maliciosamente:— Tu a achas atraente?— É uma mulher atraente.— É para ti?— Por que pergunta isso?— Fiz-te uma pergunta. Não me respondas com outra.— Por que você está falando na segunda pessoa?— Não desconverses! — ela deu-me um soco de brincadeira no braço

mas notei que, se ela quisesse dá-lo para valer, doeria.— Pois bem. Ainda não tive tempo de pensar no assunto.— Pois pense sem demora, Mont. Você quer ser um Príncipe Consorte?

Não caia nessa. Apesar do nome, um príncipe consorte geralmente é umsujeito azarado. Tu serás uma figura decorativa, o pai dos filhos dela, mas

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não apitarás nada. E serás perseguido pelo resto da vida ou te exilarás comela. É muita coisa para pedir a um homem. Eu quero um homem que seja opai dos meus filhos, mas também o meu marido.

— Você não é um pouco jovem demais para pensar nisso?— Que queres dizer? Não sou nenhuma criança, Mont! Sou uma mulher!Interrompeu-se. Astra retornava.Ilde fechou os olhos, fingindo cochilar.Acabamos acampando numa espécie de mirante, de onde se podia avis-

tar o Vale do Timbre a grande distância. Astra e os Fulquetins puseram-se aespalhar uns sacos de dormir pelo chão duro, enquanto Ilde pendurava unslampiões em galhos próximos. Eu ficara com a incumbência de preparar acomida num fogão e numa mesa portáteis. Quanto às frutas, só de dia pode-ríamos procurá-las.

Não lembro direito o que foi que comemos, talvez porque eu perderatoda a vontade de comer. Umas panquecas pré-fabricadas, penso, e os pas-téis da Ilde.

Esta continuava tendo idéias. Eu trocara rapidamente de roupa, den-tro do rodeiro e fora das vistas das mulheres. Na minha mochila semprehaviam peças para troca. Agora, de pijama, procurava escolher um saco dedormir. Ilde chamou Astra e tocou-me no braço:

— Rainha, e se ele fugir?— Eu penso que ele agora está conosco, Ilde.— Eu não confiaria tanto. Que tal amarrá-lo? Tu apontas a arma para

ele e eu o amarro. Depois, durmo ao seu lado para vigiá-lo. Tens cordas, nãotens, Astra?

— És uma biruta, garota. Mas eu tenho coisa melhor do que isso.Ela tinha, como quem não queria nada, puxou um vaporizador da

tiracolo. Acionou o jato cor-de-rosa sobre mim, num abrir e fechar de olhos.— Sabe o que é isso, Mestre Mont?— Um marcador fotônico — respondi secamente.— Isso. Você está marcado por três dias. Com os meus sensores pode-

rei achá-lo facilmente.— Rainha, será que tudo isso é sério?— É uma boa pergunta. Vamos dormir, que amanhã o dia será longo e

incerto.Assim dizendo, deu-nos as costas e foi se trocar no rodeiro.Visivelmente decepcionada, Ilde acariciou-me o peito por cima da rou-

pa:

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— Preferia te amarrar. Daria menos trabalho que te rastrear, se tufugires.

CAPÍTULO IVCAPÍTULO IVCAPÍTULO IVCAPÍTULO IVCAPÍTULO IVComo EvComo EvComo EvComo EvComo Evolui o Relacionamento da Rolui o Relacionamento da Rolui o Relacionamento da Rolui o Relacionamento da Rolui o Relacionamento da Rainha Secrainha Secrainha Secrainha Secrainha Secretaetaetaetaeta

com a Garcom a Garcom a Garcom a Garcom a Garota da Estalaota da Estalaota da Estalaota da Estalaota da Estalagggggememememem

Foi uma noite mal dormida. Por um lado, eu precisava refletir sobre osacontecimentos. Um Aventureiro Errante, um Paladino das Estradas, só agequando enxerga claramente o que deve fazer. E eu não enxergava. Daí aminha relativa passividade. Se eu me rebelasse contra o sistema vigente,teria de ser para valer. Até aí eu enfrentara piratas, assassinos, saqueadoresde estrada, protegia populações inocentes. Mas não podia levantar a mãocontra uns reles esbirros arbitrários. Por isso eu podia usar o meu uniformede paladino, com as folhas em relevo nas costas e a espada de fogo pintadano casaco. Mas se tivesse sido identificado tudo estaria perdido. A não serque aquela figura de teatro de farsa pudesse derrubar a ditadura republica-na e me colocasse novamente legalizado.

Se por outro lado eu resolvesse ir embora, separar-me da rainha clan-destina, provavelmente teria que haver confronto entre nós. Os dois velhosnão eram de nada e eu podia ignorá-los. A posição de Ilde era ambígua. Dequalquer forma parecia disposta a se opor, se eu quisesse me separar. Seusmotivos, porém, não deviam coincidir com os de Astra. Muito pelo contrá-rio. Ilde tomara carona em nossa fuga e já agora não se mostrava propensaa nos deixar.

Celibatário há tantos anos e eis que, de repente, surgem duas chancesde casamento. E ao mesmo tempo, na mesma noite! Amanhã ou depois po-deríamos estar mortos, se não conseguíssemos nos colocar em segurança.Como elas podiam pensar nisso, quando estávamos debaixo da sombra damorte?

Tentei adormecer. Vez por outra, porém, meus ouvidos aguçados es-cutavam um ruído leve de pés nus que se aproximavam e paravam perto demim. Eu fingia continuar dormindo e abria os olhos somente o suficientepara ver quem era. E era sempre Ilde. A noite inteira ela fez isso, vinha eficava parada alguns minutos, em contemplação; depois se afastava. Umaou duas horas depois retornava. Teria dormido? Não sei. Quanto a Astra,não tinha duvidas, pois ouvia o seu tranqüilo ressonar.

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Os dois velhos roncaram a noite toda.Ao amanhecer, espreguiçando-me no saco de dormir, procurei definir

uma estratégia. A prioridade era escapar ao rastreamento dos esbirros. NoGrande ouvido, com seus inúmeros caminhos, suas incontáveis aldeias, en-contrar-nos seria como achar agulha em palheiro. Só que eu não poderiacontinuar com minhas insígnias que revelavam minha posição de Aventu-reiro e Paladino. Decidi que teria que retirar minhas insígnias e deixar crescero bigode.

Apalpei cuidadosamente os compartimentos, inclusive secretos, de meupijama. Todas as minhas armas estavam comigo. Eu não as deixara no uni-forme pois alguém poderia ter a idéia de confiscá-las. Levantei-me e procu-rei os demais.

Ilde veio ao meu encontro e nos beijamos espontaneamente.— Mont — disse ela, pondo-se nas pontas dos pés e pousando os de-

dos das mãos em meus ombros para me fitar mais de perto — a Rainha estátomando banho no rodeiro. Os outros estão com Bú e Bó.

— Quem?— Os focinhudos, Mestre. Não sabia que esses são os seus nomes?— Ninguém me apresentou a eles. Bem, já os vi.— Venha ver de perto. São animais tão nobres!Ela pegou minha mão e conduziu-me. Mais adiante, perto de um ar-

voredo, Leil e Wagner escovavam os dois focinhudos.Aproximei-me e cumprimentei os dois anciãos. Wagner voltou para

mim sua face enrugada e com o cinza típico de um conariano das monta-nhas:

— Boas luas, Mestre Mont! O senhor já os olhou de perto?Realmente eram belíssimos animais e eu os afaguei com gosto. Bú era

um exemplar rajado de negro, com um probóscide com mais de 40 centí-metros. Bó era do tipo baio, com grandes pupilas amarelas, e resfolegavaenergia.

Leil se voltou com um sorriso:— São animais de raça, senhor. Nossa ama gosta muito deles.— É, eu também gosto.Percebi que todos estavam com roupas diurnas — mesmo Ilde, com

seu calçãozinho desbotado — ela não pudera colocar roupas volumosas namochila, quando de nossa partida apressada ( ou talvez nem as tivesse). Istosó podia significar uma coisa: eu dormira demais. Conseqüência da prolon-gada insônia...

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Um aventureiro e Paladino Andante não deve dormir demais. Fiqueizangado comigo mesmo.

Ilde porém, com o braço enganchado no meu, já me puxava na dire-ção do veículo.

— Ela já deve estar saindo. Você toma o seu banho e depois nós come-mos.

— Estou achando que este veículo é super-bem equipado...Abriu-se uma das portas do rodeiro e a Rainha Secreta saiu, inteira-

mente vestida, inclusive com a capa. Eu gostava de bonitas azuladas comoAstra; normalmente atraiam-me mais que as esverdeadas tipo Ilde.

Isso na maioria das vezes.Astra veio em nossa direção e me beijou. Então, visivelmente incomo-

dada, voltou-se para Ilde, que mesmo então não largara meu braço.— Ilde, tenho algo a lhe dizer.— Claro, Astra.— Estive estudando o mapa e conclui que podemos escolher entre uma

das dez aldeias ao longo do Timbre. Escolhi Vila Molhada por diversas ra-zões. Pelos meus cálculos poderemos chegar lá por volta de meio-dia. Lápassa uma ferrovia que contorna a serra e pode deixar você em Mercúrio,onde poderá baldear para Serenópolis.

— Eu sei de tudo isso, Rainha. Você está sugerindo que eu me separede vocês?

— Sua missão estará encerrada. Você nos guiou através da montanha.Eu havia, discretamente, separado meu braço do de Ilde, e agora acom-

panhava com interesse aquele diálogo.— Rainha, eu não quero retornar. Não agora.— E por que não? Você tem o seu emprego.— Não importa! Grimes me receberá quando eu quiser.— Mas por que você quer vir conosco?— Não percebe? Mont é um homem solitário. Já ficou assim por muito

tempo. Ele precisa ter uma mulher ao seu lado.Astra cruzou os braços.— E eu, o que sou?— Tu és uma pedra de gelo!Estava claro que as relações entre as duas começavam a degenerar.

Astra não se deu por achada:— Oh, bem! Mas então nós temos outra mulher aqui, a Leil...— Sabes que ela é velha e já tem o homem dela...

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— Começo a me arrepender por ter consentido que você nos acompa-nhasse. Ah, Grimes, que bela idéia a tua! Mas há algo que não pareces terpensado, menina: tens dinheiro? Comida, alojamento, roupa, tudo isso ge-ralmente custa dinheiro.

— Tenho um pouquinho.— E depois? Eu não vou te sustentar.— Rainha, isto não será necessário. Enquanto eu estiver com Mestre

Mont, usaremos o Privilégio dos Paladinos.Engoli em seco. Um Aventureiro Errante deve falar pouco e ouvir mui-

to. Só que eu ainda não dissera a elas da minha prudente decisão de retiraras insígnias. Com elas de fato as minhas facilidades eram muitas. Onde querque eu fosse as portas eram abertas, as camas preparadas, os pratos abaste-cidos. Sem as insígnias seria tudo mais difícil. Mas eu sabia que Astra estavablefando. A dinastia dos Diamantinos não teria sobrevivido por três séculossem uma rede de apoio pelo país, constituída por uma grande parte dopovo. Não faltariam refúgios para Astra, que podia se esconder até despistaros seus perseguidores. Eu podia jurar que a escolha da Vila Molhada nãoera casual.

Astra dirigiu-se para mim:— Mont, vá lá no carro tomar banho e se trocar. Rápido, pois não

temos tempo a perder. No caminho discutiremos isso.

Eu estava terminando de me pentear, e ainda perplexo com o rumodos acontecimentos, quando bateram furiosamente na porta do comparti-mento de banho do rodeiro.

— Mestre Mont! Abra depressa, por favor!— Mestre Mont, por amor do Céu, precisamos do senhor!Wagner e Leil. Ora essa!Abri a porta.— Que está havendo?— As duas, Mestre! As duas! — falavam ao mesmo tempo.Vi logo do que se tratava.Corri para o local do incidente. E lá estavam as duas, rolando pelo

chão em luta furiosa. Tinha me passado pela imaginação a figura de Ildesendo facilmente dominada por Astra. Afinal, eu vira o que a Rainha Ocultaera capaz de fazer. A cena real, porém, era bem outra. Elas lutavam emigualdade de condições, e se eu fosse dado a apostas apostaria em Ilde. Lem-bram-se do que eu falei sobre a minha capacidade — como Aventureiro das

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Estradas que sou — de perceber os detalhes nos rápidos movimento? Poisbem: Ilde, apesar do equilíbrio da luta, estava firmíssima. Astra, porém,ofegava. Quando a Rainha Secreta perdesse o fôlego, a outra faria dela o quequisesse. Astra provavelmente só tinha uma possibilidade de ganhar a bri-ga: escapar àquela luta livre e acertar um golpe em sua adversária. Maspara interromper a luta de agarramento seria preciso que Ilde lhe soltasseos braços — e isso Ilde não fazia. A pequenina era um osso duro de roer!

Provavelmente não se encontraria uma mulher em um milhão com aaptidão física de Astra. E ali estavam duas! O mundo tem estranhas coinci-dências!

Tentou-me a idéia de deixar que as duas continuassem lutando, verquem podia mais afinal. Mas os dois idosos teriam um acesso. Acerquei-me,agarrei Ilde pelas axilas e puxei-a com quanta força tinha. Ela insistia ematacar e eu, tentando contê-la, torci-lhe o braço esquerdo para trás.

— Larga-me!Como eu não a largasse, Ilde deu-me uma cotovelada no fígado, com o

braço direito, ao mesmo tempo em que Astra se erguia. A dor foi tanta queeu me vi obrigado a largar Ilde, que se virou e me acertou um bofetãofortíssimo, jogando-me ao solo. No mesmo instante ela se ajoelhou ao meulado e me cobriu de beijos.

— Oh, meu querido! Desculpa! Não quis te bater! Tu me perdoas?— Bem, se a indenização for sempre essa...Ilde fuzilou o olhar para Astra, que nos observava com expressão irô-

nica:— Estás satisfeita?Assim dizendo Ilde me ajudou a levantar e tornou a se dirigir à Rai-

nha:— Entende isso, Astra. Não te tenho medo! Se precisar te enfrentar de

novo... eu te enfrentarei.Afastou-se de nós, parecendo, apesar de tudo, a pique de chorar. Sua

voz não soara firme.— Que aconteceu, afinal? — perguntei, enquanto os preceptores se

abraçavam à sua Rainha.— Leil, Wagner, vão preparar o desjejum. Deixe-me falar com Mestre

Mont.Eles se afastaram, obedientes, e ela me respondeu:— Ela me abordou, disse-me coisas desagradáveis. Eu respondi com

outras. Não gosto de crianças atrevidas. Então ela me pulou em cima.

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— E aí?— Eu lhe dei um golpe que a jogou no chão. Mas é uma pequena esperta

e destemida. Ela puxou minha perna e me derrubou também. Aí veio sobremim na luta livre. E eu tenho que reconhecer: ela é ótima na luta livre. Secasares com ela, Mont, é bom que te prepares. Terás muita diversão pela frente.

CAPÍTULO VCAPÍTULO VCAPÍTULO VCAPÍTULO VCAPÍTULO VEntra em Cena o CorEntra em Cena o CorEntra em Cena o CorEntra em Cena o CorEntra em Cena o Coronel Bomonel Bomonel Bomonel Bomonel Bom

Ilde sentara-se, amuada, numa cadeira desdobrável que fora colocadaao ar livre. Astra foi ajudar os outros dois a esquentar um desjejum. Resolvique teria que agir.

Aproximei-me de Ilde:— Vamos comer alguma coisa?— Creio que terei que fazê-lo. Não quero ficar fraca.Quando nos reunimos em torno da mesa também desdobrável, come-

cei a falar:— Quero pedir uma coisa a vocês duas. Nós corremos perigo iminente

de vida e temos que agir com base nesse pressuposto. Ora, nós somos capa-zes de nos defender, mas só se estivermos unidos. Não podemos brigar. Te-mos que ser todos amigos quanto mais não seja por interesse. Ou não somostodos adultos?

Calei-me. Meu discurso, de legítima filosofia de botequim, foi recebi-do com um espectral silêncio e olhares constrangidos. Comemos em silên-cio os bolinhos de fafiton, preparados por Leil, e só ao término eu me ani-mei a dar outro conselho:

— Rainha... eu penso que é tempo de começarmos a vigiar o que seaproxima. Não podemos ser pegos de surpresa.

— Nunca sou pega de surpresa, Mont.— Mas não providenciamos sentinela...— Não é preciso. Existem os sensores do rodeiro.— Isso não me deixa totalmente tranqüilo.— Então venha ao meu gabinete.Ela se ergueu e caminhou em direção ao enorme rodeiro. Eu dei uma

olhada em Ilde e segui a rainha. Logo percebi que Ilde vinha atrás.Entramos os três no gabinete, situado nos fundos do rodeiro. Um espa-

ço pequeno, mas muito bem distribuído. Astra sentou-se diante de um trans-

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missor-receptor ondiônico equipado com teletipo e puxou o relatório. Leu-o rapidamente e acendeu a tela de tv.

— Como vocês verão, dentro de dez minutos haverá um pronuncia-mento em rede feito pelo Coronel Bom, do Comando Estratégico do Norte.Pelas informações que recebi, ele falará a meu respeito.

— Como assim, Rainha? Como é que essas informações não são detec-tadas?

— Porque eu uso uma rede secreta e beneficiada de um tamponamentoenergético à prova de detecção. A ciência dos monarquistas é avançada.

— Entendo. E você deve ter milhões de adeptos em Miramar.— Ativos, só milhares. Mas é o suficiente para que eu saiba do que

ocorre.Esperamos em silêncio pelo pronunciamento. Leil e Wagner manti-

nham-se à porta, eu me sentara num dos dois únicos assentos ( no outroestava a rainha) e Ilde ajeitara-se no chão mesmo, atrás de nós, aparente-mente muito interessada.

Então, à hora aprazada, o canal governista interrompeu sua progra-mação habitual e anunciou “um importante pronunciamento do CoronelBom, Comandante Estratégico do Norte, dirigido a todo o povo de Mira-mar.”

Eu conhecia o Coronel Bom e sua aparição não me agradava nem umpouco.

E lá estava ele. Careca, com um olho tampado e nariz de colherão-de-crista, aquele olhar penetrante e repulsivo no único olho sadio. Não muda-ra nada em dez anos.

“Povo de Miramar:“Neste momento está em curso um movimento subversivo que visa à

restauração do antigo regime real, que o nosso povo repudiou há váriasgerações.

“Uma mulher, que se apresenta como Rainha Astra, e que pretendeser herdeira da antiga dinastia real, lidera na aparência esse movimento naverdade relacionado com forças corruptas e antipatrióticas. Utilizando mé-todos audaciosos, uma rede de traidores prossegue até hoje com a rebeldiaque periodicamente perturba o país.

“Ao longo de três séculos os monarquistas tentaram e não consegui-ram retornar ao poder. E não o fizeram porque o povo não os quer mais.Estão na contramão da História.”

— Nunca fizeram plebiscito — observou Astra.

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“Na noite de ontem,” — prosseguiu o coronel — “uma patrulha go-vernamental sofreu covarde agressão da qual participaram a mulher emquestão e mais dois homens e uma mulher. Um casal está plenamente iden-tificado, como seguidores habituais de Astra. O outro homem usava insígni-as de Paladino de Estrada e não foi identificado. A agressão ocorreu na Esta-lagem do Bicudo, em Serenópolis, na Cantolândia. Sabe-se que o grupo fu-giu através do Pico Malvado, utilizando um rodeiro puxado por focinhudos.Vamos aos retratos dos três indivíduos já identificados e ao retrato falado dosegundo homem.”

Seguiram-se os retratos de Astra, Leil e Wagner, em poses absoluta-mente normais. O meu retrato falado, porém, não me fazia justiça. Senti-me aliviado. Grimes fizera um bom trabalho.

“Agora,” — prosseguiu o coronel — “quero que cada um compreendaque os quatro criminosos em questão devem ser capturados vivos, para se-rem interrogados e julgados. Só se houver necessidade deverão ser mortos,isto é, se resistirem à prisão.

“Será concedida uma recompensa no valor de 1.500 discos por terro-rista entregue — dentre esses quatro ora denunciados.”

O coronel despediu-se e eu percebi o quanto estava tenso.Sabia que com ele, ou vai ou racha.Astra leu alguns relatórios aparentemente em código e se ergueu:— Não há perigo imediato. Haverá quando o coronel Bom der início

efetivo às suas buscas. Vamos pegar umas frutas e partir imediatamente.— Vamos para onde, Astra? — indagou Ilde.— Já disse que vamos para Vila Molhada.Pareciam mais calmas.Pouco depois, com uma cesta cheia de cerêgias, deixamos o local em

grande velocidade. A paisagem mudou, atravessávamos lezírias e várzeas ecruzávamos com outros veículos, inclusive rodeiros. Passamos por diversasaldeias e vilas, cada uma tão boa ou ruim (depende do ponto de vista) quan-to as outras. Eu seria capaz de jurar que em Vila Molhada as próprias auto-ridades administrativas locais deviam ser coniventes com Astra. Ela certa-mente não ia lá à toa.

Só que Ilde, já agora à minha direita, continuava com suas idéias.— Rainha, se vamos saltar numa aldeia você deve fazer uma coisa.— O quê?— Guardar essa capa. Tire essa coisa enquanto é tempo.— Que é que você quer dizer?

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— Não percebe? A capa é um chamariz. Ainda mais que foi vista pelosesbirros. Se você não quer nos matar a todos, deixe essa coisa guardada.

— Está bem. Talvez você tenha razão. Eu tirarei a capa.Assim dizendo a Rainha Secreta desligou os botões das alças do pesco-

ço de sua majestosa capa. Então, dobrou a capa em seu colo e passou-a aosvelhos na frente do veículo, para que a guardassem. Depois voltou-se paraIlde.

— Fiz a tua vontade. Agora é a tua vez. Trata de calçar alguma coisa.Também chamarás atenção se entrares descalça na aldeia, como se já nãobastassem essas tuas pernas de fora.

Ilde riu-se com espontaneidade e procurou as suas sandálias. Sentique a tensão entre as duas já relaxava. Para mim foi uma alívio.

CAPÍTULO VICAPÍTULO VICAPÍTULO VICAPÍTULO VICAPÍTULO VIComo Astra Começa a Demonstrar Seu PoderComo Astra Começa a Demonstrar Seu PoderComo Astra Começa a Demonstrar Seu PoderComo Astra Começa a Demonstrar Seu PoderComo Astra Começa a Demonstrar Seu Poder

Lembrei-me de algo importante. Retirei o meu casaco e busquei namochila um traje à paisana. Poderia adaptar o casaco, mas daria muito tra-balho e eu poderia precisar dele em breve.

Astra foi a primeira a protestar:— Por que você fez isso?— Já que o assunto é não chamar a atenção...Ilde também fez o seu protesto:— Mas, Mont! Como poderás usar o teu privilégio?— Cara menina, lembra que eu agredi um esbirro? E que isso pode

custar a cassação de minha licença de aventureiro?— Imaginei isso, mas é uma pena que tu sejas tão limitado.— Não depende de mim.— Está bem. Com ou sem as insígnias, eu gosto de você.Assim dizendo ela repousou o rosto em meu ombro.A rainha não pôde deixar de interferir!— Mestre Mont, a sua preocupação é legítima. Acontece que, com sua

adesão à minha causa, você deve contar com sua inteira reabilitação... casoseja necessária... só depende da restauração da monarquia.

— Quem foi que disse que eu aderi à sua causa?— Você está comigo, não está?— Não necessariamente.

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— Não blefe! Observei-o bem e sei que minha causa lhe é simpática.O que você precisa é deixar de ter medo da República. Se você é um Paladi-no da Justiça, não pode consentir na violência e na opressão só porque elasusam distintivo. Assuma o justiceiro que você é e me ajude, que eu precisode justiça para a minha causa.

Houve um curto silêncio. Astra então se dirigiu à garota:— E você, Ilde, fique também conosco. Eu gosto de você. pode nos

ajudar muito. E depois, entre os meus seguidores, poderei até lhe arranjarum bom marido.

— Melhor do que Mont, Rainha?Astra sorriu com ironia.— Quem sabe?— Humpf — fez Ilde, com evidente pouco caso.

A estrada se dirigia à Vila Molhada, porém Astra ordenou que se to-masse um atalho, cuja placa dizia: Fazendola.

Estranhei.— O que houve, Rainha? Não vamos mais à Vila Molhada?— A fazenda faz parte de sua área.— Sim, mas...— É para onde vamos em primeiro lugar.Não discuti. Sabia que aquela mulher tinha os seus segredos. O que me

preocupava era de fato sair da estrada, antes que aparecesse alguma patru-lha. Com nossas armas psíquicas Astra e eu podíamos enfrentar muita gen-te, mas não convinha arriscar.

As surpresas estavam apenas começando. Na grande porteira degaranino da fazenda fomos recebidos por um casal de meia-idade e outraspessoas. Astra desceu e teve uma rápida e reservada conversa com o casal.Depois voltou para o rodeiro e mandou seguir em frente. Ilde estava muitocuriosa, mas a rainha não deu muita importância às suas perguntas.

Paramos em frente a um casarão de três andares e saltamos os cinco.Astra dirigiu-se a um velho ossudo, a quem cumprimentou efusivamente:

— Tel, cuide dos meus bichinhos, por favor. Leil e Wagner o ajudarão.— É uma grande honra poder servi-la mais uma vez, Rainha.— Eu sei o quanto você é leal. Mas permita-me, por favor, não apre-

sentar os meus amigos.— À vontade, Rainha.Astra voltou-se para nós:

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— Peguem as suas bagagens e me acompanhem.— Mas, Rainha...— Nenhuma objeção, amigo. Tudo se esclarecerá daqui a pouco.Nós a seguimos e Astra penetrou no átrio do casarão, onde esperou a

chegada do casal. Logo que eles se acercaram a Rainha disse:— Como já tratamos na porteira, tudo o que precisamos é comida,

roupa lavada, banho e novo veículo. Isso quer dizer que daqui a três horaspoderemos partir, correto?

— É claro, Majestade — respondeu a mulher, fazendo uma mesuraridícula — Sua vontade é lei entre nós.

— Obrigada, Sia. Conheço a lealdade de vocês, a sua em particular. Evocês, meus amigos, me acompanhem. Cada um de nós terá um quarto parade trocar e banhar; depois almoçaremos.

Eu não estava boquiaberto porque, como Vigilante das Estradas, pos-suía privilégios parecidos. Os de Astra, porém, eram visivelmente maiores ede certa forma até alarmantes.

Não posso me queixar do almoço. O filé de corupapo cor-de-rosa es-tava delicioso.

Depois que recebi a roupa lavada e fechei minha mochila, quandoaguardava na sala de estar, Astra veio até mim:

— Mestre Mont, vamos para a Vila Molhada. Mas antes quero con-versar com você.

— Não é um pouco cedo, Rainha?— Que quer dizer? Você também lê pensamento?Sorri.— Vejamos se é o que eu pensei.— Sente-se, Mont.Sentei-me e ela sentou ao meu lado:— Mestre mont, se der o seu consentimento já em Vila Molhada pode-

remos nos casar.— Mas... como assim?— Posso arranjar um sacerdote que realize matrimônio secreto e aí

não haverá burocracias. Além disso, como rainha tenho esse privilegio.— E Ilde?Eu dissera isso só para provocá-la.— Você a leva a sério, Mont? É apenas uma criança.— Talvez eu prefira uma criança a uma rainha...— Mont, sei que você não fala sério. Pois saiba que, se eu quisesse, Ilde

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poderia ficar aqui retida. Bastaria uma ordem minha.— Mas você não o fará.— Não, Mont. Ela é muito inocente e nem lhe passa pela cabeça esse risco.

E no entanto eu poderia fazê-lo. Ela provavelmente nunca mais o veria.— Você não o fará — insisti.— Não, eu não o farei. Ela é uma boa escudeira e pode ser útil. Não

pense que eu seja tão boazinha!— Você tem bom coração, Astra, embora não queira admiti-lo...— Basta, Mont. Eu fiz uma proposta. Não compreende o que isto quer dizer?— Sim, compreendo que você quer me usar num jogo de poder.Ela fechou a expressão e crispou a mão direita. pensei que ia me dar

uma bofetada. Mas a bofetada não veio.— Mont, eu não posso me externar aqui. Questões de conveniência.

Mas eu sei abraçar, beijar nos lábios, sou uma mulher e não uma pedra degelo como Ilde acusou. E eu não lhe faria essa proposta se não gostasserealmente de você!

— Será necessário que você prove — respondi secamente.— Até que ponto, Mont?— Não ultrapassaremos os limites. Um Paladino de Estrada não seduz

uma Rainha. Seria uma baixeza da qual eu não sou capaz.Ela sorriu.— Está bem, Mont. Eu te provarei que sou feminina. Quando puder-

mos estar à sós.

Tendo deixado bem claro que não aceitaria um casamento tão rápido,dispus-me a acompanhar Astra. Ela então passou-me as novidades:

— Meus preceptores ficarão aqui. Não posso arriscá-los por mais tempo.— Só iremos nós dois?— Não, Mont. Ilde irá conosco. E somente ela.— Você não poderia levar mais gente?— Você verá que não é necessário.— Mas diga...como foi que aqueles esbirros a encontraram?— Estavam na minha pista desde Lacustre. Eu estava com três escudei-

ros, e eles sacrificaram suas vidas para me salvar e a Leil e Wagner. Elesdesviaram a atenção dos governistas.

— E o que houve com os membros da Família Real?— Quase toda ela foi dizimada. E eu não quero me casar com um dos

meus primos. Não são muito interessantes.

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Astra ergueu-se e me fez sinal para fazer o mesmo. Apontou a decora-ção da sala, a louça de Rimbud e os azulejos em estilo tontonista superior.

— Esta mansão, Mont, pertenceu ao Conselheiro Gorado. Coisas im-portantíssimas se passaram aqui. Pense nisso e me acompanhe!

Segui-a por uma escada estreita e por um corredor. Pessoas nos viram,mas ela não lhes deu importância e prosseguiu até uma porta azul, queabriu com uma das chaves de seu chaveiro.

— Entre, Mestre Mont.Entrei e me vi dentro de um quarto agradável e bem mobiliado. Ela

apontou para um divã:— Venha.Ela sentou-se, não sem antes trancar a porta. Eu me sentei ao seu

lado. Astra era uma figura dominadora. Naquele momento senti-me comoque arrasado, sem forças ou vontade para resistir. Por um absurdo mo-mento, uma absurda fantasia sibilou-me que eu estava diante do car-rasco — alguma espécie de carrasco. E então a fantasia se esfumou e eume vi diante, isto sim, de uma mulher belíssima, carismática e recatada.Uma mulher que fulminaria com o simples olhar, qualquer gesto maisatrevido.

— Dez minutos, Mont. Depois sairemos. Me abrace e me beije.Que mais eu poderia fazer.

Os dias que se seguiram foram de crescente surpresa. Em Vila Molha-da, na casa que nos acolheu, até o Prefeito veio nos visitar discretamente. Echamou-me Príncipe.

Cada vez se tornava mais clara a existência, em Miramar, de um poderparalelo e subterrâneo que servia sem vacilação àquela mulher extraordi-nária. Um poder que ela guiava com segurança e firmeza.

Nós ali chegáramos num carro ovóide, fornecido na fazenda, de modoque as informações do Coronel Bom ficaram bastante desatualizadas, au-mentando a nossa chance de fuga.

E eu evitava o olhar de Ilde.

CAPÍTULO VIICAPÍTULO VIICAPÍTULO VIICAPÍTULO VIICAPÍTULO VIIComo VComo VComo VComo VComo Velhos Amielhos Amielhos Amielhos Amielhos Amigggggos se Reencontramos se Reencontramos se Reencontramos se Reencontramos se Reencontram

Passaram-se algumas luas.

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Uma espécie de remorso, que a princípio parecia me sufocar, a poucoe pouco me abandonava como um espírito possessor sendo exorcizado. Ildee eu nos tratávamos de forma fria e distante. Eu me tornara o noivo daRainha Secreta e a escudeira guardava a mágoa no íntimo do seu coração...e nos seguia. Uma voz abafada, no mais recôndito da minha consciência,sussurrava às vezes, acusando-me de crueldade e ingratidão. Eu, porém —assim me justificava — apreciava Ilde e sua dedicação.

Certo dia do mês de Tusan, cedinho pela manhã, sob forte chuva, está-vamos Astra, Ilde, eu próprio e dois dos seguidores da Rainha — Akerbatone Trupadox — no alto de uma colina verdejante, em Ladencion, no extremonorte do Grande Ouvido. Em todo aquele tempo tínhamos zombado dosesforços do Coronel Bom, que passara a província a pente fino e só encon-trara pistas falsas. Astra revelara-me parte do seu grandioso plano e agoraeu via claramente que, se alguém detinha a capacidade de restauras a mo-narquia esse alguém era ela. Num trabalho paciente, que lhe custara osanos da juventude (não era tão jovem quanto parecia), aglutinara forçasdispersas e consolidara uma poderosa rede de informações. Essa legião re-belde e oculta estava pronta para se levantar e dar a vida pela Rainha. Incrí-vel, mas verdade.

— Veja, Mestre — dizia ela, apontando a torre cilíndrica ao longe —eis o que nos interessa. Esta central retransmissora, escondida na solidão.Aqui existem recursos que o governo provavelmente esqueceu-se deinventariar. Por esse nó eletrônico, podemos confundir o serviço de inteli-gência do inimigo.

— Duvido muito, Astra. Não deixariam um local desses tãodesguarnecido.

— Há certos fatores a considerar, Mont. Em primeiro lugar, a displi-cência do governo republicano, que deixa até que estoques de alimentos seestraguem. É bem a ideologia vigente, de não ligar para nada em matériasimportantes. Em segundo lugar, oficialmente não existe a Revolução Mo-narquista. Oficialmente a própria Rainha Secreta não existe. Portanto, colo-car uma rede de segurança em certos lugares seria reconhecer uma coisaque não existe. E há um terceiro fator: o pouco caso que o Estado dedica àciência. Você acha que Normus entende o significado estratégico das on-das?

— Seria esperar demais dele...— Que faremos Rainha? — disse Trupadox — Chove muito!— Oh, cale-se! Observe!

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Do imenso farol saíram quatro figuras portando capas de chuva, querapidamente iniciaram um conserto numa rede de aracnídeo conectada àala noroeste da construção. Sabíamos que eles eram toda a equipagem esabotáramos o equipamento para obrigá-los a sair.

Abaixando o seu binóculo, Astra ordenou:— Os homens devem ficar aqui. Ilde, me acompanhe.Os outros homens fizeram ouvir seus protestos. Astra, porém foi

taxativa.— Vocês me escutaram e é isso que irão fazer.— Astra — observei, com a liberdade de noivo — eu sou um Aventureiro

Errante e não posso ficar de fora. Além do mais, com o meu treinamento...— Mont, procure compreender, eles podem temer vocês, porque são

homens, mas não quererão ter medo de duas mulheres. Uma vez lá dentro...— Será muito perigoso, pense! Eles são quatro...— Está bem. Como eles são quatro, TALVEZ eu precise de uma

AJUDAZINHA. É por isso que eu vou levar Ilde. Portanto, chega e até já!Fez uma sinal para Ilde e esta, sem olhar para mim, acompanhou a

Rainha. Trupadox afastou algumas folhas de carmesim perolado e, parandoperto de mim, tentou consolar-me.

— Não se amofine, Mont. Uma Rainha sabe o que faz.Tive vontade de mandá-lo às favas. Eu não era monarquista. Eu amava

Astra.

De nosso posto de observação vimos como ambas desceram pelo ma-tagal e como acenaram para os quatro homens que, depois de se entreolha-rem, foram ao encontro das moças. Elas certamente começaram a contaruma história complicada envolvendo um carro enguiçado e, em pouco tem-po, dirigiram-se todos para o interior da construção.

Não tivemos que esperar muito. Em dez minutos Ilde e Astra saíram enos acenaram. Descemos à toda, aliviados.

Encostados a uma parede, no interior da torre, estavam os quatro fun-cionários, desacordados e amarrados. Ilde só chegara a lidar com um — oúnico, por sinal, a ostentar equimoses. Os outros três estavam aparente-mente incólumes, pois Astra sabia dar golpes que não deixavam marcas. Poroutro lado Astra estava ilesa e Ilde ficara com o nariz e a boca sangrando.Mas não ficara abalada.

Meus conhecimentos de eletrônica eram reduzidos. Sentado ao ladode Astra, no painel-mestre, fiquei observando a desenvoltura com que a

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Rainha Secreta penetrava nos códigos secretos, injetava vírus eletrônicosnos canais de Turtut e obtinha passagem em vias paralelas ao Circuito Mag-no, informando por ressonância magnética longínquos seguidores. No fim,tive a impressão de que ela conseguira sabotar os capilares da comunicaçãogovernamental, tornando-a vulnerável à espionagem. Astra não queria sedemorar: era perigoso. Ao se preparar para sair, dirigiu-se aos prisioneiros,que já se encontravam acordados:

— Vou soltá-los, mas primeiro usarei a arma psíquica para que dur-mam. Espero que me perdoem. Eu sou a Rainha de Miramar e vocês medevem obediência. Não sou um mito e nem uma sonhadora. Meu poderexiste e meu direito ao trono é incontestável. A República é ilegítima e nãome deterá.

Quando saímos na chuva, uma palavra passou em meu espírito: me-galomania.

Seria esse o grande defeito de Astra? Mas ela tinha direito ao trono. ounão tinha?

Horas depois rodávamos pela Via Sete, sinuosa como um ofidino, emnosso novo veículo puxado por quatro chifrudos, e Astra, comigo na partede trás (Ilde conduzia) , dissertava sobre os seus planos:

— Mont, o que nós fizemos foi, na verdade, deflagrar a revolta defini-tiva. Você verá. O Grande Ouvido, a Aguadeira, a Nova Terra, o Relógio,todas essas províncias estão maduras para a rebelião. Embaralhamos a redede comunicações do Estado e agora, meu querido, sairemos das sombras.Não serei mais a Rainha Secreta. Serei a Rainha, simplesmente. Reinarei.

— Cuidado! Vejam!O grito partira de Ilde. Ela parou subitamente o rodador e apontou

para o alto. O torpedo luminoso terminara a sua subida e, perfazendo umacurva parabólica, descia agora sobre nós. Astra pulou para o banco da fren-te, empurrou Ilde e tentou uma desesperada manobra.

Era tarde porém para escapar. Atingido pela repercussão do impacto,o rodador foi lançado fora da estrada, desfazendo-se em pedaços em voltade nós. Naquele sacolejo todo, o velho marrom Trupadox foi atravessadopor um vergalhão de ferro e teve morte instantânea. Akerbaton foi cuspidopara fora do veículo e arrebentou o crânio numa pedra pontiaguda de quart-zo. Astra, Ilde e eu próprio de lá saímos praticamente ilesos. A Rainha reco-nheceu de pronto a morte de seus dois fiéis auxiliares e correu para oschifrudos, que se debatiam em desespero, bufando e resfolegando.

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Ilde segurou o meu braço com vigor:— Mestre Mont, veja quem se aproxima!Pela lezíria próxima, vindos de trás de uma coxilha, meia dúzia de

montadores se aproximavam, com seus focinhudos. Astra cortara as correi-as dos chifrudos, que debandaram em pânico, sem que ela conseguisse contê-los. Teriam sido a nossa chance de fuga. Ao tentar segurá-los, Astra foi der-rubada. Ao observar os recém-chegados, dois dos quais puxavam artilhari-as com suas bestas, reconheci o Coronel Bom, a quem eu não via a dez anos.Todos os seis homens, ao desmontarem, ostentavam chicotes elétricos. Euperdera a minha pistola psíquica na queda. Ilde não estava treinada com asua e Astra, sozinha, não sustentaria batalha com seis esbirros. E todos sabi-am que o Coronel Bom era campeão de tiro psíquico e chicote elétrico.

Agora, diante de nós, o zarolho careca, sádico e triunfante, relanceandoo olhar fixou-o em mim e trovejou:

— Mestre Mont! Que prazer eu tenho em reencontrá-lo, amigo velho!

CAPÍTULO VIIICAPÍTULO VIIICAPÍTULO VIIICAPÍTULO VIIICAPÍTULO VIIIComo a RComo a RComo a RComo a RComo a Rainha Secrainha Secrainha Secrainha Secrainha Secreta Apareta Apareta Apareta Apareta Aparece em Toda a Sua Glóriaece em Toda a Sua Glóriaece em Toda a Sua Glóriaece em Toda a Sua Glóriaece em Toda a Sua Glória

Diante dos tristes destroços de nosso rodador, Ilde, Astra e eu encara-mos nossos captores.

— Coronel Bom — falei, mais para dizer alguma coisa — recordo-mebem do senhor na nossa unidade em Belprates. E dos seus métodos também.

— Meu caro Mont, eu também me recordo. E me entristeço, é a puraverdade, diante do seu destino final. Há dez anos atrás entristeci-me com asua partida de nosso quartel. Você iria servir sob as minhas ordens, massaiu antes. E não pudemos nos testar mutuamente. Pois você era um ossoduro de roer. Abandonou, porém, uma promissora carreira militar para serum Aventureiro das Estradas! Um romântico Paladino da Justiça, sem eiranem beira porém protegido pela tolerância da República, que sempre res-peitou as tradições populares! E assim você tem vivido esses anos todos,gozando as mordomias da sua profissão, já que onde quer que vá terá sem-pre quem lhe dê comida, bebida, roupa e teto para se abrigar, em troca denada. Separando brigas de bêbados ou de lavadeiras de rio exaltadas, vocêsegue em frente ostentando com orgulho as suas insígnias e dizendo a todosque o vêem: “Eu sou um aventureiro Errante!”E todos o olham passar emurmuram admirados: “Vejam! Ali vai um Aventureiro Errante! Ali vai o

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famoso Mestre Mont!”Eis a que você foi reduzido, Mont, você que estudavapara ser um alto oficial como eu: famoso e homenageado por prender la-drões de focinhudos! Mas que digo? Que vejo? Nem isso mais você é. Vejoque agora você se envergonha das suas credenciais. Não as usa mais. Uniu-se a uma sediciosa e a segue como um pintadinho. Voltou-se contra a Repú-blica que, por tolerá-lo, garantiu o seu fácil sustento por tantas centenas deluas. Mont, se eu me entristeci por você há dez anos, hoje eu me entristeçoduplamente!

Calou-se, aparentemente cansado com o longo discurso, queimpacientara seus próprios ajudantes. Estes não iriam agir sem o seu sinal.Aproveitei então a deixa:

— É verdade, Coronel Bom, que eu abandonei o exército. Não possome esquecer de uma coisa. Você torturava os soldados sob as suas ordens.Costumava pendurá-los pelos pés e surrá-los com o chicote elétrico, até queperdessem as forças ou implorassem misericórdia. Se tivesse tentado issocomigo, Coronel Bom, haveria sangue.

— Eu transformava meus soldados em homens, Mestre Mont.— Eu sempre fui um homem, e continuo sendo.— Discutiremos isso depois. Astra -ó Rainha — agora falemos de você.Astra estava mais glacial do que nunca:— O que deseja de mim? Já matou dois dos meus melhores amigos.— Isso é pouco, Grande Rainha — disse ele, ironicamente — Provín-

cias em guerra, sabotagens elaboradas, inquietação social... o que mais vocêquer?

— O trono ao qual eu tenho direito, Coronel, pelo meu nascimento.O Coronel estrondou numa feia gargalhada.-Seu direito de nascimento esfumou-se na História! Agora você não

passa de uma fora-da-lei!Astra não respondeu.— Jogue sua capa!A ordem do Coronel Bom referia-se à velha e tradicional fórmula para

rendição de monarcas e outros membros da família real. Confiante da con-solidação de seu poder, Astra voltara a usar a capa.

Olhei para a minha noiva. Vontade eu tinha de limpar as minhas mãona cara do brutamontes à minha frente, mas aquela não era a ocasião pro-pícia.

Comigo à esquerda e Ilde, silenciosa, à direita, a Rainha Secreta levouas mãos ao pescoço e começou a desatar a maravilhosa capa lilás. Retirou-a,

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com gélida dignidade, e dobrou-a cuidadosamente. Em seguida deu um passoà frente e atirou-a aos pés do Coronel Bom.

A capa explodiu.A concussão lançou por terra os seis militares. Foi, na hora, a última

coisa que eu vi, pois o clarão cegante ofuscou-me totalmente. Joguei-me nochão, sem nada melhor para fazer. E até hoje considero aquele aconteci-mento como a maior frustração de toda a minha carreira de Paladino Er-rante, de Defensor da Justiça. Temporariamente cego, não pude tomar partedo que aconteceu em seguida.

Astra, sabedora do que ia acontecer (a capa era a sua arma secreta, o seutrunfo para ser usado em último recurso), fechou os olhos na hora H. Ilde,avisada por um sussurro que não me alcançou, porque estava mais próxima darainha, fez o mesmo. Quando o Coronel Bom e seus homens caíram por terra,cegos e indefesos, Astra e Ilde avançaram e fizeram uma festa. Tenho uma idéiado que aconteceu pelo ruído de carne contra carne, e posso garantir que o queescutei não foi brincadeira. Quando minha visão voltou ao normal, minutosapós, os seis agentes estavam empilhados uns sobre os outros, arrasados. Destavez não dava para distinguir quem fora espancado por Astra ou por Ilde: arainha não tivera a mínima preocupação em não deixar marcas.

Cheguei-me a Astra e abracei-a.— Meu querido, estou muito triste. Perdi a minha capa de estimação...Ilde segurou nossos braços:— Vamos agir! Vamos fugir pelas terras ulíginosas, antes que surjam

outras patrulhas.— É uma boa idéia, Ilde — observou Astra — Porém não vamos fazer

só isso. Vamos levar esse patife conosco e os corpos dos nossos amigos. Osoutros deixaremos por aqui mesmo.

Rapidamente amarramos os cinco agentes e mais o Coronel Bom, quefoi colocado deitado sobre um dos focinhudos. Abandonando os outros cin-co, partimos de lá em poucos minutos. Astra estava radiante e mais bela esenhora de si do que nunca: a captura do Coronel Bom sinalizava o iníciooficial da revolta.

Os acontecimentos se precipitaram. Transmitida a captura pela redesubterrânea da rainha, a partir de uma parada em outra fazenda, em pou-cas horas o iceberg subiu à superfície e uma rebelião-monstro surgiu apa-rentemente do nada. Quando chegamos a Diamante Negro, capital de Reló-gio, Astra foi recebida em gala pela população. A guarnição republicana serendera; a cidade estava em poder de Astra.

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Espantado e aturdido, desfilei pela Artéria central ao lado da Rainha,com Ilde um pouco atrás de nós, conduzindo o focinhudo que transportavao Coronel Bom, humilhado e ofendido demais para dizer uma só palavra.Astra e eu próprio éramos aclamados pelo povo. Ilde também era festejada,tornara-se também uma heroína.

Astra instalou-se no prédio do governo local e dali dirigiu uma procla-mação a todo o Reino de Miramar (não mais República) e a todo o mundo.

— A RAINHA OCUPA O SEU TRONO! — disse Astra. — Eu sou a Rainhade Miramar. E que Deus me ajude, pois quero ser a Rainha da Justiça e daTolerância. Peço ajuda também ao povo de Miramar. Não tenhamos ódio denossos inimigos! O Coronel da Repressão será libertado em troca de prisionei-ros. A República da infâmia está com seus dias contados. Ainda ocupa lugar,mas por pouco tempo. Não tenhamos medo: A VITÓRIA SERÁ NOSSA!

CAPÍTULO IXCAPÍTULO IXCAPÍTULO IXCAPÍTULO IXCAPÍTULO IXComo MestrComo MestrComo MestrComo MestrComo Mestre Mont Reencontra a Si Mesmoe Mont Reencontra a Si Mesmoe Mont Reencontra a Si Mesmoe Mont Reencontra a Si Mesmoe Mont Reencontra a Si Mesmo

Passaram-se luas e luas. Muitas luas mesmo. De Cristal a Janeta, des-filando pelos céus noturnos, o nosso cortejo de luas lembrava-me constan-temente o grande acontecimento que seria a minha união com Astra. Arebelião ia de vento em popa. Só esperávamos a tomada da Grande Capitalpara ali realizar o matrimônio real. Eu me sentia feliz, eufórico, emboracertas crises de melancolia me assaltassem na ausência de Astra. Eu tinha àsvezes longas conversas com Leil e Wagner, e assim ficara sabendo de muitosdetalhes da infância e adolescência de minha amada: seu amor pelos ani-mais, pela justiça, seu gosto pelos esportes, lutas e manejo de armas. Cadavez mais admirava Astra, cujo talento chegava até a literatura: era autora delivros de poesia, ensaios, zoologia empírica... livros que circulavam em edi-ções clandestinas e certamente agora seriam oficialmente publicados. Quebelo casamento eu iria fazer! Quando poderia sequer imaginar que o meudestino seria tão grandioso?

Certa tarde eu me encontrava folheando alguns papéis na escrivani-nha de madeira-de-lei, no quarto que ocupava no Palácio da Formiga —onde nos alojáramos temporariamente enquanto preparávamos a marchasobre Buletânia. Nisso bateram na porta.

— Entre! — falei despreocupadamente. Não fechara a porta; de restosabia que estávamos em segurança.

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A porta se abriu e eu me voltei para a esquerda, procurando verquem era.

Ilde estava ali. De pé, junto ao portal.— Alô, querida! Entre, por favor.Só então reparei em como ela estava séria. Ela não estava, é claro, ves-

tida como nos velhos tempos. Usava elegante calças de linho, uma blusamulticolorida, um boné informal, umas botas elásticas. Astra fizera um bomtrabalho em seu visual. Já não fazia lembrar aquela garota descalça e des-grenhada dos velhos tempos.

Ou será que fazia?Ela entrou no quarto e se aproximou de mim; levantei-me para

cumprimentá-la. E ela se dirigiu a mim com um tom de voz mais tristeainda que a sua fisionomia:

— Mont, tenho algo para te dizer.(Ela nunca mais se dirigira a mim na segunda pessoa).— Sim?— Eu vou-me embora, Mont. Estou de partida.— O quê? Você está louca, Ilde? E o casamento? Não vai assistir?— Não.— E o seu emprego como escudeira?— Isso apareceu... aconteceu. Mas eu não quero. Eu te amo, Mont. Por

que deveria ficar nesta circunstância?— Pensei que isso já estivesse superado...— Eu te dei o meu coração e ainda não o peguei de volta. Nem sei se o

farei, Mont. Mas volto para junto de Grimes. Se quiseres me ver, procurepor mim na Estalagem do Bicudo.

Convidei-a a sentar. Sentia-me atordoado. Acostumara-me com a pre-sença fiel e agradável de Ilde e não queria que ela se fosse.

— Espero sinceramente que você mude de idéia.— Não mudarei, Mont.— É uma pena. Eu gosto de você. Em toda a minha carreira de Aventu-

reiro Errante, eu nunca...Ela se ergueu de repente.— Aventureiro Errante! Que dizes! Tu não é mais um Aventureiro

Errante!Aquelas palavras inesperadas e carregadas de desprezo e comiseração,

causaram-me um choque. Ergui-me também.— O que você quer dizer com isso?

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— Então não te enxergas? Tu deixaste de ser um Aventureiro Er-rante desde o dia que aquela mulher pôs os olhos sobre ti. Teu últimoato como Aventureiro Errante foi derrubar aquele esbirro na Estalagemdo Bicudo.

Assim dizendo ela me beijou rapidamente e saiu, encostando a porta.E eu sentei para não cair e ali fiquei, imerso em grande perplexidade.

Ilde se foi , realmente. Pegou suas coisas, atravessou o Grande Ouvido— a essa altura, região libertada — e retornou à Estalagem do Bicudo, ondetudo começou.

Astra, ao saber da deserção de sua escudeira, pareceu triste. No íntimocreio que estava aliviada.

Eu não tinha muito tempo para pensar. A decisiva Batalha de Buletâniase aproximava e eu era um dos coordenadores estratégicos da campanha. Éclaro que hoje em dia isso já é ensinado nos livros, por isso não me detenhonos acontecimentos tão conhecidos. O que posso dizer é que a Capital caiuem 16 de Kepq e o nosso Estado Maior se instalou no Palácio de Vidro.Astra, radiante, iniciou oficialmente o seu governo e na tarde de 18 man-dou me chamar para uma conversa particular.

E lá fui eu. Colocara as minhas insígnias, que há meses eu ocultava. Láestava de novo, em meu casaco, a célebre espada de fogo.

Aproximei-me do gabinete ocupado por Astra, no 5o. andar, e toquei acampainha. Fiquei observando a porta em relevo e cheia de cores belas efortes. Pouca gente, nos últimos séculos, teria esse estro para o entalhe. Asnossas tradições estavam, pouco a pouco, sendo corroídas e isso me inco-modava. A restauração da monarquia conseguiria reverter o processo?

— Entre!Abri a porta. No outro lado do gabinete Astra exercitava-se tocando

um helogofone múltiplo. Reconheci uma suíte de Zipi. Creio que “O Lagoda Chuva”. Astra então interrompeu a música, veio ao meu encontro e mebeijou. Depois indicou-me o divã.

Sentamos-nos lado a lado e ela, acariciando minhas mão, observou:— Mont, temos muito que conversar. Chegou a hora dos nossos pre-

parativos. Nós iremos nos casar em poucas semanas. Pensei no mês de lusol.Agora que o pior já passou, não vejo por que esperar mais.

— Astra... é sobre isso que eu vim lhe falar...— Que ótimo! Você também está ansioso, não é, querido?Era agora ou nunca.

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— Astra, não é isso. Eu não vou me casar com você. Vim aqui paradesfazer o nosso compromisso.

— Como?Eu me ergui e, diante da perplexidade da Rainha, tentei explicar o que

sentia no íntimo. Nas últimas semanas, a partir do meu último encontro comIlde, uma sensação crescente de pânico ia tomando conta de mim. O pavor deestar para dar o passo mais errado da minha vida era como um fantasma visí-vel que me seguisse por onde eu fosse... zombando de mim, acintosamente,escarnecendo-me às gargalhadas. Eu temia não me sobrar coragem para falar averdade à Rainha Astra — que já não era mais a Rainha Secreta.

— Rainha, eu sou um Aventureiro Errante. Sou o que sou. É essa a vidaque eu escolhi. Só à custa da perda de minha identidade eu poderei metornar uma cabeça coroada. Não é o que eu quero da vida.

— Mas, querido, eu te amo!— Eu também a amo, Astra. Mas até que ponto? Ao ponto de nos ca-

sarmos? Não temos tanta afinidade e, a meu ver, entre os seus auxiliaresexistem homens competentes e de bom caráter... procure escolher um deles.

Ela se aproximou, abraçou-se a mim, era a própria imagem da derro-ta. Eu me senti um verme asqueroso.

— Não acredito, Mont, meu amor! Que te aconteceu para mudares deidéia assim de repente?

— Você já está falando como Ilde... — deixei escapar.— Ilde!Ela se afastou de mim, fitou-me com mágoa no olhar.— Já compreendi tudo. Está escrito em seu rosto. Você a prefere.Sentou-se na cadeira mais próxima, estremecendo de emoção.— É isso, não é?Fiquei em silêncio.— O seu silêncio é confirmação — disse ela.— Está bem. Digamos que Ilde é mais próxima de mim. Mas eu não sei

se ela ainda me aceitará. Afinal, ela se despediu de mim e foi embora.Astra sorriu. Era uma mulher forte: não se debulharia em lágrimas.— Querido, o que você tem que fazer agora é ir atrás dela. Eu compre-

endo a sua atitude: enquanto ela estava por perto você não percebeu... oquanto a amava. Foi isso, não foi?

— Talvez.Não achei necessário revelar-lhe as palavras de Ilde: “Tu não é mais

um Aventureiro Errante!”...Etc.

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A Rainha se ergueu.— Mont, espero assistir ao teu casamento. Espere um pouco.Abriu um armário, remexeu uma prateleira e afinal me trouxe um

cofrezinho de ouro com a chave igualmente dourada.— Leva. É o meu presente para Ilde. E os que eu já te dei, fica com eles.Abraçou-me longamente e beijou-me.— Vá, Mestre Mont. Prepare a sua partida. Não se demore, porque o

amor não pode esperar. Vá atrás de Ilde e depois me traga o resultado.

CAPÍTULO XCAPÍTULO XCAPÍTULO XCAPÍTULO XCAPÍTULO XComo MestrComo MestrComo MestrComo MestrComo Mestre Mont Fe Mont Fe Mont Fe Mont Fe Mont Finalmente Toma a Iniciatiinalmente Toma a Iniciatiinalmente Toma a Iniciatiinalmente Toma a Iniciatiinalmente Toma a Iniciativvvvvaaaaa

Cerca de dez dias depois, no crepúsculo azul que embelezava o PicoMalvado, eu me vi, após uma longa travessia de trem e de focinhudo, maisuma vez diante da velha Estalagem do Bicudo. Onde tudo havia começado.

Desci do Crock, meu focinhudo, último presente de Astra. Uma jovemdesconhecida e uniformizada aproximou-se de mim:

— Boas Luas, Aventureiro. Vais dar a honra de te hospedares em nossohumilde albergue?

— Boas Luas, menina. Sim, penso que farei isso. Mas antes quero queme leve à Grimes. Sou um velho amigo dela.

A mocinha sorriu, os olhos brilhando de admiração.— Pois não, ó Aventureiro. Entra e senta, que vou acomodar a tua

montaria. Lá dentro há gente que te atenderá.Entrei. Meu coração batia forte. Afinal, pensei, por que eu procurava a

Grimes e não diretamente a Ilde? Medo de que já não estivesse lá?“-Ajudantes de estalagem vem e vão, vão e vem...”Desci novamente os degraus de pedra rosa e encaminhei-me para a

portaria. No momento estava vazia. Sentei-me perto e fiquei esperando.Um rapazinho acercou-se de mim, soube que eu procurava a dona da

estalagem e foi buscá-la.Cinco minutos depois lá veio a Grimes. Não tinha mudado nada, sua

tez avermelhada e seu olhar enérgico permaneciam iguais. Ela correu paramim e me abraçou com força.

— Oh, Mestre Mont! Que maravilha rever-te! Eu não esperava por isso!— Não sabias que eu viria?— Nada se sabe de ti há dias. Os boatos sobre o teu desaparecimento

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me encheram de preocupação. Sabes que agora estamos em segurança: aCantolândia e o Grande Ouvido estão com a Rainha Astra. E tu és o heróinacional, tu que apoiaste a nossa Rainha e te tornaste o seu noivo.

— Grimes, antes de entrar nesse assunto eu quero saber sobre Ilde.Ela está aqui?

— É claro que está, Mestre Mont! Está regando o jardim, sabes queessa é a melhor hora...

— Está bem. Depois nós falaremos, Grimes. Vou lá falar com ela.— Como quiseres!Tornei a sair, reencontrei a auxiliar que me atendera e disse-lhe que já

não precisava de ajuda. Contornei a estalagem e dirigi-me ao jardim que tãobem conhecia, situado à direita do prédio.

Avistei Ilde pelas costas. Numa estreita viela entre canteiros perfuma-dos, com uma mangueira, parecia mais atraente do que nunca, com umasaia comprida e florida, um corpete amarelo, os braços nus e os pés, comode hábito, livres. A pele esverdeada de Ilde estava lindíssima ao crepúsculo.

— Ilde! — chamei.Ela levou um choque e voltou-se sem largar a mangueira. É claro que

eu levei um banho.— Mont!Ela largou a mangueira, embaraçada e correu para mim, sem coragem

para me beijar:— Mont, Mont! Desculpa por essa... Mas o que fazes aqui?— Ilde, querida, pode me beijar.— Sim...?— Eu desfiz o meu compromisso com Astra. Eu sou seu, Ilde. Não há

outra mulher no mundo a quem eu deseje.— É sério?— E eu sou homem de brincadeiras?Aproximei-me dela, enlacei-a e beijei-a com quanto amor tinha. Ilde

estava radiante:— Mont, Mont! Querido! Amor! Eu sabia que um dia conseguiria te amarrar!

EPÍLOGOEPÍLOGOEPÍLOGOEPÍLOGOEPÍLOGO

Interrompem-se aqui as memórias de Mestre Mont Gluxil, o mais fa-moso Aventureiro Errante de sua época. Há quem diga que a felicidade não

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se narra, mas só a desgraça. Talvez por isso Mont não quis escrever além doponto em que as suas duvidas cessaram de existir, com a definitiva união desua vida. Mont e Ilde jamais se separaram. Entretanto, nós que, de umaperspectiva de vários séculos, nos inclinamos sobre essas vidas ilustres, nãopodemos deixar de dar alguma notícia sobre o que ocorreu depois.

Queixam-se alguns críticos que o memorial de Mont debruça-se so-bre fatos irrelevantes e passa ao largo dos grandes acontecimentos relacio-nados com a revolta de Astra I. De fato, quem lê somente esta memória ficacom a impressão de que a Rainha Secreta obteve facilmente o trono de Mi-ramar. Na verdade, por cinco longos anos ainda ocorreram combates, vistoque o sul do país com Tenácia como centro de resistência, opôs-se feroz-mente às pretensões da jovem herdeira. Aos que lhe cobravam essa aparen-te incoerência Mont respondia não ser de seu interesse fazer história militarou castrense, mas narrar em minúcias os fatos particulares que o levaram amaior decisão de sua vida, ou seja, o casamento com Ilde Long, que se rea-lizou naquele mesmo ano, tendo Grimes, Leil, Wagner e Tel como padri-nhos e com a presença de Astra I.

Todos os acontecimentos aqui narrados são histórias que teriam per-manecido nos bastidores da História, se Mestre Mont não tomasse a inicia-tiva de anotá-los. Daí que a rebelião de Astra apareça mais como pano defundo, sobressaindo o curioso triângulo amoroso Astra - Mont - Ilde.

Astra casou-se mais tarde com Fuquet, um de seus auxiliares mais chega-dos, e gerou vários filhos e filhas, garantindo assim a continuação da dinastia.

Astra governou com prudência, tolerância e sabedoria. Ao consolidarseu poder anistiou os adversários políticos, inclusive o Coronel Bom. Esteagradeceu armando o célebre atentado de Lurneburne. Como contam osmanuais de História, Astra saiu gravemente ferida e Fuquet perdeu parte deum dedo, mas o coronel perdeu a vida. Anos depois, prosseguindo o impasseda guerra civil, Astra e o Conselho de Torelan chegaram a um acordo, cri-ando o regime Misto — único no planeta — de monarquia e república, queaté hoje subsiste.

Wagner e Leil permaneceram fiéis à sua rainha até o final de seus dias,e ambos morreram em paz.

Grimes aposentou-se três anos depois dos fatos aqui narrados; aindaviveu bastante. A Estalagem do Bicudo ainda existe, embora jádescaracterizada.

Ilde long casou-se com Mont Gluxil e tornou-se, ela própria, uma Aven-tureira Errante — uma das poucas mulheres que seguiram esse gênero de

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vida típica de Miramar. Juntos viveram muitas aventuras e tiveram quatrofilhos, inclusive duas gêmeas.

Sempre mantiveram amizade com a rainha, que os recebia bem e muitasvezes comia com eles.

Astra I foi feliz com o marido. Pessoas mais chegadas a ela, contudo,afirmaram que Astra levou para o túmulo a tristeza íntima que sentia pornão ter podido se unir com o homem a quem realmente amava.

Esta é a história, esta é a saga da Rainha Secreta, que os contadorespropagaram de geração em geração.

E, segundo eles, nunca mais, sobre a face do Mundo, surgiu governanteigual a Astra I — a bondosa, a sábia, a grande Rainha de Miramar.

Balada Para Três HeróisBalada Para Três HeróisBalada Para Três HeróisBalada Para Três HeróisBalada Para Três Heróis

E assim no Reino de Miramaro Bem triunfou sobre o Mal

e a mão forte de uma mulherergueu a justiça na vitória final!

Esta é a saga de Astra Primeiraa Rainha Secreta, a Justiceira.

E esta é a saga de Mestre Mont,o Aventureiro, o viajor...

E é também a sagade Ilde, a mocinha

que venceu a Rainhacom a força do amor...

E esta é a sagade Ilde, a mocinha

que venceu a Rainhapela força do amor!

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A CASA DO MEDOA CASA DO MEDOA CASA DO MEDOA CASA DO MEDOA CASA DO MEDO

O apito tocou.Não foi fácil levantar, ainda que, passada a maior parte da sonolência,

eu já levantasse transido de medo, movido a medo. Um medo que me acom-panhava por toda a parte dentro dos limites da casa flutuante.

Quando terminei minhas orações atrevi-me a olhar para fora, atravésda janela de 30 centímetros quadrados, com tampa corrediça.

A água estava escura como de hábito, com aquela tonalidade conferidapor limos seculares. Recendia a podridões ocultas e onipresentes, enquanto ohorizonte distante mostrava apenas água, água e mais água. As ondulaçõeseram suaves e inerciais. A água ondulava uniforme e tranqüila, como já o fizeraontem e anteontem, e antes de anteontem, e certamente ainda iria fazer ama-nhã e depois de amanhã, e depois de depois de amanhã. Eternas ondas.

A vista procurava instintivamente alguma nuance na eterna cor, al-gum risco que escurecesse ainda mais aquele verde-garrafa, algum sinal demovimento subaquático. Passavam semanas e meses e nada acontecia, excetoa deterioração de nossos nervos, um fenômeno constante e provavelmenteirreversível.

Quando cheguei à cantina, Oliveira já estava lá, examinando sua xíca-ra branca, aparentemente farejando-a. De fato, na maneira como as xícaraseram aquecidas, ou quem sabe por efeito de impregnações sucessivas deleite, o cheiro era agradável.

Ele olhou para mim e observou:— Alguma novidade?Pergunta estúpida. Qual a novidade que já não nos pusesse a todos em

polvorosa?— Nenhuma. Bem, creio que vi umas fragatas ao longe...— Acho que há dez anos não como carne que não seja galinha. Elas

estão muito raras, muito difíceis...Eu não estava com vontade de conversar. Sentei-me e examinei minha

xícara branca. Observei o fogareiro e a torradeira. O cheiro era agradável.Afinal, os trigais de estufa eram a grande riqueza que nos restava...

Trabalhar, trabalhar, trabalhar. Filtrar a água, filtrar a água, filtrar aágua. Lavrar, cultivar, colher, lavrar, cultivar, colher, lavrar, cultivar, colher.Calafetar, calafetar, calafetar. Remendar, remendar, remendar. Vigiar, vigi-ar, vigiar. Sempre.

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Oliveira foi até o fogareiro, retirou as omeletes e panquecas e colocou-as sobre a mesa de metal.

— Eu gosto de madrugar. Não sei porque os outros são tão preguiço-sos.

Eu preferia assim. Poucos levantavam no primeiro apito, que dizia se-rem cinco da madrugada. Mas eu gostava de comer a sós, ou quase. O medoestava lá, pouco menos do que palpável. Oliveira também tinha medo. To-dos tinham, mesmo quando evitavam falar nisso.

Comecei a colocar o leite de cabra na minha xícara. Oliveira, muitoocupado em passar pasta de amendoim numa fatia de pão, parecia não selembrar, desta vez, de comentar a minha obstinação em não constituir fa-mília.

E então a casa flutuante sacudiu, sacudiu violentamente, como se apa-nhada por uma onda-monstro.

O leite entornou. Xícaras, pratos e as omeletes e panquecas caíram aochão. Ao mesmo tempo luzes vermelhas se acenderam e um trilo sinistro sefez ouvir.

— Chegou a hora! — gritou Oliveira, em pânico. Vamos chamar todomundo!

Corremos para a sala de combate, no alto da barcaça. De lá, homens,mulheres e crianças, todos portando chicotes elétricos, puseram-se a lutaratravés das portinholas, contra as fúrias que nos atacavam. Tentáculos re-pulsivos e hediondos erguiam-se nas águas imundas e revoltas e subiam atéo alto da casa, tentando abarcá-la e envolvê-la, para nos puxar a todosrumo ao fundo. Por todo o perímetro da sala de combate brandíamos nossasarmas, chicoteávamos aqueles malditos braços de molusco, tentando fazê-los desistir. Creio que havia bem uma dúzia daqueles seres, era um ataqueem massa. O barco, sob piloto automático, tentava prosseguir — mas, segu-ro pelos monstros, quase não avançava. Jogamos algumas bombas de pro-fundidade e alvejamos seguidamente os tentáculos. Alguns se introduzirampelas estreitas portinholas e enlaçaram várias pessoas, marcando-as comsuas ventosas, mas Oliveira, eu próprio e alguns outros cortamos aquelesmembros asquerosos com golpes de machado. Finalmente, após meia horade combate insano, os Krakens foram repelidos, não sem causar sérios pre-juízos em nossas estruturas, nos tanques hidropônicos e até nos alojamen-tos de animais, tendo arrebatado galinhas, porcos e cabras.

Dizem as lendas que o mundo nem sempre foi assim. Um dia existi-ram continentes, que eram extensões intermináveis de terra firme, povoa-

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das por animais, plantas e seres humanos em número incalculável. Mas asexperiências com a energia atômica dissolveram as calotas de gelo dos pó-los e as demais geleiras, desagregaram os continentes e fizeram subir o níveldos oceanos. Quando terras e mares se misturaram, a superfície da Terratransformou-se nesse imenso alagado mal-cheiroso, lamacento, de profun-didade geralmente pequena e habitado por polvos imensos, frutos de muta-ções radioativas, criaturas que, ao que parece, nutrem profundo ódio pelogênero humano. E o que resta da humanidade reduziu-se a isto: pequenosgrupos em casas flutuantes, onde tudo tem que existir em concentração:agricultura, indústria e comércio. As poucas ilhas não comportam mais gentee nenhum barco está a salvo dos ataques de polvos. Vivemos com medo, ummedo onipresente, que penetra até a medula óssea... Antes, a humanidadedominava o planeta. A ponto de devastar a natureza e dizimar os animais,levando inúmeras raças à extinção...

Assim dizem as lendas.Desolados, demos início ao penoso trabalho de reparação.

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O QUE EXISTE ENTREO QUE EXISTE ENTREO QUE EXISTE ENTREO QUE EXISTE ENTREO QUE EXISTE ENTREAS ESTAS ESTAS ESTAS ESTAS ESTAÇÕES DO METRÔAÇÕES DO METRÔAÇÕES DO METRÔAÇÕES DO METRÔAÇÕES DO METRÔ

De há muito que eu percebo em mim uma sensibilidade mórbida eacentuada, de maneira que freqüentemente noto coisas que as outraspessoas não suspeitam. O sentido da visão, especialmente, é em mimbastante aguçado sob certas condições; falando em português claro, napenumbra, em ambiente sombrio ou de trevas, desde que não seja aescuridão total.

Já em criança fui muitas vezes advertido por meus pais e tios porque,no mato ou em qualquer lugar mais ermo, ou até na cidade, eu via formasestranhas e assustadoras, como morcegos com faces humanas (porém hor-ripilantes) cruzando os ares, ou pássaros com estranhas flamas no olharempoleirados em galhos altos e protegidos pelas sombras da noite. Sim, por-que a minha visão especial mostra, por via de regra o horrível e medonho!O que as pessoas não crêem e nem querem que exista...

Nos últimos tempos passei a ter intensas visões dentro do metrô do Riode Janeiro. Sentado junto à janela, olhando para o exterior, quando a com-posição se move entre as estações, célere. E o que vejo é abominável!

Você já deve ter reparado que, nas estações, o piso prossegue pelostúneis escuros, por onde é vedada a travessia de pedestres. Certamente quefuncionários do próprio metrô por lá podem circular, até porque existeminstalações além da área aberta ao público. Desconfio porém que trechosexistem, mais para o meio dos percursos entre as estações, por onde nin-guém normalmente circula, já que não teria ali o que fazer. Nesses trechosmais escuros, especialmente entre as estações seqüenciais mais afastadasentre si, é que eu enxergo, encostando-me à janela do trem, os monstrosinfames que ali habitam, sem que a população, que caminha na superfície,ao menos desconfie.

Às vezes são seres bípedes, horrendos, de negras asas de quirópteroque agitam no ar viciado do túnel, enquanto seus olhos vermelhos e perver-sos fitam a composição que passa e parecem mesmo me olhar de relance,como se adivinhassem que eu os vejo, enquanto seus caninos aguçados re-fletem alguma luz de origem desconhecida.

Quando o trem pára entre as estações, como às vezes faz perto daSaenz Peña, posso observar com mais atenção, embora tomando cuidado

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para que as outras pessoas não me percebam excitado ou agitado. Vejo muitasvezes criaturas execráveis, com patas e escamas reptilianas, estendendo suaslínguas bífidas ameaçadoramente em direção ao metrô. Há também seresque desafiam a descrição, que parecem brotados do granito das paredes,como se fossem apavorantes pedras movediças, abrindo goelas imensas. Ouainda, lobisomens como o que eu vi pouco antes de chegar ao Largo doMachado, agitando o punho fechado na minha direção e atirando-me comexpressão feroz alguma ofensa obscena que eu não pude ouvir...

Quando você passa na Estação Afonso Pena, pode reparar nos painéisazuis e no extintor pendurado logo no início. Pois pouco antes disso eu viserpentes horripilantes subindo na pedra como lacraias. Entre o Estácio e aPraça Onze (no lado esquerdo do trem, mas olhando para trás, por causa daposição do banco) você pode enxergar o túnel de ventilação, que chega até arua. Uma estranha mão negra é vislumbrada saindo da penumbra. Não seconsegue ver mais nada.

Entre a Praça Onze e a Central vejo pássaros de fogo, com dentes, esvo-açando no túnel gradeado. Mais adiante, um alojamento. Sim, existem alo-jamentos de funcionários do metrô, a poucos passos do sobrenatural. E elesnada percebem! Ou será que percebem mas se calam?

Olho o mapa da cidade na estação Central. Corremos em direção àparada conhecida como Presidente Vargas. A distância é pequena. Dá paraver um banheiro, já fora da grande Estação Central (não há banheiros parao público no Metrô — e os dos empregados já ficam na parte interdita),poucas luzes de néon, que iluminam vagamente uns monstros vegetais, achapa de interdição e o corredor, que você deixa para trás ao chegar emPresidente Vargas.

Indo para a Estação Uruguaiana, vejo buracos quadrados onde raste-jam vermes asquerosos. Numa das pilastras de cimento, agarrado com asventosas das patas e de cabeça para baixo, um pterossauro ou coisa pareci-da. Estamos na Estação Carioca e eu presto atenção no circuito fechado detv e nos relógios.

Vejo funcionários já nas partes escuras, logo antes e logo depois daEstação Cinelândia.

Estão todos cegos para o que eu vejo?Depois da Glória enxergo fios, luzes e cavernas. Há um dragão numa

dessas cavernas, e solta uma labareda na minha direção. Creio que eles meconhecem há tempos e não gostam da minha intromissão. Depois do Catete,uma forma indizível, lustrosa, agarrada num basculante...

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E assim chego ao meu destino com a mente povoada dessas apariçõesmonstruosas. E cada vez mais se firma em mim a convicção de que essascriaturas querem alguma coisa, planejam algo, não estão lá apenas vegetan-do.

De onde vieram? Talvez do centro da Terra, onde existem cavernas detamanho inconcebível. E se agora estão tão próximo da superfície, talveznão sejam mais que a guarda avançada de um exército de monstros que sepreparam para invadir o nosso mundo e nos destruir.

Preciso fazer alguma coisa. Mas o quê? Se conseguir matar alguns da-queles seres e exibir sua carcaças, as autoridades acreditarão em mim. Eusei como se fabricam bombas-relógio. Farei várias. Atravessarei a placa deinterdição e invadirei o domínio dos monstros. Ei de matar ao menos um...

RELRELRELRELRELAAAAATÓRIO DO DETETIVE ELIÉZERTÓRIO DO DETETIVE ELIÉZERTÓRIO DO DETETIVE ELIÉZERTÓRIO DO DETETIVE ELIÉZERTÓRIO DO DETETIVE ELIÉZER“A descoberta desse diário do infeliz Sigmundo Ramos, a meu ver, es-

clareceu o assunto. Tratava-se evidentemente de um desequilibrado, e sópossuía livros de bruxaria ou coisas semelhantes. Curiosamente, era umbancário e seus colegas não sabiam das suas obsessões. Trazia em sua mo-chila várias bombas de fabricação caseira, mas só uma explodiu, no trechoentre as estações de Glória e Catete. Fora a morte de Sigmundo, quase nãohouve danos. Na minha opinião ele deixou a mochila no chão para atacarum dos “monstros”com apenas uma bomba; depois usaria as outras. Mas,no estado de superexcitação nervosa em que se encontrava, não calculoubem o tempo...

Resta somente explicar a origem do chifre negro e quebrado, que en-contramos perto do cadáver.”

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NÃO É HUMANONÃO É HUMANONÃO É HUMANONÃO É HUMANONÃO É HUMANO

Quando a noite chega, invariavelmente recordo os terríveis acontecimentosque agora me proponho a narrar. Medito, muitas vezes, na singular qualidadedos eventos que conduziram inadvertidamente minha existência até aqueleponto crítico — o ponto da voragem, do horror que se instalou em minhamente e me tornou um homem neurótico, dependente de tranqüilizantes.

Não tenho coragem e nem vontade de divulgar em vida o que testemu-nhei. Acredito, porém, que colocar minha pavorosa experiência no papelfuncionará, ao menos, como um derivativo salutar para a minha psiqueenferma. Após minha morte, que já não deve andar distante, quem vier a lerestas páginas fará o que quiser com elas. Provavelmente as destruirá, con-vencido de se tratar de mero sonho louco de um homem velho e esclerosado.Será melhor assim. Até porque o que tiver que vir, se vier, não será agoranem depois — será, que Deus o permita, num distante futuro. Ou talveznão venha nunca — como uma sombra negra que se aproxima ameaçadoramas, pelo fato de ser uma sombra, não será capaz de nos tocar.

Lembro-me bem daquela tardinha em que, distraído com o vôo alegredas carriças, aproximei-me da Biblioteca Municipal de Pedra Torta, ondevivo há muitos anos. Tem sido essa cidade preguiçosa o meu refúgio detranqüilidade — ou assim foi até aquela data. Hoje... mas não antecipemos.

Eu geralmente procurava livros de forma aleatória e me decidia maisou menos ao acaso. Naquele dia, depois de trocar um dedo de prosa comBerta, a velha bibliotecária, dirigi-me a uma estante esquecida, no fundo deuma ala empoeirada e sem muita luz. Dava-me a vontade de ir lá no fundo,garimpar alguma raridade. E foi lá, entre lombadas sebosas e gastas, queenxerguei um título incrível, já mal visível por faltarem pedaços do papel.Perplexo, retirei o volume a custo, pois estava muito apertado entre os ou-tros livros da estante. Confirmei na capa: NECRONOMICON. Só que, emletras menores, lia-se: VOLUME II.

Tanto a capa como as páginas estavam roídas de traças, mas o texto,aparentemente, ainda não sofrera mutilações. Fitei espantado, mais umavez, o título, e mais embaixo, as palavras: “autor desconhecido”. Há muitosanos atrás, em Miskatonic, na Nova Inglaterra, eu vira o Necronomicon,atribuído a um autor oriental, e ignorava a existência de um segundo volu-me. Não lera de todo aquele estranho livro — era muito pesado para o meuestômago ainda jovem. Lembro-me porém vagamente da coleção de horro-

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res que o compunha, do princípio ao fim. Era talvez a obra mais horripilan-te do mundo, baseada na insistente idéia de que forças pavorosas se embos-cam permanentemente nas sombras, na zona do crepúsculo, vigiando ahumanidade, esperando, esperando... um monstruoso ressurgir.

Agora eu tinha nas mãos o segundo volume, editado pela TypographiaOceanno — assim, com esta grafia — ano 1921. A tradução era de umcerto Carneiro Guedes, e não existiam outras indicações salvo esta informa-ção: “traduzido do original armênio”.

Embora nunca tenha sido muito ligado em assuntos esotéricos, deu-me vontade de ler aquela raridade. Por curiosidade científica, de professoraposentado. Levei-a para Berta anotar o empréstimo e sentei em frente àsua mesa, passando-lhe a obra. Ela olhou, algo admirada, e comentou: —Hum! Faz muito que ninguém lê essa coisa...

— Você já leu?— Eu? Eu não! Isso não faz o meu gênero...Começou a preencher a ficha, apondo carimbo datador e assinatura.

Nesse ponto alguém se aproximou de nós.— Por favor...Voltei-me. À minha esquerda surgira um homem alto e magro, com

um terno surrado e cinzento — apesar do calor que fazia — de rostoesquelético e olhar estranho.

— Desculpem, mas eu estava atrás desse livro.— Chegou tarde, moço. Ele já foi emprestado a este senhor aqui.—

Berta me indicou.— Sim, mas eu tenho urgente necessidade dele. É para uma pesquisa.

O senhor não poderia desistir de levá-lo hoje? Depois o senhor levaria.Era uma proposta tão esdrúxula que nem cogitei em aceitá-la. Afinal

eu pegara primeiro e isso tinha que ser respeitado.— Meu amigo, dentro de quinze dias eu devolverei esse livro. O se-

nhor não pode esperar?— Não, não! O senhor compreende... é para uma tese que eu preciso

completar. Tenho prazo. Fiz uma longa viagem porque soube que este livroestava aqui... não posso me demorar quinze dias... preciso dele agora.

Aquilo me pareceu ridículo e abusivo. Eu duvidava daquela história.Talvez ele fosse apenas louco, acromaníaco ou esquizofrênico, sei lá. Dequalquer modo eu não via razão alguma para atendê-lo.

— Lamento muito mas não posso ajudá-lo. Eu também sou um pesquisador.Voltei-me para Berta:

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— Não haverá outro exemplar?— Tenho certeza que não.Ela sorria amarelo, e sua expressão me dizia: — Que fazer, de vez em

quando surgem esses tipos excêntricos.Quando me voltei para o desconhecido, creio poder dizer que tive um

choque. Tentarei explicar o que se passou, pois foi tudo num relance. Ohomem estava meio inclinado para frente, seu narigão apontado para o li-vro, talvez a uns 70 centímetros de distância. Analisando depois sua atitu-de, era como se, naquele momento, ele estivesse prestes a se atirar sobre oalfarrábio, arrebatá-lo e sair correndo. O tipo da coisa que normalmenteninguém faz. Pareceu-me também que ele estava extremamente nervoso e,finalmente, houve também a forte impressão de um odor acre, estranho,embora pouco perceptível. Tudo muito vago para que eu pudesse ter qual-quer tipo de certeza.

Mas enfim eu me ri, intimamente, das próprias tolices. O sujeito sedesculpou e saiu contrariado, em passos duros e desgraciosos, como se aspernas fossem muito artríticas. Voltei-me para Berta:

— Que tipo esquisito! Já o conhecia?— Eu? Olhe, estas rugas aqui já testemunharam muita coisa, mas esse

tipo eu nunca vi... mas você não o escutou falar que fez uma longa viagem?Ele não é daqui.

Fui para casa com o Necronomicon cuidadosamente embalado numplástico que costumo carregar para isso mesmo. Cheguei na minha casa,onde moro sozinho, salvo uma governanta idosa, que está comigo desde ostempos em que minha esposa era viva, e o Gonçalo — nome muito humanoque eu dera ao meu pastor belga. Idalina, porém, ausentara-se para visitara filha durante alguns dias, de modo que preparei eu próprio o lanche —habitualmente, já não janto há 30 anos. Comi torradas com maionese efolhas de brócolis, um chá de camomila, azeitonas e pudim de ameixas.Mais tarde fui para meu gabinete e, levado por irresistível curiosidade ati-çada pelo incidente, pus-me a ler o livro emprestado.

A partir deste ponto hesito em continuar escrevendo. O abismo dehorror inumano que se abriu diante de minha imaginação, e que até hojeme consome, é indescritível. Não quero remoer estas coisas, mas algunstrechos daquele livro maldito precisam ser aqui mencionados:

“Quase todas as pessoas julgam que os humanos são os Reis da Cria-ção, ou quiçá a única espécie inteligente do Universo. Entretanto isto nem é

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verdade somente em relação à Terra. Nosso planeta é antiqüíssimo, ao me-nos para os nossos padrões, e através das incontáveis eras geológicas, antesde Adão, outras raças aqui estiveram e dominaram. É possível que a graçadivina somente tenha se estendido à raça adâmica e que , portanto, os seresque aqui antes estiveram sejam essencialmente malignos, e por esse motivomergulharam no oblívio, incapazes de permanecer à luz do dia. Não setrataria de um privilégio da raça humana, mas antes de uma condição assu-mida por seres que, como Lúcifer, sabendo e podendo demais, quiseramdemais. Assim o Grande C’thulhu, que hoje jaz no fundo do oceano, inerte,e que sonha voltar um dia à glória antiga, de 50 milhões de anos atrás. Antesde C’thulhu, porém, há 100 milhões de anos, existiu uma poderosa raça, notempo em que os dinossauros pululavam sobre a Terra.”

“ [...] os Saltodontes eram também dinossauros, com duas característi-cas que desde já devem ser mencionadas: 1ª) eram racionais; 2ª) até os diasde hoje são totalmente ignorados pela Ciência Humana. E isto aconteceuporque, até agora, a Ciência Humana recusa-se a abandonar a sua posturapreconceituosa, e recusa o quanto pode a tudo que eventualmente venha aabalar os seus esquemas. Ora, assim como o homem pode ser consideradoum primata, sendo porém imensamente superior a qualquer macaco oulêmure, assim o Saltodonte era de todo superior a qualquer sáurio irracio-nal. Tiranossauros, iguanodontes, tricerátopes, plessiossauros, alossauros,titanossauros, eram todos seres irracionais e estúpidos. O Saltodonte eracivilizado, possuía veículos e escrevia livros, embora fossem de aspecto di-ferente dos livros atuais.”

“ [...] a raça dos Saltodontes é, atualmente, uma das raças das sombras.As catástrofes que, na passagem de Nêmesis, eliminaram os dinossauros,destruíram sua civilização. Eles lograram se refugiar em algumas cidadessubterrâneas e, posteriormente, tudo fizeram para eliminar vestígios de suapassagem pela superfície. Vestígios que os cientistas humanos possam terencontrado foram desprezados como serão desprezadas todas as evidênciasde que entes racionais não humanos já existiram no mundo ou talvez aindaexistam. A humanidade só acreditará quando eles efetivamente voltarem —e isto será inevitável, pois eles querem voltar e são poderosos. Aguardamapenas o momento propício para retomar o controle da Terra... eles e ou-tros seres não humanos que aqui já estiveram e que hoje, exilados, sonhamcom a restauração dos seus poderes. Dia virá em que estas diversa raças se

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confrontarão, e nesse dia os humanos não serão mais do que insetos, se umaforça superior não os proteger.”

Já havia se passado bem mais de uma hora quando percebi de súbitoque não estava mais sozinho. Meus sentidos talvez estivessem superexcitadostendo em vista a hediondez absurda de tudo aquilo que vinha lendo, apesarde meu ceticismo. O lado emocional humano é muito vulnerável. Comoquer que seja, levantei de repente os olhos do velho livro e enxerguei ointruso no momento em que ele empurrou a porta do gabinete. Um gabine-te quase invisível da rua, já que se situa no andar de cima e é rodeado deestantes que chegam a obstruir a janela — razão pela qual coloquei verda-deiras luminárias para dispor de iluminação razoável.

Era o mesmo tipo estranho da biblioteca.Naquele momento eu ainda não senti medo. Limitei-me a perguntar

indignado: — Que quer o senhor aqui? Como entrou?— Professor Fiúza — disse ele — lamento, mas existe um motivo mui-

to sério para que o senhor não continue a ler este livro. Existem aí conheci-mentos secretos que não podem ser postos ao alcance de qualquer um. Naverdade este livro não deveria ter sido escrito e nós confiscamos o que pu-demos de todas as edições em todos os países onde saiu. Este é um dos pou-cos que escaparam à nossa caçada. Portanto, entregue-o!

A idéia de estar diante de um louco fez com que eu pensasse comrapidez.

— Como sabe o meu nome? E, repito, como entrou aqui?— Tenho meios para penetrar em residências e sei fazer pesquisas. O

Sr. é uma pessoa conhecida por aqui.Abri a gaveta e puxei o revólver.— Pois bem. Agora não tente nenhuma gracinha.Ele fitou a arma, aparentemente sem medo. Com a mão esquerda, al-

cancei o telefone.E então deu-se a metamorfose.O susto foi tão grande que eu pulei para trás e deixei cair o revólver,

presa de um acesso de tremor violento, como se sofresse de Parkinson. O serà minha frente — porque, de fato, não era um homem — transformara-se.As roupas se rasgaram, a pele tornou-se esverdeada, como um Hulk, mastambém não era nenhum Hulk. Como se aquela epiderme fosse apenas umaestrutura contida, sob algum tipo desconhecido de pressão, aquilo retornouà sua forma primitiva: horripilante, abominável. A forma de um réptil an-

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cestral. Parecia ser um velociraptor. Tinha uma cabeça enorme, pintas emanchas amarronzadas pelo corpo obeso, garras preênseis. Seu olhar nãoera apenas feroz, no sentido que se dá em relação a um leão, por exemplo.Era uma ferocidade antiga, antidiluviana, de uma profundidade que os ho-mens não conhecem. E aquele cheiro amargo, agora evidente, empestava oambiente.

Sua voz também mudara para um sussurro, demoníaco:— Agora você entregará.— Quem é você? — Consegui balbuciar, encostado à parede, num

trecho onde não havia estante, esquecido da arma que jazia no carpete.— Você já deve ter lido. Eu sou um Saltodonte, represento a maior e

mais gloriosa raça que já habitou este planeta. Uma força cósmica nos ani-quilou, mas nós voltaremos. A raça adâmica é miserável e desprezível, e nãomerece saber a verdade a nosso respeito.

Eu procurava ganhar tempo.— Como você podia estar disfarçado em forma humana?— Eis uma prova da nossa superioridade. Nós podemos plasmar nos-

sas formas externas e até as internas. Os nossos que estão infiltrados nasuperfície geralmente não são submetidos a autópsias. Tomamos precau-ções contra isso. Mas se acontecesse, dificilmente descobririam algo estra-nho.

— Há... há muitos de vocês? — Eu continuava paralisado encostado àparede.

— Bastantes, mas não tantos quanto ao tempo em que a malditaNêmesis...

Aqui ele proferiu algumas blasfêmias que não me atrevo a reproduzir,como se odiasse o plano divino que colocara a humanidade na Terra, oucomo se sua raça estivesse em conluio com o Príncipe das Trevas, cuja rebe-lião seria, pois, antiqüíssima, de um tempo inimaginavelmente distante nopassado... quando vestígio algum havia da humanidade. Talvez a primitivarebelião fosse mais antiga que a Terra, que o Sistema Solar, que a Galáxia.Quantas outras raças, ao longo das incontáveis eras cósmicas, pudera alici-ar, até que o Verbo se encarnasse para deter a onda maligna e salvar o Uni-verso? Tudo isso eu julguei compreender ou entrever num relance, numarevelação. Podia ser que aquela especulação nada tivesse a ver com a reali-dade prática que eu tinha diante de mim e que era suficientemente terrível.Até aquela data eu era um agnóstico. Hoje, nem sei.

— E o que vocês pretendem fazer?

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— Limpar o terreno, evidentemente. Hoje induzimos sua raça a recri-ar geneticamente os dinossauros, o que um dia conseguirão. Veja toda apropaganda que existe em torno do assunto. Todos esses animais, nós podí-amos utilizar em nossa civilização. E serão nossa grande arma contraC’thulhu, se este nosso inimigo retornar das profundezas do mar.

A idéia de que a Terra houvesse sido ou viesse a ser apenas o campo debatalha entre forças monstruosas e maléficas repugnou-me ao extremo.Tomando uma decisão, abaixei-me para pegar a arma. O Saltodonte avan-çou e pulou sobre a mesa, mas eu já correra para outro canto da sala, ondeele procurou me encurralar com seus grandes dentes à mostra.

Tentei disparar mas a arma, que nunca fora usada, picotou. Ele avan-çou com a horrível goela aberta...

O cão atacou.Por alguns momentos não foi possível distinguir claramente o que es-

tava acontecendo, aquela massa dupla revolvendo pelo carpete em lutamortal, sem que eu pudesse intervir ou soubesse como fazê-lo. Aquele tur-bilhão, vertiginoso como um desenho animado, logo porém cessou, junta-mente com uns grunhidos horríveis.

E Gonçalo, meu pastor belga, veio até mim, mancando da perna es-querda, pingando sangue... mas inteiro e válido.

E um cadáver repulsivo ali estava, estendido no carpete, a gargantadilacerada a dentadas.

O ser pré-histórico cometera um erro, ao achar que o cão estava presono quintal. Havia uma portinhola de cachorro e Gonçalo a usara ao perce-ber que algo de anormal estava ocorrendo dentro de casa.

Consegui ainda nervos suficientes para realizar algumas investigações.Aquele monstro possuía garras muito interessantes que talvez pudessemabrir fechaduras; mas ao entrar estava em forma humana. Descobri emsuas roupas um curioso aparelho, que até hoje guardo, e que, como pudeverificar, abre qualquer fechadura... pelo menos as que experimentei. Porque ele não entrara logo? Provavelmente perdera minha pista, quando eusaí em meu carro da biblioteca. Este aparelho, aliás, eu enterrarei após com-pletar minhas anotações. Não quero deixar provas do que escrevo.

Também não quero me demorar na descrição desagradável de comodesmembrei o corpo e me desfiz dele aos poucos, jogando pedaços no mar,enterrando roupas, desinfetando o gabinete, trocando o carpete, inventan-do uma desculpa para os ferimentos e a pata quebrada do Gonçalo. Nin-guém ficou sabendo de nada.

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Estes acontecimentos datam de cinco anos atrás.Desde então o pesadelo tomou conta de minha vida. Ao passar pelas

ruas, imagino quantos daqueles homens ou daquelas mulheres serão naverdade dinossauros disfarçados. O meu medo maior, porém, reside no li-vro, aquele amaldiçoado livro que eu não tive a coragem de destruir. Tiveque devolvê-lo à biblioteca e lá está ele, escondido no seu canto escuro,ainda com aquelas informações subversivas, testemunha muda da tragédiaque se abateu sobre mim e me consome dia a dia. Minhas noites são povo-adas de pesadelos, de criaturas ferozes e de dentes pontiagudos, que meespreitam e emboscam.

Se outro agente dos Saltodontes obtiver a pista deste exemplar e vier aPedra Torta, verá o meu nome na ficha de empréstimos e provavelmente meprocurará, para me silenciar. Isto se aquele que morreu em minha casa nãotiver seu paradeiro rastreado. Temo, a cada dia, ser descoberto. Eles não mepoupariam.

Idalina, é claro, notou a decadência de minha saúde emocional e físi-ca, mas atribui sem dúvida esse efeito à minha idade. Só quem sabe e com-preende é Gonçalo. O bom e velho Gonçalo, que hoje, já sem dentes tãofortes, talvez não repetisse a façanha.

Agora só me resta esperar, esperar... e rezar.

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A NA NA NA NA NAAAAAVE DO SILÊNCIOVE DO SILÊNCIOVE DO SILÊNCIOVE DO SILÊNCIOVE DO SILÊNCIO

Como posso descrever a sensação causada por um imenso salão vazio,majestoso em suas colunas, escadas e tapeçarias, bancadas e frisos, vitrais egrandes janelas hermeticamente fechadas, tudo suavizado por luz espectrallilás, iluminando uma área de duzentos metros quadrados, mergulhado nasolidão e no silêncio?

Eis o grande auditório da Janus III. Espantosamente vazio e silencioso.Percorro, lento e perplexo, aquele espaço tão estranhamente vazio, e

olho em todas as direções, inclusive para o teto abobadado. Nada, nada semove, a não ser um pouco de pó em suspensão, diante dos meus olhos.

Uma tremenda sensação de irrealidade me domina. Há três dias —desde que acordei da hibernação — vejo-me entregue a essa sensação, quecresce a cada dia.

Onde foram parar os outros trezentos ocupantes da nave?

Faz um ano e três meses que partimos da grande base espacial àroda da Terra, com destino ao gigantesco sistema de Canopus, em buscade mundos para explorar. Não fizemos nem a terça parte do percursode cerca de 650 anos-luz, mas tínhamos um despertar programado paraessa época — um dos vários, programados justamente para que possa-mos detectar qualquer problema e avaliar a situação da jornada — quan-do devíamos todos permanecer ativos por um mês antes do próximoperíodo de hibernação.

Só que, ao despertar, não encontrei mais ninguém. E nem vestígios dequem quer que seja.

O despertar, diga-se de passagem, foi normal. O sono criogênico éinterrompido pela elevação gradual da temperatura e pela infusão automá-tica de substâncias químicas liberadas por cápsulas implantadas. Devería-mos despertar todos juntos.

Contudo, quando saí de meu casulo não vi ninguém. As portas esta-vam todas abertas, mas não havia ninguém nos casulos e nem nos corredo-res. Nem na torre; nem no refeitório; nem no comando; nem, enfim, emlugar algum.

Rapidamente, diante de mistério tão tenebroso, a perplexidade foi ce-dendo lugar à angústia e esta ao desespero. Desvairado, corri pela imensa

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nave, procurando em cada canto, em cada buraco onde pudesse existir umser humano.

Afinal, o que teria acontecido? Onde estavam todos os tripulantes des-ta expedição?

Quando enfim me acalmei, comecei a inventariar os fatos que pudeestabelecer.

Os objetos pessoais estavam praticamente intactos, salvo alguns quepareciam estranhamente chamuscados. Além dos tripulantes haviam desa-parecido apenas os trajes especiais que eles usavam na hibernação criogênicae os animais e plantas de bordo, vale dizer, os seres vivos, biológicos.

Acessei um terminal de computador. Infelizmente, ao meu pedido derelatório, veio a exigência de impossível cumprimento: digite senha. Eu nãotinha alçada para penetrar nos recônditos do sistema, e nem um treino su-ficiente para burlar o mecanismo de segurança. Não era a minha praia.

A lembrança dos colegas e amigos começou a me pesar horrivelmente.Anabela, por exemplo, a especialista em Química de cabelos compri-

dos esvoaçantes, uma cientista brilhante em corpo de garota. Bem me inte-ressava por ela! Não houve tempo...

Quin, o barbudo, apaixonado por antiquados jogos de dama e xadrez,não dispensava um cálice de Porto de boa safra...

Chou Li, que insistia em comer com palitinhos, como se ainda estives-se na China, e era alvo de muitas chacotas por seus maneirismos e manias epela voz de falsete, num inglês de décima categoria...

Hildebrand, o prussiano soturno, em cujo alojamento descobri certavez uma caixinha de porcelana de cujas pequenas aberturas ovais emanavauma luzinha lilás enigmática — e que se assustou com a minha descoberta,correndo a esconder o objeto...

Temístocles, o braço direito do comandante da expedição, que viviadiscutindo política pelos corredores e proclamava em alto e bom som quenão concordava com os objetivos da missão. Parecia maluquice, na posiçãodele, dizer essas coisas abertamente...

E Rose, a francesinha, que andava em traje de noite naquele ambientede descontração...

E Tanganika, o tanzaniano, que não largava um bloquinho que viviaenchendo de anotações criptográficas e equações complicadíssimas. Nós ochamávamos “Stephen Blacking”...

Onde estavam? Tinham-se evaporado?

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Depois de muito pensar lembrei-me da televisão invisível, um sistemasecreto que só podia ser acessado em caso de emergência e cuja lógica in-cluía a possibilidade de compreender uma situação nova.

Para acessar esse sistema eu teria de convencer o computador da ne-cessidade de franqueá-lo. Entrei na sala de comunicações, onde ficava omaior e melhor terminal, encimado por um belo modelo de engonatão.

Iniciei as minhas tentativas.“Franqueie o sistema invisível.” — Digitei.“Tecle US.”Teclei. A tela mudou do verde para um azul brilhante e pediu:“Digite justificativa.”“Desaparecimento da tripulação da nave, com uma única exceção.”A solicitação foi remetida ao sistema de TVI e eu fiquei aguardando

resposta. Por fim apareceu na tela:“Pode provar sua afirmação?”“Posso. Acione rastreamento geral do veículo.”Agora uma sonda eletrônica, simbolizada por uma porta negra na tela,

foi avançando pelos compartimentos da Janus, esquadrinhando cada cantoonde um ser humano pudesse estar oculto. Em vão, pois naquele mundovirtual, também só eu apareci.

Uma vez “convencido”, o sistema TVI expressou sua concordância:“Está bem. Franquearei o sistema. Tecle ‘S’ e a data desejada.”Informei a última data em que estivera acordado, tantos meses atrás, e

ordenei “avanço rápido”. A tela foi correndo e a imagem se movimentando,temporal e espacialmente. Meses sem nada, aparentemente.

Intrigado e impaciente, resolvi parar a pesquisa no tempo, cerca detrês meses atrás, e pus-me a verificar cada casulo de hibernação, por maisque me causasse enfado a visão daquelas pessoas em animação suspensa.

Após mais ou menos uma hora, algo me chamou a atenção. Algo es-pantoso! No compartimento ocupado por Hildebrand, uma coisa luziu den-tro do armário, através da fresta. Em pouco Hildebrand abriu os olhos ecomeçou a se mexer — mesmo em estado de animação suspensa! Senti umarrepio na espinha, a sensação brutal de estar lidando com alguma coisasobrenatural. Hildebrand levantou-se como um zumbi do casulo plásticoflexível. Seu macacão metálico rebrilhava na escuridão, refletindo a luzmisteriosa que, cada vez mais forte, emanava do armário.

De repente aquela múmia rija de músculos dormentes emitiu gritosabsurdos, que um homem em estado de hibernação não podia emitir:

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— Shogotts! Shogotts! Venha o seu poder, venha! Louvor e honra aoHomem de Areia, ao Necronomicon, a Abdul Al-Hazred! Raça das sombras,dominai tudo! Cumpre o teu destino grandioso! Honra ao grande C’thulhu!Que o princípio do Mal triunfe sobre todas as criaturas!

Aquele discurso ímpio e insensato não parecia partir dos lábios de umser humano, muito menos do cosmonauta culto, a quem eu julgava conhe-cer, mas de um louco furioso ou um fanático satanista. Como a gente seengana com as pessoas!

Continuei observando, fascinado pela cena horrível. Ele abriu desopetão o armário e eu imaginei, naturalmente, que iria ver o que haviadentro. Qual o que! Um turbilhão incrível de luz e trevas, um ciclone demo-níaco ou coisa parecida, qualquer coisa como um frenesi macabro tomou atela inteira num abrir e fechar de olhos, enquanto Hildebrand berrava eberrava de horror, engolfado pela aparição fatal. Como um relâmpago acoisa se propagou em questão de segundos pela nave inteira, escapando-seem seguida para o vácuo. Quando se dissipou, coisa de um minuto apósabertura do armário, já não existia mais ninguém a bordo...

Quando retomei o auto-controle, lutando para não enlouquecer, exa-minei o quarto do Hildebrand e encontrei a caixa de porcelana, aberta echamuscada, dentro do armário. Dentro dela, certamente, encontravam-seas criaturas. Quem eram elas, esclareceu-me o Necronomicon, estranho eabsurdo livro, do qual havia um exemplar nos pertences do engenheiroprussiano. Escrito por Abdul Al-Hazred, o Necronomicon descrevia as enti-dades antiqüíssimas que haviam passado pela Terra e ainda existiam emincompreensíveis dimensões exteriores ao espaçotempo que conhecemos.Seres indescritíveis que, se contidos num espaço minúsculo por matériarefratária, ao escapar liberariam tamanha energia que destruiriam todos osseres dotados de energia biológica ao seu redor.

Segundo o Necronomicon, em Canopus existiam fontes de energia ca-pazes de revigorar as forças esgotadas de tais seres, que para lá se dirigiamsempre que possível — mesmo que decorressem milênios — e aí encon-trar-se-iam prontos para novas conquistas. Quiçá a Terra...

Porém a saída prematura dessas criaturas frustrou seus planos, levan-do-as provavelmente à morte no vácuo.

Por que terei escapado?Por que ainda me encomendo a Deus?Talvez, não ouso afirmá-lo.Quase todos a bordo eram materialistas, o que enfraquece as defesas

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metafísicas. Só Deus sabe, porém, o que realmente me preservou. Pode tersido mero acaso, uma especial disposição de meu casulo no dormitório:

Só me restou contactar a base, transmitir o ocorrido e desprogramar anave, para que ela retorne a seu ponto de partida.

Não posso esperar a resposta da Terra. Agora devo me colocar de novoem hibernação, programando o sistema para me acordar de tempos em tem-pos. Breves despertares... até chegar à órbita terrestre.

Serei recebido como herói ou criminoso? Como poderão admitir a tra-gédia que ocorreu, mesmo documentada pelo registro da tv invisível?

E que outras forças incompreensíveis nos emboscam nas estrelas? Ocosmos, que antes me fascinava, agora me apavora, me amedronta e opri-me... transmitindo a idéia de um ente selvagem, impiedoso, esmagador. Algoque a humanidade não pode enfrentar sozinha.

Meus dias de astronauta acabarão agora, quando eu pisar de novo aTerra. Nunca, nunca mais serei o mesmo.

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NÃO PINTEM O ROSTO DO PNÃO PINTEM O ROSTO DO PNÃO PINTEM O ROSTO DO PNÃO PINTEM O ROSTO DO PNÃO PINTEM O ROSTO DO PALHAÇOALHAÇOALHAÇOALHAÇOALHAÇO

Nunca esquecerei o dia em que compareci diante de Samuel Montuano,o poderoso dono do Circo Irmãos Montuano. Apenas ele, desde que o irmãofalecera. E eu, com o estômago vazio há dias, esforçara-me para não tremerfrente àquele homem pançudo, com cara de quem nunca passara fome navida.

Ele abriu o envelope com a carta de apresentação que Romualdo redi-gira para mim. Romualdo, o último de uma legião de amigos, que ainda nãose afastava à minha aproximação.

Samuel leu de cara fechada o texto conciso e datilografado. Como oenvelope não fora fechado eu sabia o que Romualdo havia escrito:

“Meu caro Samuel:Apresento-lhe Alípio Fadel, meu amigo há muitos anos. Ele está acei-

tando qualquer coisa, até mesmo varrer o circo. Alípio é homem instruído ehonesto, teve bons empregos mas não deu sorte nos últimos anos. Perdeu oemprego, não conseguiu levar avante um negócio particular. Está completa-mente falido. Sei que você sempre precisa de gente. Empregue-o por favor,como um obséquio especial a mim. Ele está, inclusive, sem teto e não tempara onde ir.”

O Sr. Samuel guardou a carta e encarou-me com olhos enfezados, pa-recendo não ter gostado muito da situação:

— Já trabalhou em circo?— Não senhor. Posso aprender o que for preciso.— Tem família...— Eu tive... há tempos. Minha esposa faleceu há três anos.— Tem filhos?— Dois filhos. Estão com minha irmã, no sul. O Sr. compreende... eu

não tenho condições para criá-los.— Entendo. Tem seus documentos aí?— Estão todos aqui. Identidade, CPF, carteira profissional...— Essa você esquece. Não vou assinar sua carteira. Afinal não botei

nenhum anúncio. E você, pelo que eu entendi, está implorando misericór-dia.

Engoli a injúria e mesmo assim mostrei-lhe a carteira.

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— Mas o senhor não quer ver... o meu currículo?Ele pegou a C.P. com pouco caso e folheou-a rapidamente.— Nada disso serve para mim.— disse, devolvendo-me o documento

encardido. — Se você soubesse domar leões, atirar facas, contorcer-se den-tro de um tubo, levantar 120 quilos, ficar em pé e fazer acrobacias numcavalo trotando... eu poderia considerar.

— Mas então... o senhor não vai me empregar?— Você está precisando mesmo, não é?— Eu... para falar a verdade, estou no último grau de desespero.— Está bem. Eu o empregarei. Já tenho uma idéia do que você poderá

fazer.— Oh, que bom! Diga-me o que é, Sr. Samuel. Farei o melhor que

puder...— Você pintará o rosto do palhaço.— O quê?Pensei que ele estivesse fazendo chalaça comigo e me ergui, desapon-

tado e arrasado.— Desculpe-me, senhor, pelo tempo que lhe tomei...Ele pareceu ficar espantado:— Não quer mais o emprego?— Ué! É sério?— É claro, homem! Acha que eu sou um moleque?— Não, não, senhor... — Tornei a me sentar, pressuroso. — É que... o

senhor sabe, eu sou um burro...— Isso eu já percebi, mas até um burro pode fazer esse serviço. O

palhaço Amofina precisa de um maquiador. O último que trabalhou comele pediu demissão anteontem. Por isso você veio a calhar.

— Mas por que ele se foi?— É que o Amofina tem mau gênio, e o pobre do Gustavo não agüen-

tou e pediu as contas. Mas você não fará isso, pois precisa do emprego,concorda?

— É claro, senhor. Ora! Aturar mau gênio... não pode ser tão difícil.— Seria pior se fosse a sua mulher, não é? Mas você só terá que aturar

o Amofina quando for maquiá-lo.— Mas o que ele faz?— Nada de mais. É só um velho rabugento e cheio de exigências. Xin-

ga, descompõe... Nada que um sujeito na miséria e doido para receber seusalário, como você, não possa suportar.

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— É claro que eu suportarei, seu Samuel. Puxa, quanto lhe agradeço!Pensar que eu vou poder trabalhar... ter um emprego... quando começo?

— Vou lhe apresentar ao meu capataz, o Orsino. Ele cuidará de tudo.O dono do circo se levantou e eu fiz o mesmo.O aposento começou a girar à minha volta. O Sr. Samuel ainda tentou

me segurar, mas não chegou a tempo. Caí desmaiado. Finalmente, fui venci-do pela fome.

Quando afinal despertei, vi-me diante de uma cara de réu que meolhava por trás de grossos bigodes com pontas frisadas para cima. Um ho-mem de camiseta, preto e parrudo, e também careca.

— Onde estou?— No meu alojamento. O Samuel mandou que o puséssemos na mi-

nha cama. E que lhe déssemos um almoço. Assim, você já começa exploran-do antes de fazer qualquer trabalho.

— Me desculpe. Mas o que posso fazer? Já cheguei aqui morto defome.

— Bom. Eu sou o Orsino. A sua gororoba está ali na mesinha. Trate decomer enquanto está quente. Eu vou ficar esperando pois tenho que lheapresentar ao palhaço.

Levantei da cama. Ele não fez nenhum movimento para me ajudar.Procurei meus sapatos e constatei que minha pequena bagagem — umamochila — estava jogada a um canto daquele quarto de tenda. Sentei-meentão num tamborete, diante de uma mesa encardida, e enfrentei um pratonão muito convidativo: uma galinha ensopada num arroz com feijão agua-do, com alguma coisa verde picada que eu julguei ser capim, mais um pãodormido e um copo com guaraná morno. Para mim, naquela hora, foi umbanquete. E ainda tinha uma banana machucada de sobremesa!

Quando terminei voltei-me para o capataz, que ostentava a cara maisentediada do mundo:

— Já me sinto melhor. Podemos falar com o palhaço?— Já não é sem tempo. Acho que você e o Amofina serão dignos um do outro!Apesar daqueles comentários pouco animadores, eu estava otimista. O

homem não poderia ser tão ruim assim, nada que eu não pudesse sobrevi-ver. Fui, portanto, atrás do Orsino, observando ao redor moças semi-vesti-das, varredores enfezados, um mágico elegante conversando com um sujei-to musculoso de camiseta (que eu supus ser o halterofilista) e outras visõesexóticas de circo.

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Chegamos finalmente ao vagão onde se via pintado, na parede exter-na, o retrato do “Fabuloso Palhaço Amofina”. Por ali não poderia saber se osujeito parecia simpático ou antipático. Não com aquele narigão de massa,aquela tinta vermelha nas bochechas, aquele chapéu em forma de torreassíria.

Orsino bateu na porta três vezes. Imediatamente a porta se abriu e umhomem velho e barrigudo, de ceroulas, apareceu esbravejando:

— Que é, porra? Estou escovando os dentes!— E como é que eu ia saber? Termine logo que o Samuel quer que eu

fale com você.— Falar o que?— Dane-se, homem, você não quer escovar os dentes primeiro? Faça

logo essa...O outro bateu com a porta, com toda força. Orsino voltou-se para mim:— Espero que você goste dele.— Zombou.Esperamos mais tempo do que aquele que um homem normal gasta

com um dentifrício. Então a porta voltou a se abrir e o Amofina reapareceu,tão zangado quanto antes:

— Bom, fale logo! O que é que o Samuel quer?— Não vai nos convidar para entrar?Ele deu-nos as costas.— É o convite dele.— Orsino explicou.— Entre logo!Entrei. Vi-me diante de um aposento lúgubre, sujo e desleixado, onde

até uma TV tridimensional jazia no chão, virada. Sentamo-nos nuns tambo-retes cobertos por trapos e o Orsino explicou:

— Festus, esse é o Alípio. Ele vai trabalhar com você.Estendi a mão e tive que recolhê-la, pois o palhaço não fez a mínima

menção de apertá-la.— A equipe está completa. Não preciso de mais nenhuma merda de

ajudante.— Escute aqui, Amofina! Ele vai te ajudar na maquiagem, apenas isso,

porra!— Ah, bom! Até que enfim o filho da puta do Samuel resolveu substi-

tuir o Gustavo... Mas, diga: — nesse ponto ele se dirigiu a mim pela primei-ra vez. — você já maquiou alguém antes?

— Vou ter que aprender. — Admiti.Essa resposta valeu mais algumas pérolas verbais do Amofina e por

fim o desabafo:

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— O velho podia pelo menos ter arranjado um profissional como oGustavo! Estamos decaindo!

Orsino se ergueu:— Bom, e você acha que algum profissional vai lhe aturar? O Gustavo

aturou? Dê-se por feliz porque esse pobre diabo deu com os costados aqui.Eu tenho mais o que fazer. Vocês aí que se entendam.

As coisas começaram a entrar na rotina. Porém uma rotina escura,sufocante. O Circo Montuano deslocou-se durante semanas pelo centro dopaís em seus veículos anacrônicos veículos. Depois guinou para o sul, emdireção a Hibernópolis, onde deveríamos apanhar um mágico que tirarauma licença e lá se internara por uma período de seis meses.

E todo esse tempo de viagem, foi um tempo infernizado.Havia talvez só uma coisa boa em tudo aquilo: a privacidade de um

alojamento particular. Tradição. O dono do circo sabia naturalmente que ascaracterísticas de sua caterva eram por demais heterogêneas. Não se juntano mesmo quarto um palhaço malcriado e um capataz atrevido, um engolidorde fogo esquentado e um atirador de facas neurótico. Por isso, eu tinha omeu quartinho ambulante. Mas era só. Toda manhã tinha de me apresentarno alojamento do Amofina. Conforme a hora em que eu chegava, a recep-ção apresentava essas duas opções:

— Vá à merda, cara! Não vê que é muito cedo?— Por que se atrasou, porra? Isto aqui não é lugar pra vagabundo!Eu engolia o orgulho junto com os insultos e lá ia misturar as tintas e

as massas. Não era em si uma tarefa difícil. Usávamos essas modernas tintasbiodegradáveis que podiam até ser ingeridas sem causar grande dano e, nãosendo na verdade um tapado, aprendi rápido o que devia ser feito. Não queisso satisfizesse o Festus, que chegava ao ponto de usar uma régua paradescobrir um milímetro de pintura a mais ou a menos e me cobrir de insul-tos ou zombarias, xingando-me de estafermo, besta quadrada, idiota, mula,bestalhão, imbecil, lorpa, débil mental, toupeira e outras preciosidades deseu vasto repertório. Isso, quando não me chamava de veado, mesmo. Po-dem crer, é duro agüentar essas coisas sem partir para a agressão física.Mas quando a opção é morrer de fome, a gente agüenta.

Perto de Aparecida do Norte, armamos novamente o circo e eu pudemais uma vez observar os métodos do Amofina. Eram os métodos de umpalhaço fascista: uma grande novidade para mim. O Taquara, o Texugo e oCarambola eram os três infelizes palhaços auxiliares. Primeiro surgia o

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Amofina no picadeiro, saltitando como um reumático e fazendo salamalequespara o público. As crianças vibravam, os adultos batiam palmas; então oFestus, depois de meia dúzia de reverências aduladoras, puxava um lençodo tamanho dum bonde, assoava ruidosamente o nariz e cumprimentava opessoal:

— Alô, crianças! Alô, minha geeeenteeee!!!! Quem é legal, ganha. Quemé mau, apanha! É ou não é, garotada?

— É É É É É É É!!!!!!!— E agora, onde é que estão aqueles idiotas dos meus auxiliares? —

Aqui ele puxava da calça larga um relojão de corrente, do tamanho de umpires, conferia uma hora imaginária (os ponteiros eram pintados) e berra-va: — Texugo! Carambola! Taquara! Onde estão vocês, seus burros? Vocêsestão atrasados! Apareçam logo, antes que eu perca a paciência!

E lá vinham eles aos pinotes. E cada um que chegava era Plaft! na carae Pimba! no traseiro. E eu sabia que o Amofina batia mesmo. Basicamente ostrês palhaços-ajudantes eram pagos para apanhar do Amofina. Pelo menos,eram mais bem pagos do que eu. Mesmo assim, tinha pena deles. Não é fácilganhar a vida sendo embolachado diariamente.

Hibernópolis! Nunca tinha estado naquele lugar lendário, aquela ci-dade dos adormecidos. Quem tinha dinheiro — o que, é lógico, me excluía— se lhe desse na telha ia para lá, se desligar um pouco do mundo dos vivos,alugando uma cápsula de hibernação criogênica por alguns dias, meses e,em casos raros, até anos. Nesse último caso, o preço era absurdo, mas háquem diga que vale a pena, tal a restauração física trazida pelo longo des-canso em estado de animação suspensa.

Era lá que se encontrava o Cartola, um mágico que segundo se diziaera, ao lado do Amofina, a principal atração do Circo Montuano. O Sr. Samuelandava meio eufórico, ansioso por pegar de volta Demétrio Torrenova, ouseja, o Cartola; pois a presença dele traria maior público aos nossos espetá-culos. Comentava-se entre o pessoal do circo — e até o Amofina meconfidenciara isso, num dos intervalos de conversa normal — que o Samueltentara por todos os meios convencer o Cartola a não se internar emHibernópolis. Ridicularizara a hibernação, chamando-a de “vadiagem con-gelada”; mas o prestidigitador fora inflexível:

— A vida é minha, chefe. Se eu quero hibernar, isto é problema meu.Durante esse período eu estou de licença e o senhor não me pagará salário.E se depois não me quiserem de volta, não me faltam propostas.

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Samuel, porém, nem pensava em “não querer de volta” seu valiosocolaborador. E a prova é que chegava a dirigir o comboio para resgatá-lo dacâmara de hibernação.

Chegamos pela manhã e o chefe deu-nos o dia de folga, embora fossequinta-feira. Na verdade, com a saída do mágico marcada para sexta-feiraàs 16 horas, podíamos contar que antes de domingo não haveria espetáculo,se é que faríamos algum naquele lugar. De qualquer forma, teríamos ensai-os e faxinas. Mas naquela quinta-feira estávamos livres, exceto quem tives-se que alimentar ou banhar os animais ou fazer qualquer tarefa inadiável.Não era o meu caso. Sem ensaios programados, o Amofina não se pintaria.Que grande alívio!

Saí para passear de bermuda, agradecido ao Céu por poder descontrairum pouco. Curiosa cidade aquela, com suas cúpulas onde se alojavam oshibernantes e suas torres com as usinas que forneciam a energia necessáriapara que tudo aquilo funcionasse. Intercaladas entre os quarteirõesresidenciais ou comerciais, as cúpulas de alumínio brilhavam ao sol mati-nal. Eram belas, mas de uma beleza fria, glacial.

Não se permitiam visitas aos hibernantes, para evitar acidentes ou sa-botagens, de maneira que estes realmente descansavam em paz. Quandomuito eu poderia entrar na portaria e pedir informações.

Foi o que fiz, ao identificar a Cúpula 8 — Capitão Nemo — onde oCartola dormia o seu sono hibernal.

Na portaria, uma funcionária negra sonolenta (influência do local?)de uniforme vistoso me respondeu:

— Ah, o mágico! Realmente, o processo de reanimação já começou.Amanhã ele vai sair da câmara.

— Acho que eu nunca teria coragem de hibernar... Não há risco nisso?— Em tudo que se faz há risco. Mas temos uma equipe médica alta-

mente qualificada para acompanhar o processo de reanimação...Ela bocejou e acrescentou:— Sentiremos falta dele.— Ué, mas ele não está hibernando inerte?— Está, sim. Agora. Mas foi combinado por aqui que ele nos divertiria

com seus números a cada mês... Nós o reanimamos cinco vezes, ele deu umespetáculo interno e voltou a dormir. Agora porém é definitivo. Uáá...

Os bocejos dela pareciam contagiosos e estavam me pegando; comonão poderia ir ao local do sono do mágico, agradeci e fui olhar os painéisexplicativos, cheios de esquemas curiosos.

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A câmara de hibernação parecia um mausoléu de mármore, ligadoporém por tubulações a uma espécie de usina e unidades de controleinformático de última geração. Algo tremendamente moderno, de pontamesmo, provavelmente a tecnologia mais moderna e avançada existente noBrasil. Havia muito dinheiro investido ali e certamente a diretoria não brin-cava em serviço. Clientes tão caros tinham que ser bem tratados, ainda maisque se houvessem falhas, haveriam mortes.

Nunca porém ninguém morreu ali por falha das unidades de hibernação.Enquanto olhava os painéis percebi a presença de faxineiras munidas

de aspiradores eletrônicos. Não me teriam chamado atenção se também nãoestivessem bocejando.

Estranho local, realmente!

O chefe teve autorização para assistir a reanimação do Cartola.Certamente não podia levar a tropa toda com ele, mas resolveu selecio-nar cinco pessoas para irem junto e, para minha surpresa, fui incluídono grupo. Infelizmente o Amofina também foi premiado, o que me des-gostou bastante.

As outras pessoas foram: a trapezista Arlene, o anão Pestana e o anti-pático do Orsino que vocês já conhecem. Naquele grupo, pelo menos a Arleneera simpática.

De manhã, porém, fui subitamente despertado de um sono profundopor batidas na minha porta, por sinal, socos.

— Que é? Que está havendo? — levantei de qualquer maneira, sen-tindo-me tonto. — É o tipo da coisa que faz mal à pressão. — Cambaleei atéa maçaneta.

Era o Amofina, e com cara mais feia que de costume.— O que você quer? — Perguntei, perplexo.— Arrume-se, latrina ambulante. É hora de trabalhar!— Como assim? Hoje não tem ensaio!— Hoje é um grande dia. A imprensa vai estar no local. Eu vou a

caráter.— O quê?— É isso aí, seu idiota! Você vai me pintar! Quero você no meu cama-

rim em dez minutos!O bafo de caninha quase me derrubou. Percebi que ele estava disposto

a me dar um bofetão, se eu recusasse. Brigar com ele naquele dia não dariaboa impressão ao chefe.

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— Me dá quinze minutos. Tenho pelo menos que lavar o rosto e mevestir!

— Está bem, traste inútil! Quinze minutos!O Pestana e a Arlene, conversando sobre o grande evento do dia, pas-

saram por nós, e reparei em suas expressões constrangidas diante da estu-pidez do palhaço. Constrangido eu próprio, fechei a porta, quase chorandode tanta raiva.

Quando enfim cheguei no aposento do Amofina, ele me recebeu aosberros:

— Você falou quinze minutos! Passaram DEZESSEIS!— Desculpe, mas eu fiz o possível...— Ora, vá à merda! E faça um bom trabalho! Já basta o janota

maluco...— O quê?— O maluco que passou por aqui querendo vender espelhos! Se não

falou com você é porque você é um dorminhoco!— Não, eu não vi o sujeito... como ele era?— Alto, com um metro e oitenta, barbado, com um terno cinza... mas

para que estou lhe contando isso? Você é muito feio para ficar se olhandoem espelhos! Vamos começar!

— Só uma coisa... alguém comprou algum espelho?— Só o besta do Texugo. É um burro mesmo. Qualquer um consegue

enrolá-lo.Lembrando-se do motivo que o levara a me convocar mudou repenti-

namente de assunto e apontou a mesa de transformação.— Vamos trabalhar! Veja se hoje você finge que presta para alguma

coisa!E eu disse para mim mesmo, em pensamento, repetidamente: Você preci-

sa do emprego... Você precisa do emprego... Você precisa do emprego...Amofina sentou-se e aguardou, diante da pia e do espelho grandeA mesa de transformação incluía pia e torneira, necessárias para a

metamorfose.— Quem andou mexendo aqui? — O palhaço reclamou após abrir a

gaveta e examinar as bisnagas. — Isso não está como eu deixei!— Não fui eu, é claro.— Estou vendo que vou ter que trancar essa gaveta! Que merda... Essa

gente da limpeza é muito enxerida... Ah, se me roubarem algo eu mato um!Ele deve estar ficando caduco, pensei. Afinal já passou dos sessenta anos.

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Comecei a preparar o sabonete, separei a espátula, a escova da cabe-leira e tudo o mais que era necessário.

— É duro agüentar você — Festus disse, descaradamente. — Com fran-queza, espero que você não fique neste circo por muito tempo.

Engoli minha resposta e ele prosseguiu:— Em vez disso quem vai embora é o Marmelada. Bom sujeito, ele. E o

nojento do Cartola vai voltar! Por que não fica congelado mais alguns anos,até eu me aposentar?

— Como? Você não gosta dele?— Daquele emproado, pernóstico e vigarista? Claro que não! Ele pen-

sa que é o dono do circo!Graças à bebida, a língua do Amofina estava bastante solta. Por isso ele

falava abertamente contra o mágico que era a menina dos olhos do Sr. Samuel.Quanto ao Marmelada, era o mágico de terceira classe que substituía inte-rinamente o Cartola.

Vinte minutos depois, Amofina ajeitou a torre assíria na cabeça e saiudo seu vagão. Saí junto, é claro, e fiquei sem saber direito o que iria fazer.

Ele olhou para mim e rosnou:— Bom, já não agüento mais te ver hoje. Vá “alipiar”longe!— Está bem. Para mim também é um alívio.— O quê?Ele batera um recorde de xingamentos naquele dia. Por isso, deixan-

do-me levar pelo agastamento, eu deixei escapar:— Você é muito chato.Isso não era a milésima parte do que ele lançava sobre mim. Mas o

Amofina não estava nem aí para igualdade de direitos. No instante seguintesua mão pesada me atingiu com tanta força que me vi de cara no chão, tontoe vendo estrelas.

Quando consegui me recuperar do golpe, ergui-me com o pensamen-to fixo de pular pra cima do biltre. Mas nesse momento, Samuel veio cor-rendo e me agarrou pela gola, dando-me uma sacudida:

— Que pensa que está fazendo? Não vá arranjar briga com um profis-sional do picadeiro! Você é um subalterno, lembre-se!

— E-está bem, senhor. — Falei, quase pedindo desculpas por ter leva-do o bofetão.

Depois que eles se afastaram, retornei humilhado ao alojamento. Quan-do ia entrar, porém, passos rápidos de pés calçados com sapatilhas se fize-ram ouvir e uma mão suave segurou meu braço. Era Arlene.

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— Eu vi tudo, Alípio. Foi uma indignidade. Esse Festus! É um canalhanojento! Algum dia ele terá um castigo exemplar!

Agradeci-lhe sinceramente, mas queria mesmo ficar só, meditandonuma outra indignidade: a vida que eu estava levando.

Eu era um derrotado. Mas o que fiz para merecer tudo aquilo? Teriamrazão aqueles padres da minha infância, que diziam que a gente não deviaesperar felicidade nesta vida, e sim fazer por merecê-la na outra?

Por trás de uma grade circular de isolamento, observávamos o proces-so de reanimação. Dois técnicos trabalhavam nos terminais, junto à paredemetálica. No mausoléu do Cartola ainda não dava para ver nada, a não serluzes externas que acendiam e apagavam. Eu não entendia nada do que sepassava e limitava-me a esperar, impaciente, que a tampa se abrisse. Procu-rava ficar perto de Arlene. O resto do grupo me esquecera.

— Ele deve estar mais novo agora — A moça segredou-me. — Esseaparelho aí faz maravilhas!

— Reanimação concluída. — O Dr. Castilho confirmou.— Injete asvitaminas! Iniciar a reposição sanguínea!

— Tomara que essa merda acabe logo! — Amofina rosnou entre osdentes. — Já estou com dor de cabeça!

— Controle-se. — Samuel ralhou em voz baixa. — Há repórter poraqui. Esse é um momento importante para o circo!

De fato, já nos haviam filmado e indagado várias coisas.De má vontade, Festus parou de reclamar e procurou o banco mais

próximo.Após 35 minutos, finalmente a tampa começou a ser lentamente le-

vantada. Passando pela cancela da grade, duas enfermeiras se aproxima-ram com um aparelho para estimular a respiração.

Vi Demétrio Torrenova pela primeira vez quando ele começou a selevantar. Certamente um homem bem apessoado e que despertava com óti-ma aparência, corado e alegre.

Já estava vestido, embora de maneira simples, com um uniformeesverdeado e uns mocassins. Ao reconhecer Samuel e os outros fez-lhes umaceno alegre e múltiplo. Acenou também para mim, a quem não conhecia.Auxiliado pelas enfermeiras, aproximou-se de nós, subindo a rampaespiralada. Beijou as duas moças efusivamente e elas adoraram.

Como estava à esquerda, meio isolado do grupo, fui o primeiro alcan-çado pelo mágico, que me abraçou e cumprimentou:

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— Oi, meu velho! Quem é você? Está com Samuel agora?— Ah, sim... meu nome é Alípio...— Ótimo! Samuel, seu tratante! Que prazer em revê-lo! O circo so-

breviveu sem mim?— Não foi fácil. — Montuano reconheceu com um sorriso amarelo.

Mas abraçou cordialmente a “menina dos olhos”.Em seguida Demétrio beijou e abraçou Arlene, ela toda sorrisos. De-

pois apertou secamente a mão de Orsino, e eu percebi logo que eles nãomorriam de amores um pelo outro. Aliás, o Orsino não parecia gostar deninguém no circo, a não ser talvez das moças. Com o Pestana, o mágico foimais cordial.

Por fim, Demétrio estendeu a mão para o Amofina.— Você por aqui, meu caro? Ainda?— Como assim, Demétrio?— O Amofina fingia uma cordialidade to-

talmente atípica.— Não se aposentou?— Não se livrarão de mim tão facilmente — O palhaço sorriu com ar

amigável.O que é a política!— Bom, bom. — Samuel tentou apressar as coisas. — Vamos assinar o

que tiver que assinar e vamos embora daqui! Lá fora você ainda vai ter quefalar com o s repórteres!

O mágico teria que se submeter a uns exames médicos de rotina. Co-meçamos pois a caminhar, acompanhando as enfermeiras. Súbito, porém,Arlene deu um pequeno grito. Voltei-me para ela. Surpreso, vi que o Amo-fina estava caindo e que a moça esforçava-se por sustentá-lo. Tratamos deajudá-la e as enfermeiras vieram socorrer o palhaço desfalecido.

Foi Neide. — conforme constava em seu crachá — quem nos deu anotícia:

— Esse homem está morto!Existia, é claro, um ambulatório para atendimentos rotineiros e emer-

gências. O Dr. Vitor Gigante e a Dra. Marlene Guerra trataram de fazer umexame minucioso e, afinal, o resultado não demorou. Nós seis estávamos nasala de espera, angustiados com o ocorrido. Não que o Orsino, por exemplo,sentisse tanto. Amofina não era propriamente um sujeito popular, mas amorte sempre é uma coisa chocante.

Por fim os médicos saíram e o Dr. Vitor falou sem rodeios:— Senhor Samuel, já chamei a polícia.

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— A... a polícia? Está doido? Por que isso?— Esse homem foi assassinado por envenenamento. Por falar nisso,

quem foi que pintou o rosto dele?Todos os olhares convergiram para mim. Mal pude balbuciar:— O que foi que houve?— O veneno estava na tinta. Cianeto. O assassino, portanto, deve ser o

maquiador.

E assim, pela primeira vez em minha vida, entrei em pânico. Um pâni-co real e absoluto, tão avassalador que eu mal consigo me lembrar das coi-sas que aconteceram logo em seguida.

Sei que corri, corri como um doido varrido, atravessando salas, aposen-tos, como um bólido. Meu organismo agora bem nutrido recuperara a antigaagilidade. Pessoas corriam atrás de mim, inclusive meus colegas do circo. Passeipor funcionários espantados, que já não ostentavam a cara de sono da véspera.Sei que saltei por uma janela e acabei por pegar um táxi por pura sorte. Gasteio pouco dinheiro que tinha, mas saltei perto de um beco e pus-me a atravessá-lo, rezando para ter despistado os meus perseguidores.

O beco estava escuro e deserto. De repente, porém, ouvi passos levesatrás de mim. Voltei-me e lá estava Arlene, afogueada de tanto correr.

— Alípio, espere!Foi um grande choque para mim. Pensei em sair correndo, mas não

me decidi e ela se aproveitou de minha indecisão para chegar mais perto:— Tomei um táxi atrás de você. Creio que ninguém nos seguiu.— Por que você veio?— Você matou o Festus?— Não, juro que não! Não fui eu!— Então por que você fugiu? Piorou sua situação!— Iam me prender! E logo eu estaria apanhando como boi ladrão,

para confessar o que não fiz...— Eu sei que não foi você! Mexeram na gaveta dele, lembra-se?— Ele me falou. Como é que você soube?— Ora, ele reclamou disso com o Samuel, queria descobrir quem foi.

Você não mataria uma mosca!— E o que vamos fazer, então?— Não pode ficar aqui. Venha comigo!Arlene pegou-me pelo braço e fomos andando para fora do beco. Tal-

vez nos tivessem visto das janelas. Mas não saberiam do que se tratava.

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— Você conhece essa cidade? — Indaguei.— Já estivemos aqui antes. Sei de um local onde podemos nos escon-

der temporariamente.— Nós nos escondermos? Mas você vai fugir comigo? Ninguém a está

acusando!— Não posso abandoná-lo numa hora dessas, Alípio. Você precisa de

uma mão amiga.Não sabia o que dizer diante de tanto altruísmo. E, de qualquer modo,

não estava em condições de recusar ajuda.Ela parecia conhecer bem a cidade e foi me conduzindo pela mão, com

naturalidade. Caminhamos por ruas sujas de um bairro imundo, e chega-mos enfim a um hotelzinho barato de quinta categoria. Antes de entrarmosela olhou-me muito séria:

— Vamos fingir o que não somos, mas é a única maneira de obtermosalgum tempo livre para conversar. Está entendido? Ninguém pergunta no-mes aqui.

— Já entendi. Mas e o preço?— Eu tenho. Não se preocupe. E não discuta! Você não quer sair livre

disso?Minutos depois estávamos num dos quartos e Arlene, tirando apenas a

bolsa e os sapatos, sentou-se numa poltrona e convidou-me a fazer o mes-mo.

— Deixa eu te explicar uma coisa, Alípio. Quero que você me contetudo, sem ocultar nada. Conheço bem os envolvidos. Por um pequeno deta-lhe, que você pode a princípio julgar desnecessário, talvez eu possa desco-brir o que aconteceu.

— Mas como você poderia...— Isso é o que vamos ver. Você tem que me contar tudo, entende?

Desde o princípio.— Mas tudo o quê, Arlene?— Tudo. Pode começar com sua chegada no circo. O que o trouxe até

nós, como conseguiu o emprego. Eu paguei por três horas nesse quarto; nóstemos tempo de sobra. Conte-me tudo, desembuche.

E foi assim que relatei a Arlene tudo o que agora reproduzo nesta me-mória. Não foi algo tão insosso. Ela me interrompia com freqüência, esmiu-çava detalhes, fazia comentários espirituosos, revelando-se, pouco a pouco,uma criatura charmosa e inteligente, além de muito sensível. Como é queeu não havia percebido nada disso antes?

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Quando terminei minha narrativa ela consultou o relógio, espregui-çou-se e ficou silenciosa durante alguns minutos. Eu já não sabia o quedizer e somente aguardava.

Ela fechou os olhos e inclinou o rostinho juvenil para trás, como sesonhasse. Respirou fundo e, abrindo os olhos verdes, sorriu-me e falou:

— Pobre Alípio! Que armadilha satânica lhe arranjaram! Já compre-endi o que houve!

— Você está brincando, não é? Pois se eu não compreendi nada!— Tolinho! Raciocina um pouco que você chegará à mesma conclusão

que eu! Pois você me forneceu os dados necessários! Isso é apenas umaquestão de boa lógica, que os fatos podem ser deduzidos pelo encadeamen-to das circunstâncias...

— Bom, mas para mim o que você está falando é grego. Explique me-lhor tudo isso. Você sabe quem matou o Amofina?

— Sei.— Então, por Deus, me diga logo!— Você mesmo não vai acreditar.— Mas, então...— Olhe, homem, não será fácil provar. O que você tem que fazer ago-

ra é estar disposto a lutar, a não se entregar. Até porque você entrou nissocomo bode expiatório, como Pilatos no Credo.

— Já não tenho muito o que perder. — Suspirei desanimado.— Aí é que você se engana. — Então ela veio para perto de mim e me

beijou.E depois contou quem tinha morto o palhaço.

O pessoal do circo ainda estava prestando depoimento na delegaciaquando Arlene e eu chegamos. Enunciados nossos nomes, não houve difi-culdade em sermos recebidos no gabinete do Delegado Fontana.

Quando lá entramos, Samuel e os outros nos olharam com perplexi-dade e o delegado foi direto ao assunto:

— Veio se entregar?— Não, delegado. — Arlene respondeu por mim. — Nós viemos dela-

tar o verdadeiro culpado, que está aqui presente. Porque um dos presentesassassinou o Festus, mas não foi o Alípio, porque esse não faz mal a umamosca.

— Arlene, você está louca! — Samuel exclamou. — Que tem você comesse homem?

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— Um momento.— O delegado interrompeu. — Tudo o que eu sei éque esse homem, quando acusado, fugiu...

— Pânico, é compreensível. Mas eu já examinei os fatos, delegado, eposso provar que não foi ele, e sei quem foi.

— Você é detetive então? Andou lendo Sherlock Holmes?Percebi um toque de sarcasmo tendendo à grosseria da parte do dele-

gado. Ele certamente não ouviria a garota, pensei desanimado, já me sentin-do na sala de tortura.

Ah, essa questão insolúvel dos direitos humanos!Para minha surpresa, porém, Arlene contestou:— Conan Doyle e vários outros autores, como também é o caso do seu

filho.— O quê? Que quer dizer? — A surpresa do tira era sincera.— O Valter e eu somos membros do Clube dos Amantes do Mistério, o

C.A.M. Ele é membro 78 e eu o 101.— Ora vejam! — Ele sorriu. — É, ele tem esse “hobby”...— Pois é, Delegado Fontana. Já vê que eu tenho certo interesse em dedu-

ções, em resolução de mistérios. Por isso queria que o senhor me ouvisse, por-que eu concatenei certos fatos desse caso e julgo que tenho a solução.

— Pois muito bem. Sente-se e explique.— Não preciso sentar, obrigada. Vou ficar de pé para me movimentar

enquanto falo, isso é bom para os nervos.Orsino olhou-a com desprezo:— Não conhecia essa sua faceta...Arlene não ligou para o capataz e nem a um comentário jocoso do

mágico, que não escutei direito. Foi direto ao assunto.— O Alípio é considerado o suspeito Nº 1 por indícios circunstanciais.

Foi colocado um veneno na maquiagem do palhaço. Alípio era a pessoa quepintava o rosto do palhaço. No dia em que Festus morre, havia sido maquiadopor Alípio. Pior, os dois se desentenderam, e Alípio foi agredido por Festus. Etodo mundo, no circo, ficou sabendo dessa briga.

“Podemos acrescentar que, ao longo de meses, Alípio sofreu inúmerashumilhações, afrontas e mortificações no trato com o Amofina que, comotoda a trupe sabia, era neurastênico, maníaco e violento. Em suma, motivospara o homicídio, ainda que mesquinhos, existiam.

“Entretanto não foi ele o assassino. Seria óbvio demais colocar venenona pintura. Alípio não seria tão burro. Talvez achassem que ele fosse, porcausa da sua humildade. Mas ele é inteligente.”

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— Você está sabendo demais sobre ele.— O anão comentou em tommaldoso.

— Cale-se, Pestana.— Ela respondeu rápida. — Esse assunto requeratenção. Existem nisso tudo uns fatos a considerar.

“Primeiro, porque remexeram no material do Amofina. Ele reclamou,na sua última sessão com Alípio. O próprio Amofina se queixou, e não foi sóao Alípio, não é, Samuel?

— É, ele se queixou.— O dono do circo reconheceu. — E daí? Isto sóprova que o crime foi preparado previamente.

— Sim, mas veja bem. Teria sido fácil para Alípio colocar o cianeto edeixar tudo como antes, sem alteração visível. E, no entanto, o criminosoteve pressa para não ser pilhado em flagrante.

“Segundo, um estranho andou por lá na manhã do dia do crime. Umvendedor janota, que vendia espelhos e até vendeu um para o Texugo. Esse,infelizmente, não está aqui, mas outros viram esse homem. Não é mesmo,Orsino?

— Eu o vi. Era um chato.— Você quer dizer que ele é o assassino? — O delegado indagou.— O senhor disse tudo. Veja bem: naquela manhã o Alípio foi tirado

da cama pelo Amofina, que queria porque queria ser pintado para compa-recer à cerimônia de reanimação. Se o veneno foi posto naquele dia, o Alípionão teve tempo de fazê-lo.

— E como é que o sujeito entrou no vagão do palhaço?— Imagino que ele não tenha trancado a porta. Afinal de contas ele

não pretendia se afastar, nem se ausentar muito tempo: foi apenas chamar oAlípio.

— Isso tudo é muito vago. Vendedores andam por toda a parte. — Odelegado não parecia convencido. — O sujeito pode ter colocado o venenopreviamente, portanto é muito cômodo dizer que foi um desconhecido, queprovavelmente não poderá ser encontrado... Ele deixou algum telefone, umcartão de visitas, deixou o nome?

— Disse chamar-se Mozart, mas que eu saiba não deixou direção ne-nhuma.

— Então estamos na estaca zero.— Não, delegado, não estamos. Já esqueceu que eu falei que o assassi-

no está aqui?— Você quer dizer o quê? Que o criminoso se disfarçou de vendedor?— Isso mesmo.

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— Mas que absurdo! — Samuel exclamou.— Ontem nós todos estáva-mos no circo e vimos o sujeito.

— Todos menos um, Samuel.E aí todos os olhares convergiram para Demétrio Torrenova.— Está louca! — O mágico gritou, pondo-se de pé.

Arlene enfrentou o prestigiado personagem.— Não estou louca, não senhor! Foi você mesmo, Cartola! E vou pro-

var o que estou dizendo! Vou te desmascarar!— Hibernei durante seis meses e não saí da hibernação para ouvir

essas besteiras...O delegado se ergueu e exclamou, quase brutal:— Olhe aqui, garota! A polícia não tem tempo a perder!Até então calado, o escrivão Lupicínio resolveu entrar na dança:— Isso é uma palhaçada! Ela deve estar de caso com esse cara...— Parem, por favor! — Arlene insistiu. — Escutem só: esse homem não

passou seis meses em animação suspensa! Ele saía da hibernação uma vez pormês para divertir os funcionários... Fazia um show de mágica! Com isso elehipnotizou os funcionários, ou talvez tenha subornado alguns. O fato é que, namanhã de ontem, ele já não estava hibernando. Ele veio, armou a armadilhapara o Amofina e o Alípio, e retornou ao centro de hibernação.

Esse último argumento pareceu impressionar os policiais. Fontana olhoupara Demétrio. Este confirmou:

— Isso é verdade. E daí? Eu tinha esse trato para divertir o pessoal...Até aí eu me mantivera calado, mas resolvi intervir:— A alta direção das cúpulas de hibernação sabia disso?Ele olhou com raiva para mim.— E eu lá sei? A chefia local autorizou, portanto... eu não saí da hiber-

nação ontem pela manhã, você mesmo me viu sair à tarde!— Você voltou para lá — Arlene contra-atacou. — No estado de hip-

nose em que se achavam os empregados nada viram, nada notaram.— Isso me parece fantasia, Arlene. Eu conheço um pouco de hipnotis-

mo mas como poderia magnetizar aquele pessoal todo...— Você o fez, — lembrei-me de repente, — pois todo mundo estava

com sono, bocejando. Isso não é normal.Demétrio voltou-se para o policial:— Delegado, eu vou embora, tenho que descansar. Não posso ficar

escutando essas asneiras.

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Fontana virou-se para Arlene:— Podemos verificar essas coisas, mas você tem uma prova concreta?

Pois vamos e venhamos: é incrível que alguém possa sair de uma hiberna-ção criogênica para cometer um homicídio.

— Ele é um mágico, senhor delegado. Mas nem todas as mágicas delepoderão eliminar um rastro que ele deixou. Porque só Deus sabe quantassaídas ele deu, além das que foram “oficialmente reconhecidas” na CapitãoNemo. Ele viajou pelo país, foi muitas vezes, sem dúvida, nas exibições docirco. De cada vez usou um disfarce diferente. De qualquer forma, nunca,como nos últimos seis meses, andaram tantos vendedores ambulantes e pre-gadores de seitas exóticas, pedintes e pesquisadores pelos acampamentosdo Circo Montuano. E todos eles com um metro e oitenta de altura. Vocêstodos se lembram?

Percebi que o Samuel Montuano finalmente pareceu impressionado.— Cruzes! — Exclamou, olhando para o mágico.O Cartola, porém, não havia perdido a serenidade. Cruzando os bra-

ços, olhou para Arlene:— E as provas que o delegado pediu? Onde estão elas?— Estão na movimentação da sua conta corrente.Demétrio pareceu levar um choque, finalmente:— O quê? Que é que você quer dizer, sua intrometida?— Que nada se faz sem dinheiro, espertalhão. Nas suas movimenta-

ções você teve que sacar pelo Brasil afora, pelos terminais eletrônicos, jáque não existem mais agências bancárias. Que tal fazermos uma análiseminuciosa de sua movimentação bancária nos últimos seis meses?

— Você crê que meu dinheiro ficou parado seis meses, só por causa dahibernação? Eu tenho um procurador...

— E será que ele esteve em todos os lugares por onde o circo passou?De São Luis a Paranaguá? Ele poderá provar isso?

O sorriso de Demétrio desapareceu.

Sozinhos num parque verde, imersos em nosso amor ainda mal inici-ado, tínhamos o ambiente para terminar de rememorar nossa aventura.

— Nunca imaginei que você fosse uma Sherlock Holmes...— Hercule Poirot, talvez. Eu usei as pequeninas células cinzentas.— Ainda não compreendi claramente o que realmente aconteceu...— Então pense, meu amor. É evidente que o crime foi planejado com

grande antecedência, foi muito bem premeditado. O Amofina era um infe-

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liz, que só fazia inimigos. Com o Cartola ele passou da conta, como eu ex-pliquei na delegacia e direi no Tribunal do Júri.

— É, você disse que ele bateu na cara do mágico...— Um bofetão só, mas bastou para jogar o Cartola no chão. O Festus

tinha a mão muito pesada, por isso seus auxiliares do palco estavam semprecom equimoses. Você mesmo sentiu a mão dele... Ora, o Demétrio sentiuseu orgulho ferido e resolveu se vingar. Na ocasião, fingiu perdoar o agressor,até pediu que não contassem nada ao Samuel. E o fato é que o Samuel nãoficou sabendo, mas eu assisti a agressão e não me esqueci dela. Foi um mêsdepois que o Cartola veio com aquela história de hibernar.

— E aí?— Aí ele desenvolveu esse plano diabólico, que parece até coisa do

governo. Com seus poderes de hipnotizador, foi fácil “programar” os funci-onários para libertá-lo em determinadas datas. Pela Internet e por outrosmeios ele sabia os trajetos do circo. Nas vezes em que apareceu disfarçado,deve ter descoberto sua existência. Não que isso tenha determinado coisaalguma. O bode expiatório seria o maquiador, fosse ele quem fosse. Não eranada pessoal, você compreende.

— Grande consolo.— Repliquei.Ela riu e deu um tapinha na minha perna.— Se o maquiador ainda fosse o Gustavo, teria sido ele o bode. Esca-

pou de boa!— Admira-me também você ter descoberto a cumplicidade do Texu-

go...— Foi a única pessoa que deu atenção ao vendedor e até fez uma com-

pra. Foi a ocasião de passar a chave da porta do Amofina. O serviço foi feitorapidamente, na hora em que o palhaço foi chamá-lo.

— Mesmo assim foi muito risco...— Nem tanto. O Cartola se fez invisível...— O quê? Isso é impossível!— Não é não. É um truque de hipnose. Você é condicionado a não

olhar para tal canto, não reparar em tal pessoa. Aí você não vê. Como na-quele livro do Stephen King, Os Olhos do Dragão.

— Bem, mas no fim de contas ele se deu mal...Ela fez um muxoxo.— Hum... não sei não. Tenho a impressão de que ele será absolvido.— Ah, não! Isso seria absurdo! Já está provado...— As provas, querido, de pouco valerão, se ele hipnotizar o júri.

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— Ué! Mas você não disse que ninguém é hipnotizado contra a vonta-de?

— Mas aí é preciso estar de sobreaviso. Eu já falei com o Fontana, masacho que ele lavou as mãos.

— Foi mesmo? O que foi que o delegado disse?— Simplesmente, que não pode dizer ao juiz para tomar cuidado com

hipnotismo; que o juiz pode achar que é gozação dele. Mas o caso é que ohipnotismo foi uma das armas do crime!

— Bem. Nós, pelo menos, não seremos hipnotizados. Mas correremosperigo se ele for absolvido.

— Não penso assim, querido. Se ele for absolvido, terá conseguido oque quis; matar o Festus e ficar livre. O Festus talvez tenha merecido aquelefim, Deus me perdoe. Só não sei o que o Samuel resolverá com o Cartola. Sevai despedi-lo ou não...

— A você ele já despediu, o pilantra! E a mim... veja só como é o mun-do.

— Ele vai ver o que é bom na justiça. Mas o Cartola tem que ir para aprisão, ele merece isso! Querer jogar um inocente na cadeia...

Eu a beijei:— Até agora ainda não sei como lhe agradecer por ter-me livrado des-

sa encrenca...Ela enlaçou o meu pescoço.— Basta me dar o seu amor, meu querido. Basta me dar o seu amor!

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HIPERESPHIPERESPHIPERESPHIPERESPHIPERESPAÇOAÇOAÇOAÇOAÇO

Após dois dias de navegação pelo hiperespaço, nossa astronave Cybelleaproximava-se do porto de emersão, já no sistema de Alpha-Centauri. Ma-ravilhas do super-espaço, ou hiperespaço, como é mais geralmente conhe-cido! À velocidade da luz, levaríamos mais de quatro anos. O mergulho nohiperespaço, porém, como num passe de mágica eliminava a distância. Umfenômeno físico ainda à espera de uma explicação científica completa, em-bora já soubéssemos aplicar alguns de seus aspectos em termos práticos.

Visível de nossas escotilhas, o firmamento era branco como leite, semnenhum detalhe visível. Nenhuma estrela ou meteoro. Nada em absoluto.Só o branco. Apenas nossos instrumentos de medida nos asseguravam doavanço da viagem, garantindo que não nos encontrávamos encalhados naeternidade. Mesmo assim era enervante, e só não o era mais devido à poucaduração da travessia.

Olhei para Simeão Gonzaga Drummond, pela tela de circuito internoque o mostrava na sala de astronavegação. Ele me olhava também. Suasidiossincrasias pareciam visíveis. Seu rosto corado exibia um sorriso ma-treiro que tanto poderia significar alívio e satisfação por terem sido com-pletadas as poucas providências que necessitavam de intervenção humana,como o triunfo íntimo que a sua vitória de macho conquistador decerto lhefornecia.

Naquele momento, eu não podia ver minha própria expressão, massabia que a mesma era sombria, reveladora de constrangimento e reserva.Uma atitude que eu mantivera durante toda a viagem e nos contatos commeu companheiro na fase de preparação para a jornada. Desde que soube-ra termos sido designados para efetuar juntos aquela missão...

— Preciso ter uma conversa com você, Gustavo. — Ele disse, sem aban-donar o sorriso pérfido.

— Sim? — Limitei-me a dizer, impassível.— Vai ser a conversa mais séria de nossas vidas. — Ele adiantou.Nós quase não havíamos nos falado, limitando-nos ao mínimo neces-

sário para o cumprimento da missão. O correio cósmico não podia funcio-nar automaticamente, ainda eram necessários seres humanos, mas pareciauma brincadeira de mau gosto colocarem justo nós dois na mesma viagem!Tentei aceitar as coisas de forma profissional. Que outra atitude eu poderiatomar?

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Ele não demorou a se explicar:— Nós não estamos mais no Cretáceo, Gustavo, e por isso podemos

resolver nossas diferenças do modo mais civilizado possível.— Do que você está falando?— Mas não se iluda. As maneiras mais civilizadas são apenas, em grande

parte, mais sofisticadas ou requintadas. Só isso.“Esse sujeito deve ter absorvido raios cósmicos em demasia”, pensei.

“Só pode. Melhor deixá-lo falar à vontade”.— Mas, como disse Jack o Estripador, vamos por partes.— Ele prosse-

guiu, movendo-se na poltrona giratória.— Nós dois sabemos que há umasituação constrangedora entre nós. Sua esposa está comigo. Vocês ainda nãose divorciaram. Esse detalhe, para o que eu vou colocar, é extremamenteimportante.

— Não tive tempo de providenciar a separação.— Falei secamente.— Pois é. Pior para você. Pois nunca lhe ocorreu, Gustavo, que se hoje

você vier a faltar, sua pensão irá para Gertrudes? E que eu, incidentalmente,também serei beneficiado com isso?

“Ele só pode estar de gozação”, falei para mim mesmo. “Não ousariafazer isso”.

Achei melhor permanecer em silêncio, sem deixar de observá-lo.— Agora procure visualizar a situação, Gustavo. Esta nave possui al-

gumas características interessantes. A estase, por exemplo, pode sercompartimentada. Isso quer dizer que ela pode ser localizada, isolada numaparte do veículo e mantida até mesmo após a reversão estrutural para oespaço cósmico, na emersão do hiperespaço. Se isso acontecer, o comparti-mento da Cybelle em que a estase permanecer não emergirá, não retornaráao continuum einsteiniano e jazerá definitivamente no hiperespaço. Perce-beu as implicações do que estou a dizer? É maquiavélico, não é?

— Você bebeu alguma coisa? — Perguntei, tentando manter a diplo-macia.

— Ah! Ah! Ah! Estou mais sóbrio que você, amigo. Mas você sabia que,quando se conhece o suficiente de programação, é relativamente fácildirecionar os capilares de estase de maneira a circunscrever apenas umaparte da nave? O único problema é garantir que a parte restante — aquelaque chegará ao sistema Alpha-Centauri — terá auto-suficiência, a começarpela impenetrabilidade das paredes e terminando pela dirigibilidade do con-junto e sua eficácia de pouso. Como vê, o problema não é tão difícil assim eeu consegui resolvê-lo.

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A intenção daquele indivíduo começou a ficar clara.— Você não ousaria uma coisa dessas. A própria Gertrudes não acei-

taria isso.— Ela não precisará saber a verdade. Para que perturbá-la com tais

assuntos? Ela só saberá que você morreu no desastre e que eu escapei pro-videncialmente. E no íntimo, ela vai ficar muito satisfeita.

— Você será descoberto.— Que nada! Para um analista de sistemas “sênior” como eu, é fácil

deletar todos os registros incômodos e farei isso em poucos minutos, após oreingresso da nave no espaço normal. Em suma, não há por onde me pe-gar... Eu sou esperto, Gustavo.

— E pedante.— Concedo isso. Sou pedante. Mas continuarei a ser um pedante vivo,

e estarei com Gertrudes. Já você...— E a sua consciência? Você terá paz e sossego pelo resto da vida?— Eu vendi a alma ao diabo.— Ele respondeu, cínico. — Por esse lado

também não vai adiantar nada. Não me faça um discurso sentimental eético, que eu não vou verter lágrimas por sua causa.

— Não deixarei que você me faça isso.Assim dizendo, corri para o terminal auxiliar à minha frente. Ele riu

às gargalhadas e pôs-se a manipular os controles.— Tarde demais, Gustavo! Sua hora chegou! Adeus!Tentei travar o computador de bordo. Simeão riu dos meus esforços.— Você há de reconhecer, — o monstro prosseguiu enquanto mani-

pulava os controles com toda a frieza do mundo, — que não há maneiramais civilizada de assassinar alguém. Nenhuma violência, nenhuma bruta-lidade. Eu sou altamente civilizado, Gustavo. Tudo o que eu fiz na vida, foifeito com requinte e elegância. E sempre fiz tudo à minha maneira; jamaisfui um bonifrates. Sempre fiz da minha vida o que eu bem quis. Poder,dinheiro, mulheres, diversão... Vai me dizer que, por tudo isso não vale apena sacrificar vidas maçantes e tediosas como a sua?

— Canalha! — falei, acionando o comutador do alarme vermelho.— Você não está no seu estado normal. — Simeão prosseguiu com

uma calma repugnante. — Acionar o alarme no hiperespaço... Nem as al-mas penadas poderão escutá-lo.

Tive vontade de destruir aquela tela de parede a cadeiradas. A tubula-ção de magiplast translúcido começou a apresentar uma coloração rósea,sinal de modificação da estase. Entretanto, isto só era visível no outro com-

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partimento. Na sala de observação onde eu me encontrava, a cor leitosacontinuava.

— Você pode morrer também! Se remover 30% da estrutura, adesestabilização do sistema de navegação será um fato...

— ... em trinta horas-padrão. Eu sei disso, tonto! E só preciso da quintaparte desse tempo para chegar à estação. Não, eu não me perderei. Faça assuas orações, meu caro! Ainda há tempo para isso!

Peguei meu gravador-celular e me sentei junto ao painel auxiliar. Co-mecei uma lengalenga, sabendo que ele me ouviria:

— Ao Comando Estelar, às autoridades da Terra e da ColôniaCentauriana, aos meus pais Estela e Yúri, tenho uma importante comunica-ção a fazer...

Simeão continuou com suas galhofas:— Você é um número, Gustavo! Que lhe adianta gravar suas acusa-

ções? Seu aparelhinho continuará com você e os dois ficarão perdidos nohiperespaço para sempre...

Acoplei o aparelho num dos ganchos magnéticos da mesa do painel. Olocal começou a trepidar, a tremer, ante a iminência da transposiçãodimensional. A estase, porém resistia no compartimento em que eu me en-contrava. Se as providências de Simeão houvessem sido acertadas com aadequação do componente plástico polimorfo de vedação automática, a se-paração far-se-ia sem problemas de escapamento do ar para o vácuo infini-to.

— Adeus, querido Gustavo! Lembranças aos anjinhos! — Ele gritou,fazendo ao mesmo tempo um gesto obsceno.

Abri um compartimento secreto de meu gravador-telefone celular eteclei “power”.

Instantaneamente a tubulação de magiplast começou a alterar suascores. A cor rósea foi surgindo em meu aposento, a cor leitosa avançousobre o dele.

— Que é isso? O que você fez?— Tecnologia de última geração... última mesmo... — Respondi com

serenidade. — É um aparelho de sucção energética e direcionamento deestase... Ainda em fase experimental mas que funciona mesmo. Um amigocientista adaptou o brinquedinho em meu celular. Adeus, Simeão. Se um denós vai ficar no hiperespaço, é você mesmo!

— Espere! Não pode fazer isso comigo! Não é justo! Não é decente! Éum crime! Pare...

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Começou a se debater contra a tela, em meio a gritos de pânico, fraseshipócritas. A reversão de estase atingiu-o nesse ponto. Num instante eleestava ali à minha frente, berrando como um possesso. No instante seguinteeu já não o via, e nem a sala ao seu redor, com todos os móveis e instrumen-tos: em seu lugar estava um céu de negrume profundo, cravejado de assus-tadoras estrelas...

Como supus, apenas o compartimento onde Simeão se encontrava per-maneceu no hiperespaço.

“Acabou-se”, pensei. “Pobre diabo”.Ergui-me aborrecido com a imensa tarefa que tinha pela frente:

recalcular, redesenhar a trajetória da nave mutilada, de maneira a garantiruma chegada suave e segura à Estação Arthur Clarke.

A vida de um astronauta é sempre muito enfadonha.

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URROS NO PORÃOURROS NO PORÃOURROS NO PORÃOURROS NO PORÃOURROS NO PORÃO

Minha infância e a de minha irmã Letícia foram marcadas por aconte-cimentos trágicos. Recordo com especial horror algo desnatural, insólito,que aos poucos foi envolvendo nossas vidas, como areia movediça na qualafundássemos.

Nosso pai morreu muito cedo. Mal o conhecemos. Fomos criados pornossa mãe, a quem amávamos ternamente. Acredito que éramos boas cri-anças, amáveis, sensíveis e estudiosas. Não como essas crianças modernas,que até se trancam no quarto para assistir filme pornográfico, dizendo queestão estudando...

Nossa mãe, Dirce, era pobre, como pobre fora nosso pai, Galileu. Mo-rávamos em Cachoeiro de Macacu e mamãe, após a morte de papai, se es-gotou em serviços domésticos, recusando a ajuda oferecida por nosso avôpaterno, único parente próximo conhecido, fora uns tios que se encontra-vam lá no norte, demasiado longe e descontactados para que pudessem aju-dar.

Mamãe acabou por arruinar sua saúde já débil, pegando uma anemiaprofunda. Então um dia — eu tinha onze anos e minha irmã, dez — fomoschamados por mamãe que já mal tinha forças para se levantar da cama.

— Meus filhos, preparem-se porque eu não vou durar muito tempo.Eu não gosto, não quero, mas vocês terão que morar com o vovô Jonas.

— Você vai ficar boa, mamãe! Você tem que ficar boa!Isso nós dizíamos. Para crianças como nós era difícil de acreditar em

semelhante perda. Um dia, porém, depois da vizinha que vinha dar umaajuda ter ido embora, perguntei a mamãe:

— Por que você não quer que a gente fique com vovô?— Vocês teriam que ficar naquela casa horrorosa dele em Pedra Tor-

ta... Morei lá com o pai de vocês e não deu para agüentar. Mas talvez nãohaja outro jeito. Se vocês forem para lá, procurem viver em paz com ele. E,pelo amor de Deus, não desçam ao porão da casa! Por nada desse mundo!Até o Galileu tinha horror daquele porão!

Letícia e eu quisemos saber porque. Só que mamãe não estava dispostaa nos contar claramente:

— Não sei dizer. Existe alguma coisa... nojenta, infame, naquele po-rão. É o segredo de seu avô. Algo que lá existe... que mete medo... talvez umbicho-papão, não sei. Cuidado também com a biblioteca do velho. Se virem

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um livro de encadernação de couro, com letras douradas, chamadoNecronomicon... não o abram. Não leiam uma linha sequer. É um livroamaldiçoado, capaz de destruir a própria vida de vocês. Prometam que meatenderão!

Nós prometemos. Não podíamos negar à nossa mãe moribunda. Qual-quer um teria prometido.

Chegou o dia, porém, em que mamãe nos deixou... definitivamente.Éramos de todo órfãos. Só nos restou chorar, prantear nossa sorte.

Vovô, que viera nos visitar uma única vez durante a doença de ma-mãe, e que deixara, segundo ela, uma ajuda quase irrisória, mandou nosbuscar. Seu advogado, um tal Sr. Picos, pegou-nos em Cachoeiro e nos levoude carro até Pedra Torta.

É chegada a hora de falar alguma coisa sobre vovô. O vovô que até aliconhecíamos.

Era um homem ainda forte, nem um pouco alquebrado pela idade,meio careca, de voz trovejante e com uma tatuagem de âncora no ombroesquerdo. Quando em casa gostava de usar camiseta, por isso esse detalheestava sempre visível. Ele já fora marinheiro.

Isto se refletia em seus hábitos, como os de fumar cachimbo e de falarpalavrões e grosserias com freqüência. Às vezes, nos poucos contatos quehavíamos tido, referira-se aos mistérios do mar. Vovô dizia que existiamsereias, serpentes marinhas e toda a sorte de seres espantosos. Afirmavacom veemência a realidade do “Kraken”, o polvo gigante. Mas o ponto a quedava mais ênfase, era sobre o povo submarino — povo, não polvo, bementendido.

— Esses desaparecimentos de navios e tripulações, — era a conversadele, — só se explicam pelo ataque de entidades desconhecidas, que vêm ládos pélagos profundos...

Eu tinha medo de vovô, porque ele parecia sempre obcecado por as-suntos misteriosos e assustadores. De vez em quando, examinava uns blocosencardidos com anotações numa língua desconhecida. Ninguém sabia o queera aquilo.

Às vezes deixava escapar coisas incompreensíveis. Entusiasmado porhistórias em quadrinhos, eu dissera certa vez:

— Ih, vovô! O século XXI vai ter tanta maravilha...— Patranhas, meu filho, patranhas! A maravilha, mesmo, vai ser a

volta dos Antigos...

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Diante de minha curiosidade infantil, ele se fechou em copas, procu-rou desviar o assunto, como que arrependido pelo que havia deixado esca-par. Em tais ocasiões, minha mãe costumava observar o vovô com ares depreocupação.

E agora, como num sonho mau, Letícia e eu deixávamos tudo que co-nhecíamos, nossos colegas de escola, a professora D. Jurema, nossos amigosde Cachoeiro, o lar de nossa mãe e nosso pai, a capela, enfim, tudo o que umdia amamos. Graças a Deus, fora as galinhas, não tínhamos animais paradeixar por lá. Éramos muito pobres e por isso mamãe não nos deixara tercão ou gato. Vovô mandara doar as galinhas à vizinhança, pois “seria ridí-culo vendê-las”. Era muito orgulhoso.

O Sr. Picos era severo e pouco amigo de crianças. Não nos foi grandeconsolo na triste viagem, e às vezes chorávamos desolados. Mas enfim che-gamos a Pedra Torta, sem porém atingir o perímetro urbano. A casa de vovôficava afastada, numa colina, de onde se avistava a cidadezinha. Havia umaspoucas casas na vizinhança. A de vovô era certamente a melhor: um casa-rão que sugeria alguém com posses, um ricaço algo decadente, tendo emvista o mau estado de conservação.

Era uma casa de aspecto sombrio. Paredes cobertas de limo, janelas deguilhotina, cercada por umas árvores estropiadas, de galhos retorcidos emagonia, fantasmagóricos. Ao ver a casa pela primeira vez — já estivera lá,porém muito novo para me lembrar — senti um arrepio de angústia.

Fiquei muito impressionado com o vôo de urubus, muito acima nocéu, mas em círculos concêntricos centrados sobre a mansão. Bruxas emquantidade repousavam com suas asas negras nas velhas paredes. Imóveiscomo se estivessem mortas. Vislumbrei também algumas lagartixas.

A casa tinha dois andares e um sótão, além do porão; em alguns tre-chos o tijolo estava à mostra. Em outros, viam-se rachaduras. Aves agourentasesvoaçavam ali perto, soltando crocitos importunos.

As recordações que guardo daquele dia são ainda nítidas. Nosso avô,sabendo que estávamos prestes a chegar, aguardava no alpendre, sentadonuma cadeira de balanço. Sabíamos que morava sozinho, por temperamen-to ou por força das circunstâncias. Parecia um caipira, com calças jeans ecamisa quadriculada vermelha, de manga comprida, além de boné.

Não se levantou para nos receber, a não ser quando chegamos bemperto. Lembro-me de que o abraçamos com afeto, e que ele nos correspondeu

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de forma desdenhosa. Depois convidou o advogado a tomar um drinque e,como este recusasse, recebeu os papéis de adoção e outras coisas trazidaspelo Sr. Picos e despediu-se dele.

— Não deixe de aparecer! — Vovô disse, uns quinze minutos depois,quando o Sr. Picos finalmente se retirou.

Encontrávamo-nos agora na sala de estar, sentados lado a lado, junto àmesa coberta por um plástico adornado com desenhos de flores. Não ousá-vamos falar. Vovô sentou-se à nossa frente, no outro lado da mesa, acendeuseu cachimbo mal-cheiroso, ajeitou os óculos grossos e indagou:

— Não querem comer alguma coisa?— Eu estou com fome. — Letícia respondeu.— Eu também.— Reforcei.— Nós não comemos nada.— Letícia explicou.— Não tinha mais co-

mida em casa e o Sr. Picos não nos deu comida.— Está bem.Vovô Jonas se ergueu, pediu que esperássemos e nos trouxe, afinal,

um pão de fôrma com umas fatias de mortadela velha. Nada que nos agra-dasse comer, mas tínhamos fome. E para beber nos deu água.

Estávamos mastigando num silêncio entristecido enquanto vovô fu-mava e nos olhava, creio que imaginando como poderia se livrar de nós,quando, pela primeira vez, escutamos um som abafado, gutural, uma espé-cie de urro.

— Que foi isso?— Perguntei.— Não ouvi nada.— Vovô retrucou.Um urro se repetiu, mais forte e mais feio que da primeira vez.— Meu Deus! — Letícia exclamou, erguendo-se.— Fiquem aqui e terminem de comer! É uma ordem! — Vovô bradou

com o tom de quem exige obediência. Em seguida se levantou, recostou-se auma arca encardida, como que refletindo, e, tomando uma decisão, dirigiu-se para o corredor oculto por uma cortina suja. Antes de desaparecer, fin-gindo não escutar um terceiro urro ainda mais forte que o segundo, voltoua berrar:

— Quando eu voltar quero encontrar vocês dois aí sentadinhos e comos sanduíches comidos! Ouviram bem?

Sumiu de nossas vistas, deixando-nos entregues ao nosso pavor.Entreolhamo-nos, Letícia e eu. Não sei expressar a que ponto estávamosassustados. Creio que teríamos entrado pelo chão adentro, se isso fosse fisi-camente possível.

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Pareceu-me escutar a voz irada de vovô, gritando ao longe com al-guém ou alguma coisa.

Bastante transtornada, mas sem coragem de largar o sanduíche meiocomido, Letícia levantou da cadeira e veio até mim:

— Orestes, o que é isso? Eu estou com medo!— Eu também! Lembra o que a mamãe disse?— Vovô tem um monstro no porão! Ele cria um monstro!

Estávamos petrificados e, sendo crianças, não tínhamos dificuldademaior em acreditar na existência de monstros. No armário, em baixo dacama ou no porão. Mas como poderíamos agir, se já tínhamos que enfrentaraquela outra espécie de monstro, aquele vovô-monstro que nos aterroriza-va? Ao voltar ele olhou os pratos vazios e grunhiu:

— Já comeram? Então para a cama!— Mas, vovô, — tentei argumentar, — é muito cedo!— Cedo uma conversa! Já são seis horas da noite! Para a cama!— Mas vovô... — Letícia disse, já com um acesso de tremedeira — Não

poderíamos ver um pouco de TV?— O quê??? E quem vai pagar a luz? Não sou eu? Para a cama, já

disse!— Mas onde é a cama? — Indaguei perplexo.Algo espantado, ele interrompeu seus movimentos por um instante, e

aí lembrou que não nos tinha mostrado o quarto de dormir.— Ah, bom! Me acompanhem! Tragam a bagagem!E lá fomos nós, escada acima, atrás de vovô, e levando todo o peso da

bagagem.

Os dias que se seguiram foram para nós uma espécie de inferno. Vovôparecia cada vez mais perplexo com nossa presença, como se custasse aacreditar ter-nos aceito em sua casa.

Comíamos de maneira irregular, pois vovô só fazia comida quandotinha vontade e não jantava. Ele mesmo arrumava a casa, que nunca estavalimpa ou bem arrumada. Ninguém aparecia por lá, a não ser entregadores ecarteiros. E o correio só trazia contas, que eu notasse.

Quando perguntávamos ao vovô pela escola, ele dizia que pensaria noassunto. Quando pedíamos para passear, ele dizia que não tinha tempo, ouque fôssemos passear sozinhos. E lá íamos, aliviados por estar longe daquelacasa.

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E de vez em quando os urros apareciam de novo. Às vezes à noite,aterrorizando nosso sono.

A biblioteca do vovô ficava no andar superior. Mamãe nos avisara paranão procurar determinado livro por lá. De qualquer forma nós raramentelá entrávamos: estava quase sempre trancada e só havia livros velhos,empoeirados e feios. A casa toda dava uma impressão de decadência e, pornão ter televisão, nem brinquedos, nem bichos de estimação — fora o monstrodo porão, é claro — minha irmã e eu ficávamos sem ter muito o que fazer.Exceto varrer o chão, lavar os pratos, limpar o papel de parede... Tudo quevovô Jonas descobriu que podíamos fazer. Afinal, ele não tinha domésticaou faxineira.

Cedo descobrimos que vovô nunca nos levaria a passeio. Só nos levavade carro à cidade quando precisava que o ajudássemos a carregar compras.Quiçá sem se dar conta, cada vez mais nos transformava em criados. Íamosperdendo o ano letivo, mas isso não parecia preocupá-lo.

Devo agora narrar o que se passou quando fomos sozinhos a PedraTorta. Como mamãe nos levasse à missa aos domingos, pedimos a vovô quefizesse o mesmo. Ele estava de chinelos e pijama de bolinhas na varanda,sentado na cadeira de balanço, lendo o Diário de Pedra Torta da véspera. Ojornal não saía aos domingos, pois não era nenhum avassalador O Globo ouJornal do Brasil.

Ao ouvir o nosso pedido quedou-se parado alguns instantes, com ojornal aberto, depois coçou a calva e nos encarou incrédulo:

— Missa? Vocês falaram missa?— Falamos.— Respondi, sem entender tanto espanto.— Ora essa! Missa! Mas eu! Logo eu!— Que há demais, vovô? — Letícia arriscou.— Mamãe sempre levava

a gente!— Ora! Mas sua mãe era sua mãe! Eu não levo ninguém à missa!— E por que?— Por que? Ora, não me pergunte! Não gosto de missa e está acabado!

Não me perguntem mais nada!E lá fomos nós sozinhos, dispostos a encontrar uma igreja. No cami-

nho, já em Pedra Torta — uma cidadezinha bem feia, principalmente naperiferia — paramos numa vendinha para comprar balas com o pouco di-nheiro que nos restava, já que vovô não nos dava nenhum. Ao entrarmos,

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porém, fomos olhados de esguelha pelos presentes. Letícia pegou o saqui-nho de balas, e nesse momento uma mulher tipo “Olívia Palito” chegou-se anós e falou irada:

— Vocês vieram da casa do Jonas?— Vovô Jonas? Sim. — Respondi assustado.— São parentes do demônio! Parentes do demônio! Daquele diabo de

velho... Por que não vão embora daqui?— Dona Florinda, por favor... — O português da venda pediu, algo

encabulado.— Que por favor que nada! O que é que esses capetinhas têm que

fazer aqui?— Viemos comprar balas.— Letícia afirmou, tentando ser corajosa —

E estamos procurando uma igreja.— Uma igreja? O que querem com a igreja?— Queremos ir à missa.A megera soltou uma gargalhada, mas outra senhora nos deu a infor-

mação pedida e lá fomos nós. Mas era tudo muito estranho. Apontaram agente a dedo, pelas ruas. Pelo visto a fama de vovô não era das melhores!

Certa noite, acuados dentro de nosso quartinho mofado, Letícia e euiniciamos nossa conspiração.

— Orestes, a gente tem que fazer alguma coisa! Não podemos ficaraqui... sem saber o que está acontecendo!

— Vovô falou que vai nos internar. Não tem tempo para cuidar de nós.— Já estamos aqui há dez dias. Eu não agüento mais de fome! Ele não

nos dá de comer! Por que será que ele fica satisfeito com a comida quecoloca e nós não?

— Ele já não está em crescimento... — Minha irmã observou comperspicácia.

— E o monstro do porão... Acho que ele urra de fome. Do jeito que ovovô é pão-duro, deve alimentá-lo muito mal.

— Quando ele conseguir sair do porão, vai nos comer.— Você quer fugir? O vovô deve estar dormindo agora! A gente sai e

não volta!— E para onde nós vamos? Acho melhor a gente descobrir a verdade!— Como, mana?— Vamos investigar! Vovô tem sono pesado!E assim nos arriscamos a sair de nosso quarto e lá fomos, descalços, de

mãos dadas, tateando no escuro, a respiração suspensa. Queríamos descobrir o

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que se passava naquela casa, mesmo que fosse o Terror em pessoa. Levar a vidaem suspense, daquele jeito, já não agüentávamos. Antes se sair, inclusive, pre-paramos nossas mochilas com o que tínhamos de mais necessário, como aslembranças de nossa mãe. Estávamos preparados para fugir de casa.

Primeiro fomos até o fundo do corredor, onde uma porta trancada nosbarrava o caminho para chegar ao Necronomicon, o livro do vovô que, ajulgar pelo que a mamãe nos confiara, poderia nos explicar o que afinal sepassava naquela casa.

Desta vez, por um acaso incrível, a porta fora esquecida aberta. Pene-tramos trêmulos naquele esconderijo e acendemos a luz, que era fraca.

Procuramos, procuramos, num silêncio cúmplice. Trepei no rebordoda estante. Finalmente, numa das prateleiras mais altas, encontrei oNecronomicon. Puxei-o. Era pesado! E o mostrei a Letícia. Era bem comomamãe nos falara: letras douradas, encadernação de couro.

— Não o abra! — Letícia implorou, presa de forte agitação nervosa. —Lembre-se do que mamãe pediu!

Mas não resisti. Abri o livro ao acaso e li alguns trechos. Letícia tam-bém leu. E fechamos rápido aquela coisa e a recolocamos no lugar. Era hor-rível demais. Era insuportável. Tivemos pressa em sair daquele aposentoempestado por aquele objeto maldito. Porém, quando eu ia transpor a solei-ra, minha irmã me puxou pelo pulso:

— Mano! Olhe lá, naquele canto!Olhei. Sobre o tampo de mármore de uma mesinha de cerejeira velha

e empoeirada, havia um aparelho telefônico, também sujo. Uma extensão.E, naquele momento, ouvimos tocar.

Entreolhamo-nos. Sabíamos que o telefone, fechado a cadeado, encon-trava-se no quarto de vovô, no andar de baixo. Ignorávamos a existência deuma extensão.

— Que você acha? — Letícia indagou, excitada. Mudava o peso docorpo de um pé para o outro e tremia. Também me senti super assustado,alterado pelo medo.

— Vamos tentar — Decidi. — Quem sabe a gente descobre algumacoisa?

Todas as conversas de vovô eram secretas, pois ele se fechava no quar-to quando o telefone tocava. Mas já devia andar com um pouco de amnésia,do contrário jamais esqueceria a biblioteca aberta.

Lá de cima escutamos, muito ao longe, um bramido. A coisa urrava láembaixo, insone. Isso nos decidiu: puxei delicadamente o fone e o coloquei

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no meu ouvido. Sentei-me no chão e minha irmã fez o mesmo, colando oouvido no pólo receptor do fone, de maneira a ouvir tudo o que eu iriaescutar.

Nem é preciso mencionar que aquela extensão também estava fechadaa cadeado.

Não tínhamos pego o início da conversa. Mas aí, de olhos arregalados,atentamos incrédulos para a voz que se fazia ouvir. Uma voz cavernosa,horrível, tão grotesca que praticamente não entendíamos uma palavra doque dizia. Parecia vir da maior profundeza dos infernos. No entanto, quemquer que fosse, desse mundo ou de outro, falava em português com vovô:

— ... !— Não. Isso não. Isso eu não posso fazer!— Você... tem... obrigações... as... palavras... Quitulu...— Sim, eu sei! Mas são meus netos! Não posso dá-los à Coisa!— ... o... livro... são... perigosas... depois... você... as... forças que... o

futuro...— Não sou tão calejado e tão pervertido assim! Descobri isso! Maldita

hora em que aceitei servir aos Grandes Antigos! Isso vale a pena? Se vocêstomarem conta de tudo, nós ganharemos o que?

— ...o Necronomicon... será amaldiçoado...— Não! Eu não posso dá-los ao maldito que está no porão! Eu sei! Partici-

pei dos rituais, estou marcado pelo seu sinete. Mas tudo isso agora me repugna!Não sei se ainda tenho perdão diante de Deus, mas quero que Ele poupe osmeus netos! São crianças inocentes! Além disso, que iria achar a polícia?

— ...não serão encontrados... ninguém poderá dizer...— Não! Maldito seja! Pode me danar, mas não colaboro mais! Vocês

não terão o que querem! Existe um Deus que pode mais que vocês!— ...! Você verá... ele sairá...— Isso é o que veremos! Vejo que terei de agir! Adeus!A ligação foi cortada.Estarrecidos, corremos para nosso quarto e pegamos as mochilas.

Mudamos de roupa rápido, calçamos os tênis e saímos para o corredor. Jáagíamos como adultos. Tínhamos compreendido a urgência de deixar aquelacasa de horror, com ou sem nosso avô.

Encontramos vovô lá embaixo, diante do corredor da cortina suja.Ele lembrou o Arnold Schwarzenegger, com um rifle debaixo do bra-

ço, um casacão cheio de bolsos recheados de cartuchos de munição e umasbananas de dinamite a tiracolo. Olhou para nós, transtornado:

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— Vão embora daqui! Fujam! Não me sigam! A porta da rua está aber-ta!

Mas nós o seguimos pelo corredor mal iluminado até a porta grossa demadeira de lei e com tranca de ferro, que antecedia a escada do porão. Osurros prosseguiam, fortíssimos, e batidas tremendas sacudiam a porta po-derosa.

— Para trás, maldito! — Vovô gritou, destravando o rifle. — Para trás,eu ordeno!

Apertou um comutador junto à porta; ouvimos um ruído de descargaelétrica e um grito tremendo, seguido de uma série de baques surdos, comose um corpo pesado estivesse rolando escada abaixo.

Tomado por um frenesi nervoso, como se à beira de um colapso, vovôpôs-se a abrir os ferrolhos e cadeados e por fim empurrou a porta, semdeixar de nos ordenar seguidamente que fôssemos embora.

A porta era larga. Quando ele a abriu, vimos na penumbra lá embaixouma espécie de massa verde, informe e cheia de olhos. Algo tão horrendoque desafia a descrição.

Então Letícia me agarrou pelo braço e me puxou para trás, com umadecisão de pessoa adulta e de forma irresistível.

Ela havia compreendido mais cedo que eu que vovô ultrapassara olimite da salvação física. Já não havia nada que pudéssemos fazer, a não sernos colocar em segurança.

Segui-a aos trambolhões pelo corredor medonho e semi-escuro. Meusdois pulsos seguros por Letícia, que fechara os dedos em torno deles e puxa-va, e puxava, ansiosa por nossa evasão. Os urros do monstro se confundiamcom os gritos irados e insanos de vovô. E então soaram os tiros, urros de dore raiva, ruído de coisas se quebrando, de luta, gritos de dor de nosso avô... Efinalmente, quando saímos ao ar livre, a explosão da dinamite...

Não permanecemos em Pedra Torta.Uma assistente social localizou nossos tios por parte de mãe na Bahia

e conseguiu que eles nos acolhessem.Na casa destruída, o porão foi investigado pelos policiais. Afora os res-

tos de vovô, encontraram uma estranha massa verde gelatinosa. Além disso,havia um túnel natural por baixo do porão, cuja entrada foi obstruída pelasexplosões. Solidamente obstruída.

O que quer que tenha existido naquele local, deve ter descido a tempo,ferido e mutilado, porém vivo, indo morrer nas profundezas do abismo. O

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incêndio que se seguiu destruiu a biblioteca de vovô e, certamente, o exem-plar do Necronomicon, o que certamente diminuiu a quantidade de malneste mundo.

Embora bem acolhidos por nossos tios — que jamais chegaram acompreender nossa história. Só diziam que vovô tinha parte com o “CoisaRuim” — crescemos traumatizados por aquele acontecimento e jamais ti-vemos coragem de retornar a Pedra Torta.

Para mim e para Letícia, aquele lugar era uma das passagens ou liga-ções do Mundo Subterrâneo com a superfície. Não sabemos porque vovômantinha aberta aquela porta em seu porão, mas temíamos retornar aolugarejo e ser reconhecidos pelas Forças das Trevas que haviam tentado noscondenar à morte.

Não sei bem o que pensar de tudo isso.Queria esquecer, apagar da memória esses acontecimentos terríveis.

Até hoje me metem medo as pesquisas sobre as camadas geológicas, sobre ointerior do planeta. As histórias antigas que colocam o inferno no centro daTerra, não me parecem absurdas. Algo existe lá embaixo... Algo hediondo einfame.