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Ministério da Educação Universidade Federal de Pelotas Instituto de Ciências Humanas
Curso de Licenciatura em História
Trabalho de Conclusão de Curso
A luta e a integração do trabalhador negro na cidade de Pelotas
no pós-abolição (1889-1930): uma revisão bibliográfica
Ana Paula Soares Gouvêa
Pelotas, Março de 2017.
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ANA PAULA SOARES GOUVÊA
A luta e a integração do trabalhador negro na cidade de Pelotas
no pós-abolição (1889-1930): uma revisão bibliográfica
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de História da Universidade Federal de Pelotas como requisito parcial à obtenção do título de Licenciada em História
Orientador: Prof. Dr. Paulo Pezat
Tutor: Acadêmico Ederson Moreira
Pelotas, Março de 2017.
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Dedicatória
“Para nós, a raça negra é um elemento de considerável
importância nacional, estreitamente ligada por infinitas relações
orgânicas à nossa constituição, parte integrante do povo
brasileiro. Por outro lado, a emancipação não significa tão
somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas
também a eliminação simultânea dos dois tipos contrários, e no
fundo os mesmos: o escravo e o senhor”.
Joaquim Nabuco, O Abolicionismo.
Dedico este trabalho aos homens e às mulheres invisíveis para a
historiografia tradicional, por sua contribuição para a História do negro no
Brasil.
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Agradecimentos
Em primeiro lugar, agradeço à minha família pela compreensão durante
o tempo em que estive afastada das reuniões familiares.
Aos professores do curso de História da UFPel pelas excelentes aulas
ministradas e um agradecimento especial ao professor orientador Paulo
Ricardo Pezat, pela dedicação.
Não poderia deixar de agradecer ao NAI - Núcleo de Acessibilidade e
Inclusão, em especial aos colegas tutores Ederson Moreira, Gabriel Basílio e
Marta Machado Campelo pelas tutorias para a realização das atividades
acadêmicas. Este agradecimento é igualmente extensivo aos colegas bolsistas
do NAI Patrick Neves, Carlos Roger Bartel e demais colegas do núcleo de
outros cursos.
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Resumo
GOUVÊA, Ana Paula Soares. A luta e a integração do trabalhador negro na cidade de Pelotas no pós-abolição (1889-1930): uma revisão bibliográfica. Trabalho de Conclusão de Curso – Curso de Licenciatura em História. Universidade Federal de Pelotas. 2016. O presente estudo foi desenvolvido como Trabalho de Conclusão do Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Pelotas e encontra-se estruturado em três capítulos. Procuramos fazer uma pesquisa que vai da macro para a micro-história, partindo de uma perspectiva mais ampla da participação do negro na formação da sociedade brasileira para chegar à questão mais específica de sua presença em Pelotas no contexto do pós-abolição, ou seja, durante as primeiras décadas do regime republicano. Quanto à metodologia empregada, esta consiste em uma revisão bibliográfica tendo como objeto central de estudo as perspectivas construídas sobre o homem negro escravizado e posteriormente liberto, sem instrução e sem direito à participação na vida política, que luta pela inserção numa sociedade dominada por uma elite branca. Desse modo, o primeiro capítulo, intitulado “A inserção do trabalhador negro na sociedade brasileira”, trata inicialmente da importância do trabalho escravo nos períodos colonial e imperial para depois apresentar a ação dos abolicionistas e a situação de abandono a que os descendentes de africanos foram relegados no pós-abolição. Por sua vez, o segundo capítulo, intitulado “As origens da cidade de Pelotas e o escravismo gaúcho”, trata da formação da sociedade sul-rio-grandense e a importância do trabalho dos cativos para alavancar a economia charqueadora em Pelotas, chamando a atenção ainda para a pouca importância que a tradicional historiografia do estado e da cidade dão à contribuição do negro. Finalmente, o terceiro capítulo, intitulado “A população negra na cidade de Pelotas no pós-abolição”, constitui-se no cerne do trabalho, visto que trata da ação desenvolvida pelos negros pelotenses ao longo da República Velha, isto é, no contexto pós-abolição, demonstrando a ação de algumas lideranças sindicais negras e como os descendentes dos escravos foram discriminados no mercado de trabalho, além de discorrer sobre a importância dos clubes sociais negros em Pelotas naquele período e a importância do jornal A Alvorada, editado por intelectuais negros pelotenses ao longo de quase seis décadas.
Palavras-chave: Negros; Pelotas; Pós-abolição.
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Sumário
Introdução ...................................................................................................
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Capítulo 1 – A inserção do trabalhador negro na sociedade brasileira ................................................................................
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1.1 – 1871: a Lei do Ventre Livre .......................................................... 12 1.2 – A Campanha Abolicionista, 1878-1888 ....................................... 13 1.3 – O negro brasileiro no pós-abolição ............................................ 15
Capítulo 2 – As origens da cidade de Pelotas e o escravismo gaúcho............................................................................................
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2.1 – Das origens de Pelotas até a Revolução Farroupilha ................. 20 2.2 – O apogeu da cidade de Pelotas................................................... 32
Capítulo 3 – A população negra na cidade de Pelotas no
pós-abolição .........................................................................
35 3.1 – O negro pelotense, os sindicatos e as confrarias na virada do Império para a República ................................................................
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3.2 – A importância dos clubes sociais negros para a população pelotense durante a República Velha (1889-1930) ..............................
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3.3 – A Trajetória e a luta da Imprensa Negra Pelotense: o caso do Jornal A Alvorada .................................................................................
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Considerações Finais .................................................................................
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Referências Bibliográficas ........................................................................
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Introdução
A partir dos anos 1990, muitos intelectuais brasileiros preocuparam-se
em pesquisar a escravidão negra. Foram muitos os trabalhos de fôlego
apresentados por historiadores como, por exemplo, Sidney Chalhoub (1990) e
Angela Alonso (2000; 2009; 2010). Em âmbito regional temos os trabalhos de
Beatriz Ana Loner (1997; 1998; 1999; 2001), Caiuá Al-Alam (2016) e Fernanda
Silva Oliveira (2009) centrados na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul.
O presente trabalho procura destacar o protagonismo dos populares, em
especial dos trabalhadores negros, para isso se baseando na historiografia
brasileira sobre a temática. De fato, desde o período escravista os negros
foram relegados às atividades mais extenuantes em todo o território nacional.
Tanto no Império quanto na República, o cotidiano do negro se caracterizou por
dificuldades na busca por uma condição de vida mais digna, pois imperava
contra este contingente o passado histórico brasileiro do sistema escravista.
Além disso, a comunidade negra tendo menos tempo de estudo e menores
condições de se especializar, acabava exercendo atividades por vezes
esporádicas pouco qualificadas e, em geral, sem vínculo empregatício nos
grandes centros urbanos.
No Rio Grande do Sul, mais precisamente em Pelotas, se concentrou
um expressivo contingente populacional negro, o qual foi aproveitado
principalmente pelas charqueadas. Deste empreendimento econômico sulino, o
qual se desenvolvia graças ao trabalho escravo, nascia uma elite ociosa,
aristocrática, preconceituosa.
Este trabalho divide-se em três capítulos, sendo que cada um deles
apresenta subdivisões. Assim, o primeiro capítulo, intitulado “A inserção do
trabalhador negro na sociedade brasileira”, inicialmente procura caracterizar
a sociedade escravista brasileira, depois tratando da Lei do Ventre Livre
(1871), da Campanha Abolicionista (1878-1888) e, finalmente, da situação do
negro na sociedade brasileira pós-abolição.
O segundo capítulo, intitulado “As origens da cidade de Pelotas e o
escravismo gaúcho”, enfoca principalmente a formação da sociedade sul-rio-
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grandense e o papel desempenhado por Pelotas como centro charqueador que
utilizava mão de obra escrava em larga escala. Neste capítulo, além de se
esmiuçar as origens do nome da cidade de Pelotas, se trata da constituição
das primeiras charqueadas e do modo rudimentar como ocorria a matança do
gado naquela sociedade polarizada entre senhores brancos e escravos negros.
Para traçar um painel sobre a elite pelotense, utilizamos principalmente os
escritos de Mário Osório Magalhães. Já para tratar da violência do escravismo
em Pelotas, utilizamos principalmente os estudos de Caiuá Al-Alam e de Adão
Monquelat.
Por fim, o terceiro capítulo, intitulado “A população negra na cidade de
Pelotas no pós-abolição”, procura desenvolver, com base na bibliografia
sobre o tema, uma análise do cotidiano negro em Pelotas ao longo da
República Velha, também chamada de Primeira República (1889-1930). Nesta
reflexão percebemos que o cotidiano do trabalhador negro em Pelotas pouco
mudou entre o Império escravista e a Primeira República pós-abolição, pois
não houve medidas emancipacionistas para este setor populacional que
permitissem que passassem a desfrutar de cidadania. O capítulo aborda ainda
a importância dos clubes sociais negros para a população pelotense no pós-
abolição durante a República Velha (1889-1930) e a trajetória do jornal negro
pelotense A Alvorada.
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Capítulo 1 - A inserção do trabalhador negro na sociedade brasileira
A história da escravidão brasileira é muito complexa. Esta complexidade
decorre das infinitas funções desempenhadas pelos negros escravizados na
constituição da sociedade brasileira entre os séculos XVI e XIX. Estamos
falando de uma sociedade com uma a elite branca, hierarquizada, aristocrática,
preconceituosa e quase feudal, na qual o elemento negro foi utilizado em todos
os setores como mão-de-obra laboriosa. É recorrente na historiografia sobre os
períodos colonial e imperial que os escravos, poderiam ser adquiridos por meio
de herança, compra, venda e mesmo por aluguel. Nesse sentido, recorremos a
uma citação do historiador Robert Slenes de modo a enfatizar o que acabamos
de expor acerca do grau de penetração do escravismo na sociedade brasileira.
“Digo eu, Isidoro Gurgel Mascarenhas, que entre os mais
bens que possuo [...] sou senhor e possuidor de uma escrava de
nome Ana [...] [recebida na herança] de meu Pai, Lúcio Gurgel
Mascarenhas [...] e como a referida escrava é minha Mãe,
verificando-se a minha maioridade hoje, pelo casamento de ontem,
por isso achando-me com direito, concedo à referida minha Mãe
plena liberdade, o qual concedo de todo meu coração” (SLENES,
1997, p. 235).
A cena descrita acima se passou no município de Campinas, São Paulo,
em 1869, ou seja, em pleno século XIX. Slenes tece considerações a respeito
das relações entre senhores e escravos com base em outras fontes primárias.
Compartilhamos da mesma concepção do autor quanto a sua metodologia ao
interpretar os dados obtidos com a pesquisa. Sabemos, contudo, que não
devemos julgar os atos do passado com o olhar do historiador do presente.
Devemos sim, contextualizar os fatos históricos ocorridos no período estudado
dialogando com outras fontes e com isso, procurar compreender a dinâmica do
processo histórico, tal como Slenes o fez em seu estudo.
Entretanto, não é nossa intenção no presente estudo bancar o advogado
em favor do negro. Sabe-se por meio de pesquisas de fôlego de historiadores
como Robert Slenes (2011), Emília Viotti da Costa (1966), Fernando Henrique
Cardoso (2003), Sidney Chalhoub (1990) e tantos outros pesquisadores que os
africanos, transportados nos chamados tumbeiros, não aceitaram tão
passivamente os grilhões que lhes eram impostos. Muitas produções
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historiográficas enfatizaram a existência de levantes escravos ocorridos desde
o período colonial marcadas por violentos combates envolvendo ambos os
segmentos sociais. Mas tais relações também se constituíram por momentos
paternalistas de benevolência, embora muitas vezes seguidos de explosões de
violência. A fim de explicitar o que acabamos de expor, recorrer-se-ia a um
pequeno excerto da obra de Sidney Chalhoub:
“Liderados por um mulato baiano de nome Bonifácio, mais
de vinte dos cerca de cinquenta escravos que aguardavam
compradores na loja de Veludo avançaram sobre o negociante e lhe
“meteram a lenha” (CHALHOUB, 1990: 29).
Pode-se notar, portanto, que as relações entre a camada senhorial e a
escravaria eram fortemente tensas. Chalhoub, no decorrer do capítulo, faz um
estudo pormenorizado interpretando outras fontes primárias e tece
considerações a respeito da insurgência ocorrida na loja de comissões do
comerciante atacado. O escravo, ao cometer crime contra qualquer senhor,
era punido severamente. Na verdade, para o escravo ser preso pela polícia
constituía-se um mal menor. O que esta camada não desejava era ser vendida
para alguma fazenda de café no interior, pois uma vez estando na urbe,
adquiriria meios de se manter por meio de diversas atividades remuneradas,
denominadas à época de pecúlio, enquanto que no meio rural a violência era
maior e as condições de vida do escravo eram piores. Além disso, as análises
das fontes empreendidas por Chalhoub deixam claro que o escravo urbano na
Corte tinha noção do que seria um castigo justo, ou no mínimo tolerável. Tanto
que, quando cometiam crimes contra seus senhores, os escravos
imediatamente corriam para a polícia, ao invés de fugir da polícia.
Para além do trabalho de Chalhoub, também o trabalho desenvolvido
pelos historiadores Rafael Marquese e Dale Tomich (2009) destaca a violência
do escravismo nas plantações de café, principal atividade econômica do país
no século XIX. Os autores procuram demonstrar a sistematização da empresa
escravista nas províncias do sudeste cafeeiro, onde o trabalhador negro havia
sido amplamente introduzido. A região do vale do rio Paraíba do Sul, entre as
províncias do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais, passou por
algumas alterações significativas na primeira metade do século XIX com o
declínio da mineração e com a ascensão da cafeicultura.
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Em 1828, o Brasil passa a ocupar o posto de maior produtor mundial de
café, enquanto que na década seguinte o país começava seus preparativos
para a exportação do açúcar com o mesmo êxito. Esta supremacia no ramo da
exportação de produtos originários da terra teve o predomínio do Vale do
Paraíba entre 1810-1830 (MARQUESE et al. 2009:343-344).
Em conformidade com Marquese e Tomich (2009, p. 342), o aumento da
exportação do café mobilizará pessoas e instituições, o que viria a repercutir na
busca por maior quantidade de recursos financeiros e braços para o
incremento da lavoura. Estes trabalhadores vieram primeiramente de África e,
após 1850, com a interrupção no fornecimento de cativos para as áreas de
plantations1, o tráfico interprovincial continuou em franca atividade,
encarecendo o custo do trabalhador.
Quanto às áreas do Brasil Meridional, compreendendo as províncias do
Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná, também contribuíram com
o desenvolvimento da economia cafeicultora. Fernando Henrique Cardoso, no
seu estudo clássico Capitalismo e escravidão no Brasil meridional (1962)
aponta para a importância do escravismo na região sulina. Esta localidade
havia sido anexada ao domínio português durante o século XVIII em função de
sua importância estratégica, militar, política e econômica (CARDOSO, 2003:
58-59).
1.1 - 1871: a Lei do Ventre Livre
O dia 28 de setembro de 1871 se tornou uma data histórica bastante
significativa para a comunidade negra. Conforme explicitado por Ângela Alonso
(2012:102), a lei do Ventre Livre viria a provocar uma crise interna nos partidos
Conservador e Liberal. Sobre o primeiro, então no poder, representado por
proprietários de escravos e fazendeiros, suas estratégias consistiam em
1 “Plantations” consistiam principalmente na produção agrícola de produtos tropicais em
latifúndios monocultores para o mercado externo, utilizando para isso força de trabalho escravo. Fonte obtida emmestresdahistoria.blogspot.com/2014/02/a-plantation-escravista.html. 1/06/2016 às 7h40 min.
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reformas estruturais e no ensino superior, deixando de lado assuntos relativos
às questões de ordem social envolvendo a escravidão e a população negra.
Já o segundo, partia do pressuposto de que era imprescindível libertar
os escravos gradativamente para que o país pudesse, enfim, dar procedimento
ao projeto da utilização do trabalhador estrangeiro em substituição ao escravo.
Em que pese esta troca dar-se-ia no bojo de uma intensa transformação
política, econômica, social e cultural em curso no país, somada a um incipiente
desenvolvimento do capitalismo que transformava os serviços, as instituições e
as relações humanas. Os parlamentares que defendiam medidas abolicionistas
eram minoritários no cenário político, Deste modo, propunham ações pela
implementação da abolição por meio de artigos de jornal, bem como, por meio
de debates e conferências, procurando assim convencer a opinião pública
antes que seus adversários políticos (ALONSO, 2012:102).
De qualquer forma, o projeto de lei acabou sendo aprovado, apesar da
oposição das bancadas das principais províncias do Império, casos de Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, cujos deputados e senadores votaram em
peso contra a aprovação da lei, sendo derrotados por uma coalizão de
representantes de províncias periféricas, nas quais o trabalho escravos era
meramente residual.
1.2 – A Campanha Abolicionista, 1878-1888
O ano de 1879 marcaria, sobremaneira, a união de três abolicionistas
negros: André Rebouças, Vicente Ferreira de Souza e José do Patrocínio (mais
adiante será vista a trajetória de militância de cada um deles). Por conta da
omissão do Gabinete Sinimbu em assuntos relativos à abolição em solo
brasileiro, a intenção destes liberais era, em linhas gerais, conquistar a opinião
pública das ruas no que tange à manutenção do escravismo no país.
Propunham reformas sociais no sentido de estabelecer um destino aos negros
na sociedade brasileira, permitindo sua integração como pessoas livres. Em
suma, no dizer de Ana Maria Rios e de Hebe Maria Mattos, colocava-se em
pauta a velha discussão sobre o que fazer com o escravo após sua libertação,
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bem como o problema da questão social, tão em voga nos dias atuais.
(MATTOS; RIOS, 2004:170, Apud. ALONSO, 2012:103)
Seguindo nossa explanação com base em Ângela Alonso (2012: 101),
sua análise se concentra no contexto histórico que permite o desenvolvimento
da campanha abolicionista iniciada na Europa e depois chegada ao Brasil,
onde a província do Ceará (1884) foi pioneira. A autora enfatiza, com base nos
escritos de Drescher (1988), a existência de dois tipos de mobilizações
abolicionistas: uma elitista, ocorrido na Europa, e a outra mais popular, ocorrida
no continente americano. Para este autor, a campanha abolicionista brasileira
encontrava-se no estágio intermediário (DRESCHER, 1988, Apud. ALONSO,
2012:102).
O abolicionismo brasileiro contava, sobretudo, com uma extensa rede de
ativistas engajados na luta pela emancipação. Enquanto os abolicionistas
britânicos e norte-americanos levavam para suas reivindicações tradições
típicas da região, os ativistas brasileiros, de início, pelo menos, tentaram utilizar
a religião católica em favor da emancipação escrava. Entretanto, para o bom
êxito da Campanha Abolicionista, perceberam ser de bom alvitre desvincular-se
do Catolicismo. Isto porque os representantes da Igreja Católica, com
raríssimas exceções, colocavam-se à serviço do Estado. Portanto, contra a
causa da emancipação escrava.
Para encontrar a estratégia adequada para pôr fim à escravidão, os
abolicionistas liberais tiveram de remodelar procedimentos então existentes na
Europa, moldando-os para a realidade brasileira. Estas mudanças vieram a
propiciar diversas transformações na sociedade. Contudo, houve no decorrer
do tempo vicissitudes quanto aos relacionamentos entre os seres humanos. No
período Colonial, a sociedade brasileira encontrava-se extremamente
hierarquizada, e as relações entre as distintas camadas eram permeadas de
violência alternada com um paternalismo benevolente.
Com relação aos principais líderes abolicionistas brasileiros, Joaquim
Nabuco era branco, de família abastada de Pernambuco, passando boa parte
de sua vida no exterior, principalmente na Inglaterra, onde conheceu o trabalho
desenvolvido pelos abolicionistas.
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Já o engenheiro André Rebouças era negro, de família de políticos na
Bahia (VIOTTI, 1966:75). Recebeu educação requintada e em 1854 prestava
exame no Curso de Engenharia Militar. Seu engajamento no movimento deu-se
no seu empenho em resgatar Luís Gama do cativeiro (VIOTTI, 1966:76).
Por sua vez, Luís Gama era conterrâneo de Rebouças, nascido em
Itaparica. Seus pais eram um comerciante baiano e uma negra livre. Mas o pai
o vendeu como escravo devido a dificuldades financeiras. Posteriormente à sua
libertação, obtida pelo empenho de André Rebouças, Luís Gama tornou-se
jornalista empenhado na campanha abolicionista, e colaborando com vários
jornais e chegando a ocultar escravos fugitivos em sua casa.
Até o presente momento, percebemos que o negro foi, durante a
vigência do período escravista, visto como um mero instrumento de trabalho,
sendo utilizado das formas mais torpes numa sociedade racista como aquela
que tivemos no Brasil do século XIX, marcada por uma extrema desigualdade
social. Também destacamos resumidamente como se constituíra a lógica e a
dinâmica de funcionamento do escravismo na região cafeeira, na qual o negro
constituía-se na mão-de-obra por excelência. Por fim, não menos importante,
enfatizamos a sistematização da campanha abolicionista, as divergências entre
os Partidos Conservador e Liberal no Congresso pela implementação da Lei
1871, bem como uma síntese da trajetória dos principais abolicionistas
brasileiros. Por tanto, agora podemos nos deter em nosso foco central, que é
demonstrar de que maneira o negro, já livre, no pós-abolição, gradativamente
foi criando consciência do seu papel social, e, desse modo, ocupando seu lugar
enquanto cidadão partícipe numa sociedade construída, sobretudo, para o
branco. É o que propomos abordar neste último tópico do primeiro capítulo.
1.3 - O negro brasileiro no pós-abolição
A assinatura da “Lei Áurea” pela Princesa Isabel, em 13 de maio de
1888, pôs fim a quase quatro séculos de escravidão negra no Brasil, mas nem
por isso conferiu cidadania aos africanos e seus descendentes que viviam no
país. Cabe notar que o fim da escravidão está entre uma das causas que
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levaram à proclamação da República, cerca de dezoito meses após. Como a
abolição ocorreu sem que os “proprietários” dos escravos fossem “indenizados”
pelo confisco de suas propriedades (os escravos), os cafeicultores brasileiros
retiraram seu apoio ao regime imperial e converteram-se ao republicanismo
rapidamente, passando a exercer diretamente o poder através da política não
por acaso chamada de “café com leite”, a partir da hegemonia econômica e
política de São Paulo e de Minas Gerais.
Como observou Florestan Fernandes (2007), na República Velha (1889-
1930) pesava sobre os ombros do trabalhador negro todo um passado colonial
escravista que tendia a persegui-lo onde quer que fosse. Na perspectiva da
elite branca, a causa do atraso do país, se comparado às nações europeias ou
aos Estados Unidos da América, decorria do excesso de sangue negro na
sociedade brasileira.
Deste modo, para o negro se inserir no mercado de trabalho, mesmo em
uma posição modesta, como de zelador de prédio, necessitava ter uma espécie
de “protetor”. Aliás, é de notar a sobrevivência de práticas de apadrinhamento,
típicas de sociedades arcaicas, durante as primeiras décadas do período
republicano no Brasil.
A este contingente populacional era-lhes designados todo tipo de
trabalho extenuante rejeitado por brancos pobres. Com a decretação da Lei
Áurea em 1888, pelas mãos da Princesa Regente em substituição a D Pedro II,
libertavam-se milhões de escravos do jugo do escravizador. Dava-se, portanto,
por encerrado na opinião dos magistrados, a “questão social do negro”. Ou
seja, o engodo da abolição de fato efetivara-se, sem, no entanto, fornecer-lhes
meios de adquirir o direito à cidadania e a um modo de vida mais digno para
sua subsistência. A bem da verdade, a comunidade negra teve de construir por
si mesma, ao menos de início, os seus próprios caminhos e metas a seguir.
De todo modo, o negro egresso da escravidão, introduzido em uma
sociedade dominada por sua elite branca, competitiva e, sobretudo, racista, em
primeiro lugar, deveria ele assumir uma postura de agente participante da
própria história ao invés de se restringir ao papel de mero coadjuvante. Isto, em
linhas gerais, significaria, em primeiro lugar, jamais esquecer de sua
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ancestralidade de descendente do negro africano. Em segundo lugar, ter o foco
voltado para atingir seus propósitos. Por fim, como terceiro aspecto, busca, na
terminologia contemporânea, o que se poderia chamar de “empoderamento”
negro. Para que isto ocorresse seria necessário que houvesse uma constante
interação entre as duas instituições sociais mais importantes para a formação
do ser humano: a família e a escola, no sentido de somar forças em nome de
um bem comum, ou seja, a preservação da cultura e da identidade brasileira.
De modo a reforçar o que acabamos de expor, citamos um pequeno
excerto da obra de Florestan Fernandes (2007), cujo prefácio encontra-se
assinado por Lília Moritz Schwarcz, em que a mesma afirma que “raça sempre
deu muito que falar sobre o e no Brasil.” Em conformidade com Schwarcz, a
ideologia da “democracia racial”, tão em voga em nosso país desde há muito
tempo, encontra-se respaldada em inúmeras simbologias. Em que pese a
contestação deste mito por parte da historiografia brasileira mais recente, ainda
persiste no senso comum a ideia de que o atraso nacional é proveniente da
expressiva presença de negros na sociedade brasileira.
De fato, nas perspectivas mais recentes acerca da identidade e da
cultura brasileiras, tem-se valorizado aspectos do patrimônio imaterial antes
desprezados devido aos preconceitos com uma cultura diversificada. Neste
sentido, por exemplo, o feijão com arroz, o samba, a capoeira, o tambor de
roda crioula, a religiosidade afro-brasileira, entre outras manifestações,
ganharam reconhecimento e legitimidade em nome da diversidade,
representada nas culturas do negro, do indígena e do branco europeu, bem
como do sincretismo entre elas, auxiliando assim na formação da
nacionalidade brasileira.
Outro aspecto a ser destacado acerca da situação do negro no pós-
abolição diz respeito ao preconceito de toda natureza existente na sociedade
brasileira. Neste momento não constitui prioridade especificar cada um dos
inúmeros preconceitos existentes, ou seja, posicionamentos pejorativos de
ordem de gênero, estética, raça, etc. Para nossa pesquisa, interessa-nos
particularmente apenas este último aspecto, de natureza racial, pois partimos
do pressuposto de que este encontra-se arraigado na formação nacional,
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manifestando-se ao longo dos períodos Colonial, Imperial e Republicano, de
modo que persiste até os dias atuais. A este respeito, Florestan Fernandes
(2007:41) oferece-nos uma interpretação da forma como se instala o
preconceito na sociedade que, de certo modo, converge com nossa percepção.
Refere ele:
“O que há de mais evidente nas atitudes dos brasileiros
diante do “preconceito de cor” é a tendência a considera-lo algo
ultrajante (para quem o sofre) e degradante (para quem o pratique).
Essa polarização de atitudes parece ser uma consequência do etho
católico, e o fato dela se manifestar com maior intensidade no
presente se prende à desagregação da ordem tradicionalista,
vinculada à escravidão e à dominação senhorial” (FERNANDES,
2007: 41).
Levando-se em consideração o fragmento acima reproduzido,
depreende-se que para Florestan Fernandes a atitude preconceituosa constitui-
se como um ato prejudicial tanto para o indivíduo que pratica a ação de
discriminar como propriamente para a vítima que passa pelo constrangimento.
Concordamos em parte com o que o autor explicita em sua obra, porém,
discordamos em outro ponto. Com relação a parte na qual convergimos, diz
respeito ao lado negativo que que pesa sobre aquele que discrimina o outro
com base em um preconceito de raça. Pessoas com este tipo de postura
geralmente costumam passar a imagem para o seu círculo de relacionamento
de um ser humano intransigente, prepotente, arrogante, avesso a ouvir
opiniões alheia às suas. É sobretudo neste ponto que concordamos como o
autor.
No entanto, divergimos do posicionamento de Fernandes quando
equipara o mal que o discriminado sofre ao mal-estar que o discriminador
experimenta em seu círculo de relações ao exprimir seu ponto de vista racista.
Na verdade, essa questão dependeria de pessoa para pessoa, mais
precisamente de temperamento para temperamento. Ocorre que existem
pessoas que, diante de tudo que vivenciaram na sua existência particular,
quando são discriminadas por algum motivo qualquer decidem relevar, pois
acreditam que o ser humano que praticou o ato ou exprimiu a opinião
preconceituosa por certo não estaria no seu melhor dia. Por outro lado, outra
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pessoa com um temperamento mais forte não aceitaria tão facilmente tais
atitudes.
Entendemos que atitudes preconceituosas tem sua origem no período
Colonial, quando a exploração do homem pelo homem configurava-se como
uma constante e tinha como base a diferenciação racial. Tal situação se
consolidou ao longo de quatro séculos de escravismo no Brasil, subsistindo nos
dias que correm e adaptando-se às realidades das atuais relações humanas.
Por fim, lembramos o arquétipo do “negro de alma branca” mencionado por
Florestan Fernandes (2007:45).
“Criou-se e difundiu-se a imagem do “negro de alma branca”
– o protótipo do negro leal, devotado ao seu senhor, à sua família e à
própria ordem social existente” (FERNANDES, 2007: 45).
Conforme analisado por Fernandes, o “negro de alma branca” constituía-
se naquele que identifica-se com a cultura do branco e procura seguir seus
passos. Levado ao extremo, tal identificação do negro aos valores da elite
branca pode fazer com que discrimine seus semelhantes por não
compartilharem da mesma ambição de assimilação. O arquétipo do “negro de
alma branca” é facilmente associado com aquele que venceu no melhor estilo
“self made man”. Concluímos, portanto, que o processo de abolição do negro
em relação ao peso do passado escravista não se encerrou, persistindo ainda
nos dias atuais, muito longe de ter um fim.
20
Capítulo 2 - As origens da cidade de Pelotas e o escravismo gaúcho
O ofício de charquear era bem conhecido na América Meridional desde o
início do período colonial, uma vez que em 1603 costumava-se direcionar todo
o charque produzido na região platina para Buenos Aires. Constatamos ainda,
através da análise de Dalla Vecchia (1994:25), que no final do século XVII a
produção do charque era experimentada também na Colônia do Sacramento.
Além disso, o autor revela que no Rio Grande do Sul a arte de charquear
remontava ao período anterior à fundação da cidade do Rio Grande, ocorrida
em 1737. Em 1780, temos conhecimento de que o charque em todo Estado
gaúcho era produzido de forma artesanal, mas é sobretudo com o charqueador
cearense Pinto Martins que o processo de industrialização do charque ganhou
força. Este pioneirismo fez de Martins uma referência entre os charqueadores.
No final do século XVIII, a economia gaúcha encontrava-se em alta com
a produção do trigo e do charque. E o motivo da ascensão dessas duas
culturas remonta à pouca aquisição de animais por parte de Minas Gerais,
atividade que havia conectado a economia sulina à nascente economia
brasileira integrada no começo daquele século através da figura do tropeiro.
Com isso, dava-se início à exploração das charqueadas pelotenses, que
contavam com abundância de gado e disponibilidade de mão de obra, utilizada
de forma extensiva.
2.1 - Das origens de Pelotas até a Revolução Farroupilha
Conforme o historiador Mário Osório Magalhães (2011: 11), no final do
século XVIII a região de Pelotas adquiriu uma notável importância no Brasil
meridional em decorrência do surgimento das primeiras charqueadas, espaços
agrícolas no qual se desenvolviam atividades rurais com amplo predomínio do
braço cativo.
O historiador Mateus de Oliveira Couto (2011), a respeito da origem do
termo “Pelotas”, enfatiza tratar-se de uma espécie de embarcação primitiva, à
época chamada de pelota. Este meio de transporte fluvial consistia
basicamente em um pedaço de couro cru, cujas extremidades eram alargadas
21
com madeira com o objetivo de adquirir a forma de um barco, sendo utilizado
pelos indígenas na travessia dos rios da região sul do Brasil. Para o
desenvolvimento da Freguesia de São Francisco de Paula, futuramente Cidade
de Pelotas, foi fundamental a produção de carne salgada, que contava com
abundância de matéria-prima graças aos rebanhos de gado selvagem que se
desenvolveram na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul após sua
introdução pelos jesuítas espanhóis durante o século XVII.
O próspero charqueador José Pinto Martins, cearense e descendente de
portugueses, chega a Pelotas em 1779, fugindo de uma seca que assolava sua
terra natal. No Rio Grande do Sul, Pinto Martins introduziu máquinas a serem
utilizadas na indústria do charque, pois visualizava nas charqueadas de
Pelotas, então rústicas, um potencial para que se tornassem em um polo
promissor da economia pelotense. Anteriormente à sua chegada em Pelotas já
produzia-se o charque, porém de forma artesanal. Portanto, o pioneirismo de
Pinto Martins efetivou-se na medida em que o mesmo difundia o emprego em
escala pré-industrial de maquinários na sua propriedade, além de servir de
referência aos demais estancieiros.
Um dos outros pioneiros estancieiros e charqueadores a se estabelecer
na região foi Manuel Bento da Rocha, capitão-mor do Rio Grande do Sul. Em
1779, comprava mais de 30 léguas de campos pagando a importância de um
conto e duzentos mil réis. Nessas terras Rocha desenvolveu lavoura, com
plantação de trigo e de vinhas, e passou a criar cerca de 6 mil cabeças de
gado. Na sede da sua fazenda, Rocha construiu um arraial contendo uma rua
externa e cemitério. Em 1814 Pelotas contava com bom número de
charqueadas e metade da população pelotense constituía-se de negros. A
indústria saladeiril aproveitava esta população de forma extensiva nestes
espaços.
Dalla Vecchia (1994:26) analisa a produção da pesquisadora Berenice
Corsetti (1983:49-50), a qual constata que entre 1825 e 1827 houve a prática
do contrabando de gado para o Brasil. Em 1828, conforme pesquisado pela
autora, o governo brasileiro favorecia ao charque platino na taxação dos
22
impostos. Esta atitude do governo imperial foi um dos fatores a impulsionar os
estancieiros rio-grandenses a aderirem à Revolução Farroupilha.
Nas primeiras décadas do século XIX o charque pelotense adquiriu
grande importância econômica, visto que este produto passou a se constituir na
base da alimentação dos cativos que trabalhavam nas fazendas de café do
vale do rio Paraíba do Sul, conforme referido no capítulo anterior.
Nas charqueadas pelotenses, ao menos de início, a produção ocorria de
modo rudimentar e não se empregava um grande número de cativos devido ao
alto valor de mercado destes. Deste modo, o trabalho era muito pesado para
aqueles cativos que precisavam abater o gado, sangra-lo e corta-lo em
pedaços que eram postos ao sol para secar. Também é preciso ressaltar o fato
de que o abate do animal era feito em campo aberto. Após o animal ser
abatido, o mesmo era levado para uma espécie de galpão ao qual davam o
nome de telheiro ou buraqueira. Neste caso o transporte era realizado
contando com a forma de parcos negros escravizados e de alguns peões na
execução da tarefa (COUTO, 2011, Apud. SILVA: 173-174).
É somente em 1832 que a Freguesia de São Francisco de Paula torna-
se Vila, desintegrando-se totalmente de Rio Grande. Neste momento a
população dirigia-se para as terras de dona Mariana Eufrásia da Silveira, viúva
de Tomás Luiz Osório. Dona Mariana Silveira, tal qual o capitão–mor dos
Anjos, doa dois dos seus terrenos. Com esta generosidade voluntária,
acrescentava-se ao perímetro urbano quinze ruas no sentido sul e sete
transversais. A partir daí começava a ter prosseguimento o processo de
estabelecimento da infraestrutura urbana de Pelotas, através da fixação de
uma praça principal (Paço), de um prédio para funcionamento da Câmara
administrativa, de escola pública, de teatro e de diversas casas em seu entorno
(MAGALHÃES, 1993:22).
Em 27 de julho de 1835, a Vila de São Francisco de Paula foi elevada à
condição de município. Contando com abundantes águas em seu entorno,
graças à proximidade com o arroio Pelotas, com o canal de São Gonçalo e com
a lagoa dos Patos, Pelotas encontrou ótimas condições para desenvolver a
produção de carne salgada. A proximidade em relação ao porto de Rio Grande,
23
distante apenas cinquenta quilômetros por água através da lagoa, possibilitava
o escoamento da produção charqueadora. Deste modo, em pouco tempo
Pelotas se equiparou a Rio Grande e a Porto Alegre, capital da província,
formando assim o tripé de maior importância econômica, política, estratégica e
cultural do Brasil meridional.
No decorrer do século XIX, a economia de Pelotas encontrava-se
basicamente direcionada para a produção do charque. Este produto foi
responsável pelo enriquecimento de estancieiros, de charqueadores e de
comerciantes de importação e de exportação, todos utilizando basicamente o
braço cativo (COUTO, 2011: 179).
Conforme assinala Ester Gutierrez, na sesmaria do Monte Bonito os
saladeiros apresentavam dois ou mais terrenos: o da charqueada,
propriamente dita, com instalações destinadas à fabricação da carne salgada e
à produção de tijolos e telhas, e o conjunto reservado à residência do
charqueador, contendo prédios de apoio e um pomar, além da senzala. Outros
terrenos serviriam ainda para a criação de gado (GUTIERREZ, 1999: 71, apud,
COUTO, 2011: 172-173). Contudo, Couto partilha da concepção de que à
medida em que crescia o número de trabalhadores escravizados em Pelotas, a
urbanização aumentava na mesma proporção. Portanto, conforme exposto por
Couto, inferimos que a elite pelotense, a partir da metade do século XIX,
investia não só em escravos, mas também em imóveis, pois o charque
pelotense tinha grande procura na economia nacional e proporcionava grandes
lucros.
Já a jornada de trabalho para o contingente populacional de negros era
excessivamente extenuante. Eram péssimas as instalações habitacionais, a
saúde precária e a alimentação insuficiente e pouco saudável, contando
basicamente com os resíduos da produção charqueadora.
Além da produção de charque, no período de entressafra, isto é, durante
os meses mais frios e chuvosos, quando a carne não poderia ser seca, os
negros escravizados eram utilizados na fabricação de telhas nas olarias e na
construção civil, edificando boa parte do patrimônio arquitetônico e histórico
que ainda em nossos dias pode ser observado Pelotas (COUTO, 2011:178).
24
Outro pesquisador sobre o qual nos debruçamos em nossa pesquisa foi
Paulo Afonso Zarth. Em sua tese de doutoramento publicada em 2002, Do
Arcaico ao moderno: o Rio Grande do Sul agrário do século XIX, o historiador
contribui com a historiografia regional ao fazer um balanço de trabalhos
clássicos de colegas pesquisadores do tema da escravidão.
Com relação à presença escrava no Rio Grande do Sul, Zarth relembra
o histórico da historiografia regional do escravismo sulino, uma vez que a
participação do cativo nas estâncias e sua efetiva contribuição na formação
social brasileira, não parecem estar definidas. Concordamos com Zarth quando
aponta o fato de que alguns historiadores e ideólogos restringiram ao máximo a
presença negra na constituição do Rio Grande. Assim sendo, estudos como o
de Jorge Salis Goulart (1978), premiado em 1927 por acadêmicos da Academia
Brasileira de Letras, difundia a concepção errônea de uma suposta democracia
rural e racial nas estâncias gaúchas. Para Goulart, o peão gaúcho constituiria
um amigo do patrão, ao passo que no sul os escravos teriam um tratamento
infinitamente melhor do que os da província ao norte do país. Com o intuito de
ensejar uma visualização das palavras do autor, acreditamos ser pertinente
expor parte do fragmento extraído da produção de Goulart (1978) referenciado
por Zarth (2002), que menciona ser o peão ou mesmo o escravo “(...) mais um
amigo do que um subordinado do seu patrão” (GOULART, 1978, apud, ZARTH,
2002: 106).
Outro pesquisador destacado por Zarth foi o intelectual norte-americano
Joseph Love (1975). Para Love, cujo pensamento é bastante semelhante ao
de Goulart, o Brasil Meridional teria conhecido uma escravidão branda em
relação às regiões açucareira e cafeeira. Para o estudioso, “a escravidão nunca
significou para o Rio Grande o grilhão que representou mais ao Norte, nas
áreas de açúcar e café”. (LOVE, 1975:11; apud, ZARTH, 2002:107). Também
Margaret Marchiori Bakos (1982: 19) em estudo consagrado na historiografia
sulina, admitia sobremaneira a utilização generalizada do braço cativo nas
estâncias. Contudo, para a pesquisadora, esse contingente negro “(...) não era
realmente fundamental em nenhuma delas” (BAKOS, 1982:19, apud, ZARTH,
2002:107).
25
Obviamente não poderíamos deixar de fora o clássico sobre a
escravidão no Rio Grande do Sul do sociólogo Fernando Henrique Cardoso
(1977:70). Para Cardoso, a escravidão foi essencial ao desenvolvimento da
economia e da sociedade do Brasil meridional. Cardoso chama a atenção para
a irracionalidade do sistema produtivo de carne salgada no Rio Grande do Sul
se comparado ao sistema adotado na região platina. Ocorre que no Brasil
meridional o charque era produzido com base no trabalho escravo, sendo que
este precisava ser adquirido e mantido o ano inteiro, enquanto que no Uruguai
e na Argentina a produção ocorria através da utilização de mão de obra livre,
que era dispensada no período de entressafra e poderia receber estímulo para
produzir mais em menor quantidade de tempo. Utilizando relatos do naturalista
francês, Auguste de Saint-Hílare, o qual, esteve no Rio Grande do Sul em 1820
e registrou suas impressões a respeito das estâncias, das charqueadas e da
sociedade sulina, Cardoso chamou a atenção para a violência inerente ao
escravismo gaúcho.
Por fim, completando a lista de estudos clássicos da historiografia
gaúcha sobre o escravismo, temos a exposição do pesquisador Mário Maestri
(1984). Muito provavelmente o objetivo deste autor estaria no desejo em
descobrir se existiu ou não no Rio Grande do Sul o modo de produção
escravista. Maestri partilha do entendimento de que existiam escravos nas
estâncias de gado em épocas e regiões variadas. Contudo, estas propriedades
utilizavam um sistema capitalista o qual empregava também trabalhadores
livres não escravos (MAESTRI, 1984:52). De acordo com a assertiva de
Maestri (1984) explicitada por Zarth (2002), tem-se:
“O problema não se apresenta de forma tão simples e
talvez seja o cerne do problema,” [...]. “(...) nem sempre onde existem
escravos existe um regime social de produção escravista: nem
sempre que existe este regime é ele a forma de produção dominante”
(MAESTRI, 1984:13 apud, ZARTH, 2002:108).
Zarth tece considerações a respeito dos trabalhos dos autores citados
acima apontando algumas inconsistências, com o que concordamos. Estes
historiadores em suas respectivas produções apenas informaram a existência
de escravos nas estâncias de gado de maneira muito superficial, sem contudo,
26
determinarem o quão frequente constituía-se a necessidade do braço escravo.
Para Maestri, a necessidade do cativo nestes locais decorria do tipo de
atividade que desempenhavam, como, por exemplo, trabalhos relativos à
agricultura de subsistência. A base de Maestri encontrava-se nas observações
do naturalista Saint-Hílare, que em 1820, conforme dissemos, descreveu o
cotidiano de muitas propriedades agrícolas gaúchas. Zarth (2002:110) leva em
conta a possibilidade da tese de Maestri estar certa e esboça uma ressalva
quanto à impossibilidade de diminuir o papel do negro nas estâncias pastoris.
Zarth entende que nas estâncias havia trabalho tanto para o negro quanto para
peões livres (MAESTRI, 1984:50; apud, ZARTH, 2002:110).
Levamos em consideração as exposições dos autores pesquisados por
Zarth, bem como a análise do mesmo (2002). Este último, em nosso entender,
empreendeu a melhor análise a respeito da participação do escravo negro no
Rio Grande do Sul e na sociedade brasileira como um todo. Foi sobretudo por
meio de fontes primárias de várias procedências, como dados estatísticos e
inventários post-mortem, que Zarth (2002) apresentou um estudo sistematizado
na elaboração de sua interpretação de modo a explicar a participação do negro
nas estâncias sulinas. Entretanto, devemos ressaltar que não há nada de
errado em trabalhar com tais relatos de viajantes. Acreditamos, porém, que
este tipo de fonte é um material rico a ser pesquisado, desde que tais
informações estejam em sintonia com a contextualização histórica. De qualquer
forma, apesar de algumas críticas que possam ser feitas, as produções de
Fernando Henrique Cardoso (1962), de Joseph Love (1975), de Margarete
Bakos (1982) e de Mário Maestri (1984) sobre o escravismo gaúcho continuam
sendo importantes em função das luzes que trazem para iluminar o tema.
Em busca de fontes bibliográficas para dar um embasamento a esta
pesquisa, descobrimos na obra do cronista pelotense Simões Lopes Neto,
autor de “Lendas do Sul”, em nosso entender, a melhor descrição das
charqueadas de Pelotas. Sua concepção referente à indústria do charque
contempla a formação dos estabelecimentos pioneiros, ainda no século XVIII, e
avança até o século XIX, quando ocorre uma melhoria tecnológica no processo
produtivo.
27
Assim, segundo Simões Lopes Neto,
“As charqueadas, no seu início, eram compostas de galpões
de fácil construção, cobertos de palha, e de tendas de madeira bruta
para o dessecamento do charque, sendo algumas localizadas sobre o
declive do planalto, onde assenta hoje a cidade de Pelotas; mais
tarde, obedecendo às exigências da higiene e a facilidade de
transportes, convergiram todos para as margens do Arroio Pelotas e
Rio São Gonçalo, onde se construíram, com a necessária solidez,
extensos galpões de alvenaria, casas para trabalhadores, habitações
confortáveis e luxuosas para os proprietários e suas famílias, e todos
mais acessórios relativos a essa indústria, tais como pedreiras,
mangueiras, tendais, graxeiras, etc.”
Até o presente momento discorremos sobre a origem da cidade de
Pelotas. A mesma recebera sua designação em função de uma embarcação
primitiva denominada “pelota”. Explicitamos também a importância adquirida
pelos estabelecimentos charqueadores nesta cidade, bem como,
simultaneamente, na economia sulina e em âmbito nacional. Nosso estudo
ainda abordou a constituição e origem militar da elite dominante pelotense.
Para tanto, foram importantes os escritos do historiador Mário Osório
Magalhães (2011).
Sabe-se que os proprietários de terra e de escravos nos áureos tempos
do charque em Pelotas, no século XIX, arrebanharam milhares de hectares de
terras em função do seu desempenho nas guerras que a Coroa Portuguesa e
depois o Império Brasileiros mantiveram na região platina.
A Princesa do Sul, como é conhecida a cidade de Pelotas pelos gaúchos
mais saudosistas, localiza-se no extremo sul do Brasil Meridional. Atualmente é
tida como uma cidade de porte médio. Entretanto, nem sempre foi assim, isto
porque a história sobre a qual pretendemos discorrer a partir deste momento
remonta ao período da primeira metade do século XIX. Neste marco temporal,
conforme explicitado por Adão Monquelat:
“(...) sapo não se fará príncipe, senzala e cortiço não
se transformarão em palácio e tampouco grilhões, gargalheiras e
correntes, ao estalo de chicote qual condão mágico, desaparecerão
28
dos braços, pescoços e pernas dos escravos, e muito menos
transformará pobres em barões” (MONQUELAT, 2014: 9-10).
Concordamos com o autor em suas palavras acima referidas, pois temos
consciência de que a história de Pelotas desde sua gênese, sob o ponto de
vista do negro, está a anos luz de se transformar em um conto de fadas.
Comecemos então pela metáfora pela qual Pelotas, em sua gênese ganhara tal
denominação - Pérola do Sul -, ou simplesmente “Princesa do Sul”. Esta
denominação tem origem incerta, pois não há registros de quem a utilizou
pioneiramente. No entanto, pressupõe-se, e neste caso reportamo-nos mais
uma vez à explicação de Monquelat por parecer-nos condizente com a
realidade da urbe, que este nome talvez tenha derivado da ostra, pois em seu
interior guardara a riqueza (pérola) na qual Pelotas transformou-se no decorrer
de todo o século XIX. Já a denominação de “Princesa do Sul” provavelmente
derivou do poderio econômico e financeiro advindos, sobretudo, das
charqueadas, sendo que muitos representantes da elite estancieira e
charqueadora pelotense acabou recebendo títulos de nobreza dos imperadores
brasileiros. Mas não devemos esquecer que tal prosperidade tinha como
contrapartida o sangue e a vida de muitos negros escravizados.
Cabe notar que além da carne salgada, a economia gaúcha durante todo
o século XIX também produzia outros derivados do gado, como couro, sebo,
graxa, chifres e cascos. Estes produtos tinham como destino a exportação para
outras províncias brasileiras, o Caribe e mesmo a Europa.
O charque servia basicamente para alimentar a escravaria de províncias
como Rio de Janeiro e São Paulo, porém a economia sulina sofria a
concorrência de outros centros produtores de carne salgada, como o Uruguai e
a Argentina, onde o custo de produção era menor, tendo em vista a melhor
qualidade do gado, as melhores pastagens, as melhores condições portuárias
e, principalmente, a utilização de mão de obra assalariada, que acabava sendo
mais produtiva e menos onerosa que a mão de obra escrava.
Como observou Fernando Henrique Cardoso, corroborado por Sandra
Pesavento, para o governo imperial o mais importante era que o café tivesse o
menor custo de produção possível, para que pudesse ser exportado e assim
29
trazer divisas para o país. Deste modo, sendo o charque um insumo, visto que
alimentava a escravaria que trabalhava nos cafezais, interessava ao governo
central que este tivesse o menor custo possível, assim barateando a produção
do café e permitindo que o país ocupasse um espaço maior no mercado
internacional. Portanto, o importante é que o charque fosse barato, sendo que
para manter o preço baixo o Império autorizava a importação do produto do
Uruguai e da Argentina, assim prejudicando a economia do Rio Grande do Sul.
Esta seria a razão principal para a deflagração da Revolução Farroupilha no
ano de 1835 (PESAVENTO, 1985:12).
Devemos atentar para o fato de que a Revolução Farroupilha (1835-
1845) é um dos assuntos mais discutidos pela historiografia sul-rio-grandense,
e um dos menos conhecidos na sua especificidade. É justamente pensando
dessa forma que entendemos ser fundamental empreendermos uma definição
do movimento, ainda que sucinta. Trata-se de um movimento político-militar de
caráter separatista o qual contou com o apoio da elite rio-grandense, portadora
de escravos e estâncias, a qual se colocou contra as imposições do governo
imperial. Os municípios que compunham a Província rio-grandense eram, à
época, catorze, sendo eles: Caçapava, Cachoeira, Jaguarão, Pelotas, Piratini,
Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo, Santana do Livramento, Santo Antônio da
Patrulha, São Borja, São José do Norte e Triunfo.
No transcorrer do movimento, existiu na província duas formas de
governo: o imperial e o dos revolucionários. Quanto ao primeiro, manteve sob
seu domínio as principais cidades da província (Porto Alegre, Pelotas e Rio
Grande) durante quase todo o decênio que o movimento durou. Ocorre que as
demais províncias brasileiras constituíam-se no principal mercado consumidor
do charque gaúcho, sendo que o país dependia do produto do Rio Grande do
Sul para manter baixo o custo de produção do café.
Já o segundo governo, por sua vez, foi influenciado pelas ideias
estrangeiras, como por exemplo, os ideais revolucionários da Revolução
Francesa e da Revolução Norte-americana que levou à ruptura com a
Inglaterra. Com isso, os farroupilhas, aos decretarem a república rio-
grandense, escolheram para sede do governo a cidade de Piratini, em 1836.
30
Sua segunda escolha de sede foi a cidade de Caçapava, hoje Caçapava do
Sul, no período entre 1839 e 1840, e por fim, a última escolha de cidade para o
governo revolucionário foi Alegrete, ficando esta, até o final da guerra dos
farrapos. Cabe notar que todas estas localidades no pampa gaúcho eram
ermas e pouco representativas, demonstrando como o eixo econômico,
localizado entre o litoral atlântico e a lagoa dos Patos, manteve-se fiel ao
Império.
No início do conflito a revolução chegou a ocupar boa parte da província
sulina, exceto as cidades de Rio Grande e São José do Norte, pois nestes
municípios era grande a presença de tropas imperiais e não existia a presença
de revolucionários. Contudo, gradativamente, o império conseguiu reaver os
municípios que outrora foram ocupados pelos rebeldes, principalmente após o
Duque de Caxias assumir o posto de comandante das forças armadas
imperiais, conforme verificado pelo historiador Moacyr Flores (1985:22).
O apelido político de farrapo é antigo. Em 1831 circulariam na província
do Rio de Janeiro os jornais denominados “Jurujuba dos Farroupilhas” e
“Matraca dos Farroupilhas”. Ainda antes da Revolução, o deputado Domingos
José de Almeida relatava em carta endereçada à sua esposa que estava
impossibilitado de deixar sua casa à noite para fazer visitas porque Porto
Alegre, onde residia, enchia-se de “farrapos”. Para Flores (1985:23), a alcunha
de farrapo não foi utilizada em virtude dos combatentes andarem esfarrapados.
O autor conta que o termo havia sido utilizado muito antes da revolução. De
igual modo, é preciso salientar o fato de que todos os líderes farroupilhas e
comandantes eram estancieiros, oficiais do exército e pertencentes à Guarda
Nacional, estando longe de andarem esfarrapados.
É importante assinalar que o liberalismo foi a ideologia predominante no
Brasil Imperial, inspirando a Constituição outorgada de 1824, apesar da
inusitada presença de um quarto poder, o Moderador, que era uma
sobrevivência da monarquia absolutista. O liberalismo surgiu na Inglaterra na
segunda metade do século XVIII e priorizava as liberdades individuais e o
direito à propriedade dentro de um sistema constitucional e legal. Tal ideário
teve ampla aceitação da burguesia europeia e norte-americana, chegando à
31
América Latina no contexto dos processos de independência em relação às
metrópoles ibéricas nas décadas iniciais do século XIX.
A preocupação destes líderes liberais encontrava-se na intensificação do
poder legislativo, pois partiam do pressuposto de que somente a constituição
seria capaz de garantir as liberdades individuais e a iniciativa privada. O poder,
mediado por um legislativo forte, impediria uma provável ditadura do poder
executivo. Entretanto, no caso brasileiro, o absolutismo da Monarquia
caracterizou-se na dissolução da Assembleia Constituinte de 1823, constituída
por liberais. Seus membros tiveram a intenção de restringir os poderes de D
Pedro I para aumentar o poder do Parlamento, mas acabaram sendo
derrotados.
Os liberais farroupilhas tinham consciência de que no Brasil as leis
encontravam-se fundamentadas na hierarquia das autoridades. Logo fazia-se
necessária uma revolução para modificar a ordem natural das coisas
(FLORES, 1985:25).
Vale ressaltar, entretanto, que a política dos farroupilhas nada tinha de
revolucionária. Sabe-se que em 1845 o imperador D. Pedro II centralizou os
interesses monárquicos no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Minas Gerais,
pois em seu entender os cafeicultores encontravam-se mais próximos do
padrão de modernidade vindo da Europa. Em compensação, a província rio-
grandense deveria continuar abastecendo as demais províncias com produtos
primários, como carne salgada, trigo, arroz e produtos coloniais, naturais da
terra. Além disso, apesar do reduzido número de estancieiros e comerciantes
abastados, a província sulina não preenchia as expectativas do padrão de
civilidade. Esta posição periférica do Rio Grande do Sul em relação ao Império
levará seguramente à guerra farroupilha, pois os liberais, conforme explicitado
por Flores, sentiam-se traídos pela constituição de 1824 (FLORES, 1985:25).
A seguir, daremos seguimento a este assunto ao discorrer sobre o
processo histórico de Pelotas em seu apogeu, isto é, entre o final da Revolução
Farroupilha (em 1845) e a queda do Império (em 1889).
32
2.2 - O apogeu da cidade de Pelotas
Neste subcapítulo daremos ênfase à existência de duas Pelotas em uma
só. Mostraremos uma cidade que enriqueceu graças à atividade charqueadora,
permitindo que sua elite branca plenamente identificada com o Império graças
aos títulos de nobreza que recebeu enviasse seus filhos para estudar na
Europa, contraposta a uma outra cidade, composta de negros escravizados
que viviam em péssimas condições de higiene, de habitação, de saúde, de
alimentação e, principalmente, privados de liberdade.
De acordo com Mário Osorio Magalhães (2011), Pelotas viveu seu
apogeu entre 1860 e 1890, quando surgiram as principais instituições da
cidade, como a Bibliotheca Pública Pelotense, o Clube Caxeiral, o Clube do
Comércio, a Associação Comercial, etc.
Portanto, além daquela Pelotas elitizada contada em prosa e verso pelos
aduladores de sua elite, que continua essencialmente a mesma, este trabalho
procura enfatizar seus protagonistas populares, que se concentravam nos
arrabaldes e no cais do porto, locais estes vigiados pelas autoridades policiais
e pelo Código de Postura Municipal, criações estas sancionadas pela Câmara
Municipal, tendo como finalidade coibir e excluir os pobres da participação
política.
Pois bem, com a extinção do tráfico transatlântico de escravos, em 1850,
vai surgir uma crise da empresa charqueadora gaúcha. Tal crise se agrava com
a modernização dos saladeiros do Prata, que passam a produzir mais e por
preços menores, o que pressiona a economia de Pelotas e de seu entorno.
Isso porque o charque produzido no Uruguai era feito com mão-de-obra
assalariada, enquanto o produto nacional era constituído com base escravista,
o que encarecia o produto.
De qualquer forma, contando com a pressão política dos estancieiros
gaúchos, essenciais para que o Império fizesse as guerras na região em
defesa da livre navegação pelo rio da Prata, para assim assegurar o acesso ao
Mato Grosso e a uma ampla região do Brasil situada no coração da América do
33
Sul, o Rio Grande do Sul obteve vantagens para seu charque na concorrência
com o produto similar oriundo do Uruguai e da Argentina.
Deste modo, o valor do charque produzido na região de Pelotas subiu
muito ao longo das últimas décadas do Império, assegurando a prosperidade
da cidade e, principalmente, de sua aristocracia branca, escravocrata e racista.
Sobre o crescimento do poderio econômico, político e cultural de
Pelotas, Álvaro Barreto assim se referiu, de acordo com Everton Lessa:
“(...) A cidade teve uma formação original dentro do Estado:
Foi núcleo das charqueadas. As charqueadas fazendo fortunas
possibilitaram o ócio. Com o ócio veio à leitura, o refinamento, o
contato com a Europa (...). Um centro industrial e comercial, para
onde os tropeiros traziam o gado. E os tropeiros, diante das
carruagens, dos teatros, das modas e dos clubes, foram ficando
desconfiados, com um pé atrás (...). Seguimos a frente, sem deslizes,
pelo caminhar decidido dos operários, dos industriais, dos
estudantes, dos professores, dos intelectuais, e como é normal,
tropeçando ás vezes pelo passo vulgar dos bêbados, dos marginais,
das prostitutas e dos efeminados...” (BARRETO, Álvaro. Dias de folia:
o carnaval pelotense de 1890 a 1937. Pelotas: Educat, 2000 apud,
LESSA, 2011).
Em vista de tudo que expusemos, torna-se mister, pois, destacarmos
que as charqueadas pelotense utilizavam essencialmente uma mão de obra
composta por negros escravizados. Além disso, da opulência advinda do
charque, nascia uma elite rural, a qual sobreviveu da exploração do braço
cativo nestes estabelecimentos. Também não poderíamos deixar de destacar
os Códigos de Posturas Municipais criados com a finalidade de coibir os
populares, estes sendo escravos em sua maioria.
O historiador José Antônio Mazza Leite (2004:54) esboça uma reflexão
do quão importante tornara-se a cultura do charque em Pelotas. Nesse sentido,
Leite aponta o ano de 1861 como promissor nas exportações dos produtos
derivados do charque. Isto porque, conforme o autor, o charque e seus
subprodutos representaram na economia deste ano cerca de 74,9% das
exportações pelotenses. Concorda-se com o pesquisador quando este,
34
utilizando os escritos de Mário Osório Magalhães (1993), ressalta a ascensão
do charque a partir de 1860. De acordo com os escritos de Leite (2004:55),
Magalhães (1993) partia do pressuposto de que o capitalismo no sul do Brasil
havia acontecido em 1860 a partir da cidade de Pelotas.
Em 1874, os escravos representavam em média 21,3% do total da
população do Rio Grande do Sul, índice inferior em relação à província do Rio
de Janeiro, que, em média, oscilava em torno de 39,7% e era a primeiro da
lista, e de outras quatro províncias: São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e
Bahia. Consequentemente, este índice colocava o Rio Grande do Sul em sexto
lugar na lista das províncias com maior número de escravos.
Deste modo, fica evidente que até as décadas finais do Império a
economia pelotense dependeu essencialmente da utilização da força de
trabalho não remunerada de negros escravizados e mantidos à margem do
sistema político do país.
35
Capítulo 3 - A população negra na cidade de Pelotas no Pós-Abolição
Segundo as informações de Bakos (1982), em 1884 a escravaria sulina
era de 6526 cativos, declinando no ano seguinte para 2831 cativos. Ao longo
das décadas finais do Império, Pelotas liderava as cidades gaúchas com maior
percentual de escravos, enquanto que as demais cidades gaúchas declinavam
constantemente o seu plantel escravo.
A pesquisa de Assumpção (1990) nos inventários senhoriais vem a
complementar a informação presente no trabalho de Bakos (1982). Ao levantar
os dados nos inventários senhoriais, o autor forneceu-nos uma interpretação do
período estudado, o qual o dividiu em três fases: 1780 a 1830, 1831 a 1850 e
1850 a 1888. Com base nessa divisão, se percebe claramente que Pelotas se
firma ao longo do século XIX como a cidade com maior concentração de
negros do Rio Grande do Sul.
A escravaria existente em Pelotas era composta de crioulos, ou seja, de
negros já nascidos no Brasil, sendo minoritários os escravos nascidos na
África. Entre os estrangeiros, Assumpção constatou a existência de etnias
diferentes, tais como mina, nagô, benguela, haussás, entre outras.
Cabe lembrar que o fim do tráfico transatlântico de africanos
escravizados, em 1850, a distância em relação aos portos africanos
exportadores de escravos e a situação periférica de sua economia em relação
ao contexto nacional, faziam com que o Rio Grande do Sul não tivesse uma
conexão direta com a África. Deste modo, os africanos escravizados que
eventualmente chegavam ao Brasil meridional eram revendidos por outras
províncias ligadas diretamente ao comércio pelo Atlântico com a África, como
Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro.
Deste modo, temos que a população negra pelotense é fruto da
miscigenação de indivíduos escravizados provavelmente já nascidos no Brasil,
verificando-se assim a perda de identidades étnicas africanas específicas.
Entretanto, cabe notar que a experiência comum da escravidão e o
pertencimento provável ao tronco linguístico banto, presente no litoral
meridional da África ocidental, favoreceu o desenvolvimento de um sentido
36
identitário, de forma que o hibridismo não se confunde com um
desenraizamento cultural completo.
3.1 – O negro pelotense, os sindicatos e as confrarias na virada do
Império para a República
Avançando na abordagem do tema, partimos do pressuposto de que a
vida do trabalhador negro pelotense, tanto no Império quanto na República,
não foi fácil. A este segmento social eram reservadas as atividades mais
extenuantes e pior remuneradas. Pesava contra estes não só a cor da pele e o
estigma da ascendência escrava, mas, sobretudo, o preconceito arraigado na
sociedade. Não obstante, a população negra disputava o mercado de trabalho
com o imigrante branco nos primeiros anos da República.
Ao estrangeiro eram oferecidas muitas possibilidades de trabalho, pois
com um pouco de sorte poderia entrar em sociedade com algum conterrâneo.
Além disso, o imigrante não carregava em seu passado o peso da escravidão.
O fato de ser oriundo de uma Europa em plena industrialização também
facilitava sua inserção no mercado de trabalho brasileiro. Nesse sentido, havia
uma vantagem considerável em relação ao trabalhador negro, completamente
desassistido pelo poder público brasileiro em todas as suas esferas (municipal,
estadual e federal). Para subverter esta ordem, o trabalhador negro, durante as
primeiras décadas da República, organizou-se em uma ampla rede de
associações diversificadas através das quais paulatinamente começaram a ser
ouvidos.
No século XIX, a cidade de Pelotas, em termos de diversão, não
dispunha de muitas opções para a população. Loner (2002:39-40),
pesquisando o lazer pelotense no período descrito, informa-nos que mulheres
e escravos tinham trânsito muito limitado. Quanto às mulheres, quase nunca
saíam à rua, e quando tinham necessidade de fazê-lo, eram acompanhadas do
marido ou de uma escrava. Já o escravo era vigiado pelos Códigos de
Posturas da cidade e pelas autoridades policiais. Além disso, deveria portar
bilhete de seu senhor ao circular à noite. Seu divertimento limitava-se a rodas
37
de batuque nas senzalas com a permissão do senhor. É neste contexto que a
Igreja Católica vai passar a ser uma opção a mais de divertimento para
contemplar estes dois segmentos sociais.
É sobretudo por meio das celebrações das missas dominicais, dos
preparativos para as festas, das quermesses das irmandades e das procissões
que vai ocorrer a socialização, reunindo todas as camadas sociais. A Igreja
entra nesta conjuntura com o propósito de conquistar novos fiéis, e, para tanto,
vale-se dos elementos católico e afro-brasileiro. Este último, no entanto,
constituía suas atividades culturais relacionando-as às irmandades religiosas.
Lazeres como saraus, reuniões familiares e concertos musicais eram
difundidos nos jornais da época, mas restringiam-se às camadas favorecidas
da sociedade. Não nos deteremos por hora neste assunto, pois nosso objetivo
centra-se nas associações e entidades negras.
A Sociedade Deus, Fé e Caridade, de caráter religioso, foi criada em
1882. Seu diferencial estava no fato de ter sido organizada por negros libertos
e propiciar a liberdade a outros escravos.
Obter o montante necessário para a compra de alforrias, por meio de
donativos arrecadados ou feitos por associados, consistia na principal meta de
irmandades religiosas como as de Nossa Senhora do Rosário e de São
Benedito. Esta última instituição, contudo, conforme a pesquisa de Abreu
(1994), referenciada por Beatriz Ana Loner (2001), havia sido posteriormente
mantida como um asilo para crianças negras, por meio de doações angariadas
junto à sociedade pelotense.
Outra instituição que amparou os trabalhadores negros foi a igreja
católica. Ainda de acordo com Abreu (1994), esta instituição teve participação
significativa no amparo à comunidade negra ao final do Império. Isto porque
enfrentava a concorrência de outras igrejas e seitas, de modo que, para manter
ou conquistar maior número de fiéis, necessitava se aproximar da população
negra pelotense.
Assim, no ocaso do Império a Igreja Católica passou a ser uma força
constante em defesa do movimento abolicionista. Prova disso é mais tarde,
38
durante as primeiras décadas da República Velha, muitos negros tornaram-se
fiéis da igreja Católica, passando inclusive a atuar nas festividades e
quermesses organizadas pela instituição.
As associações beneficentes ou mutualistas também estiveram
empenhadas na luta do negro pela sua emancipação. Seu diferencial estava na
capacidade de agrupar um maior número de trabalhadores de diversas
profissões ou etnias. Estas entidades tinham objetivos variados para auxiliar
seus membros. Houve casos, por exemplo, de entidades beneficentes que
ampararam seus sócios em casos de doença ou de enterro. Outras chegaram
a disponibilizar atendimento médico e medicamentos. Também existiram
situações em que algumas entidades beneficentes ou mutuais, em
solidariedade aos familiares dos seus sócios, chegaram a contribuir com um
pecúlio em caso de morte.
Com este auxílio, os familiares não ficariam totalmente desassistidos.
Isto era fundamental em uma época em que os poderes públicos não
prestavam qualquer assistência à população.
Com efeito, as entidades beneficentes por classe, profissão ou etnia
tiveram uma importância ímpar na vida do operário negro. Prova disso é que
nas duas primeiras décadas da República estas associações ocuparam o lugar
do Estado, pois este assumiu uma postura da omissão frente ao trabalhador
negro em sua luta pela emancipação, e não apenas em relação ao trabalhador
negro em particular, mas também em relação aos trabalhadores em geral. Em
que pese a importância destas associações criadas por negros, a maior parte
das mesmas teve duração efêmera, pois sofriam com os parcos recursos, visto
que a comunidade negra pelotense tinha dificuldade em se manter.
De Lucca (1990:34-36), pesquisado por Loner (2001:98), faz uma
diferenciação dos diferentes modos de organização então existente entre as
sociedades mutualistas. Conforme o pesquisador havia as sociedades
organizadas nas empresas, órgãos públicos, categorias profissionais, etnias, as
de bairros e, por fim, as abertas. Todas elas, portanto, diferenciavam-se umas
das outras pelas peculiaridades próprias inerentes a cada uma. É, sobretudo,
com base nesta classificação apontada por De Lucca (1990), que partilhamos
39
da concepção de que em Pelotas as associações de todos os gêneros
contribuíram também na luta do movimento operário e, em especial, buscaram
auxiliar o operário negro a adquirir uma condição mais digna.
No decorrer das primeiras duas décadas da República Velha, conforme
indicam os estudos de Loner (2001:287), houve intensa mobilização da classe
operária pelotense. Esta organizou constantes greves por melhores condições
de trabalho, por aumento salarial, pela redução de jornadas de trabalho
extenuantes e, principalmente, posicionaram-se contra os abusivos preços dos
alimentos e aluguéis, os quais empobreciam a população.
Deve-se levar em conta que a população de Pelotas durante todo o
século XIX era formada por negros em sua maioria, e estes exerciam
atividades pesadas, pois sendo escravos ou deles descendentes, não tiveram
como se especializar. Nesse sentido, para estas pessoas, chegar a alcançar o
posto de operário de fábrica na República Velha significava um meio de
ascender socialmente. Deve-se salientar o fato de que em Pelotas havia um
preconceito racial e social contra o negro bastante arraigado. Logo, para estes
trabalhadores negros, alcançar o status de operário de fábrica, constituía uma
vitória. Diferentemente do trabalho desempenhado pela população negra nas
charqueadas, na construção civil, no porto como estivadores ou mesmo tarefas
esporádicas de biscates, ser operário da indústria, ainda que cansativo, era
infinitamente mais leve do que a labuta de charreteiro ou de charqueiro.
Durante a República Velha, o cotidiano do operariado pelotense era
marcado por uma dicotomia em relação ao Estado. Por um lado, o Estado não
fornecia assistência ao trabalhador em casos de doença, velhice ou morte. De
outro, no entanto, fazia-se presente no sentido de intervir nas organizações do
operariado. Deve-se ressaltar, portanto, que a República Velha foi um período
bastante conturbado para o operariado na medida em que não havia leis que
visassem a proteção da classe operária. Aliás, as poucas existentes eram
burladas e o trabalhador sem meios ou recursos encontrava-se abandonado a
própria sorte frente à exploração patronal (LONER, 2001:161-162).
De todas as categorias operárias existentes durante a República Velha
em Pelotas (Loner, 2001:168), a dos chapeleiros é a que mais se destacou por
40
suas particularidades. Em 1890, estes operários somavam 400 homens
distribuídos em três estabelecimentos industriais. Por esta época, Pelotas
contava com um polo fabril capaz de fazer frente à capital gaúcha, cuja
produção contava com uma mecanização superior. Quanto às condições de
trabalho do operariado pelotense, eram bastante similares às dos grandes
centros urbanos ou ainda piores, com extensas jornadas de trabalho, ambiente
laboral insalubre e alimentação insuficiente. Por fim, esta categoria, diferente
das demais, era constituída por um expressivo número de negros no quadro de
funcionários desses espaços.
Nesse sentido, há registros de algumas lideranças negras que se
dedicaram ao movimento sindical. O primeiro desses precursores foi Antônio
de Oliveira. Nasceu em 1861 e sua mãe era uma escrava crioula de nome Eva.
Portanto, supõe-se que o sobrenome Oliveira, o qual utilizou por algum tempo,
pertencia ao senhor de sua mãe. Desconhecem-se as circunstâncias em que
se tornou escravo, porém, é provável que tivesse sido vendido quando tinha 8
ou 9 anos de idade. Outra informação de seu passado que permanece
desconhecida diz respeito aos meios que teria utilizado para obter a liberdade.
Diante disso, inferimos que sua libertação teria ocorrido por volta de
1880-1881. Por esta época, a campanha abolicionista começava a dar os
primeiros passos. Em 1890, já na República, Antônio de Oliveira adota a
designação de Baobad em substituição a Oliveira. Esta designação refere-se a
sua etnia e ancestralidade, pois Baobad diz respeito a uma árvore de raízes
grossas originária das savanas africanas. Tal como suas raízes, esta árvore faz
alusão à sabedoria dos antepassados na Terra-Mãe África, berço da civilização
humana. Além disso, através de sua atuação e militância no movimento
operário pelotense que Antônio transformou-se em exemplo de determinação
para os jovens.
Em 1882 Antônio Baobad era uma dos alunos mais aplicados no curso
noturno da Biblioteca Pública Pelotense destinado a pessoas livres. Baobad
havia sido colega de aula dos irmãos Durval Penny e Juvenal Penny, os quais
mais tarde fundariam o jornal A Alvorada. Baobad contribuiu com as primeiras
41
tiragens do periódico negro pelotense, militando pelo movimento operário até
sua morte, ocorrida em 1907.
Outra liderança negra no âmbito operário foi Justo José do Pacífico, o
qual, em 1883, frequentou o curso noturno da Biblioteca Pública Pelotense,
sendo colega de Baobad e de Rodolfo Inácio Xavier. Seu diferencial enquanto
liderança sindical negra talvez esteja no seu talento em retórica, pois em 1887
Pacífico havia atuado como orador do Congresso Operário. Outras
associações escolheram-no como orador, como foi o caso, em 1885, da
entidade Feliz Esperança, que pôde contar com sua participação ao proferir um
discurso. Dois anos depois, ou seja, em 1887, foi a vez da Sociedade
Fraternidade Artística tê-lo como orador, e no ano seguinte, em 1888,
discursava no Centro Cooperador dos Fabricantes de Calçados.
Por fim, uma terceira liderança negra militante sindical, seguindo os
passos de seu irmão Antônio Baobad, foi Rodolfo Inácio Xavier. Xavier nasceu
após a lei do Ventre Livre, em 10 de maio de 1873. Aos 13 anos começou
iniciou a trabalhar e depois se tornou um líder operário. Entre as diversas
ocupações, em 1886 atuou como vassoureiro, colchoeiro e pedreiro durante
certo tempo. Também faz parte da sua trajetória a participação nas forças
federalistas, em 1891, e após seu engajamento militar ao lado dos republicanos
durante a Revolução de 1893. Após o período militar, adquire um emprego na
função de chapeleiro. Contudo, a profissão de pedreiro faz com que se
mantenha até seus últimos dias de vida.
A militância política de Rodolfo Xavier esteve centrada na direção da
União Operária Internacional, no Centro Operário 1º de Maio e na União
Operária de Pelotas, entre os anos de 1907 e 1908. Além disso, participou do II
Congresso Operário na capital gaúcha, em 1925, na qualidade de colaborador
proletário. No tocante à luta pelo operariado, em 1911 Xavier esteve à frente
da campanha sindical pela implementação da jornada de 8 horas de trabalho,
bem como liderando campanhas étnicas como a do deputado Monteiro Lopes
e, sobretudo, incutindo valores nas novas gerações de jovens, sendo um dos
fundadores da Frente Negra Pelotense em meados da década de 1930.
42
3.2 - A importância dos clubes sociais negros para a população pelotense
no pós-abolição durante a República Velha (1889-1930)
Ao findar o Império, a cidade de Pelotas contava com uma ampla rede
associativa negra. Em Pelotas, o negro teve participação atribulada em muitas
associações e entidades. Devido ao forte preconceito e à falta de
oportunidades na obtenção de um trabalho melhor, este segmento populacional
necessitou se organizar na forma de entidades beneficentes, associações
diferenciadas e clubes sociais.
Com isso, chegaram a fundar entidade carnavalesca, artísticas e étnicas
como, por exemplo, os Netos d´África, além de entidades teatrais, esportivas,
musicais e mesmo políticas, como foi o caso do Centro Ethiópico nos anos
finais do Império. Esta última entidade teve sua fundação no ano de 1884 e seu
diferencial era a confecção de carros alegóricos, pois fazia uma crítica ao
sistema escravista ainda em vigor no país.
Contudo, vale a pena ressaltar o fato de que todas as entidades negras
existentes no período escravista tiveram como finalidade engajar-se na luta
abolicionista, além de prover um sustento legal para a comunidade negra
desassistida pelo Estado. Foi o caso, por exemplo, da Sociedade Beneficente
Católica União Operária Pelotense. Seu objetivo centrava-se em agrupar maior
número de operários católicos, pois estes deviam manter-se afastados de
influências nocivas. Além disso, tendo o respaldo da Igreja Católica e as
experiências vivenciadas pelo operariado pelotense, esta sociedade
beneficente chega até o ano de 1927, sendo precursora, portanto, do Circulo
Operário, que durante o Estado Novo Varguista se difundiu pelo país a partir da
ação em Pelotas do padre Leopoldo Brentano (LONER, 2001:111).
Outras organizações de amparo ao trabalhador negro das quais se tem
notícia eram as entidades carnavalescas. Nascidas ainda no período Imperial,
boa parte delas tiveram curta duração, funcionando em épocas de carnaval.
Entretanto, um bom número delas persistiu até as décadas de 1920 e 1930. O
certo é que em Pelotas existiu na década de 1910 cerca de 20 grupos
carnavalescos permanentes ou informais.
43
Já o Clube Carnavalesco Nagô, com uma forte tendência maçônica,
iniciou suas atividades em Pelotas no ano de 1882. As atividades promovidas
por esta instituição eram feitas no interior da sede da Loja Maçônica Honra e
Humanidade. Traçando um paralelo entre os diretores do Clube Carnavalesco
Nagô e as lideranças das demais entidades, percebe-se que era uma
constante os dirigentes revezarem-se em associações distintas.
Nas duas primeiras décadas da República, as entidades negras
ganharam uma nova configuração. Com isso, após o desmembramento do
Centro Ethiópico, este passa a dar lugar a entidades recreativas, carnavalescas
e teatrais. As entidades mutualistas, por sua vez, mantiveram-se na ativa
quanto à congregação do trabalhador negro, pois seus idealizadores
procuravam construir bibliotecas, constituir aulas aos seus sócios e familiares,
organizar palestras com temas socialistas e, acima de tudo, unir a comunidade
negra em eventos significativos, tais como festas, quermesses e concursos.
Conforme Loner e Gill (1999), este associativismo criado ainda no
Império propiciou que as entidades negras pelotenses participassem
ativamente do processo abolicionista. Muitas associações ou entidades
contribuíram para a luta contra o escravismo. Além disso, no decorrer das duas
primeiras décadas da República estes organismos fizeram a diferença para o
trabalhador negro, uma vez que o movimento operário começava a dar seus
primeiros passos por meio destas sistematizações. Este foi o caso das
entidades Feliz Esperança, Fraternidade Artística e Harmonia dos Artistas, que
alforriavam os cativos, além de amparar-lhes em caso de morte ou de doença.
Em síntese, estas entidades e associações negras assumiam para si a
responsabilidade destinada ao Estado para com estas pessoas marginalizadas.
Em 28 de outubro de 1880 fundava-se em Pelotas a Associação
Beneficente Fraternidade Artística. Seu objetivo era reunir um grande número
de artistas e trabalhadores operários. Ao contrário de tantas entidades negras
surgidas na escravidão, esta não teve duração efêmera, pois subsistiu até a
terceira década da República. Já a Harmonia dos Artistas, fundada um ano
depois da Fraternidade Artística, em 17 de setembro de 1881, compunha-se
44
em sua grade de sócios artistas nacionais e estrangeiros. A Harmonia dos
Artistas era mista e extinguiu-se na mesma época da anteriormente citada.
Em 10 de outubro de 1880 fundava-se em Pelotas a Associação
Beneficente Feliz Esperança. Seu sugestivo nome deriva do seu nascimento,
pois anteriormente denominava-se Associação Lotérica Beneficente devido ao
costume então vigente de apostas na cidade. Por volta da década de 1920
desaparecem as referências a esta sociedade beneficente que, contrariamente
às demais, aceitava entre seus sócios escravos. A lista de entidades negras
não termina aqui, pois em 1890 estava sendo constituída a Montepio da União
Africana, a qual se extingue em 1893.
Também não poderíamos deixar de mencionar a Sociedade de Socorros
Mútuos da Raça Africana, cuja fundação ocorreu em 25 de dezembro de 1891,
sendo atuante até o ano de 1893, no mesmo ano em que desaparecia a
Montepio da União Africana. O diferencial desta entidade era o fato de ter
surgido na República e ser constituída por mulheres. Provavelmente esta
entidade teria nascido em 1887, pois, conforme Loner (1999), há referência à
existência da Sociedade de Socorros Mártires da Princeza do Sul. Esta
entidade, segundo as informações da autora, já vinha formando um fundo
econômico emergencial.
Por volta da década de 1910 e nas décadas posteriores é que as
entidades negras passam por uma reformulação, resultando nos clubes sociais
negros. Em 1920 é a vez dos clubes esportivos passarem por um período de
evolução, como aconteceu com a Liga José do Patrocínio. A Liga costumava
realizar jogos de campeonato e amistosos futebolísticos com o rio-grandino
Liga Rio Branco.
No âmbito cultural e educacional, a intelectualidade negra se mostrou
extremamente atuante em Pelotas. Sobre o primeiro aspecto, há a
consolidação dos clubes sociais, os quais tomam o lugar das associações e
entidades. No tocante ao segundo aspecto, merece destaque a atividade de
um seleto grupo de intelectuais negros que fundou o jornal A Alvorada, o qual
será tratado mais adiante.
45
Quanto aos clubes sociais negros, sua importância para a comunidade
negra deu-se na medida em que os negros em Pelotas eram proibidos de
circular em espaços públicos reservados à elite branca devido ao forte
preconceito e à intensa discriminação racial. Em espaços como barbearias,
praças, e em alguns casos até mesmo ruas e parques, os negros pelotenses
eram obrigados a dar passagem para que um indivíduo de tez branca passasse
primeiro. Com isso, os clubes sociais, mais do que um meio de entretenimento,
eram, sobretudo, locais de socialização onde os negros congregavam-se.
A partir do começo da década de 1920, surgiram em Pelotas diversos
clubes sociais negros. Clubes como o Depois da Chuva (1916), Chove Não
Molha (1919), Quem Ri de Nós têm Paixão (1921), Fica Ahí Pra ir Dizendo
(1921) e Está Tudo Certo (1931) transformaram-se em polos aglutinadores da
etnia negra em Pelotas no limiar do século XX (OLIVEIRA, 2009). Destes, o
Chove Não Molha e o Fica Ahí Pra ir Dizendo permanecem na ativa nos dias
atuais, enquanto que os demais desapareceram, não sendo possível, portanto,
localizar a documentação pertencente a tais clubes.
Em 1917 nascia o clube carnavalesco Depois da Chuva, que em 1929
inauguraria sua sede própria localizada no perímetro urbano de Pelotas. Os
clubes sociais pelotenses, de modo geral, têm, na sua origem, nomes
irreverentes, e a história do Depois da Chuva não poderia ser diferente.
Popularmente este clube recebeu a denominação de “clube dos cisqueiros”,
relacionando a origem humilde de seus sócios com a localidade de suas
instalações, pois se encontrava próximo a um depósito de lixo da Prefeitura.
Enquanto organização social direcionada ao lazer, teve duração
relativamente longa, uma vez que suas atividades permanecem até os idos da
década de 1980. Além disso, não há como descobrirmos sobre sua
constituição, pois o patrimônio pertencente a este clube encontra-se sob tutela
de um indivíduo e sua documentação acha-se desaparecida.
Outro clube que merece atenção especial é o clube carnavalesco Fica
Ahí Pra Ir Dizendo. Nascido em 27 de janeiro de 1921 como um cordão
carnavalesco, em pouco tempo transforma-se em reduto da etnia negra. O
clube surgiu e se arraigou em razão do grande preconceito existente contra a
46
população negra em Pelotas, sendo esta proibida de circular em espaços
direcionados aos brancos ao longo das primeiras décadas da República. Após
adquirir o estatuto de clube social, passa então a denominar-se Clube Cultural
Fica Ahí Pra Ir Dizendo. Contudo, desde sua fundação sempre se empenhou
em prover festas para os seus sócios, pois mantinha na sua sede jogos de
salão (LONER, 2005:1).
Segundo o imaginário pelotense, havia certa hierarquia entre os clubes
sociais. Deste modo, o clube Quem ri de nós tem Paixão aglutinaria pessoas
humildes, ao passo que o Chove Não Molha ocuparia um nível médio. Entre
seus sócios encontravam-se costureiras, cozinheiros e empregadas
domésticas, entre outras profissões laboriosas. Pejorativamente, o Depois da
Chuva recebeu a alcunha de “clube dos cisqueiros”, denotando pessoas dos
extratos sociais mais baixos. Já com relação ao Está Tudo Certo, não
encontramos indícios sobre este clube, pois teve duração efêmera, existindo
apenas até a década de 1940. O Clube Cultural Fica Ahí Pra Ir Dizendo
congregava famílias negras com uma condição de vida que permitia arcar com
as despesas da manutenção da entidade. Eram pessoas pertencente ao
escalão mais baixo do funcionalismo público.
Também havia o Bloco Futurista, que realizava bailes para os seus
associados nos quais o luxo das fantasias imperava. Seus frequentadores
tinham acesso ao baile pagando na entrada do estabelecimento, já que não
havia exclusividade aos sócios. De todos os clubes sociais mencionados, o que
fazia mais distinção entre os seus sócios e os demais era o antigo Fica Ahí Pra
Ir Dizendo. Atualmente já não há este rigor entre os clubes sociais, pois caso
houvesse, a tendência seria o desaparecimento dos mesmos. Além disso, o
Chove Não Molha passou por um período em que estava na iminência de
fechar as portas, quando foi socorrido pela direção do Fica Ahí Pra Ir Dizendo,
sendo ambos os únicos clubes negros em atividades atualmente na cidade de
Pelotas.
Em 1940, com o recrudescimento da Segunda Guerra Mundial, ocorre
uma queda na qualidade do carnaval pelotense, que passa a se limitar às
festividades de salão promovidas pelos clubes. Todavia, na década de 1950
47
que Pelotas volta a ter o melhor carnaval do Estado sul rio-grandense, quando
entram em cena, para alegrar a populaçãom os cordões carnavalescos e o
bloco da bicharada (Bloco da Girafa da Cerquinha, Dromedário, Quingue e
Qongue, etc), somado ao aparecimento das escolas de samba como General
Teles e Academia do Samba.
3.3 - A Trajetória e a luta da Imprensa Negra Pelotense: o caso do Jornal A
Alvorada
Entre 5 de maio de 1907 e 13 de março de 1965, circulou em Pelotas o
jornal A Alvorada. Sua importância para os trabalhadores negros foi
significativa no sentido de que os mesmos não eram representados em
nenhuma instância nos demais jornais então existentes. Em 1950, o
antropólogo francês Roger Bastide conceituava em periódico paulista ao jornal
da imprensa negra pelotense como sendo um órgão especializado em
assuntos da “gente de cor” (Santos 2003:81).
Assim como Santos (2003:82), também discordamos da assertiva de
Bastide. Ainda que o autor tenha reconhecido a importância e o empenho da
imprensa negra gaúcha no jornal paulista, entendemos sua concepção como
sendo simplista. De acordo com Santos (2003:82), nas décadas de 1940 e
1950, a comunidade pelotense reconhecia-se através das páginas do jornal A
Alvorada pelos bons serviços prestados à população negra. De fato, o jornal e
seus articulistas e redatores empenhavam-se em prestar informações e
serviços aos negros e à classe operária como um todo, o que de certo modo
implicava menor participação negra naquele órgão de imprensa.
Para ilustrar o que acabamos de explicitar, recorremos ao mesmo
exemplo destacado por Santos (2003:82). Neste período, o semanário
pelotense engajava-se em cobrir uma campanha em favor do petróleo
brasileiro iniciada em 19362. O mote dessa campanha teria sido a repercussão
que teve a publicação da obra “O escândalo do petróleo”, de Monteiro Lobato.
Além disso, representantes do Núcleo dos Comerciários de Estudos e Defesa
2 Jornal A Alvorada 05 de Maio de 1956, apud Santos, 2003:86.
48
do Petróleo oferecia seu apoio ao hebdomadário A Alvorada pela campanha. O
certo é que esta campanha iniciada pelo periódico pelotense perduraria por
mais dez anos a partir da criação do Conselho Nacional do Petróleo, em 1938,
constituído durante o Estado Novo varguista.
É sobretudo na década de 1930 que o preconceito racial contra o negro
impera. Em 27 de maio de 1934, Rodolfo Xavier, o mais antigo colaborador do
semanário, incitava a juventude pelotense, através dos seus escritos, acerca
da importância do estudo para o homem negro.
Rodolfo Xavier na ocasião escreveu assim:
“Deixamos de parte a vaidade e ostentação dos ineptos
focalizados pelos salões de bailes, pelas torcidas de futebol e o
sarapico dos cordões e vamos tratar do que realmente a raça precisa:
evoluir ao lado da raça branca, ombro a ombro, não havendo
diferença entre os indivíduos pela cor, mas simplesmente pelo estudo
e pela cultura. Só assim desaparecerá o preconceito e a inferioridade
com que nos julgam” (Rodolpho Xavier, A Alvorada, 27∕05∕1934).
De acordo com o fragmento acima, extraído do semanário, percebe-se
que para Rodolfo Xavier a única forma de o negro ascender na sociedade era
através da educação, haja visto que durante toda a existência do A Alvorada
este semanário sempre posicionou-se como sendo uma imprensa opinativa,
cujo alvo eram as questões relativas aos negros. Por ter sido um órgão criado
por jovens negros de parcos recursos, sua administração constituía-se de
forma humilde, sendo que os colaboradores, redatores e articulistas vestiam a
política da ideologia em que primava a paixão pela escrita.
O jornal A Alvorada tinha como público-alvo o trabalhador negro e a
classe operária. Em 5 de maio de 1957, A Alvorada comemorava cinquenta
anos de sua existência. Em suas páginas, aos 73 anos de vida, Juvenal
Moreira Penny, um dos seus fundadores, era homenageado. Moreira Penny
também contribuiu com o programa que o hebdomadário deveria seguir, que
era o de congraçamento e de “igualdade de raças, o bem estar do operário e a
instrução obrigatória”.
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No que tange à instrução obrigatória, entendemos que numa sociedade
branca altamente hierarquizada e preconceituosa, a qual se fundou sob os
ditames do escravismo, somente através da educação poderia o negro
ascender socialmente. Já a “igualdade da raça” seria a equiparação através de
direitos iguais entre negros e brancos. Vale a pena ressaltar, no entanto, que a
militância do jornal pelotense teve início desde sua fundação, persistindo sua
luta até a década de 1930.
A criação do jornal A Alvorada e o lançamento do seu primeiro número,
em 5 de maio de 1907, encontram-se próximos de duas datas importantes para
os negros: o 13 de Maio de 1888, quando historicamente extinguia-se a
escravidão no Brasil, e o 1º de Maio, dia do trabalhador. Provavelmente seus
idealizadores preferiram lançar o jornal tendo como marco histórico duas datas
significativas para o trabalhador negro.
Com relação aos intelectuais negros que escreviam artigos para o jornal,
estes tinham em foco a resistência contra o preconceito e a discriminação
racial dirigida ao negro em Pelotas. Para tanto, em seus artigos costumavam
denunciar práticas abusivas, situações em que o negro era tido como inferior
ao branco.
Com a concepção de que o trabalhador imigrante iria melhorar a
imagem do Brasil lá fora, varria-se para baixo do tapete o problema social
brasileiro. Intensificava-se, portanto, o processo de favelização no Brasil,
colocando os negros à margem da sociedade, tendência esta que vinha desde
o período escravista, perdurando após a abolição, já na República. Em síntese,
com a abolição da escravatura, em 1888, tanto a sociedade pelotense quanto a
brasileira, “fabricaram” um expressivo contingente de trabalhadores negros
despreparados para o mercado de trabalho. Aos trabalhadores negros em geral
restaram as piores colocações no mercado de trabalho, como as atividades de
limpeza, os subempregos, o desemprego e a marginalização.
No ofício da Frente Negra Pelotense veiculado pelo jornal A Alvorada no
dia 9 de maio de 1934, percebemos uma intensa mobilização social pró-
alfabetização da população negra. Isto porque naquele momento tanto o
semanário quanto a Frente Negra Pelotense empenhavam-se em elevar a
50
autoestima do trabalhador negro, incitando-o aos estudos. Numa sociedade
preconceituosa como a pelotense, acostumada a tratar o negro como se ainda
fosse escravo, o único meio deste ascender socialmente seria através da
educação. Nesse sentido, os escritores do jornal A Alvorada, como Xavier,
eram vistos como exemplos a serem seguidos pela juventude da época. Além
disso, o jornal A Alvorada tinha por finalidade a médio ou longo prazo tornar-se
a voz da raça etiópica, tal como os negros se definiam.
Nas décadas de 1930 e 1940, a redação e direção do hebdomadário
passa a funcionar de modo improvisado por algum tempo. Nomes de peso
como Dario Nunes, Armando Vargas, os irmãos Juvenal e José Penny
revezam-se na direção do periódico. Como o semanário não fornecia lucro
suficiente para as despesas, este time de intelectuais negros teve de buscar
outra alternativa de subsistência. Desse modo, Dario Nunes e Armando Vargas
exerciam o ofício de tipógrafo, enquanto Juvenal Penny, um dos fundadores do
jornal, era proprietário de uma fábrica de fogos de artifícios. Ao exercerem
atividades paralelas remuneradas, estes intelectuais, os quais sobreviviam com
parcos recursos, conseguiram manter por cinquenta anos o periódico.
Em 1946, Juvenal Penny vendia o nome do jornal A Alvorada a Rubens
Lima, então antigo funcionário do porto de Pelotas, além de alguns gráficos do
semanário. No momento de sua posse, Lima recebia auxílio na administração
do hebdomadário por parte de Carlos Torres. Este lhe cedia o espaço de sua
alfaiataria para que o jornal funcionasse de modo provisório. Com isso, Rubens
Lima, Carlos Torres e Armando Vargas assumiriam a nova fase do A Alvorada.
Após um pequeno intervalo por conta da Segunda Guerra Mundial, seu
funcionamento esteve prejudicado devido a queda de qualidade do material por
causa da importação do papel. Nos anos trinta o jornal era produzido com
papel de uma qualidade superior, diferente, portanto, do papel com que era
feito o hebdomadário nas décadas de quarenta e de cinquenta.
Nesta fase, com o novo dono, o jornal procurava manter o programa
inicial, que era o de congregar os negros em torno de um ideal, denunciar
práticas de preconceito racial nas suas páginas, além de manter o lucro do
periódico. Pelotas em 1940 contava com 15.311 negros e pardos. Este
51
percentual, conforme destacado por Santos (2003:95), equivalia a 14,6% da
população citadina pelotense. Neste ínterim o semanário alcançava a marca de
três mil exemplares nas edições publicadas, o que permite dimensionar sua
real importância para a comunidade negra pelotense.
Na segunda fase do jornal, ou seja, após 1945, diferentemente da
primeira fase (1907-1945), cuja preocupação esteve centrada na manutenção
do jornal e de seus lucros com anúncios, agora, a nova direção encontrava-se
dividida. Sua preocupação oscilava entre fazer com que o A Alvorada
mantivesse o mesmo teor reivindicativo dos problemas do trabalhador negro e
do operariado e a busca do lucro junto a seus patrocinadores comerciais. Nesta
segunda fase o jornal passava por nova reformulação na sua estrutura, pois
aumentava consideravelmente o número de propagandas e anúncios no corpo
do jornal, ao passo que os anúncios que eram pagos, feitos pela comunidade
negra, caíram drasticamente.
Na atualidade as notícias chegam até nós por meio de diversas redes
sociais, como, por exemplo, Instagram, Twiter e Facebook. No entanto, o jornal
A Alvorada, periódico pelotense do começo do século XX voltado à população
negra, não era tão diferente do que se percebe nos dias atuais. Isto porque
colunas de fofocas como Espia Só, Pesquei, Os Dois Linguarudos, Eudóxia e
Micaela, Gosto e Não Gosto Mas do que?, Eu vi, Raios-X e Os Espiões
costumavam retratar comportamentos inapropriados da população local,
leitores do jornal portanto, mas que não se assumiam como sendo negros.
Para solucionar este problema, os intelectuais negros que circulavam
pelos arredores do jornal procuravam organizar concursos como, por exemplo,
o de Rainha do Alvorada. Nestes eventos poderiam participar pessoas negras,
pois a finalidade destes concursos constituía-se no elevamento moral da raça
negra e na construção de uma identidade negra, além de divulgar a beleza
negra.
Em Pelotas, durante todo o século XIX, a cidade se constituiu com o
trabalho nas charqueadas. Este trabalho havia sido feito pelos escravos
urbanos e rurais, pois devido a um grande contingente de braços, os negros
foram aproveitados para as atividades charqueadoras. Junto com a
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prosperidade do charque, formava-se uma elite pelotense que, durante o
sistema escravista, e mesmo depois da abolição, continuou tratando o negro
como escravo. Florestan Fernandes (2007:76) nos relata que a sociedade
brasileira havia sido criada especificamente para o uso e gozo do branco.
No contexto das primeiras décadas do século XX, para o negro ser
integrado na sociedade ele deveria despir-se cultural e ideologicamente. Em
síntese, o negro deveria deixar de ser negro, se convertendo em uma folha de
papel a qual ele ia preenchendo na medida em que aderia à cultura do branco.
Neste sentido, em artigo publicado no jornal A Alvorada em 1935, de autoria de
Rodolfo Xavier, um dos articulistas do semanário, era relatada a situação de
miserabilidade da população negra pelotense. Deste modo, Xavier trazia á
tona:
“(... ) havia, no tempo em que tudo era barato, cortejos de
pedintes que às quintas feiras e aos sábados andavam de porta em
porta pelo centro da cidade, firmados nas muletas, guiados por
aleijados ou sozinhos, arrastando-se, e que viviam em corredores de
quartos úmidos, inçados de percevejos ou piolhos, sujeitos aos
despejos a qualquer hora do dia por falta de pagamento de aluguéis.
Os proprietários destes cortiços (não seriam todos), tiravam-lhes os
cacarecos, constante de uma cama desengonçada, ou de um catre
velho, junto a uns trapos sebentos, servindo de cobertas, de uma
panela e uma chaleira, de caixões de lata de querosene servindo de
armário e de mesas, quando não dormiam sentados pelo chão ou em
cima da cama ou de outras bugigangas próprias do forno do lixo ou
senão 3 ou 4 cacarecos imprestáveis a que se dava o nome de
“mobília de palhaço” (Alvorada, 24 de maio de 1935).
Como se verifica acima, os excluídos apontados por Xavier em seu
artigo, tais como velhos, desempregados e deficientes, sofriam com uma
situação tão miserável quanto o grosso da população pelotense, em especial,
os trabalhadores negros, moradores destes cortiços.
Outra organização negra que teve destaque foi a Frente Negra
Pelotense. Por volta da década de 1930, mais especificamente entre 1933 e
1935, surgia em Pelotas a FNP, para isso contando com o respaldo do jornal A
Alvorada. A população negra como um todo, por sua vez, recusava-se a
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enxergar a existência do preconceito racial e social arraigado na sociedade e
dirigido aos negros desde o período escravista. Esta falta de visão por parte da
comunidade local resultou em que alguns articulistas do jornal passaram a ser
hostilizados pelo grande público.
Um ponto de atrito era que a Frente Negra Pelotense, seguindo as
diretrizes da Frente Negra Brasileira, sediada em São Paulo, procurava
mobilizar politicamente a população negra no sentido de buscar a conquista de
direitos através de uma militância intensa, enquanto que parte expressiva da
comunidade negra alegava que a Frente Negra deveria se ater às soluções
vinculadas à educação.
Contudo, vale ressaltar que os articulistas do jornal A Alvorada,
responsáveis pelas crônicas e matérias direcionadas para as especificidades
do cotidiano negro, desempenhavam profissões modestas, como barbeiro,
chapeleiro, gráfico. Todavia, muitos desses homens negros tinham forte
influência socialista sendo que com o tempo adentraram na vida político-
partidária, concorrendo em 1934 pelo Partido Socialista Proletário Brasileiro.
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Considerações Finais
O presente trabalho se propôs a realizar um balanço da historiografia
acerca das lutas empreendidas pelos escravos e seus descendentes no
sentido se integrarem de forma ativa na sociedade brasileira.
Para isso, inicialmente foi realizado um balanço da formação da
sociedade brasileira durante o período colonial, sendo evidenciado que os
ciclos econômicos então desenvolvidos dependiam essencialmente da
capacidade laboral de africanos trazidos para cá de forma compulsória. Da
mesma forma, o ciclo do café, no século XIX, foi fundamental para a
constituição do Estado nacional, sendo possível graças à continuação do
tráfico transatlântico de escravos até a metade daquele século e depois graças
ao tráfico interno. Desde a metade do século XIX, foi posto em marcha um
projeto de branqueamento da sociedade brasileira com a vinda de imigrantes
europeus, que posteriormente, no contexto pós-abolição das primeiras décadas
da República, acabaram tendo prioridade em relação aos ex-escravos na
ocupação dos melhores postos no mercado de trabalho.
Posteriormente o trabalho se propôs a traçar um painel da formação
histórica da Província do Rio Grande do Sul e da cidade de Pelotas,
demonstrando como ambas utilizaram o trabalho escravo em larga escala em
suas origens, principalmente na economia charqueadora, principal atividade no
Brasil meridional ao longo do século XIX.
Cumpridas estas etapas preliminares, necessárias para traçar um painel
da realidade do negro nos âmbitos nacional e regional, finalmente, o trabalho
chegou ao seu objetivo central, que é o de abordar a situação da população
negra pelotense na cidade de Pelotas nas décadas imediatamente posteriores
à abolição da escravidão no Brasil (1888), que precedeu em pouco mais de um
ano à Proclamação da República (1889).
Neste sentido, ao tratar da população negra pelotense no pós-abolição,
isto é, nas primeiras décadas do regime republicano, chamada também de
República Velha, a pesquisa se deteve na inserção do negro no mercado de
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trabalho em Pelotas durante as primeiras décadas do século XX, assinalando
as dificuldades para competir com a mão de obra de origem europeia.
Na mesma conjuntura histórica, o trabalho analisou ainda o
associativismo negro em Pelotas, que no período imperial tomava a forma de
confrarias religiosas e no pós-abolição passou a se dar através da criação de
clubes sociais com diversos perfis, como blocos caranavalescos, clubes
recreativos, associações culturais, etc.
Por fim, o trabalho se deteve na trajetória do jornal pelotense A
Alvorada, que circulou em Pelotas entre 1907 e 1965 , sendo criado e mantido
durante todo este período por um grupo de intelectuais negros pelotenses.
Passado mais de um século da abolição da escravidão, persiste o
preconceito e a discriminação contra a população de afrodescendentes no
Brasil, no Rio Grande do Sul e, em particular, na cidade de Pelotas. Em razão
disso, continua atual a temática da contribuição do negro para a formação da
sociedade brasileira, assunto que tem recebido atenção crescente por parte da
historiografia nacional e regional.
Portanto, este trabalho se propôs a realizar uma síntese da historiografia
nacional e regional acerca da luta da população negra para se inserir no
mercado de trabalho e para ter sua cultura aceita, priorizando o caso de
Pelotas no contexto pós-abolição.
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