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A interpretação constitucional exercida pelos Três Poderes em um espaço
constitucional curvo
Resumo:
Este artigo propõe uma redefinição da interação entre os Três Poderes no processo de
interpretação constitucional a partir do paradigma da física pós-newtoniana. Funda-se
em uma concepção de espaço constitucional curvo que afeta e é afetado pela ação dos
entes estatais, provocando distorções que afetam as ações um do outro. Para a física
newtoniana os objetos massivos exercem força um sobre o outro através de um espaço
“místico”. A física pós-newtoniana entende o espaço como curvo e afetado pelos
objetos com massa, ao mesmo tempo que os afeta também. Propomos uma interpretação
do espaço público criado pela Constituição a partir deste paradigma. Também, a partir
de uma definição de democracia movida pelo constante desejo das massas e de
República como permanente limitação desse desejo, ou seja, limitação do exercício de
poder, repensamos a dinâmica dos Poderes da União e propomos uma solução para o
sempre presente conflito entre o Legislativo e o Judiciário.
Palavras-chaves: Princípio da Separação dos Poderes, Teoria da Constituição,
controle de constitucionalidade, física newtoniana, física pós-newtoniana,
República, Democracia.
Abstract:
This article propose a redefinition of the interaction of the Three Branches of
Government in the process of constitutional interpretation under the pos-newtonian
physic paradigm. It is founded on a curve constitutional space that affects and is
affected by the actions of the Government Branches, causing distortions that affect the
actions of one another. For the Newtonian conception of physics the massive objects
exercise force one over another through a “mystical” space. The pos-newtonian physics
understand the space as curve and affected by the massive objects, at the same time that
it affects them too. We propose an interpretation of the public space created by the
Constitution based on these conceptions. Also, through a definition of democracy
moved by the constant desire of people and Republic as a permanent limitation of that
desire, that meaning, a limitation on the exercise of power, we rethink the dynamic of
the Branches of Government and we propose a solution for the always present conflict
between the Legislative and the Judiciary.
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Keywords: Separation of Powers Principle, Constitutional Theory, judicial review,
Newtonian physics, pos-newtonian physics, Republic, Democracy.
1. INTRODUÇÃO
O ano é 1857. O local, Springfield, Illinois, nos Estados Unidos. Um
proeminente político autodidata Abraham Lincoln, que mais tarde tornar-se-ia o 16º
presidente norte-americano em um momento decisivo daquele país, discursava sobre as
decisões judiciais. Dizia ele:
Decisões judiciais têm dois usos: primeiro, servem para determinar absolutamente o caso decidido; e segundo, servem para indicar ao público como outros casos similares devem ser decididos quando estes surgirem. No segundo caso, eles são chamados de “precedentes” e “vinculativos”. Nós acreditamos tanto quando o Juiz Douglas (talvez até mais) em obediência e respeito às decisões judiciais. Acreditamos que suas decisões em questões constitucionais, quando assentadas, deveriam aplicar-se não apenas ao caso concreto decidido, mas de forma geral e abstrata em todo o país, sujeitas a revisão apenas por emendas à Constituição, como previsto nesta própria. Mais do que isso seria uma revolução. Mas nós acreditamos que Dred Scott foi uma decisão errada. Nós sabemos que o Tribunal que a decidiu constantemente tem revogado suas próprias decisões, e nós faremos o que pudermos para vê-lo revogar essa decisão também. Nós não oferecemos nenhuma resistência a ela. Decisões judiciais possuem maior ou menor autoridade como precedentes dependendo das circunstâncias (LINCOLN Apud ROE: 1907, p. 50, tradução livre do autor).
O caso a que Lincoln faz referência é Dred Scott v. Sandford decidido pela
Suprema Corte dos Estados Unidos em 1856. A escravidão, desde o início da história
norte-americana como um país independente, foi um ponto de dificuldade para a
formação da união das ex-colônias e uma série de compromissos foram firmados para
solucionar a divergência. À medida que o território se expandia para o Oeste a questão
se complicava, porque a cada estado que era acrescentado à União podia representar
força para os escravocratas ou abolicionistas, dependendo se o novo estado escolhesse
ser livre ou escravocrata.
Em 1856 a questão já estava em ponto que quase limite para a guerra civil. O
Congresso por anos vinha editando leis que visassem apaziguar os estados escravagistas
e abolicionistas, mas sem muito sucesso. Um dos atos do Legislativo foi o Missouri
Compromisse, passado em 1820, que delimitava uma linha divisória de leste a oeste e
determinava que ao norte dela os novos estados deviam obrigatoriamente ser livres da
escravidão, proibindo com isso a escravidão no território da Louisiana. A lei é
submetida a grande questionamento em 1854 quando os estados de Nebraska e Kansas
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estão para ser admitidos na União. Com o Congresso sem mais força política para
resolver o conflito, resta a Suprema Corte emitir uma solução.
O Tribunal então se reúne para decidir o caso Dred Scott. Dred Scott era um
escravo no estado do Missouri que durante algum tempo residiu no território da
Louisiana, livre da escravidão pelo Missouri Compromisse. De volta ao Missouri ele
acionou o judiciário estadual requerendo sua liberdade, porque havia morado em um
território livre e por isso tinha adquirido o direito à liberdade. Depois de perder na corte
estadual, ele ingressa em um tribunal federal e o caso chega à Suprema Corte por via de
recurso com intensa pressão para uma solução da questão escravagista. A primeira
decisão a que chega o Tribunal é que nenhum americano de descendência africana pode
nunca ser considerado um cidadão dos Estados Unidos e, portanto, não tinha o direito de
ingressar com ação no Poder Judiciário. Essa opinião contrariava as leis de muitos
estados que até previam direito de voto a ex-escravos e também, do ponto de vista
formal, a Corte deveria ter parado de decidir aqui, se essa era a sua opinião. Se Dred
Scott não era um cidadão, não havia caso a ser decidido por ilegitimidade ativa da parte.
Mas havia uma questão a ser resolvida e a Suprema Corte não podia parar aqui. Decidiu
então que o Congresso não tinha competência para restringir a escravidão e esta deveria
ser legal em todo o território dos Estados Unidos, portanto o Missouri Compromisse era
inconstitucional. Com isso os juízes achavam terem obtido uma solução definitiva para
a questão da escravidão. Como estavam errados!
Em seus discursos, Lincoln abertamente diz que se eleito irá institucionalmente
desobedecer a decisão da Suprema Corte. Essa questão levanta um problema de teoria
da constituição de solução nada fácil. Em todos os países que adotam o judicial review,
aqui no Brasil denominado de controle de constitucionalidade, a doutrina dominante é
de que o órgão máximo do Poder Judiciário tem a última decisão sobre questões
constitucionais. O conflito surge quando os demais poderes e, de certa forma, a
comunidade política que diretamente elege os membros dos demais poderes discordam
desse entendimento do Judiciário. A questão que se apresenta é, dentro da teoria da
divisão dos três poderes, como deve funcionar a interação entre o Executivo, o
Legislativo e o Judiciário? Dizemos que estes devem ser independentes e harmônicos
entre si, mas o que isso realmente significa?
Partimos da ideia apontada por Luís Roberto Barroso (1999, p. 116): “A
interpretação da Constituição é exercida por órgãos dos três Poderes estatais. Assim se
passa, em primeiro lugar, para a delimitação de sua própria esfera de competências”.
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Portanto, cada um dos órgãos estatais da União tem papel na interpretação
constitucional, mas como órgãos representantes de vontade política em uma sociedade
plural e democrática eles podem divergir quanto à interpretação da norma fundamental.
A doutrina é pacífica em afirmar que, em países que adotam a revisão constitucional
pelo Poder Judiciário, sua decisão vincula os demais Poderes. “Não é incomum que a
interpretação judicial venha sobrepor-se à interpretação feita pelo Legislativo – como se
passa quando declara uma lei inconstitucional – ou pelo Executivo” (Ibidem, p. 118).
Isso significa que Lincoln, como pretendia no exercício do cargo de chefe do
Poder Executivo, não detinha a autoridade de desobedecer a opinião da Suprema Corte
sobre a constitucionalidade das leis editadas pelo Congresso sobre escravidão? Essa
concepção adota um entendimento da divisão dos Três Poderes que centra-se na
característica de independência e que harmonia é cada um exercer autoridade dentro do
seu âmbito de competências. Não partilhamos dessa concepção. Em uma sociedade
aberta e plural em que se concebe que todos os afetados pela norma são também seus
intérpretes (HABERLE: 1997), entendemos “que todos os cidadãos têm o direito, desde
que discursiva e racionalmente fundados, de desobedecer a um comando normativo que
considerem inconstitucional” (CATTONI: 2006, p. 177). E isso inclui o chefe do Poder
Executivo e os membros do Poder Legislativo, haja visto que todos eles fizeram um
juramento de defender e aplicar a Constituição e esta é mais do que o que a Suprema
Corte de um país diz que ela é.
O problema que se apresenta, então, é a adequação da teoria dos três Poderes à
essa concepção de como eles devem interagir. Necessita-se de uma reformulação dos
conceitos de independência e harmonia, para uma concepção em que eles atuariam em
constante choque, criando e destruindo os atos de uns dos outros. Buscaremos o
referencial para essa conceituação na física, como procedido pelo professor de direito
constitucional de Harvard, Laurence Tribe. Tribe (1989, p. 2-3) expõe que a ideia do
funcionamento dos órgãos dos Três Poderes pelos teóricos jusnaturalistas teve origem
na física newtoniana. Imaginava-se que os Poderes funcionariam como um sistema
mecânico, que a partir da aplicação de uma força permaneceriam em movimento
autônomo. A ciência natural, assim com a ciência do Direito, evoluiu desde as
proposições de Newton e a Teoria da Relatividade Geral e a Física Quântica deram
soluções a fenômenos que a física newtoniana não foi capaz de explicar. A física pós-
newtoniana apresenta-se, então, como possibilidade para um novo referencial para a
conceituação dos institutos do Direito.
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Sobre o problema aqui abordado, merece as relevantes palavras de Luís Roberto
Barroso (2009, p. 391):
No Brasil, só mais recentemente se começaram a produzir estudos acerca do ponto de equilíbrio entre supremacia da Constituição, interpretação constitucional pelo Judiciário e processo político majoritário. O texto prolixo da Constituição, a disfuncionalidade do Judiciário e a crise de legitimidade que envolve o Executivo e o Legislativo tornam a tarefa complexa.
Antes de iniciarmos a fundamentação dessa proposta, um esclarecimento faz-se
necessário. Em absoluto este artigo propõe um retorno ao jusnaturalismo. Quando os
teóricos jusnaturalistas olhavam para o mundo natural buscavam a certeza e a
autoridade além de qualquer questionamento das ciências naturais. Como assevera Tribe
erra é uma percepção errônea do que é ciência.
A melhor visão da ciência é uma contínua e, acima de tudo, crítica exploração de visões frutíferas, a melhor metáfora é a de uma jornada. Ciência não se baseia tanto em provar, quanto em desenvolver. Olhar para as ciências naturais em busca de autoridade – isto é, para se ter certeza – é olhar para algo que não está lá (TRIBE: 1989, p. 2, tradução livre do autor, grifos acrescidos).
Em outra passagem o autor defende a abordagem interdisciplinar como importante para
repensar os conceitos que utilizamos no Direito e redefinir os institutos estado, lei,
tribunais e suas interações e papéis na sociedade. “Comparações interdisciplinares traz
maior consciência sobre as preocupações, e é desagregando estes conhecimentos tácitos
que geralmente cria-se a possibilidade de escolha e progresso intelectual” (Ibidem).
2. ESPAÇO CONSTITUCIONAL CURVO
A Constituição origina-se de um processo revolucionário, produzida pelo Poder
Constituinte tem um caráter de supremacia no Ordenamento Jurídico por ser o texto
legal que o funda e delimita (BARROSO: 2006, p. 94-121). Fundar não significa que a
Constituição apenas descreve as características das instituições do Estado, pelo
contrário, como afirma Barroso (Ibidem, p. 74), “a Constituição não tem caráter
meramente descritivo das instituições, mas sim a pretensão de influenciar sua
ordenação, mediante um ato de vontade e de criação, usualmente materializado em um
documento escrito”.
Em conclusão, o emérito constitucionalista diz que a Norma Fundamental
cria ou reconstrói o Estado, organizando e limitando o poder político, dispondo acerca de direitos fundamentais, valores e fins políticos e disciplinando o modo de produção e os limites de conteúdo das normas
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que integrarão a ordem por ela instituída (BARROSO: 2006, p. 74, grifos acrescidos).
É a Constituição que cria o espaço público de discussão política dentro do qual as
normas jurídicas de um Estado de Direito são legitimamente produzidas.
Cattoni (2006, p. 70-72), fundado na teoria do autor alemão Jürgen Habermas,
procede a uma análise das concepções de espaço público e privado – bem como a
produção do Direito – de acordo com as visões de justiça liberal e republicana, com o
fim de reconstruí-las de uma forma que ele considera “mais adequada ao paradigma
procedimentalista do Estado Democrático de Direito” (Ibidem, p. 70).
A partir do momento que se supera tanto a concepção republicana quanto a concepção liberal de processo político, a Constituição, para articular-se com uma visão discursiva da Democracia, deverá ser compreendida, fundamentalmente, como a interpretação e prefiguração de um sistema de direitos fundamentais, que apresenta as condições procedimentais de institucionalização jurídica das formas de comunicação necessárias para uma legislação política autônoma. Essa institucionalização jurídica das formas de comunicação necessárias para uma legislação política autônoma deverá estabelecer, em termos constitucionais, as condições para um processo legislativo democrático, no qual a soberania popular e os direitos humanos, concebidos desde o início, como princípios jurídico-constitucionais, fazem valer o nexo interno entre autonomia pública e autonomia privada dos cidadãos, estas também consideradas, desde o início, de forma jurídica, co-originárias e com igual relevância, em contraponto com as tradições republicana e liberal, que relevam apenas uma delas e as compreendem inicial e respectivamente ou como autodeterminação ética, ou como autonomia moral (CATTONI: 2006, p. 71-72).
Não abriremos mão dessa conceituação de espaço público, ou espaço constitucional
como denominamos no título seguindo a nomeação de Tribe (1989), mas
apresentaremos uma perspectiva desse espaço em conceitos da física pós-newtoniana.
A física newtoniana entendia o universo como composto de objetos massivos
cujos comportamentos no espaço podiam ser explicados por leis objetivas sem que se
precisasse fazer análises mais complexas sobre a estrutura do universo. Os objetos
podiam se interagir, mas nunca alterar o espaço em si. Segundo Newton, a gravidade
varia linearmente dependendo da massa do objeto. Newton foi capaz de desenvolver
uma fórmula matemática que possibilitava calcular com muita precisão a força
gravitacional que dois objetos exercem um sobre o outro. Contudo, algumas questões
foram deixadas em aberto na sua teoria. A teoria newtoniana não é capaz de explicar por
que a variação na distância entre os objetos afeta a força gravitacional entre eles. De
alguma forma, o Sol e a Terra sabem a que distância estão um do outro, como se uma
“corda” invisível ligasse cada átomo um do outro (TRIBE: 1989, p. 3).
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A teoria da relatividade de Einstein irá mudar essa concepção, percebendo que
os objetos com massa podem alterar a estrutura do tecido espaço-temporal e a física
quântica postula que a interação entre o objeto e o observador a um nível subatômico
muda a realidade do experimento. A teoria da relatividade geral postula, como solução
ao problema não solucionado na teoria newtoniana, que os corpos massivos distorcem o
espaço ao seu redor; e os outros objetos, ao entrar nesse espaço distorcido, movem-se
seguindo essa distorção. Para os objetos em movimento eles estão apenas seguindo a
trajetória formada pela curvatura do tecido espacial e não são realmente afetados por
algum tipo de conexão à distância. Da teoria newtoniana para a einsteiniana ocorre uma
mudança de paradigma, de percepção, da natureza do espaço. Para Newton o espaço é
fixo e imutável, para Einstein ele é relativo (TRIBE: 1989, p. 3-4).
Em uma perspectiva do Direito, a teoria newtoniana seria aquela em que os
atores estatais atuariam sem afetar o espaço no qual agem. Já a teoria da relatividade
percebe que a ação dos atores afeta o espaço em que agem, como também o espaço
afeta a ação dos atores. Em paralelo com o direito, isso quer dizer que a o Direito não
pode ser percebido como à parte espaço público no qual ele é produzido (TRIBE: 1989,
p. 4).
(o direito) não pode ser um referencial neutro, e seletivamente adentrar, como se fosse um agente externo, para fazer ajustes em conflitos particulares. Cada decisão reestrutura o Direito em si, assim como a realidade social na qual ele opera, porque, como toda atividade humana, o direito está fatalmente inserido no processo dialético através do qual a sociedade constantemente se recria (TRIBE: 1989, p. 4, tradução livre do autor).
Diante do exposto, percebe-se que a natureza do espaço público de ação política
das instituições do Estado é curvo, ou seja, não é imutável e rígido, mas distorce-se
como consequência da ação política. O que isso significa é que os entes estatais não
estão lançando decisões de um ponto externo à realidade social, mas completamente
imersos nela.
Se vamos conduzir um discurso constitucional através de uma conversa verdadeira para valores contemporâneos – abandonando o prisma da física newtoniana e suas analogias – então devemos entender o Estado não como uma coisa mas como um sistema de regras, princípios e concepções que interagem com um espaço que é em parte produto de uma ação política anterior. E devemos sobre os eventos e as pessoas envolvidas sem pretender que eles são pré-políticos; eles também são, em parte, formados pelas ações políticas. (...) A mudança de paradigma para um modelo que contenha tanto a geometria do espaço público e a interação entre o observador e o fenômeno observado tem raízes profundas em práticas existentes e maneiras de se pensar o Direito (TRIBE: 1989, p. 12-13, tradução livre do autor).
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3. A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL EXERCIDA PELOS TRÊS
PODERES
3.1. República como Constante Contenção do Exercício de Poder
O tensionamento gerado pela revisão judicial dos atos do Poder Legislativo tem
origem na contradição existente entre os conceitos de democracia e constitucionalismo.
Constitucionalismo significa, em essência, limitação do poder e supremacia da lei (Estado de direito, rule of law, Rechtsstaat). Democracia, por sua vez, em aproximação sumária, traduz-se em soberania popular e governo da maioria. Entre constitucionalismo e democracia podem surgir, eventualmente, pontos de tensão: a vontade da maioria pode ter de estancar diante de determinados conteúdos materiais, orgânicos ou processuais da Constituição. Em princípio, cabe à jurisdição constitucional efetuar esse controle e garantir que a deliberação majoritária observe o procedimento prescrito e não vulnere os consensos mínimos estabelecidos na Constituição (BARROSO: 2009, p. 87-88).
O conflito pode ser entendido também como uma divergência entre os conceitos
de República e Democracia. Rancière (2014, p. 14-18) e Ribeiro (2000, p. 13-14)
trabalham os conceitos clássicos de democracia e república de Aristóteles e Platão e
percebem que na democracia o elemento crucial é o “desejo” das massas, que comanda
ditatorialmente o governo da sociedade com o fim de confiscar e redistribuir os bens dos
mais ricos entre os mais pobres. Como afirma Rancière (2014, p. 15) “a democracia,
diziam os relatores, significa o aumento irresistível de demandas que pressiona os
governos, acarreta o declínio da autoridade e torna os indivíduos e os grupos rebeldes à
disciplina e aos sacrifícios exigidos pelo interesse comum”. É, portanto, um regime
fundado no princípio anárquico, subversivo e é, consequentemente, ingovernável. Em
conclusão, “a democracia não é nem uma sociedade a governar nem um governo da
sociedade, mas é propriamente esse ingovernável sobre o qual todo governo deve, em
última análise, descobrir-se fundamentado” (RANCIÈRE: 2014, p. 66)
A República tem como fundamento a constante contenção do desejo das massas,
a constante contenção do exercício de poder. É um governo de cunho aristocrático,
fundado em uma virtude aristocrática de contenção do desejo individual em prol do
interesse comum (RIBEIRO: 2000, p. 17-18). A tensão entre democracia e república é
evidente. A primeira tem como premissa a crucificação dos reis dos homens, enquanto a
segunda reflete a necessidade do bom pastor na condução da sociedade (RANCIÈRE:
2014, p. 47-49).
Nessa linha de raciocínio, a Constituição de uma dada sociedade política reuniria
um conjunto de consensos mínimos que limitariam o poder de decisão das maiorias em
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uma democracia. Além, é claro, de criar e limitar o espaço político de deliberação sob o
qual se produz um Direito legítimo (BARROSO: 2009, p. 89-90).
Longe de serem conceitos antagônicos, portanto, constitucionalismo e democracia são fenômenos que se complementam e se apoiam mutuamente no Estado contemporâneo. (...) Por meio do equilíbrio entre Constituição e deliberação majoritária, as sociedades podem obter, ao mesmo tempo, estabilidade quanto às garantias e valores essenciais, que ficam preservados no texto constitucional, e agilidade para a solução das demandas do dia-a-dia, a cargo dos poderes políticos eleitos pelo povo (Ibidem, p. 90).
A uma mesma conclusão chega Ribeiro (2000, p. 22-23), sobre as contradições entre
república e democracia: “o problema da democracia, quando ela se efetiva – e ela só
pode efetivar sendo republicana -, é que, ao mesmo tempo que ela nasce de um desejo
que clama por realizar-se, ela também só pode conservar-se e expandir-se contendo e
educando os desejos”.
Essas considerações têm grande impacto ao se pensar na legitimidade do
processo democrático de produção legislativa como um todo, bem como a atuação dos
juízes em uma democracia. É necessário ter em mente a falácia inerente ao sistema
representativo, como expõe com propriedade Rancière (2014, p. 68):
A “sociedade democrática” é apenas uma pintura fantasiosa, destinada a sustentar tal ou tal princípio do bom governo. As sociedades, tanto do presente quanto no passado, são organizadas pelo jogo das oligarquias. E não existe governo democrático propriamente dito. Os governos se exercem sempre da minoria sobre a maioria.
E em outro trecho o autor fala especificamente do modelo de democracia representativa:
a representação nunca foi um sistema inventado para amenizar o impacto do crescimento das populações. Não é uma forma de adaptação da democracia aos tempos modernos e aos vastos espaços. É, de pleno direito, uma forma oligárquica, uma representação das minorias que têm título para se ocupar dos negócios comuns (Ibidem, p. 69).
Por fim, o que está subjacente a esse conflito entre república e democracia, ou
entre constitucionalismo e democracia, é a luta pela dominação do espaço público. É no
contexto dessa luta que deve ser compreendido o processo democrático.
Uma vez que o vínculo com a natureza está cortado, e os governos são obrigados a se mostrar como instância do comum da comunidade, separadas da lógica única das relações de autoridade imanentes à reprodução do corpo social, existe uma esfera pública que é uma esfera de encontro e conflito entre as duas lógicas opostas da polícia e da política, do governo natural das competências sociais e do governo de qualquer um. A prática espontânea de todo governo tende a estreitar a esfera pública, a transformá-la em assunto privado seu e, para isso, a repelir para a vida privada as intervenções e os lugares de intervenção dos atores não estatais. Assim, a democracia, longe de ser a forma de vida dos indivíduos empenhados em sua felicidade privada, é o processo de luta contra essa privatização, o processo de ampliação dessa
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esfera. Ampliar a esfera pública não significa, como afirma o chamado discurso liberal, exigir intervenção crescente do Estado na sociedade. Significa lutar contra a divisão do público e do privado que garante a dupla dominação da oligarquia no Estado e na sociedade (RANCIÈRE: 2014, p. 72).
3.2. O Devido Processo Legislativo e a Mutação Constitucional por Via Legislativa
Em uma sociedade democrática moderna é imprescindível para a produção
legítima de leis a observância de um Devido Processo Legislativo. Cattoni (2006, p. 40)
define o processo de produção da lei como
atos jurídicos que, ao densificarem um modo jurídico-constitucional de interconexão prefigurada, constituem-se em uma cadeia procedimental. Essa cadeia procedimental se desenvolve discursivamente, ou, ao menos, em condições equânimes de negociação, ou, ainda, em contraditório, entre agentes legitimados, no contexto de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, visando à formação e à emissão de um ato público-estatal do tipo pronúncia-declaração, um provimento legislativo que, sendo o ato final daquela cadeia procedimental, dá-lhe finalidade jurídica específica.
O autor irá explorar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e perceber
que a Egrégia Corte reluta em exercer um controle de constitucionalidade do processo
legislativo, considerando como uma questão interna corporis do Legislativo
(CATTONI: 2006, p. 48-51).
Vale grifar: segundo o Supremo Tribunal Federal, é somente nos casos de descumprimento direto de normas constitucionais referentes às formalidades do processo legislativo que os parlamentares teriam legitimação ativa para impetrar mandados de segurança contra os atos processuais legislativos que imediatamente descumprissem a Constituição, porque lhes assistiria um direito público subjetivo (...) de não terem de votar projetos de lei ou propostas de emenda que julguem inconstitucionais (CATTONI: 2006, p. 49).
Esse entendimento, como ressalta e contundentemente critica o autor, tem
levado à “privatização” do processo legislativo, como se tal pertencesse ao parlamentar
(CATTONI: 2006, p. 49). O processo legislativo não é um direito privado do
parlamentar; é uma “função pública de representação política” (Ibidem, p. 51). A
posição do STF tem
levado, de uma perspectiva não somente normativa, mas também objetiva, ao surgimento de verdadeiras ilhas corporativas de discricionariedade, o que estará resultando numa quase total ausência de parâmetros normativos, abrindo espaço, dessa forma, para um exercício cada vez mais arbitrário do poder político (Ibidem, p. 51).
A interpretação do Supremo sobre o processo legislativo, em uma perspectiva
pós-newtoniana, é como se houvesse alguma região do espaço constitucional em que a
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Constituição não exercesse força gravitacional. Um Buraco Negro dentro do Estado
Democrático de Direito, que sugaria toda a normatividade das normas constitucionais e
deixaria o processo legislativo a um puro exercício de força e não de poder político1.
Tribe, analisando o papel do Estado ao editar leis, conclui que ao editar uma lei está-se
distorcendo o espaço sob o qual todos nós vivemos.
A abordagem que eu estou sugerindo aqui não precisa levar, nem abraçar, uma ideologia paternalista. A heurística pós-newtoniana não força respostas sobre nós; ao contrário, ela nos compele a questionar. Não é um clamor por “todos os poderes aos juízes”, mas um questionamento de como a distribuição e direção de todos os poderes políticos – incluindo os dos juízes – definem o espaço público no qual todos nós vivemos, e no qual nas lacunas estamos perdidos (TRIBE: 1989, p. 7).
É ilógico que exista uma descontinuidade no tecido do espaço constitucional,
uma área fora do Direito. Também é inerente ao próprio processo de produção
normativa a capacidade que os próprios órgãos do Poder Legislativo interpretem a
Constituição. Como coloca Barroso (1999, p. 117),
A interpretação constitucional pelas Casas do Congresso, por Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais é indispensável para que exercitem sua atividade legislativa nos limites da Lei Maior, e, talvez mais importante, para que legislem de forma a realizar os fins constitucionais
No processo de edição de leis é possível ocorrer que o Legislativo tente mudar
uma interpretação dada pelo Judiciário a determinada norma constitucional. A esse
processo Barroso (2009, p. 132) denomina “mutação constitucional por via legislativa”.
Trata-se do problema de Lincoln proposto na Introdução, de que ele pretendia continuar
forçando o Congresso a editar leis que, segundo o entendimento da Suprema Corte dos
Estados Unidos, eram inconstitucionais. No Brasil também houve tentativa do
Legislativo de alterar interpretação da Constituição dada pelo STF, caso que passamos a
analisar.
Sempre foi uma questão controversa a prerrogativa de foro perante o Supremo
Tribunal Federal, mais especificamente sobre a sua persistência ou não caso a causa de
privilégio cesse de existir. Ainda hoje não é pacífico na Corte a questão, sendo a
jurisprudência oscilante e muito casuística. Durante décadas, contudo, mesmo já no
regime da Constituição de 1988, o STF entendeu que a prerrogativa de foro permanecia
1 Já não é mais possível imaginar áreas de uma sociedade política não afetadas pelo Direito, regiões de descontinuidade do tecido do espaço constitucional reservadas à atuação de um pretenso direito natural. Tribe (1989, p. 8, tradução livre do autor) coloca nestes termos: “Esse conceito manipulador de uma ordem social “natural”, que serve de suporte para ações estatais, é muitas vezes empregado para retirar do Estado o papel e a responsabilidade de criar e reforçar relações de poder”.
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mesmo após a perda da causa de privilégio. Esse era o sentido da Súmula n. 394:
“Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por
prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal seja iniciados após a
cessação daquele exercício” (BARROSO: 2009, p. 131).
No entanto, em julgamento de Questão de Ordem no Inquérito 687/DF, de
relatoria do Ministro Sydney Sanches, o Supremo cancelou a referida Súmula, mudando
a interpretação adotada para o artigo 102, I, b, da Constituição de 1988 e “passando a
afirmar que a competência especial somente vigoraria enquanto o agente estivesse na
titularidade do cargo ou no exercício da função” (BARROSO: 2009, p. 131). Os
representantes do Poder Legislativo não concordaram com essa mutação constitucional
adotada pelo STF e editaram a Lei n. 10.628, de 2002, que dava a seguinte redação ao
artigo 84 do Decreto-Lei n. 3.689/41 (Código de Processo Penal):
Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.§ 1o A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.§ 2o A ação de improbidade, de que trata a Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1o. (BRASIL: 2002, s/p, grifos acrescidos)
Em análise simples, a Lei restaurava o estado que existia antes do cancelamento
da Súmula n. 394. Não procedia a uma alteração do texto da Constituição em si, apenas
dava-lhe outro sentido. O STF, contudo, invalidou a pretensão do Legislativo de ser
também intérprete da Constituição por meio de edição de leis ordinárias, declarando a
Lei inconstitucional (BRASIL: 2006, p. 1-2). No seu voto o Ministro Sepúlveda
Pertence faz colocações pertinentes sobre as vinculações dos outros poderes à
interpretação constitucional procedida pelo Supremo Tribunal Federal:
Certo, a Constituição não outorgou à interpretação constitucional do Supremo Tribunal Federal o efeito de vincular o Poder Legislativo, sequer no controle abstrato de constitucionalidade das leis, quando as decisões de mérito só terão força vinculante para os “demais órgãos do Poder Judiciário e Poder Executivo”. Menos ainda cabe cogitar de vinculação do Legislativo às decisões do STF que diretamente aplicam a Constituição aos fatos: ao contrário das proferidas no controle abstrato de normas, são acórdãos que substantivam decisões tipicamente jurisdicionais, de alcance restrito às partes. O ponto está em que às leis ordinárias não é dado impor uma dada interpretação da Constituição (BRASIL: 2006, p. 17-18).
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Deixando de lado a questão de uma “interpretação autêntica” da Constituição
procedida pelo legislador, seguindo o raciocínio exposto pelo Ministro, de que as
decisões do STF não vinculam o Legislativo, mas que o problema foi o meio utilizado
pelo legislador – a lei ordinária – que não tem capacidade de interpretar normas
constitucionais, quais meios poderia o Congresso utilizar então? Resta-nos uma Emenda
à Constituição, mas tal medida altera o texto da Constituição. Evidentemente que
alterando o texto altera-se o sentido, mas não estaríamos diante de uma mutação
constitucional e sim de uma reforma através da atuação do Poder Constituinte Derivado.
O problema não é relativo ao meio utilizado, mas do entendimento do Supremo do que
seja independência e harmonia dos Três Poderes. O STF decidiu que, apesar dos demais
poderes terem o poder de interpretar a Lei Fundamental – e realmente precisam fazê-lo
no exercício de suas funções –, apenas a Excelsa Corte tem a competência de interpretar
de forma vinculativa e terminativa a Constituição. É pertinente a observação que faz
Barroso (2009, p. 133-134), de que a mudança na própria jurisprudência do STF é
indício de que existem, no mínimo, duas interpretações para o dispositivo constitucional
e ambas são legítimas, “é discutível que ao legislador não fosse facultada a escolha de
uma delas” (Ibidem, p. 134).
Voltemos à experiência norte-americana. Após a Guerra Civil o Congresso
aprovou a 13ª e 14ª emendas à Constituição com clara intenção de reverter os
precedentes adotados pela Suprema Corte. No entanto, a Corte reluta em mudar seu
entendimento e mantém-se conservadora por ainda cem anos após a Guerra Civil. Veja,
por exemplo, Lochner v. New York, caso em que o Tribunal invalida leis trabalhistas do
estado de Nova York em defesa de uma liberdade quase absoluta dos particulares de
firmarem contratos entre si, e Plessy v. Ferguson onde é adotada a doutrina do “iguais
mas diferentes” legitimadora da segregação racial que permanece por mais de um século
após a Guerra Civil. A situação começa a se alterar na década de 1930 quando outro
confronto direto entre os Poderes Executivo e Legislativo e o Poder Judiciário se
apresenta e dessa vez a Corte abre espaço para a atuação dos demais poderes. Em West
Coast Hotel Co. v. Parrish a Suprema Corte reverte a decisão Lochner e permite ao
Congresso legislar sobre questões trabalhistas (BARROSO: 2009, p. 134).
O que é evidente nesses casos é o confronto direto entre os Três Poderes, porque
interpreta-se a divisão de poderes com foco na independência, em uma perspectiva
newtoniana de gravidade, em que cada corpo exerce uma força independente um sobre o
outro através de um espaço “místico”. A mudança de paradigma deve ser orientada para
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o entendimento de que esses entes estatais estão exercendo poder em um espaço
constitucional curvo compartilhado e suas ações distorcem esse espaço, como também
são afetadas pelo próprio espaço (TRIBE: 1989, p. 10).
A Suprema Corte chega a esse nível de harmonia em Brown v. Board of
Education, quando reverte o entendimento sobre segregação de Plessy v. Ferguson.
Apesar de a decisão da Corte em si ter sido praticamente inócua, ela alterou o espaço
constitucional suficientemente para dar início a um movimento de questionamento da
segregação (TRIBE: 1989, p. 14). Os demais poderes seguiram a distorção criada pela
força gravitacional do Tribunal no tecido do espaço constitucional. O Poder Legislativo
aprovou uma série de leis – Civil Rights Act, de 1964, Voting Rights Act, de 1965, Fair
Housing Act, de 1968 – e o Executivo executou essas legislações, garantindo proteção
policial para as crianças que iriam frequentar as escolas desegregadas (BARROSO:
2009, p. 125). É uma nova perspectiva de interação entre os Poderes, fundada em um
paradigma pós-newtoniano.
3.3. Controle de Constitucionalidade e o Mundo Além do Espelho
Clássica forma de definição de constitucionalidade dos atos emanados do Poder
Legislativo, o controle de constitucionalidade, ou judicial review, exercido pelo Poder
Judiciário teve uma origem conturbada e até hoje não é pacífico sua legitimidade, apesar
de amplamente aceito. Tem origem nos Estados Unidos, com o brilhante precedente
firmado pela Suprema Corte em Marbury v. Madison em 1803, com a presidência do
chief justice John Marshall (BARROSO: 1999, p. 159-162).
O mecanismo de controle de constitucionalidade deriva da própria característica
de supremacia da Constituição em relação às demais normas do Ordenamento Jurídico e
isso está expresso no voto de Marshall: “ou a Constituição controla todo ato legislativo
que a contrarie, ou o legislativo, por um ato ordinário, poderá modificar a Constituição.
Não há meio termo entre tais alternativas” (HUGHES Apud BONAVIDES: 2013, p.
318). Não está explícito no texto constitucional norte-americano que competiria ao
Judiciário a revisão de leis emanadas do Legislativo, mas Marshall raciocina que essa
função derivaria do próprio trabalho dos Tribunais que é o de aplicar as leis ao caso
concreto. Na realização dessa função, ao se deparar com duas leis que igualmente se
aplicam ao caso – de um lado a Constituição e do outro uma lei ordinária – seria
contraditório ao princípio da supremacia constitucional escolher aplicar a lei ordinária
(BARROSO: 1999, p. 160-162). Também não poderia ser deixado a cargo do
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Legislativo – órgão do qual emanou a lei – o controle de constitucionalidade do próprio
ato. Por isso mesmo da ideia de checks and balances da divisão dos Poderes (Ibidem, p.
162-163).
Por uma Constituição limitativa, eu entendo aquela que contém certas exceções específicas à autoridade legislativa, como por exemplo as de que não aprovarão bills of attainder nem leis ex post facto ou outras semelhantes. Tais limitações na prática somente poderão ser preservadas por via dos tribunais, cuja obrigação deve ser a de declarar nulos todos os atos contrários ao teor manifesto (manifest tenor) da Constituição. Sem isto todas as reservas de direitos particulares ou privilégios se reduzirão a nada (HAMILTON Apud BONAVIDES: 2013, p. 317).
Mesmo com essa fundamental função de guardião da Constituição, o Judiciário
ainda é, dentre os três poderes, o mais fraco. Nesse sentido Schwartz (Apud
BONAVIDES: 2013, p. 326-327) diz que o judiciário
é incomparavelmente o mais fraco dos três ramos do poder (...) não exerce nenhuma influência sobre a espada ou sobre a bolsa; falece-lhe a direção da força ou da riqueza da sociedade; e nenhuma resolução ativa pode tomar qualquer que seja. Em verdade, é possível dizer que não possui nem a força nem a vontade, mas um mero julgamento
Assim é que o controle de constitucionalidade, principalmente o concentrado por sua
grande intervenção na vontade emanada do Poder Legislativo deve ser utilizado com
contenção. É notável que, após Marbury, a Suprema Corte só volta a considerar uma lei
inconstitucional justamente em Dred Scott (BARROSO: 1999, p. 172).
Uma série de princípios regem e limitam a ação do Poder Judiciário no controle
de constitucionalidade. O já mencionado princípio da supremacia da Constituição é
princípio fundante da revisão judicial dos atos do Legislativo, mas outros princípios
agem de forma a limitar a capacidade interventiva do Judiciário, como: princípio da
presunção de constitucionalidade, princípio da interpretação conforme a constituição,
princípio da razoabilidade e proporcionalidade. Ao apresentar os princípios, a todo
momento o constitucionalista Luís Roberto Barroso dá sinais da limitação que se impõe
ao exercício do controle de constitucionalidade.
A declaração de inconstitucionalidade de uma norma, em qualquer caso, é atividade a ser exercida com autolimitação pelo Judiciário, devido à deferência e ao respeito que deve ter em relação aos demais Poderes. A atribuição institucional de dizer a última palavra sobre a interpretação de uma norma não o dispensa de considerar as possibilidades legítimas de interpretação pelos outros Poderes. No tocante ao controle de constitucionalidade por ação direta, a atuação do Judiciário deverá ser ainda mais contida. É que, nesse caso, além da excepcionalidade de rever atos de outros Poderes, o Judiciário desempenha função atípica, sem cunho jurisdicional, pelo que deve atuar parcimoniosamente. (BARROSO: 1999, p. 170).
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Em outro momento, ao falar do princípio da interpretação conforme a
Constituição, Barroso (1999, p. 184) é enfático que, quando a norma infraconstitucional
comporta diversas interpretações, e uma dela é constitucional, o judiciário deve preferir
validar a norma de acordo com essa interpretação do que invalidá-la segundo as demais
inconstitucionais.
foi ao Poder Legislativo, que tem o batismo da representação popular, e não ao Judiciário, que a Constituição conferiu a função de criar o direito positivo e reger as relações sociais. Só por exceção – e em resguardo de inequívoca vontade constitucional – é que deverão juízes e tribunais superpor sua interpretação às decisões e avaliações dos legisladores.
São princípios fundamentalmente republicanos, que se inserem a visão de
República exposta acima, que prevê o exercício de poder constantemente limitado e
autocontido. Um outro aspecto dos efeitos de sua decisão que os juízes devem ter em
mente é de que o próprio ato de decidir altera o espaço constitucional no qual o Poder
Judiciário atua (TRIBE: 1989, p. 10).
Tribe (1989, p. 9) trabalha essa ideia a partir do Princípio da Incerteza de
Heisenberg. Este postula que é impossível saber com precisão ao mesmo a velocidade e
a posição de um determinado objeto. O ato de observar um objeto sempre requer
interação com ele o que, inevitavelmente, leva a uma alteração do seu estado. Esse
fenômeno foi brilhantemente explicado por Erwin Schrödinger no seu experimento
teórico conhecido como “gato de Schrödinger”, com a intenção de permitir entender a
interpretação da Conferência de Compenhague sobre o resultado do experimento das
duas fendas.
Considere um gato preso dentro de uma caixa que contém um equipamento
armado com um veneno letal que matará o gato instantaneamente. A cada trinta minutos
o equipamento tem 50% de probabilidade de ser acionado e liberar o veneno. Passados
os trinta minutos, a pergunta que se faz é: o gato está vivo ou morto? A resposta a que
chega Schrödinger, através da sua equação de estado, é a de que o gato está vivo E
morto ao mesmo tempo. Ocorre o que se chama de superposição de estados, que só se
colapsa através da abertura da caixa pelo agente e a observação direta do estado do gato.
Aqui se tem que a observação do evento altera substancialmente o seu resultado.
No direito pode-se fazer um paralelo de que todo caso judicial é um experimento
como o do gato de Schrödinger. A decisão dos juízes é um ato de abrir a caixa e
determinar se o gato está vivo ou morto. O importante é que é a decisão em si que altera
o estado da realidade. Tribe (1989, p. 10-12) coloca isso muito bem analisando o caso
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Wooley v. Maynard, no qual a Suprema Corte foi chamada a decidir sobre a
obrigatoriedade de se usar o slogan “Live Free or Die” nas placas de automóveis,
tornado obrigatório por legislação do estado de New Hampshire. Alguns indivíduos
reclamavam que a lei do estado impunha a eles emitirem uma opinião religiosa, ação
proibida ao governo pela 1ª Emenda. A Suprema Corte entendeu também nesse sentido,
e invalidou a legislação dizendo que é inconstitucional “(...) obrigar um indivíduo a
disseminar uma mensagem ideológica (...)” (Ibidem, p. 10).
A questão torna-se complexa quando percebe-se que, ao invalidar a lei que
ditava ser obrigatório o uso da mensagem a todas as pessoas porque isso seria obrigar
um indivíduo a disseminar mensagens ideológicas, a Suprema Corte fez do uso da
mensagem um ato de opção ideológica. Enquanto todos eram obrigados a usar a
mensagem, seu uso não representava nenhuma opção, era apenas uma obrigação legal (o
seu não uso pode até ser considerado uma expressão política, mas seria, nesse caso, um
crime. O fato de crimes poderem ser considerados atos políticos – desobediência civil –
foge da discussão aqui). Ao dizer que era opcional o uso da mensagem o que o Tribunal
fez foi decidir que tanto quem usa a mensagem quanto quem não a usa estariam
expressando uma opção ideológica – justamente o que a decisão dizia que era proibido
ao Estado fazer (TRIBE: 1989, p. 10-12). O juiz está, nessa situação, assim como Alice
olhando para o mundo através do espelho, sem saber o que é real e o que é sonho e sem
saber quem é o sonhador daquela ilusão.
Sobre o exercício da função do judiciário, fica-se, por fim, com sempre sábias
palavras de Luís Roberto Barroso:
Por ser uma competência excepcional, que se exerce em domínio delicado, deve o Judiciário agir com prudência e parcimônia. É preciso ter em linha de conta que, em um Estado democrático, a definição das políticas públicas deve recair sobre os órgãos que têm o batismo da representação popular, o que não é o caso de juízes e tribunais. Mas, quando se trate de preservar a vontade do povo, isto é, do constituinte originário, contra os excessos de maiorias legislativas eventuais, não deve o juiz hesitar. O controle de constitucionalidade se exerce, precisamente, para assegurar a preservação dos valores permanentes sobre os ímpetos circunstanciais. Remarque-se, porque relevante, que a última palavra poderá ser sempre do Legislativo. É que, não concordando com a inteligência dada pelo Judiciário a um dispositivo constitucional, poderá ele, no exercício do poder constituinte derivado, emendar a norma constitucional e dar-lhe o sentido que desejar (BARROSO: 1999, p. 222-223, grifos acrescidos).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos a um ponto que podemos delinear a ação dos Três Poderes segundo
as definições de República, democracia e espaço constitucional curvo que
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apresentamos. A física esteve presente na formulação teórica dos pensadores iluministas
do século XVIII durante a conceituação de instituições do Direito que são utilizadas até
hoje. A física newtoniana daquela época entendia a interação entre objetos massivos
como o exercício de força gravitacional variante através da distância em um espaço
“místico”. Einstein muda essa percepção, entendendo que os objetos distorcem o
próprio espaço afetando o movimento dos outros objetos próximos.
Para o direito, a mudança de paradigma newtoniano para o pós-newtoniano na
percepção dos institutos jurídicos pode representar uma completa redefinição dos seus
papéis. Na interpretação constitucional e na interação entre os Três Poderes nesse
processo significa dizer que, contrariamente à concepção clássica que foca na
independência entre os poderes e acaba gerando descontinuidades no espaço
constitucional em que o Direito não é aplicado, a visão pós-newtoniana entende a
atuação dos entes estatais como situadas em um espaço constitucional curvo
compartilhado. Cada decisão distorce esse espaço, como também é afetada pela própria
distorção.
É fundamental perceber que uma República impõe a constante contenção do
exercício de poder, porque a democracia – por mais justa que seja essa forma de
governo – é paradoxalmente ingovernável. Conter os impulsos da massa por meio da
estipulação de consensos mínimos e duradouros é o papel da Constituição e do Poder
Judiciário como seu guardião primeiro. Contudo, também a ação do Judiciário deve ser
limitada, com risco de que se perca a própria essência da democracia de que o poder
emana do povo.
Todo caso judicial encontra-se em um estado de incerteza, quebrado apenas com
a decisão do juiz. Nesse caso, todo magistrado deve ter em mente que a sua própria
decisão é responsável por definir o estado em que a realidade do espaço constitucional
ficará após cada caso. Ele encontra-se em uma situação paradoxal de observador e
agente simultaneamente e isso impõe uma completa nova reflexão sobre sua atuação.
5. REFERÊNCIAS
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_________________. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009.
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BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros Editores ltda, 2013.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.797/DF. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002, que acresceu os §§ 1º e 2º ao artigo 84 do Código de Processo Penal. Relator Min. Sepúlveda Pertence. DJU Brasília, 19 de dez. 2006, pp. 37.
_______________. Lei nº 10.628, de 24 de dezembro de 2002. Altera a redação do art. 84 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10628.htm. Acessado em: 16/02/2015.
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HABERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta aos interpretes da constituição, contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da constituição. Porto Alegre: Fabris, 1997.
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