A crônica e os cronistas capixabas

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A crônica e os cronistas capixabas

Prof. Dr. Francisco Aurelio Ribeiro

“O cronista tem ar de remexer numa caixa de guardados ou ,antes, de perdidos”. Carlos Drummond de Andrade

A crônica é uma das formas mais antigas de literatura. Pertence ao gênero “ensaístico”, em que o autor usa o seu ponto-de-vista sem, necessariamente, ocultar-se sob um personagem. Está no mesmo grupo do ensaio, do discurso, da carta, do diálogo ou das memórias. Nesse aspecto, difere dos outros gêneros clássicos, o narrativo, o lírico, o dramático, estritamente literários.

Crônica - ‘Khronos’ – tempo

Na Idade Média, era a forma histórica preferida por escribas especializados. Em português antigo, ficaram famosas as crônicas de Fernão Lopes, Gomes Zurara, Rui de Pina, Garcia Resende, João de Barros e tantos outros.

A partir do século XIX, com o desenvolvimento da imprensa e a popularização da leitura de jornais, surgiram a crônica e o escritor-cronista, nos jornais, como um espaço de comentários, críticas, geralmente, semanal.

Machado de Assis foi o principal escritor a consagrar essa modalidade, com o pseudônimo de “Dr. Semana”.

Pode-se conceituar, modernamente, a “Crônica” como: “Gênero literário em prosa, ao qual menos importa o assunto, em geral efêmero, do que as qualidades de estilo, a variedade, a finura e a argúcia na apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem importância, ou na crítica de pessoas” (COUTINHO, Afrânio (dir.). A literatura no Brasil. 4 ed.

São Paulo: Global, 1997, p. 121)

Cronista: “…escritor que em jornais e revistas comenta ou interpreta acontecimentos ou coisas, utilizando unicamente sua cultura e suas próprias fontes de conhecimento pela redação de seus artigos, nos quais, geralmente, se revelam a agudeza, a experiência e o estilo do cronista”. (ROBLES, Sainz de. Dicionário de

Literatura. Apud COUTINHO, op. cit.)

Alceu Amoroso Lima considera José de Alencar o verdadeiro criador da moderna crônica brasileira e o melhor a fazer a integração “literatura-jornalismo-política”, já que, antes dele, “a literatura era então uma atividade marginal e até desconsiderada”.

O Espírito Santo como objeto de crônica: Cronistas – viajantes: do século XVI ao XIX

Antes, ainda, de existir o cronista capixaba, o Espírito Santo foi assunto de crônica no relato dos inúmeros viajantes que por aqui passaram, do século XVI, o período inicial da colonização, ao XIX, quando o Espírito Santo era, ainda, um espaço desconhecido, exótico, ao olhar forasteiro.

No século XVI, na época do “descobrimento”, encontram-se relatos históricos sobre o Espírito Santo nas Cartas Jesuíticas, sobretudo nas de Nóbrega e de Anchieta, no Tratado da Terra do Brasil, de Pero de Magalhães Gandavo, de 1570; na História da Província de Santa Cruz, do mesmo autor, de 1576; na Viagem à Terra do Brasil, de Jean de Lèry, de 1578, na Narrativa epistolar…, de Fernão Cardim, de 1583-90; no Tratado Descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Souza, de 1587; na História do Brasil, de frei Vicente de Salvador, de 16l5.

Pouca coisa se encontra sobre o Espírito Santo, nos séculos XVII e XVIII, período em que o olhar estrangeiro se desloca para as Minas Gerais. Somente no século XIX é que o Espírito Santo se torna, novamente, lugar de visitas e sua principal atração eram os “índios botocudos”, segundo Levy Rocha.

São preciosos os relatos de: Príncipe Maximiliano de Wied Neuwied (1782-1867); Charles Frederick Hartt (1840-1878); Barão de Tschudi (Viagens na América do Sul, 1866); Princesa Teresa de Baviera ; Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853); João Théodore Descourtilz (1775-1835); Auguste François Biard (1798-1882) e o Imperador D. Pedro II.

Auguste de Saint-Hilaire Charles Frederick Hartt

Auguste François Biard

Os cronistas capixabas: dos pioneiros do século XIX a Rubem Braga

A imprensa no Espírito Santo começa, verdadeiramente, com Pedro Antônio de Azeredo, com o Correio de Vitória, em 1849, o primeiro periódico capixaba. Era “uma folha política, literária e noticiosa”, segundo Heráclito Amâncio Pereira. Durou 24 anos.

Em 1864, o engenheiro Manoel Feliciano Muniz Freire fundou o Jornal de Vitória, que circulou até 1869. Na década de 1870, o movimento abolicionista foi o principal tema dos jornais da época, destacando-se, na imprensa, os jovens Cleto Nunes, Costa Pereira, Amâncio Pereira e Afonso Cláudio.

Afonso CláudioCosta Pereira

Principais escritores capixabas: “cronistas”

Manoel Ferreira das Neves ( ? – 1884)

Professor, latinista, inaugurou a imprensa verdadeiramente independente, sem ligações com o Governo ou com agremiações partidárias, com o periódico A Regeneração, em 17/12/1853, que durou até 1855.

Provavelmente, foi o primeiro cronista capixaba, com suas crônicas humorísticas e sátiras espirituosas. A. Cláudio infante estudou em seu colégio.

Joaquim José Gomes da Silva Neto (1818 - 1903)

Advogado, inspetor-geral da instrução pública e procurador fiscal da Fazenda, publicava crônicas em jornais que depois, reuniu nos seguintes livros: Crônica da Companhia de Jesus, 1880 e As Maravilhas da Penha ou Lendas e História da Santa e do Virtuoso Frei Pedro Palácios, 1888. Afonso Cláudio o chamava de “cronista fluminense”, por ter nascido no Rio.

José Marcelino Pereira de Vasconcelos (1821 – 1874)

Foi funcionário público, advogado, político, jornalista, autor de obras de Direito, História, Estatística e de livros didáticos. Seu Catecismo Político, de 1859, é um dos primeiros livros capixabas para “uso nas escolas de 1as letras”. Organizou o Jardim Poético, 2 vol., coletânea de poetas capixabas e a Seleta Brasiliense, também em 2 vol., um “museu pitoresco, uma leitura que deve ser pelo menos recreativa”, segundo A. Cláudio. Redigiu três jornais em Vitória: A regeneração (1853), O Semanário (1857) e O Espírito-santense (1870).

José Joaquim Pessanha Póvoa (1836-1904)

Professor, funcionário público, jornalista, escritor. Foi um dos mais atuante escritores de sua época. Autor do Hino do Espírito Santo feito para a juventude capixaba. Escreveu em vários jornais, redigiu A Gazeta de Vitória e, suas várias obras, três publicadas no Rio, de 1873 a 1895, são um misto de história/literatura, realidade/ficção: Legendas da Província do Espírito Santo; Jesuítas e Reis (lendas e contos); A cela de Padre Anchieta.

Basílio Carvalho Daemon (1834-1893)

Iniciou em Cachoeiro sua vida jornalística, fundando o jornal Itabira (1866) que, em 1868, foi substituído pelo Estandarte. Mudou-se para Vitória, assumiu a redação de O Espírito-santense, em 1874, jornal conservador que durou até 1888. Publicou: Arcanos, romance histórico, 1877; História e Estatística da Província do Espírito Santo, 1879 e Reminiscências (escritos da mocidade), 1888, este último escrito quando se desiludiu da política.

Amâncio Pereira (1862-1918)

Professor, jornalista. Publicou mais de vinte obras, entre novelas, contos, comédias e didáticos. De origem humilde, negro, o professor Amâncio Pereira foi um “escritor infatigável, um exemplo de coragem no ambiente em que age e que deverá ter contribuído para o cultivo das letras em seu Estado”, segundo A. Cláudio. Suas obras, Folhas dispersas, Humorismos e outras são crônicas sobre fatos e personagens da vida capixaba.

A produção literária das mulheres capixabas

As pioneiras foram Cecília Pitanga e Cacilda Werneck Pereira Leite, que usava o pseudônimo Cadassil. Foi a 1ª jornalista profissional a dirigir um jornal, Alcantil, em Cachoeiro de Itapemirim, no começo do século XX. Antes delas, Adelina Tecla Correio Lírio (1863-1938) e Orminda Escobar Gomes (1875-1974), professoras atuantes foram colaboradoras dos jornais da época, tendo publicado textos em verso e prosa. Orminda Escobar Gomes colaborou com os jornais Comércio do Espírito Santo (1891), A Lira (1897), Gazeta Literária (1899) sob o pseudônimo de Alcina Mary.

De todas elas, a que teve maior destaque como cronista foi Guilly Furtado Bandeira (1890-1980), que, por mais de três décadas (1920-1950), publicou na imprensa local, sobretudo na revista Vida capichaba. É dela a primeira publicação de escritora capixaba em forma de livro, na modalidade “Contos”: Esmalte e Camafeus, publicado em 1914, pela Ed.Garnier , R.J., uma raridade, pois não se conhece um exemplar, no Espírito Santo.

Todavia, a principal escritora capixaba a destacar-se na crônica e a ter uma projeção nacional foi Haydée Nicolussi (1905-1970). Esta iniciou-se como escritora na revista Vida Capichaba, em 1926, com o pseudônimo “B.H.”. Poeta, ensaísta, contista e cronista, Haydée Nicolussi foi uma das personalidades mais instigantes de sua época, por seu intelectualismo, suas posições de mulher liberada e de esquerda, sua militância profissional na imprensa por mais de 30 anos.

“Diário de uma esfinge” foi sua primeira crônica publicada, em 31/05/1928, uma modalidade muito apreciada por ela, a “crônica de viagem”. Ao morrer, deixou inéditos dois livros de crônicas organizados por ela: Diário de uma era inquieta, crônicas publicadas em jornais do R.J. e S.P. de 1942 a 1954, e Sol de outras plagas, (crônicas de viagens realizadas aos EUA, Canadá e Europa, de 1947 a 1952).

Outras cronistas capixabas que tiveram atuação na imprensa,de 1930 a 1950, foram: Anna de Castro Matos (Annete), que publicou um bom livro de crônicas, Dedo Minguinho, em 1949; Zeny Santos (1930-1986) publicou Cacos (1956) e Saveiro da Ilha dos Cisnes (1974); Yamara Soneghet (1931-1974), ativa colaboradora de jornais e revistas capixabas da década de 1950; Yvonne Amorim (1918) e que publicava crônicas em A Gazeta e Folha do Povo, na década de 1950, com o pseudônimo “Grega”. Muitas delas foram publicadas em 2006, em Margeando o Rio Doce (Crônicas do Tempo).

Yvonne Amorim

Rubem Braga e seus sucessores:

Rubem Braga (1913-1990) é, sem nenhuma dúvida, o criador da crônica moderna, com seu lirismo, subjetividade, imaginação poética, simplicidade clássica. Seu papel, na crônica, equivale ao de Manoel Bandeira, na poesia, ao utilizar uma linguagem direta, melódica, coloquial, despojada de artificialismos e de convencionalismos. Desde a sua estréia com O conde e o passarinho, em 1936, às suas últimas produções da década de 1980, Rubem Braga deu à crônica um status literário a um gênero antes desprezado pelos intelectuais.

Antes de Rubem Braga, José Madeira de Freitas (1893-1944), o Mendes Fradique teve certa repercussão nos jornais do Rio, tendo consagrado o “método confuso” em seus textos, dentro do espírito zombeteiro e iconoclasta da década de 1920. Publicou, na modalidade “crônicas”: A lógica do absurdo, 1926; Idéias em zig-zag, 1928; Contos do vigário, 1924 e Feira Livre, 1923.

Após Rubem Braga, o primeiro escritor capixaba a ter repercussão nacional foi José Carlos Oliveira (1934-1986), que iniciou sua carreira literária de cronista em A Tribuna, na década de 1950, tendo ido para o Rio, em 1952, onde foi cronista do Jornal do Brasil durante 23 anos. Carlinhos Oliveira encarnou como ninguém o espírito dos anos rebeldes dos anos 1950/60 e o da “contracultura”, da década de 1970.

Do existencialismo ao niilismo, do materialismo ao metafísico, do ceticismo ao misticismo cristão, de tudo se impregnavam as crônicas de Carlinhos Oliveira. Deixou escritas cerca de 500 crônicas, das quais foram publicadas em livros: Os olhos dourados do ódio, 1962; A revolução das bonecas, 1967; O saltimbanco azul, 1979; Diário da patetocracia, 1995; O rebelde precoce (crônicas da adolescência), 2003, O homem na varanda do Antonio’s e Flanando em Paris, 2004.

Carmélia Maria de Souza (1936-1974) foi a mais importante cronista de sua época, atuando em jornais e revistas capixabas. Suas crônicas refletem a carência, o sentimento, o abandono, o “espírito de fossa” de uma geração contestadora, romântica, perdida entre mundos que se opunham. Foram reunidas em um livro por Amylton de Almeida publicado em 1976 e reeditado em 2002, Vento Sul.

Outro cronista que se imortalizou com o mesmo espírito de Carlinhos Oliveira e Carmélia Souza, sem sair da província, foi Luiz Fernando Tatagiba (1946-1988), o mais perfeito representante capixaba da “geração marginal” dos anos 1970. Publicou: A invenção da saudade, 1986, Rua, 1986.

Alvino Gatti (1925-1982), jornalista político de A Gazeta e A Tribuna, publicou crônicas com o pseudônimo de Attílio Papini ou Mar-Te-Co, agradando ao público com o lirismo, a melancolia e um certo estilo. Algumas foram publicadas no projeto Nosso Livro, de A Gazeta/UFES, em 1995 e no livro Crônicas de Alvino Gatti, 2 vol., 1997.

Eugênio L. Sette (1918-1990) assinava crônicas em A Gazeta, A Tribuna e na revista Vida capichaba desde a década de 1940, publicadas em livro com o título de sua coluna Praça Oito, 1953, reeditado em 2001.

Uma cronista que considero autêntica sucessora de Rubem é a cachoeirense Alda Estellita Lins (1932), radicada, também, no Rio de Janeiro. Publica crônicas em jornais e revistas de diferentes estados e possui vários prêmios literários. Seus livros publicados de crônicas são: Milho da minha roça, 1991; Espelho que me revela, 1992; Assim como a luz de um fósforo, 1994; Três minutos não mais, 1994; Crônicas daqui & dali, 2002.

Dentre os vários cronistas surgidos no Espírito Santo, escrevendo em jornais, a partir da década de 1960, e que podem ser considerados “herdeiros de Rubem Braga”, destacam-se alguns nomes como: Marzia Figueira (1938-2000), que escreveu em diversos jornais por mais de 30 anos, deixando mais de 500 crônicas publicadas. Seu único livro publicado foi Os inocentes,editado em 1999, um ano antes de sua morte

Outros cronistas foram: Homero Mafra (l923-l984) publicou: Três assuntos em uma semana, 1985 e Flauta em surdina, 1996; José Moysés (1916-2000), Crônicas, 2001; Lourival de Paula Serrão (1906-1984), Retalhos da vida, 1954, Cachoeiro; Ormando de Moraes (1915-2003), Caderno de Crônicas, 1967, Não fica bem a Revolução chegar a pé, 1979; Nilge Limeira (1922), Crônicas de bolso, 1974, Nilge Limeira e seu canto de vida, 1981, Três Momentos, 1990; Maria Nilce Magalhães (1929-1989), Crônica de uma ilha muito doida, 1977, Como o diabo gosta, 1979.

Dos cronistas atuais, destacam-se: Ivan Borgo (1929), Crônicas de Roberto Mazzini, 1995 e Novas crônicas de Roberto Mazzini, 2003; Luiz Guilherme Santos Neves (1933), Crônicas da insólita fortuna, 1998, O escrivão da frota, 1997; Pedro Maia, cronista de A Tribuna, publicou Cidade Aberta, 1993; Marilena Soneghet (1938), Trança, 2000;Luiz Sérgio Quarto(1947), Os manacás estão floridos e Mês de maio em Iúna; Tavares Dias, Boca de beijo, 2002 e Uma Janela no Muro, 2005;

Ivan Borgo

Luiz Guilherme

Marcos Alencar (1946), Adoráveis peruas, 1990, Aceita um lexotan?, 1996; Maria Helena Teixeira de Siqueira (1927), Janelas abertas, 2006; Marília V.Mignoni(l940),As histórias que eu vivi, Nem te conto... os contrastes da vida ;Antônio José Miguel Feu Rosa(1934), Crônicas selecionadas;Humberto Del Maestro(1938), Crônicas e outros escritos,2003; José Carlos da Fonseca(1931), Crônica escolhidas, 2001; Regina Helena Magalhães, Sem quê nem por quê, 2005;

Maria Helena Hees Alves (1933) tem várias crônicas publicadas em jornais e revistas, ainda inéditas em livro, bem como Deny Gomes(l938), Elizabeth Martins (1952), Bernadette Lyra (1938), José Augusto Carvalho(l940) e José Irmo Gonrig (1949). Elisa Lucinda (1958), poeta e atriz, depois de alguns livros de poesia, publicou, em 2004, Contos de vista (crônicas). Neusa Possatti (1958) publicou A outra, 2004. Matusalém Dias de Moura(1959) publicou Crônicas da Montanha do Mar,2006, tendo ganhado o prêmio , tendo ganhado o prêmio Rubem Braga de crônica da UBE.Adilson Vilaça (1956), um dos mais prolíficos escritores capixabas, dentre os seus vários livros editados, publicou A trilha do centauro, 2005, um dos melhores já publicados nos últimos anos.

Vários cronistas capixabas têm publicado seus livros em diferentes jornais e revistas da capital e do interior do Estado, destacando-se, na nova geração, Ana Laura Nahas, Mara Coradello, Anne Ventura, Erly Vieira, dentre outros, mas é interessante destacar que a crônica como modalidade literária não é muito cultivada entre os jovens, que se iniciam, literariamente, com a poesia ou o conto.

FIM

“A palavra, que arranca o prosador de si mesmo e o lança no meio do mundo, devolve, como um espelho, a sua própria imagem.” (Jean-Paul Sartre)